Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
517/18.0PWLSB-A.L1-9
Relator: ALMEIDA CABRAL
Descritores: CERTIFICADO DE REGISTO CRIMINAL
PRESSUPOSTOS FORMAIS
PRESSUPOSTOS MATERIAIS
NÃO TRANSCRIÇÃO DA CONDENAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I- O artigo 13.º, n.º 1 da Lei n. 37/2015, de 5 de Maio, regula a não transcrição da respetiva sentença nos certificados de registo criminal das condenações de arguidos devidamente transitadas em julgado;
II-Ressalta do dispositivo em causa que a não transcrição nos certificados de registo criminal das respectivas decisões está condicionado à verificação de dois pressupostos:
Um de ordem formal, isto é, que se esteja perante uma pessoa singular, que a respectiva condenação seja em pena de prisão até um ano, ou em pena não privativa da liberdade e que o arguido não tenha sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e outro de ordem substantiva ou material, isto é, que das circunstâncias que acompanharam o crime não se possa induzir perigo de prática de novos crimes;
III-Logo se o arguido foi condenado pela pratica de um crime de “violência doméstica”, p. p. nos termos do art.º 152.º, nºs. 1, al. a), 2, al. a) e 4, do Cód. Penal, na pena de dois anos e três meses de prisão, a qual ficou suspensa na sua execução por igual período de tempo e subordinada ao regime de prova, e, ainda, na pena acessória de proibição de contacto com a vítima pelo período de dois anos e três meses, não é possível a não transcrição da condenação sofrida no seu CRC, por não estarem reunidos, quer os pressupostos formais, quer materiais exigidos por lei.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – No Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 6, Processo Comum Singular n.º 517/18.0PWLSB, foi o arguido/recorrente AA julgado e condenando com o autor de um crime de “violência doméstica”, p. p. nos termos do art.º 152.º, nºs. 1, al. a), 2, al. a) e 4, do Cód. Penal, na pena de dois anos e três meses de prisão, a qual ficou suspensa na sua execução por igual período de tempo e subordinada ao regime de prova, e, ainda, na pena acessória de proibição de contacto com a vítima pelo período de dois anos e três meses.
Transitada em julgado a referida decisão, veio o arguido requerer a não transcrição da sentença nos certificados de registo criminal, nos termos previstos no art.º 13.º, n.º 1 da Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio.
Esta pretensão, porém, veio a ser-lhe negada pelo tribunal “a quo” com a prolação do seguinte despacho:
“(…)
DO REQUERIMENTO DE NÃO TRANSCRIÇÃO DA DECISÃO PARA O CERTIFICADO DO REGISTO CRIMINAL:
Por requerimento de 05/03/2020, com a ref. citius n.º 25745047, veio o condenado AA requerer a não transcrição da sentença proferida nos presentes autos no seu certificado de registo criminal, com fundamento na circunstância de a referida transcrição o impedir de exercer a atividade profissional como motorista da Uber. Mais juntou o mesmo, para o efeito, diversos documentos (ref. citius n.° 25959300).
Em sentido contrário, pronunciou-se o Ministério Público, pugnando pelo indeferimento da pretensão acima descrita por falta de fundamento legal.
Cumpre apreciar e decidir.
Dispõe o artigo 13.° da Lei n. 37/2015, de 5 de Maio (Lei da identificação criminal):
«1- Sem prejuízo do disposto na Lei n.° 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no artigo 152.º, no artigo 152.°-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, os tribunais que condenem pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, se o arguido não tiver sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes, a não transcrição da respetiva sentença nos certificados a que se referem os nºs. 5 e 6 do artigo 10.°.
2 - No caso de ter sido aplicada qualquer interdição, apenas é observado o disposto no número anterior findo o prazo da mesma.
3 - O cancelamento previsto no n.º 1 é revogado automaticamente, ou não produz efeitos, no caso de o interessado incorrer, ou já houver incorrido, em nova condenação por crime doloso posterior à condenação onde haja sido proferida a decisão».
