Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
26521/09.1T2SNT-B.L1-4
Relator: ALBERTINA PEREIRA
Descritores: INSTITUIÇÃO PARTICULAR DE SOLIDARIEDADE SOCIAL
CRÉDITO
SEGURANÇA SOCIAL
IMPENHORABILIDADE RELATIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: Goza do regime de impenhorabilidade relativa decorrente do art.º 737.º n.º 1, do Código de Processo Civil, em virtude de se encontrar especialmente afecto a fins de utilidade pública, o crédito que uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) detém sobre a Segurança Social destinado, em exclusivo, à valência pré-escolar (actividades educativas e actividades de apoio social).

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa.


1.-Relatório:


Nos presentes autos em que figuram como exequente AAA e como executada BBB, veio CCC, agente de execução requerer que o Mmo. Juiz se pronunciasse sobre se o crédito mensal que a executada detém sobre o Instituto de Segurança Social será ou não efectivamente penhorável, nos termos e para os efeitos do art.º 737.º n.º 1 do Código de Processo Civil.

Por despacho de fls. 829, foi considerado tal crédito impenhorável à luz do citado preceito legal.

1.2.-Inconformado com o decidido, dele interpõe a exequente, concluindo as suas alegações de recurso do seguinte modo:

a)Da aplicação conjugada dos artigos 601.º do Código Civil e 717.º  n.º 1, alínea d) do CPC resulta que só estão isentos de penhora, os bens de pessoas colectivas de utilidade pública, que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública;
b)Não está alegado, nem sequer foi provado nos autos que a Executada detenha o estatuto de pessoa colectiva de utilidade pública;
c)O qual resulta do Decreto Lei n.º 460/77, de 7/11, alterado pelo Decreto Lei n.2 391/2007, de 13712 e republicado por este, nos termos do qual a declaração de utilidade pública é da competência do Primeiro Ministro;
d)Pelo que, ao dispor como dispôs, violou a decisão em causa os preceitos indicados na alínea a) destas conclusões;
Termos em que, deve a apelação ser julgada procedente, revogando-se a decisão impugnada e ordenando-se a penhora dos créditos em causa.

1.3.-A executada não respondeu ao recurso, que foi recebido no tribunal a quo.
1.4.-Remetidos os autos a esta Relação, foi observado o preceituado no art.º 652.º n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, e colhidos os vistos legais.

2.-Objecto do recurso.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1, 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que não tenham sido apreciadas com trânsito em julgado.
Assim, a questão que a recorrente coloca à apreciação deste tribunal consiste em saber se o crédito que a executada detém sobre a segurança social é impenhorável nos termos do art.º 737.º n.º 1 do Código de Processo Civil.

3.-Fundamentação.

3.1.-É a seguinte a matéria de facto provada:
1.-Em 22 de Outubro de 22 de 2015, foi a Direcção Regional de Lisboa Vale do Tejo e Alentejo notificada para proceder à penhora de um crédito que a executada detém em consequência do Protocolo celebrado com a mesma;

2.- Em 18 de Novembro aquela entidade informou, entre o mais que:
O crédito objecto de penhora ascende a euros 13.063,50, estando distribuído da seguinte forma:
Valência da educação pré-escolar - actividades educativas -  euros 8.343,75;
Valência da educação pré-escolar – actividades de apoio social – euros 4.719,75;
Os valores indicados podem sofrer alterações de acordo com a frequência do número de utentes/mês.
Segundo o calendário nacional existente para o processamento dos pagamentos das comparticipações às IPSS o crédito vence-se no final de cada mês.
As garantias do crédito têm por base o acordo de cooperação celebrado com o Centro Distrital de Lisboa, para a resposta social de educação pré-escolar para o universo de 75 utentes (…).”

3.-Entre o ISS, IP/Centro Distrital de Segurança Social de Lisboa, a Direcção Regional de Educação de Lisboa, e a Instituição Particular de Segurança Social, (…), foi celebrado o acordo de cooperação constante de fls. 13 a 23, onde, entre o mais se ajustou que:

Cláusula I
(Finalidade)
O presente acordo de cooperação visa regular as condições de cooperação relativas à participação da Instituição no Programa de Expensão e Desenvolvimento da Educação-Pré-escolar, de acordo com os princípio da Lei 5/97, de 10 de Fevereiro, Decreto- Lei 147/97, de 11 de Junho e no Protocolo de Cooperação celebrado em 7 de Maio de 1998 entre os Ministérios da Educação e da Solidariedade, a União das Instituições de Solidariedade Social (…) adiante designado protocolo de cooperação.

