Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
580/08.2TYLSB-D.L1-1
Relator: ANA GRÁCIO
Descritores: INSOLVÊNCIA
REQUISITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – No Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) o interesse individual dos credores é determinante e a declaração de insolvência deixa de depender duma verificação de inviabilidade: basta não cumprir as suas obrigações vencidas para que o devedor seja declarado insolvente.
II - É considerada em situação de insolvência a empresa que se encontre impossibilitada de cumprir pontualmente as suas obrigações, em virtude de o seu activo disponível ser insuficiente para satisfazer o seu passivo exigível (art 3º do CIRE)
III - Tendo a requerida dívidas para com o requerente da insolvência no montante de € 287.763,84, valor correspondente a cerca de 40% do seu activo (apresentando um passivo de € 738.000,00), vencido desde 31-01-2006 e que ainda não foi paga, não obstante as diversas tentativas de cobrança extra judicial com a emissão de cheques sem provisão e o não pagamento da letra, todas estas circunstâncias são reveladoras, à luz da experiência comum e em termos de razoabilidade, de que a requerida está impossibilitado de cumprir em tempo os seus compromissos, não só aquela obrigação, como a generalidade das suas obrigações.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO

1. “A” Gestão e Administração, SA intentou contra “B”, Comércio Artigos Decorativos, Lda os presentes autos de acção especial de declaração de insolvência que foi tramitada pelo 4º Juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa e na qual foi proferida sentença que declarou a insolvência da requerida.

2. Inconformado, a requerida “B”, Comércio Artigos Decorativos, Lda deduziu recurso contra essa decisão, pedindo que se revogue a decisão recorrida, “substituindo-a por outra que absolva a Requerida do pedido de insolvência…”, formulando, para tanto, as seguintes 14 conclusões:
“a) No plano factual
I – A situação económica da Requerida ora Requerente é uma situação difícil mas não irrecuperável;
II – Na verdade, face aos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, verifica-se que a Requerida tem vindo a reduzir gradualmente o seu passivo;
III – De facto, e como resultou do depoimento do contabilista da Requerida, o passivo tem vindo a diminuir desde 2006 e os resultados desde então mostram a tendência de recuperação;
IV – As obrigações vencidas têm vindo a ser liquidadas;
V – As obrigações que entretanto se foram vencendo têm sido pontual e escrupulosamente cumpridas;
VI – A diferença entre o passivo e o activo é de € 104.000,00;
VII – Esta diferença, tendo em consideração a recuperação que se está a operar é recuperável;
b) No plano jurídico
VIII – Estipula o artigo 3º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas que são consideradas em situação de insolvência as pessoas colectivas por cujas dívidas nenhuma pessoas singular responda pessoal e ilimitadamente e que o seu passivo seja manifestamente superior ao activo;
IX – O passivo não tão manifestamente superior ao activo no caso sub judice;
X – Não ficou demonstrada a impossibilidade da Requerida fazer face às obrigações vencidas;
XI – Antes sim ficou demonstrado que esta tem vindo a liquidar as obrigações vencidas e, simultaneamente, a pagar pontualmente as obrigações que diariamente se vencem;
XII – O incumprimento invocado pela Requerente “A”, S.A., é um mero incumprimento contratual o qual não pode ser considerado isoladamente mas sim integrado no conjunto das obrigações da Requerida;
XII – Assim, e face ao exposto, teremos de concluir que a douta sentença sob recurso violou o disposto o disposto nos artigos 3º e 20º do CIRE.”

3 – Não foi apresentada contra-alegação.

Verificados que estão os pressupostos de actuação deste tribunal, corridos os vistos, cumpre decidir.

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II – FUNDAMENTOS DE FACTO

1. «“B”, COMÉRCIO DE ARTIGOS DECORATIVOS, LDA., pessoa colectiva nº , com sede na Estrada de T – Centro Empresarial T Armazém …, R.., encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de S….
2. A requerida é uma sociedade por quotas que se dedica à importação e exportação de artigos decorativos.
3. O capital social da requerida é de 349.158,54 euros.
4. No exercício da sua actividade, a requerente “A” – GESTÃO E ADMINISTRAÇÃO, S.A. cedeu à requerida a utilização das lojas 75, 76 e 77, no seu Centro Comercial AS, nas quais esta explorava um estabelecimento comercial.
5. A partir de certa altura, a requerida começou a atrasar o pagamento das prestações mensais que havia acordado com a requerente, até que deixou mesmo de as pagar.
6. Em 31 de Janeiro de 2006, a requerida entregou a loja à requerente, abandonando o Centro Comercial.
7. À data em que a requerida entregou a loja à requerente, devia-lhe € 287.763,84 a título de prestações vencidas até à data em que cessou o contrato.
8. Em 20.02.2006, a requerida e a requerente estabeleceram um acordo de regularização da quantia em dívida, prevendo o seu pagamento em prestações, conforme documento junto a fls. 27 a 29 que se dão por totalmente reproduzidas.
9. A requerida apenas pagou à requerente a quantia de 4.000 €, correspondente à prestação vencida em 01.09.2006, pelo que em 30.04.2007 a requerida e a requerente celebraram uma adenda ao acordo de regularização de dívida, estabelecendo condições transitórias de regularização das prestações vencidas e não pagas, conforme documento junto a fls. 33 a 34 que se consideram integralmente reproduzidas.
10. A requerida não honrou os seus compromissos, deixando devolver por falta de provisão os cheques datados de 01.01.2008 e 15.01.2008, nos valores de € 4.500 € e 62.500 €.
11. A requerente preencheu então a letra de garantia aceite pela requerida inscrevendo-lhe o valor de € 283.763,84 e apresentou-a a pagamento em 19.03.2008.
12. A requerida absteve-se de efectuar o pagamento daquele valor, pelo que a letra foi protestada em 09.04.2008.
13. A requerida abandonou o retalho e dedica-se à exportação e decoração de pequenos espaços hoteleiros e turísticos.
14. A sociedade requerida passou a apresentar resultados positivos em 2006 e mais consolidados em 2007.
15. O valor do activo da requerida é de 634 mil euros e o passivo ascende a 738 mil euros.