A exceção descrita no n.º 1 do referido preceito está relacionada com as situações em que esteja em causa o exercício, por parte do condenado, de atividade profissional que envolva o contacto regular com menores; situação em que os pressupostos para a não transcrição se revelam bastante mais restritos.
Conforme resulta dos autos, o arguido AA foi condenado nos mesmos, por sentença transitada em julgado, pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.°/1, alínea a), 2 e 4 do Código Penal, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, subordinada ao regime de prova, assente num plano de reinserção social que será determinado e fiscalizado pela DGRSP e dirigido à prevenção da prática, no futuro, de crimes da mesma natureza.
Mais foi igualmente o arguido condenado, outrossim, na pena acessória de proibição de contacto com a assistente (por qualquer meio, seja diretamente, seja por interposta pessoa) pelo período de 2 ano e 3 meses, com exceção do estritamente necessário ao exercício das responsabilidades parentais dos filhos comuns BB, CC e DD, nos termos do artigo nos termos do artigo 152.º, n.º 4 do Código Penal e 152.º/4 do Código Penal.
 Pese embora a atividade profissional visada pelo arguido não envolva o contacto regular com menores e o mesmo não tenha averbado no seu CRC qualquer outra condenação, a verdade é que não se encontram reunidos os pressupostos legais para que seja deferida a sua pretensão quanto à não transcrição da sentença no seu certificado de registo criminal.
Conforme resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12-09-2019, proc. 171/17.7P13MTA-A11-9, rel. Abrunhosa de Carvalho (disponível em www.dgsi.pt), «a normalidade em matéria de registo criminal é a transcrição, sendo a não transcrição a exceção, pois visando o registo criminal permitir o conhecimento dos antecedentes criminais das pessoas condenadas e das decisões de contumácia vigentes, a não transcrição só pode mesmo ser considerada uma exceção, a qual tem na base razões de não estigmatização do condenado, já que se reporta a certificados para fins do exercício de profissão e sempre associadas a crimes de pequena gravidade, o que, manifestamente, não acontece no crime de violência doméstica quando os elementos disponíveis não permitem afastar o perigo da prática de novos crimes pelo arguido».
Ora, na situação dos autos, resulta sinalizado pela DGRSP que o arguido não demonstra adesão ao plano de reinserção social elaborado, designadamente no que respeita à frequência do programa de agressores em contexto de violência doméstica (cf. ref. citius n.° 25978070). Não sendo possível, em face do exposto, realizar qualquer tipo de juízo de prognose positiva relativamente à sua atuação futura.
Ao que se disse acresce, ademais, que se encontra ainda em curso o cumprimento da pena acessória de proibição de contacto do arguido com a assistente, tendo esta já demonstrado nos autos ter receio da atuação futura do ora condenado (cf. informação da DGRSP com a ref. citius n.° 25552598).
Nessa medida, e em face do que se disse, não se vislumbra ser possível induzir a inexistência de perigo da prática de novos crimes por parte do condenado, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 13.° da Lei da identificação criminal, aderindo-se, na íntegra, à promoção do Ministério Público que antecede, cujo teor se dá por integralmente reproduzido nesta sede.
 Termos em que, em face do exposto, julga-se improcedente o pedido de não transcrição da sentença formulado pelo arguido AA nos presentes autos. (…)”.
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Inconformado com a decisão em causa, da mesma interpôs o arguido/requerente o presente recurso, o qual sustentou na verificação dos pressupostos que permitem a não transcrição da decisão condenatória nos respectivos certificados de registo criminal, considerando, ainda, que o despacho recorrido viola o que considera serem os seus direitos fundamentais.
Da motivação de recurso extraiu o recorrente, a final, as seguintes conclusões:
“(...)
O recorrente defende que estão preenchidos os requisitos formais e materiais exigidos pelo diploma legal que regula a matéria em discussão e pelos motivos acima elencados, requer desse tribunal pela procedência de seu recurso, pela revogação do despacho recorrido, autorizando-se nos termos requeridos pelo recorrente pela não transcrição da condenação em seu respectivo certificado de registo criminal. (…)”.
*
O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito não suspensivo.