Cláusula II
(Objecto)
1.-O presente acordo de cooperação tem por objecto a cooperação na prestação pela instituição, no âmbito pré-escolar, de serviços vocacionados para o atendimento à criança, proporcionando-lhe, no respeito e em execução do seu projecto educativo, actividades
2.-educativas e as seguintes actividades de apoio à família: Serviços de alimentação e prolongamento de horário com actividades de animação sócio-educativa;
(…)

Cláusula V
(Apoio financeiro)
O Estado compromete-se a apoiar financeiramente o funcionamento do estabelecimento abrangido pelo presente acordo, de modo a viabilizar o acesso e a frequência de todas as crianças a uma educação pré-escolar de qualidade, independentemente do nível sócio-económico das respectivas famílias.
O apoio financeiro destina-se a assegurar os custos da componente educativa e da promoção da qualidade pedagógica dos serviços a prestar, bem como, a comparticipação nos custos das actividades de apoio à família (…)”

Cláusula VII
O CDSSL obriga-se a prestar à instituição o apoio financeiro referido na Cláusula V;
(…)

3.2.-O Direito.
Como é sabido, em face do princípio da responsabilidade ilimitada do devedor, decorrente do art.º 601.º do Código Civil, pelo cumprimento da obrigação respondem todos os bens do devedor susceptíveis de penhora, sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação dos patrimónios. Em articulação com esse normativo prescreve o n.º 1, do art.º 735.º do Código de Processo Civil, que estão sujeitos à execução todos os bens do devedor susceptíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida. Estabelecendo-se no art.º 736.º os bens absolutamente impenhoráveis, e no art.º 737.º os bem relativamente impenhoráveis.

No caso vertente, importa saber se o crédito que a executada detém sobre a Segurança Social goza do regime de impenhorabilidade (relativa) decorrente do n.º 1, do citado art.º 737.º n.º 1 do Código de Processo Civil, onde se prescreve o seguinte:
 “Estão isentos de penhora, salvo tratando-se de execução para pagamento de dívida com garantia real, os bens do Estado e das restantes pessoas colectivas públicas, de entidades concessionárias de obras ou serviços públicos ou de pessoas colectivas de utilidade pública, que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública.

No referido preceito (que corresponde ao n.º 1, do art.º 823.º Código de Processo Civil anterior), estão contemplados: o domínio privado indisponível do Estado e demais pessoas colectivas públicas, por contraposição ao domínio privado disponível, que abrange os bens aplicados a fins meramente financeiros. Com a indisponibilidade pretende-se apenas evitar que os bens sejam desviados da afectação ao fim de utilidade pública a que se encontram destinados, sem necessidade de lhes conferir a condição jurídica da inalienabilidade (Fernando Amâncio Ferreira “ Curso de Processo de Execução”, Almedina, 2010, 13.ª Edição, pág. 207).

A executada é uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS), na forma de associação (“”), aplicando-se-lhe o regime decorrente do DL 172-A/2014, de 14 de Novembro (Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social), alterado pela Lei 76/2015, de 28 de Julho.

Nos termos do referido diploma legal, as IPSS, são constituídas exclusivamente por iniciativa de particulares, com o propósito de dar expressão organizada ao dever moral de justiça e de solidariedade, contribuindo para a efectivação dos direitos sociais dos cidadãos, desde que não sejam administradas pelo Estado ou por outro organismo público. Pautam-se tais instituições pelos princípios orientadores da economia social, definidos na Lei n.º 30/2013, de 8 de Maio, bem como pelo regime previsto no diploma legal em apreço (art.º 1.º, n.ºs 1 e 2).

