Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7344/2006-1
Relator: RUI VOUGA
Descritores: PROPRIEDADE HORIZONTAL
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/30/2007
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE
Sumário: 1) A partir da revisão do CPC de 1995/1996, ficou claro que o despacho saneador apenas constitui caso julgado formal em relação às questões concretamente apreciadas, o que consequencia que as declarações genéricas proferidas no despacho saneador sobre pressupostos processuais (v.g. a legitimidade das partes) ou nulidades não formam caso julgado formal impeditivo da ulterior reapreciação (designadamente na sentença final) desses pressupostos processuais;
2) Qualquer condómino tem legitimidade para, por si só, demandar outro condómino em acção destinada a obter a condenação deste a pôr termo à utilização que vem fazendo da sua fracção para uma finalidade diversa daquele que lhe está destinada no título constitutivo da propriedade horizontal;
3) Tirando os casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, em que a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” não tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante o tribunal de 2ª instância, se a decisão do julgador de 1ª instância, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será praticamente inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção (art. 655º do CPC).
4) A declaração constante do título constitutivo da propriedade horizontal, quanto ao destino das suas fracções autónomas, deve ser interpretada com base num critério económico e no significado corrente das expressões usadas, adoptando-se a doutrina objectiva da interpretação e os respectivos critérios legais consagrados nos arts. 236º e 238º do Cód. Civil;
5) Na falta de uma definição específica do que deva entender-se, no domínio do direito da urbanização e da edificação, por “actividades comerciais”, e não sendo, para tanto, adequado nem o recurso ao disposto no Decreto-Lei nº 339/95, de 21-8 (que regula o acesso à actividade comercial), nem ao Decreto-Lei nº 462/99, de 5-11 (que estabelece o regime do cadastro dos estabelecimentos comerciais), nem tão pouco às normas específicas de licenciamento sanitário constantes do Decreto-Lei nº 370/99, de 18-9, o termo “comércio”, quando utilizado para identificar o uso de determinada fracção em prédio de habitação colectiva, deve ter o sentido e o alcance com que aquele mesmo termo é assumido pela ciência económica, por corresponder também ao da linguagem usual e corrente, com exclusão portanto do conceito de comércio em sentido jurídico, alicerçado no art. 230º do Código Comercial.
6) Uma fracção autónoma que tem por fim, segundo o título constitutivo da propriedade horizontal, o "comércio" não pode ser utilizada pelo respectivo condómino, ou pelo locatário financeiro do mesmo, para o exercício da actividade industrial de restauração, por tal constituir violação do disposto no art. 1422º, nº 2, al. c), do Código Civil.
7) Ao fundamentar a decisão de ordenar o encerramento do restaurante, entre outras razões, no argumento de que, para a entidade que instituiu a propriedade horizontal e atribuiu às várias fracções o fim mencionado no título constitutivo, a expressão "comércio" não incluía a actividade de restauração, a sentença recorrida não incorreu em nulidade, por excesso de pronúncia, nos termos do art. 668°, n.° 1, alínea d), parte, do CPC, apesar de tal argumento não ter sido expressamente equacionado pelo Autor, visto que, se o que se discute na acção é o sentido da palavra “comércio”, contida no título constitutivo da propriedade horizontal enquanto destino a dar ao uso da fracção, o Tribunal a quo nunca poderia estar impedido de procurar estabelecer o seu alcance e significado, colocando-se na posição do instituidor da propriedade horizontal.
8) Ao considerar-se competente para o julgamento do presente litígio e, consequentemente, para apreciar o mérito do pedido de decretamento do encerramento dum restaurante instalado e explorado por outro condómino na respectiva fracção autónoma, o Tribunal comum não está a pronunciar-se sobre a validade das licenças camarárias atribuídas ao condómino réu, pelo que não viola o princípio da separação de jurisdições e, consequentemente, as normas previstas nos arts. 213° e 214° da CRP, art. 66° do CPC, no art. 18° da Lei n.° 3/1999, de 13/1 (Organização dos Tribunais Judiciais), e 1° e 4° da Lei n° 13/2002, de 19/2 (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
9) Se um condómino dá à sua fracção um uso diverso do fim a que, segundo o título constitutivo da propriedade horizontal, ela é destinada, ou seja, se ele infringe a proibição contida no art. 1422º, nº 2, alínea c), do CCivil, pelo menos em via de princípio, o único remédio para essa situação é a reconstituição natural, (a afectação da fracção em causa ao fim a que ela estava destinada), solução que obriga tanto o condómino como o terceiro que esteja a utilizar essa fracção, desde que o título de constituição da propriedade horizontal esteja registado, em obediência ao determinado no art. 2º, nº 1, do Cód. de Reg. Predial.