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Notificado da interposição do recurso, apresentou o Ministério Público a respectiva resposta, onde, a final, formulou as seguintes conclusões:
“(…)
1 - O arguido interpôs recurso do despacho proferido pelo Tribunal “a quo” que indeferiu o pedido de não transcrição da condenação que sofreu nos autos nos certificados de registo criminal entendendo que foi feita uma errada interpretação do art.° 13.°/1 da Lei 37/2015 de 05/05.
2 - A aplicação do art.° 13.º/1 da Lei 37/2015 de 05/05 pressupõe a coexistência de dois requisitos formais e um requisito material. Os dois primeiros relacionam-se com a natureza da condenação e com os antecedentes criminais do arguido: a pena aplicada tem de ser não privativa da liberdade ou, sendo de prisão, terá de se fixar até 1 ano; por outro lado, o arguido não pode ter sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza. O requisito material, traduz-se em não decorrer das circunstâncias do crime o perigo de prática de novos crimes.
3 - Em concreto o crime praticado - Violência doméstica- assume um carácter grave e as penas - principal e acessória - não se mostram extintas.
4- Em face das informações da DGRSP constantes dos autos infere-se que o condenado não assumiu o desvalor da sua conduta, pelo que não é possível realizar um juízo de prognose positiva relativamente à sua actuação futura, designadamente, de que o mesmo não praticará novos crimes.
5 - Assim, ao não se verificar o requisito material exigido na lei e sendo os três requisitos cumulativos, impunha-se que o Tribunal “a quo” indeferisse a pretensão do recorrente, tal como fez e bem.
6 - A normalidade em matéria de registo criminal é a transcrição, sendo a não transcrição a excepção. Da interpretação conjugada dos arts.° 2.°, 4.° da Lei n.° 113/2009 de 17/09 e arts.° 10.° e 13.° da Lei n.° 37/2015 de 05/05, com especial relevo para o art.° 4.°/6 da Lei n.° 113/2009, de 17/09, ressalta que o legislador quis afastar a possibilidade de não transcrição da condenação por crime de violência doméstica, entre outros.
7 - Com a prolação do despacho recorrido, o Tribunal “a quo” não violou qualquer norma ou princípio jurídico, porquanto o juízo de prognose feito a propósito da aplicação da suspensão da execução da pena não é coincidente com o que deve ser formulado para se aplicar o regime previsto no art.° 13.° da Lei n.° 37/2015, de 05/05. Uma coisa é a esperança tida como base na suspensão da execução de uma pena de prisão, de que o arguido não volte a delinquir e outra é a ponderação do perigo da prática de novos crimes, considerando as circunstâncias que acompanharam o crime nos termos constantes da sentença já transitado em julgado.
8 - A decisão recorrida não viola qualquer normativo constitucional, designadamente, não se verifica a ofensa ao princípio do ne bis in idem consagrado no art.° 29.°/5 da CRP, por não existir uma segunda condenação pelos mesmos factos; a decisão recorrida não viola o direito de acesso ao trabalho do arguido (art.° 58.° da CRP) nem a responsabilidade penal se transmite aos descendentes do condenado, por força da mesma (art.° 30.°/3 da CRP), tal como defende o recorrente.
9 - A pena aplicada ao recorrente não será considerada para efeitos de certificado do registo criminal requerido pelo mesmo para fins de emprego, público ou privado, ou para o exercício de profissão ou actividade em Portugal, que não exijam o requisito (exigência legal) da ausência, total ou parcial de antecedentes criminais.
10 - O despacho recorrido efectua uma correcta interpretação dos arts.° 10.° e 13.° da Lei n.° 37/2005, de 05/05 e arts.° 2.° e 4.°/4 da Lei n.° 113/2009, de 17/09, sendo o indeferimento da pretensão do recorrente uma decisão formal e materialmente adequada.
Nestes termos, julgamos que o presente recurso não merece provimento devendo ser considerado improcedente e mantida na íntegra a decisão recorrida. (…)”.