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III – AS QUESTÕES DO RECURSO

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, nos termos do disposto nos arts 684º nº3 e 685º-A nº 1 do CPC, na versão introduzida pelo Dec-Lei nº 303/2007, de 24-08.
Apesar da argumentação da recorrente, quer nas alegações, quer nas conclusões destas, o recurso de apelação que interpôs circunscreve-se à apreciação da questão dos fundamentos da sentença que declarou a sua insolvência.

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IV – APRECIAÇÃO

Entende a recorrente que se não encontra em situação de insolvência, como foi declarado na sentença proferida.
Analisemos:
Atento o disposto no art 1º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Dec-Lei nº 53/2004, de 18-03, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente.
A situação de insolvência é definida através de dois critérios, o primeiro de carácter principal, e o segundo, para o caso de pessoas colectivas e de patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, de carácter acessório (ponto 18 e 19 do preâmbulo do Dec-Lei 53/2004).
Assim, o nº1 do art 3° do CIRE começa por definir a insolvência como sendo, essencialmente, a situação em que se encontra o devedor de impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas. E logo a seguir o nº2 deste art 3°, no caso daquelas pessoas colectivas, define-a como sendo a situação em que as mesmas se encontram " ... quando o seu passivo seja manifestamente superior ao activo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis ", ou seja, quando de acordo com a normalidade da vida, a insuficiência do activo torna insustentável o pontual cumprimento das obrigações do devedor.
Quer isto dizer que é considerada em situação de insolvência a empresa que se encontre impossibilitada de cumprir pontualmente as suas obrigações, em virtude de o seu activo disponível ser insuficiente para satisfazer o seu passivo exigível (art 3º do CIRE).
Por sua vez, os factos referidos nas diversas alíneas do art 20º do CIRE constituem ocorrências prototípicas de uma situação de insolvência, ou seja, de indicar situações através das quais, normalmente, se manifesta essa situação, por corresponderem elas, tendencialmente pelo menos, a uma impossibilidade do devedor cumprir as suas obrigações vencidas (cfr. Ac. da Relação de Coimbra de 20-11-2007, acessível em http://www.dgsi.pt).
Feita esta breve alusão ao regime legal aplicável, importa verificar se os factos provados são de molde a consubstanciar alguma das hipóteses configuradas no art 3º e, designadamente, às situações do nº1 do art 20,º pois que só nesse caso é que será de declarar a insolvência ou, se pelo contrário, a recorrente “tem viabilidade económica”, pois “(…) apresentou resultados positivos em 2006 e mais consolidados em 2007” (alegações da recorrente).
A este respeito há, desde logo, que atentar na linha de orientação das normas do CIRE. Com efeito, este diploma suprimiu a dicotomia recuperação/falência, que caracterizava o regime anterior, e afirmou a supremacia e a soberania dos credores. E, assim, enquanto no CPEREF (Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência) a inviabilidade económica ou a impossibilidade de recuperação financeira constituía, com a situação de insolvência, requisito da declaração de falência, sem o qual a empresa só podia ser sujeita a regime de recuperação (art 1º do CPEREF), no CIRE o interesse individual dos credores é determinante e a declaração de insolvência deixa de depender duma verificação de inviabilidade: basta não cumprir as suas obrigações vencidas para que o devedor seja declarado insolvente (pontos 3 e 6 do preâmbulo do Dec-Lei nº 53/2004).
Para além do mais, para a empresa ter viabilidade económica não basta que se encontre em laboração e que tenha resultados positivos, pois tal viabilidade pressupõe que da actividade da empresa venha a resultar ainda a possibilidade de satisfação do seu passivo exigível.
Mas o que importa para aquilatar sobre a verificação, ou não, dos requisitos para a decretação da insolvência são os elementos efectivamente apurados e objectivamente analisados e ponderados. Só o que ficou apurado em 1ª Instância pode ser agora reapreciado em sede de recurso, sendo irrelevante qualquer alteração que seria substanciadora de questões novas.
Ora, o pedido de insolvência foi requerido por um credor com legitimidade para o efeito, tendo o mesmo logrado fazer a prova do incumprimento da recorrente perante o vencimento do seu crédito.