10) Se, a exemplo do que faz o Réu, também o Autor vem usando a fracção autónoma de que é proprietário para uma finalidade (a habitação) distinta da que lhe está atribuída no título constitutivo da propriedade horizontal (o comércio), não pode ele depois, como se nada houvesse ocorrido, exigir dum outro condómino (in casu, do locatário financeiro do condómino proprietário da fracção correspondente à cave do mesmo prédio) o acatamento escrupuloso do título constitutivo da propriedade horizontal, no que ao destino das fracções concerne.
11) A exigência, por parte do Autor, da cessação do uso que vem sendo dado pelo Réu à fracção autónoma em questão, traduzida no decretamento do encerramento imediato do estabelecimento de restauração que este último instalou e explora em tal fracção, configura uma situação de abuso de direito, na modalidade de tu quoque.
12) Os dados da questão não se alteram pelo facto, de em anterior assembleia geral de condóminos do prédio em questão, ter sido alterado, por unanimidade, o destino da fracção pertencente ao Autor, passando a mesma de comércio para habitação.
13) De facto, como o título constitutivo da propriedade horizontal só pode ser modificado por escritura pública e havendo acordo de todos os condóminos (art. 1419º, nº 1, do Código Civil), se não houver uma escritura pública de que conste o acordo unitário dos condóminos no sentido dessa alteração, aquela deliberação da assembleia de condóminos que alterou o destino da fracção pertencente ao Autor é nula, nos termos dos arts. 220º ou 294º do Código Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam, na Secção Cível da Relação de Lisboa:

Nas Varas Cíveis de Lisboa, E intentou contra T, LDA. acção declarativa de condenação, com processo comum na forma ordinária, peticionando a condenação da Ré:
a) a encerrar de imediato o estabelecimento de indústria que explora no prédio dos autos;
b) a pagar uma indemnização ao A., no valor de € 20.000,00, para ressarcimento dos graves prejuízos que este sofreu;
c) e ainda no pagamento de sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no encerramento do restaurante, em montante não inferior a € 250,00 por dia.
Para tanto, alegou, resumidamente, que:
1) é o dono da fracção autónoma correspondente ao 2° andar do prédio, constituído em propriedade horizontal, sito na Rua do Alecrim n.° 27 a 35 e Travessa do Alecrim n. 2 a 4, em Lisboa, a qual actualmente se destina a habitação, e onde passou a residir com a sua família, após ter realizado obras profundas, e de valor avultado, de adaptação da casa, anteriormente destinada ao comércio, para o seu fim habitacional, correspondendo todo esse investimento a um projecto de vida pessoal e familiar;
2) por seu turno, a R. é dona da fracção correspondente à Cave do mesmo prédio, destinada a comércio, tendo também nela feito obras e decidido aí instalar um estabelecimento de restaurante, o que destruiu os projectos de vida do A.;
3) ao assim proceder, a Ré alterou o fim a que se destinava essa fracção, tal como consta do título constitutivo da propriedade horizontal, sem que tenha sido dada autorização para o efeito pela assembleia de condóminos - o que viola o disposto no Art. 1422° n.° 2 al.s c) e d) do Código Civil;
4) ademais, a nova utilização da fracção pela R. determinou a emissão de cheiros nauseabundos, fumos, vapores e calores, bem como ruídos causados pelos clientes e funcionários da R. até altas horas da madrugada, que prejudicam em substância o imóvel, o direito de propriedade do A. e, bem assim, o seu direito, e da sua família, à saúde, repouso e bem estar - o que constitui violação do Art. 1346° do Cód. Civil e dos seus direitos à, vida, ao repouso e bem estar ( Art.s 70° e ss do mesmo diploma);
5) por outro lado, as obras realizadas pela R. alteraram a estrutura e a estética do prédio, nomeadamente pela abertura duma janela para o saguão e pela construção duma chaminé nova de material metálico, que não se coaduna com o prédio de matriz pombalina onde foi edificada – o que tudo foi feito sem a autorização dos condóminos, nomeadamente por deliberação aprovada em assembleia geral.