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Neste Tribunal o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Mantêm-se verificados e válidos todos os pressupostos processuais conducentes ao conhecimento do recurso, o qual, por isso, deve ser admitido, havendo-lhe, também, sido correctamente fixados o efeito e o regime de subida.
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2 - Cumpre apreciar e decidir:
É o objecto do presente recurso, tão só, o saber-se se há, ou não, fundamento válido e relevante para a não transcrição da condenação em causa nos certificados de registo criminal do recorrente.
Vejamos:
Dispõe o artigo 13.º, n.º 1 da Lei n. 37/2015, de 5 de Maio, que, “sem prejuízo do disposto na Lei n.° 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no artigo 152.º, no artigo 152.°-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, os tribunais que condenem pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, se o arguido não tiver sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes, a não transcrição da respetiva sentença nos certificados a que se referem os nºs. 5 e 6 do artigo 10.°”.
O n.º 2, por sua vez, dispõe que, “no caso de ter sido aplicada qualquer interdição, apenas é observado o disposto no número anterior findo o prazo da mesma”.
Assim, resulta do dispositivo em causa que a não transcrição nos certificados de registo criminal das respectivas decisões está condicionado à verificação de dois pressupostos:
Um de ordem formal, isto é, que se esteja perante uma “pessoa singular”, que a respectiva condenação seja em “pena de prisão até um ano” ou em pena não privativa da liberdade” e que “o arguido não tenha sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza”;
Outro de ordem substantiva ou material, isto é, “que das circunstâncias que acompanharam o crime não se possa induzir perigo de prática de novos crimes”.
Ora, reportados ao caso dos autos, impõe-se começar por dizer ser inquestionável, desde logo, a não verificação, na sua plenitude, do pressuposto de ordem formal, pois que o recorrente não só foi condenado numa pena de prisão, embora suspensa na sua execução, como esta foi superior a um ano - (2 anos e 3 meses).
Por outro lado, foi o recorrente, ainda, condenado na pena acessória de proibição de contacto com a vítima, o que, por força do n.º 2 do citado art.º 13.º, impede, de todo, no imediato, a ponderação, sequer, da possibilidade de não transcrição da respectiva sentença nos certificados de registo criminal.
Depois, também o pressuposto de ordem substantiva ou material, como bem se salienta no despacho recorrido e melhor o justificou o Ministério Público na sua “resposta”, não poderá ter-se por verificado.
O recorrente, pese embora não registe antecedentes criminais, viu a suspensão da execução da pena ficar subordinada ao regime de prova.
Todavia, conforme informação prestada pela DGRSP, o mesmo “não demonstra adesão ao plano de reinserção social elaborado, designadamente no que respeita à frequência do programa de agressores em contexto de violência doméstica”.
Em julgamento, por sua vez, não assumiu o arguido/recorrente a prática dos factos, o que pressupõe falta de arrependimento e ser o mesmo dotado de uma personalidade insensível ou indiferente aos valores jurídicos tutelados, capaz, por isso, de reincidir na sua violação, o que, saliente-se, é corroborado pelo sentimento de receio manifestado e reafirmado pela ofendida/assistente.
Assim, como se salientou na decisão recorrida, “não é possível, realizar qualquer tipo de juízo de prognose positiva relativamente à atuação futura do recorrente.
Deste modo, invocando-se, no demais, os fundamentos da decisão recorrida e a argumentação usada pelo Ministério Público na sua “resposta” ao recurso, os quais aqui se dão por reproduzidos para os necessários efeitos, à luz, designadamente, do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 684/2015, de 15/12, publicado no D.R. n.º 42, 2.ª Série, de 01/3/2016, e, ainda, porque as exigências de prevenção, quer especial, quer geral, se fazem particularmente sentir neste tipo de crime, considera-se não estarem verificados os pressupostos exigidos no art.º 13.º, nºs. 1 e 2 da Lei n.º 37/2015, razão por que a pretensão do recorrente haverá de ser indeferida.
3 - Nestes termos e com os expostos fundamentos, acordam os mesmos Juízes, em conferência, em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
Notifique.

Lisboa, 24/09/20
Almeida Cabral
Fernando Estrela