Na realidade, os factos provados revelam que a apelante deixou de cumprir, para com a apelada, as prestações mensais do contrato de utilização de três lojas no valor de € 287.763,84, tendo o seu incumprimento ocorrido em 31-01-2006 (facto nºs 4, 6 e 7). Aquela quantia nunca foi liquidada, apesar se ter estabelecido um acordo de regularização da quantia em dívida entre a requerida e a requerente, prevendo o seu pagamento em prestações, mas uma adenda ao acordo, com a passagem de cheques. Mas dois cheques foram devolvidos por falta de provisão e, então, a requerente preencheu a letra de garantia aceite pela requerida inscrevendo-lhe o valor de € 283.763,84, mas, mais uma vez, a requerida não pagou aquele valor (factos 8 a 12). O valor do activo da requerida é de € 634.000,00, apresentando um passivo de € 738.000,00 (facto 15).
O valor em dívida ao requerente, que ficou provado nos autos, perfaz a quantia de € 287.763,84, valor que na actual realidade financeira da Requerida, é uma quantia consideravelmente elevada (valor correspondente a cerca de 40% do seu activo), encontra-se vencida desde 31-01-2006 (há mais de três anos) e ainda não foi paga, não obstante as diversas tentativas de cobrança extra judicial. E todas aquelas circunstâncias que rodeiam o incumprimento da obrigação, nomeadamente a emissão de cheques sem provisão e o não pagamento da letra, são reveladoras, à luz da experiência comum e em termos de razoabilidade, de que a requerida está impossibilitado de cumprir em tempo os seus compromissos, não só aquela obrigação, como a generalidade das suas obrigações.
Porém, esta impossibilidade não tem de se referir a todas as obrigações vencidas, bastando que se refira à generalidade das obrigações vencidas. Para caracterizar a insolvência, a impossibilidade de cumprimento não tem de abranger todas as obrigações assumidas pelo insolvente e vencidas. O que importa é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciem a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos (cfr. Ac. Relação do Porto de 12-4-2007, acessível em http://www.dgsi.pt., citando Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol. I, pag 70 e 71).
Mostra-se, assim, devidamente caracterizada a presunção de insolvência da requerida prevista na alínea b) do nº1 do citado art 20º - “falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações”.
Contrariamente ao invocado, a requerida não logrou demonstrar qualquer capacidade financeira, ou seja, não revelou a possibilidade de satisfazer as suas obrigações vencidas, pois não pagou uma dívida de valor correspondente a cerca de 40% do seu activo (€ 634.000,00). Se passou a apresentar resultados positivos em 2006 e mais consolidados em 2007 (factos 13 e 14), porque deixou devolver por falta de provisão os cheques datados de 01-01-2008 e 15-01-2008 e porque não pagou a letra apresentada a pagamento em 19-03-2008?
É incompreensível fazer apelo às actividades da requerida que lhe deram resultados positivos em 2006 e mais consolidados em 2007,quando financeiramente a sua situação é de incumprimento pontual das suas obrigações. Só não o seria se dessas actividades resultasse algum acréscimo do activo, a curto ou médio prazo, dela resultando a vitalidade financeira da requerida. É que não interessa somente que ainda se possa cumprir num momento futuro qualquer, importa igualmente que a prestação ocorra no tempo adequado e, por isso, pontualmente.
No âmbito da presente acção apenas recaía sobre a requerente o ónus de demonstrar algum dos factos indiciadores da situação de insolvência enunciados nas diversas alíneas do art 20º do CIRE. E esse ónus foi claramente cumprido, provando a recorrida a insatisfação do seu crédito em dívida e a dimensão do passivo demonstrado, incumbindo à recorrente a prova da possibilidade de a solver, o que não sucedeu (nºs 3 e 4 do art 30º do CIRE).
Não são de acolher, pois, as razões invocadas pela recorrente nas conclusões, cumprindo, para além do já exposto, fazer notar que, diversamente do afirmado na conclusão XII, a sentença não deu como provado apenas o não cumprimento de uma obrigação. Os factos provados descrevem o não cumprimento de várias obrigações, de natureza contratual.
Concluímos pois, que o fundamento requerido para a decretação de insolvência da Requerida, ficou demonstrado pela análise da materialidade fáctica efectivamente apurada e consagrada na sentença em apreço.
Destarte, não foi violado qualquer normativo na sentença, tendo sido feita uma adequada subsunção jurídica, decaindo na totalidade as conclusões do recurso apresentado.

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V – DECISÃO

Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença proferida.
Custas a cargo da recorrente, sendo no caso, a massa insolvente.

(Processado por computador e integralmente revisto pela relatora)

Lisboa, 17 de Novembro de 2009

ANA GRÁCIO
PAULO RIJO
AFONSO HENRIQUE