Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1714/15.6T8CSC-D.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: INCIDENTES DA INSTÂNCIA
CONVOLAÇÃO
CONTESTAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Não é lícito ao juiz, nem no âmbito do dever de gestão processual que sobre si impende, nem ao abrigo dos princípios da agilização processual e da adequação formal, convolar um típico requerimento inicial de um incidente de habilitação de herdeiros, a tramitar por apenso à ação principal, numa contestação à petição inicial com que foi introduzida tal ação.

(Elaborado pelo relator – art. 663º, nº 7, do CPC)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


1–RELATÓRIO:


Maria A.S. e António A.S., intentaram no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo Central Cível de Cascais – Juiz 3, ação declarativa contra Neli..., Rosa..., Filipa..., Ana... e João..., a que foi atribuído o nº 1714/15.6T8CSC-D.L1, pedindo que seja declarada a nulidade do contrato de compra e venda celebrado por escritura pública realizada no dia 6 de junho de 1995, no Cartório Notarial de Sines, pelo qual Jorge..., representado pelo seu procurador, António A.S., declarou vender ao próprio procurador, casado no regime de comunhão de adquiridos com Neli..., que declarou comprar-lhe, pelo preço de 4.500.000$00, livre de quaisquer ónus ou encargos, a fração autónoma designada pela letra “L”, correspondente ao 5º andar ..., com uma arrecadação na cave, do prédio urbano sito na Rua..., nº ..., em Carnaxide, concelho de Oeiras, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o nº .../Carnaxide.

No dia 6 de julho de 2015, Neli... apresentou, por apenso àquele processo, o requerimento certificado a fls. 62-64 destes autos de recurso em separado, com o seguinte teor:
«Neli..., na qualidade de R. nos autos à margem referenciados e neles melhor identificada, tendo sido citada da presente acção declarativa no pretérito dia 5 de Junho de 2015, para contestar querendo, e por se encontrar em prazo, vem nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 351º e ss do C.P.C., deduzir
Incidente de Habilitação de Herdeiros contra,
Rosa..., R. nos presentes autos e nestes melhor identificada;
Filipa..., R. nos presentes autos e nestes melhor identificada;
Ana..., R. nos presentes autos e nestes melhor identificada;
João..., R. nos presentes autos e nestes melhor identificada;

O que faz nos termos e com os seguintes fundamentos:
Art. 1°
Nos autos de acção declarativa nº Proc. 1714/15.6T8CSC, os AA. vieram demandar Rosa...; Filipa...; Ana... e João....
Art. 2°
Compulsado o teor da petição inicial não se vislumbra, quem é quem, e em que qualidade estes são demandados.
Art. 3°
Aliás, da análise dos documentos juntos pelos AA., parece resultar que os RR. serão sucessores do falecido Jorge....
Art. 4°
Contudo, não pode a presente acção seguir os seus termos com pressupostos de legitimidade passiva.
Art. 5°
Por outro lado, nada consta nos autos que nos permita aferir que os RR. se encontram habilitados como sucessores/herdeiros do falecido, visto não existir nos mesmos o documento que os habilita, vulgo Escritura de Habilitação de Herdeiros.
Neste cenário.
Art. 6°
Tendo em atenção que a habilitação de herdeiros visa legitimar quem é que substitui (legitimidade substantiva) o "de cujus" na relação substantiva que é objecto do pleito (neste sentido R.P. de 30.10.2003: proe. 0334851.dgsi.net);
Art. 7°
E, não se podendo descorar o facto de não se saber se a herança aberta por óbito de Jorge... se encontra jacente ou se até já foi aceite, uma vez, que é relevante para se saber que poderá intervir como parte em processos judiciais em representação do "de cujus";
Art. 8°
Sendo certo que, não inviabiliza a habilitação o facto da morte da pessoa singular ter ocorrido antes da propositura da acção (Ac. RC, de 27.02.2007: CJ, 2007, 1º-33 e proc. 1100/04.TBVIS-A.C1.dgsi.net)
Art. 9°
Não resta outra alternativa à R., Neli..., senão deduzir por apenso a estes autos, o presente Incidente de Habilitação de Herdeiros, o qual tem como efeito a suspensão da instância até que sejam habilitados os herdeiros.
(…)
Nestes termos e nos melhores de direito, requer-se a V. Exa. que se digne admitir o presente incidente, a processar-se por apenso aos presentes autos (art. 352°, nº 2 C.P.C.), requerendo-se a notificação dos RR., Rosa...; Filipa...; Ana... e João..., para contestarem, querendo, a Habilitação, nos termos do art. 352°, nº 1 C.P.C.»
*

Sobre esse requerimento recaiu o seguinte despacho, datado de 10 de julho de 2017, com a Refª 107806235, certificado a fls. 81 deste apenso:
«Dentro do prazo para apresentar contestação, a 1ª Ré apresentou nos autos articulado denominado "incidente de habilitação de herdeiros" no qual alega, além do mais, que nestes autos se não verificam os pressupostos de legitimidade passiva (artigo 4º).