Os objectivos das referidas instituições concretizam-se mediante a concessão de bens, prestação de serviços e outras iniciativas de promoção do bem-estar e qualidade de vida das pessoas, famílias e comunidades, nomeadamente nos seguintes domínios:
Apoio à infância e juventude, incluindo as crianças e jovens em perigo; 
Apoio à família
(…).”
(art.º 1.º -A, alíneas a) e b)).

Embora gozando de autonomia e liberdade de organização interna (art.º 3.º), o Estado apoia tais instituições através dos “acordos de cooperação”, estatuindo-se no aludido diploma legal que:
1—O Estado aceita, apoia e valoriza o contributo das instituições na efectivação dos direitos sociais dos cidadãos individualmente considerados.
2—O contributo das instituições e o apoio que às mesmas é prestado pelo Estado concretizam -se em formas de cooperação a estabelecer mediante acordos.
3—As instituições podem encarregar -se, mediante acordos, da gestão de instalações e equipamentos pertencentes ao Estado ou às autarquias locais.
4—O apoio do Estado não pode constituir limitação ao direito de livre actuação das instituições.” (art.º 4.º).

Ficando as ditas instituições obrigadas ao cumprimento das cláusulas dos acordos de cooperação celebrarem com o Estado (ar.º 4.º -A).

O registo das IPSS é obrigatório (art.º 7.º), adquirindo aquelas, automaticamente, após o registo, nos termos regulamentares, a natureza de pessoas colectivas de utilidade pública (art.º 8.º).

Por sua vez, de acordo com a Lei 30/2013, de 8 de Maio, que consagra os “princípios de economia social”, é esta integrada pelo conjunto das actividades económico-sociais, livremente levadas a cabo pelas entidades referidas no artigo 4.º (onde se incluem, entre outras, as IPSS), tendo tais actividades por finalidade prosseguir o interesse geral da sociedade, quer directamente quer através da prossecução dos interesses dos seus membros, utilizadores e beneficiários, quando socialmente relevantes (art.º 2.º nºs 1 e 2).  

O relacionamento do Estado com as IPSS, é estreito, devendo este, nos termos do art.º 9.º
a)Estimular e apoiar a criação e a actividade das entidades da economia social;
b)Assegurar o princípio da cooperação, considerando nomeadamente, no planeamento e desenvolvimento dos sistemas sociais públicos, a capacidade instalada material, humana e económica das entidades da economia social, bem como os seus níveis de competência técnica e de inserção no tecido económico e social do país;
c)Desenvolver, em articulação com as organizações representativas das entidades da economia social, os mecanismos de supervisão que permitam assegurar uma relação transparente entre essas entidades e os seus membros, procurando otimizar os recursos, nomeadamente através da utilização das estruturas de supervisão já existentes;
d)Garantir a necessária estabilidade das relações estabelecidas com as entidades da economia social ”.

Atenta a actividade em causa, importa ainda não esquecer que, nos termos do art.º 4.º da Lei 85/2009, de 27 de Agosto (alterada pela Lei 65/2015, de 3 de Julho), a educação pré-escolar é universal para todas as crianças a partir do ano em que atinjam os 4 anos de idade, implicando a referida universalidade, para o Estado, o dever de garantir a existência de uma rede de educação pré-escolar que permita a inscrição de todas as crianças por ela abrangidas e o de assegurar que essa frequência se efectue em regime de gratuitidade da componente educativa (n.ºs 1 e 2).

No caso em apreço, a executada em complementação do dever do Estado relativamente à educação pré-escolar e no âmbito do referido acordo de cooperação, detém um crédito sobre a Segurança Social destinado à valência pré-escolar no valor de euros 13.063,50.

Ora, uma vez que tal crédito se encontra distribuído para a valência pré-escolar – actividades educativas –  euros 8.343,75 e para a valência pré-escolar – actividades de apoio social – euros 4 719,75,  apenas se pode concluir encontrar-se o mesmo manifesta e especialmente, afecto a fins de utilidade pública, beneficiando, por isso, do regime de impenhorabilidade decorrente do n.º 1 do aludido art.º 737.º do Código de Processo Civil.

Improcede, por conseguinte, a presente questão.

4.-Decisão:
Em face do exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o despacho recorrido.


Lisboa, 2017.02.22


Albertina Pereira
Leopoldo Soares
Eduardo Sapateiro