A Ré contestou, pugnando pela total improcedência da acção.
Defendendo-se por excepção, invocou a existência de causa prejudicial (porquanto, na sequência das obras por si feitas e da utilização pretendida dar à fracção, encontrar-se-ia pendente de vistoria o processo de licenciamento, que corre na Câmara Municipal de Lisboa, o qual, a ser deferido, prejudicaria as pretensões do A.), a preterição do tribunal arbitral (porquanto o Artigo 1° do Regulamento de Condomínio do prédio dos autos estabelece que os litígios entre condóminos devem ser resolvidos preferencialmente através de compromisso arbitral) e a ilegitimidade activa do A. para intentar a presente acção (porquanto a mesma implica o conhecimento de questões relativas à utilização das partes comuns do prédio, das quais o A. não é proprietário absoluto, sendo que, estando em causa interesses do condomínio, nomeadamente no que se refere ao saguão e à chaminé de extracção de fumos, a legitimidade pertenceria ao condomínio, através do respectivo administrador - Art. s 1436° e n.° 1 do Art. 1437° do Cód.Civil).
Defendendo-se por impugnação, pôs em causa os factos alegados pelo A., nomeadamente quanto aos alegados danos, fumos, cheiros e barulhos, sustentando que utiliza a sua fracção em conformidade com o título constitutivo e com a destinação natural da mesma, já que nela já havia funcionado um estabelecimento semelhante, denominado "A Cantina do Marquês de Pombal".
Invocou igualmente que não carecia da autorização dos restantes condóminos, quer para fazer as obras que realizou, quer para a utilização que faz da fracção dos autos, sendo que, de todo o modo, todos os condóminos sabiam, desde o princípio, das obras e utilização que a R. iria dar àquele espaço, tendo participado esses factos nas assembleias do condomínio em que sempre interveio.
Aproveitou ainda para sustentar que o direito do A. não é absoluto, antes se deve sujeitar às limitações resultantes da propriedade horizontal e que o A. funda a sua pretensão em factos e prejuízos que não existem. Pelo que o A. agiria de má-fé e contra o fim social e económico do direito que lhe assiste, tentando obter benefícios e resultados a que não tem direito, fazendo uso indevido do processo e dos mecanismos administrativos e camarários.
Em conformidade, porque o A. agiria em abuso de direito, a Ré sustentou que o mesmo deveria indemnizá-la em € 25.000,00, e ainda em € 30.000,00 por danos morais com a interposição da presente acção, com a sua actuação junto das entidades administrativas e com a difamação que tem efectuado em todos os locais públicos, na presença de quem quer que seja.
Aproveitou ainda para alegar que o A. abriu ilegalmente uma janela na sua fracção para o saguão.
A Autora replicou, pugnando pela improcedência das excepções dilatórias alegadas, entendendo não haver fundamento legal para a requerida suspensão da instância e tendo respondido por impugnação à reconvenção formulada.
Findos os articulados, veio a ser proferido despacho saneador, que julgou não haver fundamento para a suspensão da instância e não ter havido preterição de tribunal arbitral e só admitiu o pedido reconvencional quanto ao pedido de condenação do A. no pagamento da quantia de € 25.000,00 a título de indemnização por manifesto abuso de direito, não tendo, porém, admitido os pedidos reconvencionais de condenação do A. no pagamento de € 30.000,00 a título de indemnização por danos morais e a proceder ao fecho da janela que ilicitamente abriu na sua fracção.
A R. recorreu do despacho saneador, tendo tal recurso sido admitido com subida diferida. No entanto, notificada do despacho que admitiu o recurso, não apresentou alegações, pelo que tal recurso ficou deserto (Arts. 291°, nº 2, e 690º, nº 3, do C.P.C.).
