Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2405/2007-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: COMPETÊNCIA TERRITORIAL
FORO CONVENCIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I. A aplicação da Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, que introduziu a regra imperativa da competência territorial do tribunal da comarca do réu para as acções relativas ao cumprimento de obrigações, afastando a validade da convenção do foro celebrada antes daquela Lei, não viola o disposto no art.º 12.º do CC.
II. A alínea a) do n.º 1 do art.º 110.º do CPC, na redacção dada pela Lei n.º 14/2006, não enferma de inconstitucionalidade.
(O.G.)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
Banco, S.A., com sede em Lisboa, instaurou, em 1 de Agosto de 2006, no 5.º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, contra José, residente em Lagos, acção declarativa, sob a forma de processo especial, para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, nos termos do DL n.º 269/98, de 1 de Setembro, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 5 414,15, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos e do respectivo imposto de selo, alegando o incumprimento do contrato de mútuo, celebrado no dia 14 de Maio de 2002, e no qual também se acordou estabelecer, como foro convencional, o da Comarca de Lisboa.
O Réu, pessoal e regularmente citado, não contestou.
Seguiu-se o despacho de fls. 19 a 26, a declarar o Tribunal territorialmente incompetente para conhecer da acção, face ao disposto no art.º 74.º, n.º 1, do CPC, e a determinar a sua remessa para o Tribunal Judicial da Comarca de Lagos.

Inconformada com tal decisão, agravou a Autora, que alegando formulou, no essencial, as seguintes conclusões:
a) O despacho recorrido violou o disposto nos art.º s 5.º e 12.º, n.º s 1 e 2, do Código Civil.
b) O despacho recorrido, ao interpretar e aplicar, como fez, a alínea a) do n.º 1 do art.º 110.º do Código de Processo Civil, é inconstitucional, por violação dos princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade, e da não retroactividade consignados no art.º 18.º, n.º s 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, e, também ainda, por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança, corolários ambos do princípio de um Estado de Direito Democrático, consagrado no seu art.º 2.º.

Pretende, com o seu provimento, a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que reconheça a competência territorial do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.

O Réu não contra-alegou.
O despacho recorrido foi, tabelarmente, sustentado.

Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Descrita a dinâmica processual relevante, importa agora conhecer do objecto do recurso, emergindo como uma única questão jurídica a determinação do tribunal competente em razão do território para conhecer da acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de um contrato de crédito ao consumo, na modalidade de mútuo.
A controvérsia decorre da circunstância da introdução da regra de competência territorial da comarca do réu para as acções relativas ao cumprimento de obrigações e do conhecimento oficioso da infracção a essa regra, operada pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, ao alterar os art.º s 74.º, n.º 1, e 110.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil (CPC), quando as partes haviam antes convencionado o foro territorialmente competente.
Na verdade, as partes convencionaram, em 14 de Maio de 2002, o foro da Comarca de Lisboa, para todas as questões emergentes do contrato de mútuo celebrado, tendo a acção para o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes daquele contrato sido proposta em 1 de Agosto de 2006, depois da referida Lei n.º 14/2006 ter entrado em vigor no dia 1 de Maio de 2006.
Assim, a problemática que ressalta dos autos respeita à aplicação das leis processuais no tempo.
Embora sem formulação expressa na lei processual, o princípio geral que se defende, nesta matéria, é o da aplicação imediata da nova lei processual (ANTUNES VARELA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, pág. 47).
Para o efeito, invoca-se, sobretudo, o facto do direito processual ser um ramo do direito público, em que o interesse público do sistema de justiça prevalece sobre o interesse particular dos litigantes, e a circunstância do direito processual corresponder a um ramo de direito adjectivo ou instrumental, que se limita a regular o modo como as pessoas podem fazer valer o direito que, substantivamente, lhes está atribuído.
Assim, por efeito do referido princípio geral e com a adaptação da doutrina estabelecida no art.º 12.º do Código Civil, a nova lei processual aplica-se às acções futuras e também aos actos futuros praticados nas acções pendentes (ibidem, pág. 49).
Todavia, a aplicação no tempo da nova lei processual poderá ser submetida a um regime especial, definido em normas transitórias inseridas na lei nova.
Foi o que sucedeu com a Lei n.º 14/2006, ao estatuir no seu art.º 6.º, sob a epígrafe “aplicação no tempo”, que a mesma se aplica apenas às acções instauradas depois da sua entrada em vigor.
Relativamente à lei reguladora da competência, importa ainda convocar o art.º 22.º, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (LOFTJ), onde se estabelece a regra geral segundo a qual a competência se fixa no momento em que a acção é proposta.

