Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
94570/20.0YIPRT.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: PROCEDIMENTO DE INJUNÇÃO
EXCEPÇÃO DILATÓRIA INOMINADA
PRETERIÇÃO DE SUJEIÇÃO AO PERSI
INDEFERIMENTO LIMINAR
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I–Constituem factos essenciais nucleares a celebração do contrato de mútuo, o seu incumprimento e subsequente resolução (alegados) e factos complementares (ou essenciais complementares), condicionantes da procedência da injunção, a prévia observância das disposições injuntivas do regime do PERSI.

II–Não tendo sido alegados os factos complementares, desde logo, no formulário do requerimento injuntivo, cabe ao tribunal a quo proferir despacho de aperfeiçoamento tendo em vista facultar à autora a alegação dos mesmos (cf. Artigo 10º, nº2, al. d), nº3, do Decreto-lei nº 269/98, de 1.9, 549º, nº1, 590º, nº3 e 4, do Código de Processo Civil). Só após a prolação de tal despacho e da sua (in)observância, é que o tribunal a quo poderá formular ilações sobre a (in)existência da apontada exceção dilatória inominada.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:



RELATÓRIO:


O tribunal a quo proferiu a seguinte decisão:
«Atendendo que a excepção a conhecer decorre da própria petição inicial e sendo manifesta a sua simplicidade, é desnecessário garantir o contraditório, o que dispensamos nos termos do n.º 3, do artigo 3.º, do Código de Processo Civil, conhecendo-a de imediato ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 1, do regime anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98, de 01.09.
***

Da excepção inominada de preterição da sujeição do devedor ao PERSI
DD intentou procedimento de injunção contra SS, que se transmutou em acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergente de contrato, peticionando o pagamento da quantia de € 6 369,59 a título de capital, € 66,55 a título de juros de mora.

Para tanto, alegou o seguinte:
«Contrato de: Utilização de cartão de crédito
Data do contrato: 17-12-2018
Período a que se refere: 17-12-2018 a 30-09-2020
Exposição dos factos que fundamentam a pretensão:
Requerente e Requerido(a) celebraram um contrato de cartão de crédito, aceite em 17-12-2018, ao qual foi atribuído o n.º 500.........29, por força do qual a Requerente disponibilizou ao(à) Requerido(a) um plafond de 2000,00€ .Por força do contrato celebrado, o(a) Requerido(a) obrigou-se a proceder ao reembolso do crédito concedido na modalidade de pagamento mensal variável mínimo de 2% sobre o capital em dívida na data de “fecho de extrato”, acrescido de todos os encargos, juros, impostos e comissões, não podendo o capital a pagar ser inferior a 10,00€ (salvo se o capital em dívida for inferior).O(A) Requerido(a) aderiu ao seguro de proteção ao crédito em 17-12-2018. Mensalmente, o (a) Requerido(a) recebe um extrato da conta cartão em suporte duradouro, salvo se inexistirem movimentos, utilizações do crédito ou valores a pagar, caso em que o extrato terá uma periodicidade mínima anual.
Ocorre que o(a) Requerido(a) deixou de proceder aos pagamentos a que estava obrigado(a) por força do contrato de cartão de crédito celebrado com a Requerente, apesar de interpelado(a) para o efeito, pelo que face ao incumprimento verificado a Requerente procedeu à resolução do contrato em 30-09-2020. Face à resolução ocorrida o valor em dívida ascende a 6369,59€ ao qual acrescem juros vencidos desde a data de resolução contratual até à entrada do presente procedimento de injunção, à taxa contratual estipulada de 15,3%, e juros vincendos até efetivo e integral pagamento,
Termos em que a Requerente exige judicialmente o que lhe é devido.»

Face à frustração das diligências para notificação pessoal da Ré, foram os presentes autos remetidos à distribuição.
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Cumpre apreciar:
A Autora é totalmente omissa quanto à integração da Ré no PERSI e sobre a extinção desse procedimento pré-judicial (Decreto-lei n.º 227/2012, de 25.10).
No artº 1º estabelecem-se os princípios e as regras a observar pelas instituições de crédito designadamentea regularização extrajudicial das situações de incumprimento das obrigações de reembolso do capital ou de pagamento de juros remuneratórios por parte dos clientes bancários, respeitantes aos contratos de crédito referidos no n.º 1 do artigo seguinte”.