Fixaram-se os factos assentes por acordo das partes e por documentos dotados de força probatória plena e organizou-se a base instrutória, após o que se seguiu a instrução dos autos.
Discutida a causa em audiência de julfamento (com gravação da prova testemunhal produzida) e decidida a matéria de facto controvertida, veio a ser proferida (em 11/1/2006) sentença final que, julgou a acção parcialmente procedente, nos seguintes termos:
“a) Condenamos a R., Travessa do Alecrim Sociedade de Exploração Hoteleira, Lda, ao encerramento imediato do restaurante que instalou e explora na fracção "A" do prédio, constituído em propriedade horizontal, sito na Rua do Alecrim n .°s 27 a 35 e Travessa do Alecrim n.°s 2 a 4, descrito na 6° Conservatória de Registo Predial de Lisboa sob o n.° 128/19970404 da freguesia de São Paulo, concelho de Lisboa, extraída da descrição n.° 3.467 do livro B-10;
b) Mais se condena a mesma R. no pagamento duma sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no encerramento do restaurante, no montante de € 250,00/dia, a contar do trânsito em julgado da presente sentença;
c) Absolvemos a R. do pedido de pagar ao A. uma indemnização não inferior a € 20.000,00 para ressarcimento dos prejuízos por si sofridos;
d) Mais se julga absolver o A. do pedido reconvencional de pagar uma indemnização de € 25.000,00 pelo manifesto abuso de direito.
Custas da acção por A. e R., na proporção do respectivo decaimento, que fixamos em 1/6 para o primeiro e 5/6 para a segunda (Art. 446 n° 1 e 2 do C.P.C.), sem prejuízo do decaimento já decidido a fls 185”.

Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação da referida sentença, tendo extraído das alegações que apresentou as seguintes conclusões:
A) A Apelante deduziu excepção de ilegitimidade do Apelado para instaurar a presente acção, na medida em que sendo invocada a (suposta) afectação das partes comuns do edificio, tal legitimidade pertencia, em exclusivo, ao condomínio.
B) Tal excepção viria a ser julgada improcedente no Despacho Saneador, tendo o Tribunal a quo considerado que "a pretensão indemnizatória formulada pelo A., com base no art. 1346° do CC, funda-se na violação do seu direito subjectivo de proprietário, que nada tem a ver com o condomínio".
C) A decisão do Tribunal a quo teve, assim, como premissa a eventual existência de prejuízos para o Apelado, supostamente causados pelo funcionamento do restaurante da Apelante.
D) Porém, conforme resulta da Sentença, o Apelado não logrou fazer prova de quaisquer prejuízos merecedores de tutela jurisidicional.
E) Assim sendo, a questão da legitimidade do Apelado, apreciada em sede de Despacho Saneador pelo Tribunal a quo, foi posta em causa, pelo que devia ter sido reapreciada e decidida na Sentença final.
F) Pois, a decisão plasmada no Despacho Saneador sobre esta matéria deverá ser entendida como condicional, no sentido de que foi proferida com base num pressuposto – existência de prejuízos para o Apelado – que, a final, após a realização da prova, se concluiu não se verificar.
G) Ora, não admitindo o nosso sistema jurídico a figura da condenação condicional, impunha-se ao Tribunal a quo julgar, novamente, tal excepção, de acordo com os novos elementos entretanto traduzidos para o processo.
H) Neste sentido decidiu o Ac. da Relação do Porto, de 18.12.1984, publicado in Colectâneas de Jurisprudência, 1984, 5.0-273, ao afamar que "Como dispõe o Assento do STJ, de 1/2/63, é definitiva a declaração em termos genéricos no despacho saneador transitado, relativamente à legitimidade, salvo a superveniência de factos gue nesta se repercutam.»".
I) Acresce que, apesar de já não valer como forma de interpretação autêntica da lei, o Assento a que alude o citado Acórdão tem, hoje, valor de Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, devendo, assim, constituir critério de decisão para os outros tribunais em casos semelhantes, como é o dos presentes autos.