No caso vertente, quando a acção foi proposta, em 1 de Agosto de 2006, já a Lei n.º 14/2006 estava em vigor, sendo, por isso, aplicável a nova regra de competência territorial introduzida pela mesma, nomeadamente a prevista na primeira parte do art.º 74.º, n.º 1, do CPC.
A essa aplicação não obsta a circunstância de, antes da entrada em vigor da Lei n.º 14/2006, as partes terem celebrado um pacto de aforamento, estipulando a Comarca de Lisboa como foro competente, que ao tempo era permitido, nos termos do art.º 100.º, n.º 1, do CPC.
Se a competência convencional é tão obrigatória como a que deriva da lei (art.º 100.º, n.º 3, do CPC), também não é menos certo que o efeito da convenção seja diferente da lei. Tanto esta como o pacto têm a finalidade de definir o tribunal territorialmente competente para a acção.
Sendo assim, e fixando-se a competência no momento em que a acção é proposta, a validade do pacto de aforamento deve ser aferida no confronto com as regras de competência territorial vigentes naquele momento.
Ora, por efeito da Lei n.º 14/2006, a infracção à regra da competência territorial estabelecida na primeira parte do n.º 1 do art.º 74.º do CPC, passou a ser de conhecimento oficioso, nos termos da nova redacção da alínea a) do n.º 1 do art.º 110.º do CPC, afastando, por via disso, a possibilidade legal de convencionar a competência, como decorre do disposto no n.º 1 do art.º 100.º do CPC.
Desta sorte, no momento da proposição da acção, o pacto de aforamento celebrado não era válido, estando excluída a sua aplicação.
Neste contexto, não há aplicação retroactiva da lei e, por isso, se afasta qualquer violação ao consignado no art.º 12.º do Código Civil.

Por outro lado, a interpretação e aplicação do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 110.º do CPC, na redacção dada pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, não ofende qualquer princípio de ordem constitucional.
Na verdade, a introdução da regra imperativa da competência territorial do tribunal da comarca do réu para as acções relativas ao cumprimento de obrigações, nos termos plasmados na Lei n.º 14/2006, inseriu-se no objectivo de descongestionamento dos tribunais, em especial dos de Lisboa e Porto, sobrecarregados com excessiva pendência processual, resultante da litigância com carácter massificador por parte de certas entidades, de optimizar a organização territorial dos tribunais e de combater a morosidade processual, assim como, por outro lado, de garantir a tutela efectiva e real dos direitos do consumidor.
A alteração legislativa destinou-se, pois, a melhorar a eficiência da administração da justiça, designadamente através da distribuição processual pelo território mais equitativa, bem como a garantir com mais eficácia os direitos de determinado sector social.
O exercício da função legislativa, sendo legítimo, perspectivou-se, claramente, na salvaguarda do interesse público de uma boa administração da justiça, que prevalece sobre o interesse meramente particular.
De tal exercício não resultou qualquer restrição de direitos, liberdades e garantias, sendo certo que o direito de as partes convencionarem o foro territorialmente competente para a resolução de litígios resultantes de contrato celebrado não constitui um direito constitucionalmente garantido, não podendo, por isso, invocar-se qualquer desrespeito pelo art.º 18.º, n.º s 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, por, no caso vertente, ser inaplicável.