Visto que se entende que os nomen iuris dados aos articulados se não sobrepõem ao seu conteúdo material (assim como se releva os casos em que são apresentados esclarecimentos a articulados apresentados em forma não articulada) foi a parte notificada para esclarecer tal contradição no nome dado ao articulado, esclarecendo se pretendia contestar, o que a mesma afirmou.
Termos em que se considera que o articulado apresentado em 6-7-2017[1] como uma contestação.»
*

Inconformado com esse despacho, dele veio António A.S., autor na ação principal, interpor o presente recurso de apelação, concluindo assim a respetiva alegação:
1.- (…);
2.- O requerimento de habilitação de herdeiros foi deduzido pela ré com o único objetivo, expresso, de se declarar habilitados alguns réus, como sucessores de Jorge Abranches Saraiva;
3.- Tal incidente foi deduzido, como a lei impõe, por apenso;
4.- Nesse requerimento é pedida a notificação de alguns réus, os que se pretendem habilitar para contestarem, querendo, a habilitação;
5.- Não se pede, sequer, a notificação dos autores para contestarem a pretendida habilitação;
6.- Mas uma contestação à ação principal é uma oposição dirigida contra os autores, onde se impugnam os fundamentos da ação, o que nem sequer acontece no presente incidente;
7.- Como contestação, aliás, seria completamente irrelevante porque não impugna nenhum facto alegado pelos autores;
8.- A junção aos autos principais de uma cópia deste requerimento de habilitação de herdeiros visa apenas reforçar a ideia da suspensão dos autos principais;
9.- O douto despacho recorrido viola os arts. 6º, 569º 571º, 572º e 574º, do Código de Processo Civil. 
*

2–ÂMBITO DO RECURSO:
Nos termos dos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, é pelas conclusões do recorrente que se define o objeto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.

Assim, perante as conclusões da alegação do apelante, a questão a decidir neste recurso consiste em saber se a peça processual apresentada por Neli... no dia 6 de julho de 2015, por apenso aos autos principais, como requerimento inicial de um incidente de habilitação de herdeiros, pode valer como contestação à petição inicial com que foi introduzida em juízo a ação principal.
*

3–FUNDAMENTAÇÃO:

3.1–Fundamentação de Facto:
Com relevo para a decisão do presente recurso, os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede.
*

3.2–Fundamentação de direito:
Nos termos do art. 569º, nº 1, 1ª parte, do CPC, o réu pode contestar a ação no prazo de 30 dias a contar da sua citação.

Dispõe o art. 572º do mesmo código:

«Na contestação deve o réu:
a)- Individualizar a ação;
b)- Expor as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor;
c)- Expor os factos essenciais em que se baseiam as exceções deduzidas, especificando-as separadamente, sob pena de os respetivos factos não se considerarem admitidos por acordo por falta de impugnação; e
d)- Apresentar o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova; tendo havido reconvenção, caso o autor replique, o réu é admitido a alterar o requerimento probatório inicialmente apresentado, no prazo de 10 dias a contar da notificação da réplica.»

Tal como refere Antunes Varela, «diz-se contestação a peça escrita na qual o réu, chamado a juízo para se defender, responde à petição apresentada pelo autor.

Num sentido material (ou substancial), a contestação é o acto (que pode revestir várias formas) pelo qual o demandado responde à pretensão formulada pelo requerente.

No seu sentido usual, mais preso ao lado substancial da linguagem, o termo contestar significa negar, contrariar, desdizer, regatear, discutir.

Na sua acepção formal (como acto de resposta escrita à petição do autor), a contestação pode, no entanto, revestir uma dupla variante, em função do seu conteúdo, com relevante interesse para a definição do seu regime: a contestação-defesa (…).

Na contestação-defesa, a que por via da regra se reconduz a generalidade das contestações, o réu limita-se repelir, directa ou indirectamente, a pretensão do autor nos termos em que esta é deduzida.
(…)
No respeitante à forma, pode distinguir-se entre a contestação articulada, a contestação por negação e a contestação por mera junção de documentos.

Na contestação articulada – a única que a lei (art. 488º[2]) expressamente admite – o réu alega em termos discriminados (mediante proposições numeradas, sob a forma de artigos) as razões de facto e de direito que servem de fundamento à sua defesa (…).