J) Deste modo, não estando esta matéria definitivamente decidida, forçoso se toma concluir que, não tendo sido demonstrada a existência de prejuízos para o Apelado e estando em causa uma eventual infracção por parte da Apelante com reflexos nas partes comuns do prédio, só ao condomínio - representado pelo seu administrador, na qualidade de orgão executivo da assembleia de condóminos, e após ter sido devidamente autorizado por esta, como órgão deliberativo - teria legitimidade para demandar o ora Apelante.
K) No mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.11.99 "o administrador tem de ser mandatado pelos condóminos das fracções em causa para ter legitimidade de, com idêntico objectivo (reparar partes comuns), propor a acção relativamente a algumas fracções autónomas.", publicado no site www.dgsi.pt
L) De igual modo, o Apelado não possui legitimidade, enquanto condómino, para, como fez na presente acção, alegar que a Apelante utiliza a sua fracção, prevista no titulo como comércio, para a actividade de indústria.
M) Pelo exposto, o Tribunal a quo devia ter decidido pela ilegitimidade activa do Apelado, absolvendo, em consequência, a Apelante da instância, pelo que, não o tendo feito, violou os arts. 1430°, n.° 1, 1436° e 1437°, n.° 1, do Cód. Civil, bem como os arts. 19° e 20° do Regulamento do Condomínio.
N) Como resulta da fundamentação do despacho proferido sobre a matéria de facto, o Tribunal a quo baseou a sua resposta parcialmente positiva ao facto constante do artigo 8° da Base Instrutória no depoimento das testemunhas M…, J… e F….
O) Como resulta dos trechos dos seus depoimentos supra transcritos, tais depoimentos revelam-se confusos, imprecisos e, nalguns casos, mesmo inverídicos, pelo que não podiam servir de base à referida resposta ao mencionado facto controvertido, que, por isso, deve ser alterada para Não Provado, ao abrigo do disposto nos arts. 690°-A e 712°, n.° 1, alínea a) e n.° 2 ambos do Cód. de Proc. Civil.
P) Ao entender que a actividade de restauração deve ser considerada uma "actividade industrial", determinando o encerramento do restaurante da Apelante pelo facto de o destino dado à fracção onde o mesmo se encontra instalado, no respectivo título constitutivo de propriedade horizontal, ser o comércio, o Tribunal a quo incorreu, salvo o devido respeito, num manifesto erro de julgamento.
Q) Tal erro traduz-se no facto de ter considerado que «"a confecção de refeições na fracção em causa não se integra no conceito comum de comércio, mas sim no de indústria. Mais comummente designada por "indústria hoteleira ".»
R) Por entender que "a ideia comum de indústria está relacionada com a actividade de transformação de matérias primas, com vista a obter um determinado resultado, que constitui o produto dessas operações de transformação."
(…)
W) De acordo com a Classificacão Portuguesa das Actividades Económicas, o estabelecimento de restauração da ora Apelante detém o CAE 55301, que se inclui na Subclasse "restaurantes de tipo tradicional", que por sua vez se insere na Classe "restaurantes", que se inclui no na Divisão "alojamento e restauração {restaurantes e similares) ", que faz parte da Secção "H", sendo certo que, na versão anterior desta Classificação, as actividades de comércio por grosso e a retalho, restaurantes e hotéis, estavam todas incluídas na mesma categoria, classificadas pelo número 6.
X) As actividades industriais, por sua vez, encontram-se definidas e caracterizadas nas Secções C e D.
Y) Por outro lado, para a Câmara Municipal de Lisboa o conceito de comércio engloba tanto a actividade de restauração como a industria hoteleira e o exercício destas actividades apenas é permitido em fracções cujo uso registado seja comércio – veja-se o parecer emitido em 15.02.2006 pelo Vice-Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Dr. Fontão de Carvalho, junto às presentes alegações.
Z) De acordo com o mencionado parecer, nos termos do Plano Director da Municipal da cidade de Lisboa a actividade de indústria nem sequer pode ser exercida em determinadas zonas da cidade, nomeadamente, na zona do Bairro Alto e Bica, onde se situa o restaurante da ora Apelante.