Por sua vez, também o princípio da segurança jurídica e da confiança, decorrente do Estado de direito democrático consagrado no art.º 2.º da Constituição, não se mostra violado.
Embora se tenha produzido uma certa modificação no equilíbrio contratual, decorrente da imperatividade do foro do domicílio do réu, a alteração legislativa, no entanto, não constituiu uma “alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente, alteração com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, expectantes que estavam, razoável e fundadamente, na manutenção do ordenamento jurídico” (acórdão n.º 691/2006 do Tribunal Constitucional de 19 de Dezembro de 2006).
Efectivamente, o interesse público na eficiente administração da justiça permite compreender o sentido e o alcance da nova lei, que procedeu à regulação em termos razoáveis, não a tornando extensiva no caso do réu ser uma pessoa colectiva ou ambas as partes terem o domicílio na área metropolitana de Lisboa ou do Porto. Por outro lado, a alteração legislativa não afecta significativamente os interesses das sociedades financeiras, designadamente em termos de custos. Não sendo estes demasiado onerosos, também não são inexigíveis, sendo certo ainda que do outro lado está sempre uma parte economicamente mais desfavorecida.
Acresce que, ao celebrar-se a convenção do foro para eventuais litígios emergentes do contrato, não podiam as partes alimentar uma expectativa tal que excluísse qualquer alteração superveniente por iniciativa da autoridade pública. Tratando-se de matéria de ordem pública, a possibilidade de modificação seria até elevada, sobretudo quando as causas motivadoras da alteração legislativa eram há muito evidentes, nomeadamente quando da celebração da respectiva convenção do foro. Não era, pois, razoável nem fundada a expectativa quanto ao respectivo ordenamento jurídico se manter inalterável até à eventual proposição da acção, por incumprimento contratual.

Nestes termos, a alínea a) do n.º 1 do art.º 110.º do CPC, na redacção dada pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, não enferma de inconstitucionalidade.
Nesse sentido, pronunciou-se o citado acórdão do Tribunal Constitucional, posição reiterada também nos acórdãos n.º s 41/2007, de 23 de Janeiro de 2007, e 53/2007, de 30 de Janeiro de 2007, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt.
Igualmente, no mesmo sentido, parece ir a corrente dominante nesta Relação, citando-se, entre outros, os acórdãos de 16 de Novembro de 2006 (Rec. n.º 9244/06-8), 14 de Dezembro de 2006 (Rec. n.º 9885/06-8), ambos acessíveis em www.dgsi.pt, 14 de Dezembro de 2006 (Rec. n.º 9884/06-6) e 15 de Fevereiro de 2007 (Rec. n.º s 370/07-6 e 726/07-8).
Assim sendo, nos termos da primeira parte do n.º 1 do art.º 74.º do CPC, na redacção dada pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, o tribunal territorialmente competente para a acção é o da Comarca de Lagos, tal como se decidiu na decisão impugnada.

2.2. Perante o exposto, pode extrair-se de mais relevante a síntese:
1) A aplicação da Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, que introduziu a regra imperativa da competência territorial do tribunal da comarca do réu para as acções relativas ao cumprimento de obrigações, afastando a validade da convenção do foro celebrada antes daquela Lei, não viola o disposto no art.º 12.º do CC.
2) A alínea a) do n.º 1 do art.º 110.º do CPC, na redacção dada pela Lei n.º 14/2006, não enferma de inconstitucionalidade.

Assim sendo, o recurso não merece obter provimento, sendo caso para confirmação da decisão recorrida, que, além de exaustivamente fundamentada, está em inteira harmonia com a lei aplicável.

2.3. A recorrente, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade (art.º 446.º, n.º s 1 e 2, do CPC).

III. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
1) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
2) Condenar a recorrente no pagamento das custas.
Lisboa, 15 de Março de 2007
(Olindo dos Santos Geraldes)
(Ana Luísa de Passos G.)
(Fátima Galante)