Na contestação por negação (…) o réu nega em bloco, indiscriminadamente, a matéria de facto constante da petição. (…).
A contestação por simples junção de documentos assenta no puro oferecimento real da prova documental, desacompanhada de qualquer alegação escrita sobre os próprios factos a que o documento se refere. Não é mencionada nos textos legais, mas cabe sem dúvida no espírito da lei, como forma válida de contestação.»[3].

Alberto dos Reis ensinava que «na contestação, do mesmo modo que na petição inicial, podem distinguir-se três partes: a) o preâmbulo; b) a narração; c) a conclusão.
(…)
2.– Narração. O art. 492º[4] manda que o réu exponha, com a maior clareza e concisão, os factos e as razões de direito da sua defesa, isto é, os fundamentos de facto e os fundamentos de direito em que a sua defesa se apoia.
(…)
3.– Conclusão. Deve o réu formular, com a maior clareza e concisão, as conclusões da defesa.
(…) se o réu houver deduzido simultaneamente defesa indirecta por excepção dilatória, defesa indirecta por excepção peremptória, e defesa por impugnação, é claro que não limitar-se a enunciar uma única conclusão. (…) a conclusão do articulado deve ser a enunciação ou o corolário lógico das alegações e fundamentos expostos; a conclusão deve estar para com a defesa deduzida na mesma relação lógica em que a conclusão de um silogismo deve estar para com as respectivas premissas.»[5].
Lebre de Freitas/Isabel Alexandre salientam que «o diploma intercalar de 1985 deixou cair, no art. 488º do CPC de 1961, o advérbio “separadamente”, substituiu a exposição dos factos pela exposição das razões de facto (expressão que melhor englobava, quer a tomada de posição sobre factos alegados pelo autor, quer a alegação dos novos factos trazidos ao processo pelo réu) e deixou de mencionar as conclusões da defesa. A esta esta última alteração deve ser dado o sentido de dispensar uma conclusão formal da contestação, análoga à dedução do pedido na petição inicial: as exceções não conformam o objeto do processo (…) e, por isso, a sua invocação não tem de ter o destaque que tem o pedido; mas a conclusão de direito sobre o tipo de absolvição que o réu julga dever ter lugar é ainda uma razão de direito, clarificadora da posição processual assumida, e por isso há de ser referida como consequência de cada um dos meios de defesa produzidos. No decorrer da narração ou a seguir a ela, o réu deve, pois, dizer se conclui pela absolvição da instância, por proceder uma exceção dilatória, ou do pedido, por improceder a ação.
(…)
O atual código reformulou profundamente a redação do preceito, agora desdobrado em alíneas, destacando-se a expressa referência aos factos “essenciais” em que se baseiam as exceções e às consequências do não cumprimento do dever de especificação separada das exceções, bem como a exigência (nova) requerimento probatório.»[6].
Perante isto, temos que a peça processual apresentada por Neli..., no dia 6 de julho de 2015, por apenso ao processo principal, e que se mostra certificada fls. 62-64 destes autos de recurso, configura um requerimento inicial de um incidente de habilitação de herdeiros, não podendo a juíza a quo considerá-lo, melhor dizendo, transformá-lo, numa contestação à petição inicial com que foi introduzida a ação principal.

É certo que, nos termos:
- do art. 6º, nº 1, do CPC, «cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere (…), adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.»;
- do art. 547º do CPC, «o juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo.»

No entanto, nem o dever de gestão processual que recai sobre o juiz, nem os princípios da agilização processual e da adequação formal permitem subverter as regras processuais civis, ao ponto de se considerar, de se transformar, um típico requerimento inicial de um incidente de habilitação de herdeiros, a tramitar por apenso à ação principal, numa contestação à petição inicial com que foi introduzida tal ação.

Termos em que, na procedência da apelação, terá o surpreendente despacho recorrido de ser revogado.
*

4–DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação procedente, revogando, em consequência, o despacho recorrido, com as legais consequências daí decorrentes.
Sem custas.



Lisboa, 20 de fevereiro de 2018



(José Capacete)
(Carlos Oliveira)
(Maria Amélia Ribeiro)



[1]A referência à data de «6-7-2017» trata-se de um manifesto lapso da juíza a quo, pois o «articulado» em causa foi apresentado em 6 de julho de 2015 e não em «6-7-2017» - cfr. fls. 68 vº.
[2]Do CPC de 1961, a que corresponde, com alterações o art. 572º do CPC/2013.
[3]Manual de Processo Civil, 2ª Ed., Coimbra Editora, 1985, pp. 285-287.
[4]Do CPC/1939, a que corresponde, com alterações o art. 572º do CPC/2013.
[5]Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4ª Ed. – Reimpressão, Coimbra Editora, 1985, pp. 35-40.
[6]Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª Ed., Almedina, 2017, pp. 561-562.