No artigo 3º, alíneas a) e c) atribui-se ao cliente bancário o estatuto de consumidor, na acepção dada pelo nº 1 do artigo 2º da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei nº 24/96, de 31-07, alterada pelo Decreto-Lei nº 67/2003, de 08-04, desde que intervenha como mutuário em contrato de crédito; o contrato de crédito é o contrato celebrado entre um cliente bancário e uma instituição de crédito com sede ou sucursal em território nacional que, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo anterior, esteja incluído no âmbito de aplicação do presente diploma.
A regularização das situações de incumprimento segue um regime processual que está previsto nos artigos 12º a 17º.
Como é sabido, apenas se este processo obrigatório ope legis foi seguido e se se mostra extinto pode o Banco (ou Instituição Financeira) propor ação judicial tendo em vista a satisfação do seu crédito.
Não se mostrando o procedimento extinto, o Banco está impedido de propor a ação, como estipula o artº 18º/1 b).
Quanto à matéria de facto alegada nada consta sobre a submissão da ré ao processo previsto naquele diploma.
Não há pois informação que a instituição financeira tenha cumprido as obrigações que para si decorrem, do diploma em causa, designadamente encetado as diligências com vista os procedimentos à integração automática da ré, enquanto devedora mutuária no PERSI.
Uma das garantias que é atribuída aos clientes bancários na situação comtemplada pelo Dec.-Lei 227/2012 é a proibição de sobre eles serem propostas ações judiciais, proibição esta que impende sobre o credor, para a satisfação do seu crédito, entre a data da integração do devedor no procedimento e a sua extinção – cfr. artigo 18.º, n.º 1, alínea b).
Concluímos, pois, que estamos perante uma exceção dilatória inominada – preterição de sujeição do devedor ao PERSI – de conhecimento oficioso.
(…)
Assim sendo, enquanto não ocorrer extinção do PERSI, está vedada à entidade de crédito a instauração de procedimentos/ações judiciais com a finalidade de obter a satisfação do seu crédito, sendo a alegação de tal facto necessária pois a preterição de sujeito devedor ao PERSI leva à procedência da excepção dilatória inominada e consequente absolvição da instância ou indeferimento liminar da petição, uma vez que a Ré não chegou a ser citado (cfr. al. e) do n.º 1 do artigo 278.º e n.º 1 do artigo 3.º ex vi n.º 1 do art. 17.º do regime anexo ao Decreto-Lei n.º 269/98 de 01.09).
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A Autora, por ter ficado vencida, suportará as custas do processo – artigo 527.º, do Código de Processo Civil.
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Decisão
Em face do exposto, julga-se procedente a excepção dilatória inominada de preterição de sujeição do devedor ao PERSI e, em consequência, indefiro liminarmente a petição inicial.
Custas pela Autora.»
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Não se conformando com a decisão, dela apelou a requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes CONCLUSÕES:
a)-Nos autos principais a M. Juiz a quo proferiu sentença de indeferimento liminar da petição inicial por considerar que a Autora foi omissa no que concerne à integração em PERSI, concluindo que não deu cumprimento ao mesmo.
b)-Tal decisão foi proferida sem que fosse dada a possibilidade à Autora de exercer o contraditório!
c)-Não pode no entanto a ora Recorrente concordar com a decisão proferida na medida em que, a Recorrente, não obstante não o ter mencionado no procedimento de injunção, por se tratar de um procedimento no qual deve expor sucintamente a sua pretensão, deu cumprimento ao procedimento PERSI conforme dispõem o DL (Decreto-lei n.° 227/2012, de 25.10).
d)-Sendo que, caso lhe tivesse sido dada a oportunidade de se pronunciar nos termos do artigo 3.°, n.°3 e 590.°, n.°4 do CPC teria feito prova do cumprimento do citado diploma legal.
e)-A exceção conhecida oficiosamente pela M. Juiz a quo, salvo melhor entendimento, não decorre da petição inicial na medida em que da leitura do texto do requerimento de injunção não é possível verificar ou concluir que a Autora não cumpriu com o procedimento de PERSI, apenas que não fez referência ao mesmo.
f)-Pelo que seria de todo pertinente e viável em termos de economia processual a notificação da Recorrente para que exercesse o seu direito de contraditório nos termos do artigo 590.°, n.°4.
g)-Atendendo ao exposto considera a Recorrente que a sentença proferida é nula nos termos do artigo 195.°, n.°1 do CPC por omissão da prévia audição da Autora, ora Recorrente, e violação do princípio do contraditório nos termos do artigo 3.°, n.°3 do CPC.
h)-Considera ainda a Recorrente, salvo melhor opinião que, a douta sentença proferida viola igualmente os princípios da oficiosidade e da cooperação (arts. 6°, 7° e 411°, do CPC) que privilegiam a decisão de fundo em detrimento das questões formais, e o princípio da economia processual que impõe que o resultado processual deve ser atingido com a maior economia de meios.
Nestes termos e, nos que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, dando provimento ao presente recurso e, em consequência, revogando a douta sentença recorrida, farão como sempre, inteira e sã JUSTIÇA!»