AA) Por tudo isto, conclui o mencionado parecer no sentido de que, "em obediência ao princípio da legalidade, resulta clara e indubitavelmente que a actividade de restauração se insere no uso terciário (comércio).
BB) Se acaso o Tribunal da Relação decidisse no mesmo sentido do Tribunal a quo, o que se admite apenas por exercício de raciocínio, a Apelante ficaria numa situação impossível de resolver, pois, defendendo o poder judicial que apenas seria possível o exercício da restauração numa fracção com o uso registado de indústria e, por outro lado, o poder administrativo conceder licença/alvará para o exercício da mesma actividade de restauração somente a fracções com o uso registado de comércio, nunca a ora Apelante conseguiria "regularizar" o seu estabelecimento, pois a cumulação dos dois usos não é legalmente admissível.
CC) O entendimento do Ministério da Economia e Inovação vai, também, no sentido de inserir a actividade de restauração na competência da Secretaria de Estado do Comércio. Serviços e Defesa do Consumidor.
DD) Também no site do ICEP (www.icep.pt) e a propósito do Investimento Internacional e do Investimento Directo Português no Estrangeiro, na informação referente aos sectores de actividade, fornecida pelo Banco de Portugal, encontramos numa das secções as "industrias transformadoras" e numa outra divisão o "comércio por grosso e a retalho, reparações, alojamento e restauração".
EE) Como se viu, também numa perspectiva subjectiva, para o Tribunal a quo o sentido comum do conceito de comércio que terá estado subjacente à manifestação de vontade expressa pelos declarantes no título constitutivo de propriedade horizontal exclui a restauração.
FF) Com base neste entendimento, aquele Tribunal decidiu pelo encerramento do restaurante da Apelante em virtude de, na sua perspectiva, para os declarantes, tal actividade não se incluir no referido conceito.
GG) Ora, como se demonstrou, também neste particular o Tribunal a quo incorreu num claro erro de julgamento, que encerra dois aspectos distintos.
HH) Por um lado, a constituição da propriedade horizontal e a atribuição do fim às respectivas fracções foi da exclusiva iniciativa e responsabilidade da sua única proprietária à data, (…), inversamente ao que parece resultar da afirmação do Tribunal a quo supra transcrita, que, com a utilização da expressão no plural – declarantes inculca a ideia de que a vontade foi expressa por vários interessados, verbi gratia, por aqueles que são hoje os condóminos do prédio.
(…)
KK) Pelo exposto, forçoso se torna concluir que, não só do ponto de vista objectivo, como também numa perspectiva subjectiva, o destino de comércio constante do título constitutivo de propriedade horizontal como constituindo o destino a atribuir à fracção em causa nos autos devia ter sido interpretado como abrangendo a actividade de restauração, ao invés do que viria a fazer o Tribunal a quo.
LL) O encerramento do restaurante em causa com o argumento de que, para a declarante S, a expressão "comércio" não incluía a actividade de restauração, não foi equacionado pelo Autor, aqui Apelado, como objecto da acção, mesmo subsidiariamente, pelo que estava vedado processualmente ao Tribunal a quo conhece-lo e fazer dele uso para fundamentar a decisão (vd., a este respeito, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 23.09.05, no âmbito do recurso n.° 43 89/03-2).
MM) Pelo que, na medida em que o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão com base em tal argumento, a sentença deve ser declarada nula, por excesso de pronúncia, nos termos do art. 668°, n.° 1, alínea d), parte, do Cód. de Proc. Civil.
NN) Numa outra vertente, ficou demonstrado que a Câmara Municipal de Lisboa emitiu as licenças de utilização para restauração e bebidas e para a utilização da esplanada, atestando, desse modo, a conformidade das mencionadas instalações com a lei e com os diplomas regulamentares em vigor, com as regras de restauração e com as normas de respeito pelas relações de vizinhança, entre outros aspectos.
OO) Com o prolação da sentença ora em apreciação, o Tribunal a quo retirou validade às licenças camarárias atribuídas à ora Apelante, as quais foram emitidas validamente, de acordo com todas as normas, regulamentos e diplomas legais e pela edilidade competente na respectiva matéria.