A Ré foi citada para os termos da causa e do recurso, tendo apresentado contestação. Quanto ao recurso, acompanha os termos do indeferimento liminar.

QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, a questão a decidir consiste em aferir se devia ter sido proferido despacho de indeferimento liminar.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto relevante para a apreciação do recurso é a que consta do relatório, cujo teor se dá por reproduzido.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
No formulário do requerimento de injunção, a DD não fez qualquer menção sobre se cumpriu, e em que termos, o disposto no Decreto-lei nº 227/2012, de 25.10, conhecido como PERSI.    
   
O tribunal a quo interpretou tal requerimento como implicando um incumprimento do regime do PERSI, ou seja, o tribunal a quo , perante a omissão de qualquer referência ao cumprimento do regime do PERSI, fez equivaler tal omissão a um incumprimento do regime do PERSI.

Ora, tal interpretação mostra-se incorreta. Da omissão de qualquer referência à observância prévia do regime do PERSI não resulta que tal regime tenha sido cumprido ou incumprido, nada se sabendo.

O cumprimento prévio do regime do PERSI integra um facto essencial complementar ou um facto complementar, cuja omissão no requerimento de injunção não determina o indeferimento liminar, mas apenas a prolação de despacho de aperfeiçoamento após a conclusão dos articulados (cf. Artigo 10º, nº2, al. d), nº3, do  Decreto-lei nº 269/98, de 1.9, 549º, nº1, 590º, nº3 e 4, do Código de Processo Civil).

Conforme se refere em Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, I Vol., 2020, 2ª ed., Almedina, p. 30,
«É inepta a petição que não contenha os factos que constituem a causa de pedir (art. 186º, nº 2, al. a)), o que implica uma distinção entre os factos que identificam ou individualizam o direito em causa (os factos essenciais nucleares) e aqueles que, não desempenhando tal função, se revelam, contudo, imprescindíveis para que a ação proceda, por também serem constitutivos do direito invocado (factos essenciais complementares). A falta destes últimos revelará uma petição deficiente ou insuficiente, a carecer de convite ao aperfeiçoamento que permita suprir as falhas da exposição ou da concretização da matéria de facto (cf. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol. I, 2ª ed., pp. 207 e ss., Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2ª ed., pp. 155-156 e 239-241 e STJ 26-3-15, 6500/07), sem embargo da sua atendibilidade na audiência prévia ou da sua inserção na sentença quando resultantes da instrução da causa (cf. anot. desenvolvida aos arts. 186º e 552º).«
E, mais adiante, na p. 630:
«Da conjugação entre o art. 552º, nº 1, al. d) e os arts. 5º, nº 2, al. b) e 590º, nº 4, resulta que não há preclusão quanto a factos que sejam complementares ou concretizadores de outros inicialmente alegados. Tais factos, embora essenciais, por serem necessários à procedência da pretensão (e sujeitos, por isso, ao ónus de alegação), não têm uma função individualizadora do tipo legal, podendo por isso ser posteriormente adquiridos para os autos, ora por via de convite ao aperfeiçoamento (art. 590º, nº 4), ora por via da instrução (art. 5º, nº 2, al. b)), sendo que, neste último caso, a consideração desses factos tem natureza oficiosa (RP 5-6-14, 11586/10, RP 15-9-14, 3596/12 e Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2ª ed., pp. 21 e 155). »

No caso em apreço, constituem factos essenciais nucleares a celebração do contrato de mútuo, o seu incumprimento e subsequente resolução (alegados) e factos complementares (ou essenciais complementares), condicionantes da procedência da injunção, a prévia observância das disposições injuntivas do regime do PERSI. Não tendo sido estes alegados, desde logo, no formulário do requerimento injuntivo, cabe ao tribunal a quo proferir despacho de aperfeiçoamento tendo em vista facultar à autora a alegação dos mesmos. Só após a prolação de tal despacho e da sua (in)observância, é que o tribunal a quo poderá formular ilações sobre a (in)existência da apontada exceção dilatória inominada.

Termos em que deve proceder a apelação.

A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art. 154º, nº1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).

DECISÃO:

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se o despacho de indeferimento liminar proferido em 19.1.2021, o qual deverá ser substituído pela oportuna prolação de despacho de aperfeiçoamento.
Custas pela apelada na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).



Lisboa, 22.2.2022



Luís Filipe Sousa
José Capacete
Carlos Oliveira
                                    


[1]Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., 2018, p. 115.
[2]Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 119.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).