PP) Ora, conforme se conclui, não poderia o Tribunal a quo ter apreciado o pedido formulado pelo Apelado, na medida em que essa apreciação pressupunha uma avaliação da legalidade do acto praticado pelo ente público – licença emitida pela Câmara Municipal de Lisboa – estando vedada ao tribunal comum a apreciação da legalidade de actos administrativos dos órgãos da administração pública regional ou local.
QQ) Por todo o exposto, é imperativo concluir que, ao considerar-se competente para o julgamento do presente litígio, o Tribunal a quo violou o princípio da separação de jurisdições e, consequentemente, as normas previstas nos arts. 213° e 214° da Constituição da República Portuguesa, art. 66° do Cód. de Proc. Civil, no art. 18° da Lei n.° 3/1999, de 13 de Janeiro (Organização dos Tribunais Judiciais), e 1° e 4° da Lei n° 13/2002, de 19 de Fevereiro (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais)
RR) O Apelado não fez prova de que sofresse qualquer tipo de dano ou prejuízo, resultante do exercício da actividade de restauração levado a cabo pela Apelante, merecedor de tutela jurídica.
SS) Ao invés, constam do processo elementos que permitem concluir que a Apelante fez vários investimentos e suporta encargos de diversa natureza com a legítima expectativa – criada pela concessão administrativa do respectivo licenciamento - que a Apelante tinha em poder exercer naquele espaço a sua actividade de restauração, daí retirando os proventos necessários para fazer face ás mencionadas despesas.
(…)
UU) Não tendo o Tribunal a quo dado como provado que o Apelado tivesse sofrido qualquer dano ou prejuízo, fisico e/ou psíquico, com o funcionamento do restaurante, teria que concluir que, como consequência, o direito deste à manutenção da sua integridade fisica e psíquica não estava posto em causa pela continuação dessa actividade.
VV) Assim sendo, o Tribunal a quo devia ter decidido pela preservação do direito da Apelante em exercer a sua actividade económica, pois inexiste qualquer conflito de direitos a dirimir nos termos do art. 335°, n.° 2 do Cód. Civil, pelo que, não o tendo feito, aplicou erroneamente ao caso sub judice tal disposição.
WW) Em matéria de direitos reais, vigora o princípio do numerus clausus ou da taxatividade, previsto no art. 1306° do Cód. Civil, donde decorre que aos particulares está vedado modificar ou modelar o conteúdo dos direitos reais, salvo nos casos em que a lei excepcionalmente o permite cfr. Pires de Lima e Antunes Varela in Cód. Civil Anotado, Vol. III, comentário ao art. 1306°, pág. 100.
XX) O Tribunal a quo, decidindo nos termos que constam da sentença, impôs uma limitação ao direito da Apelante, traduzido na faculdade de aí exercer a actividade de restauração, que não se encontra tipificada, razão pela qual deve ser considerada ilícita, por violação do art. 10°, n.° 2, do Dec. Lei 149/95, de 24 de Junho, e dos arts. 1305° e 1306° do Cód. Civil .
YY) Ao decidir da forma que o fez, o Tribunal a quo violou, igualmente, várias disposições constitucionais, verbi gratia, o art. 86°, n.° 1, 13°, 18°, n.° 2, 213° e 214° da Constituição da República Portuguesa.”

O Autor contra-alegou, pugnando pela total improcedência da apelação da Ré.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

O OBJECTO DO RECURSO
Como se sabe, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintéctica, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 690º, nº 1, do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem 1 2.
Efectivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 684º, nº 2, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (nº 3 do mesmo art. 684º) 3 4.
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
No caso sub judice, emerge das conclusões da alegação de recurso apresentada pela Ré ora Apelante que o objecto do presente recurso está circunscrito às questões de saber:
1) Se, como a excepção dilatória de ilegitimidade (activa) do Autor para instaurar a presente acção foi julgada improcedente no despacho saneador, tendo como premissa a eventual existência de prejuízos para o Apelado, supostamente causados pelo funcionamento do restaurante da Apelante, a questão da legitimidade do Apelado devia ter sido reapreciada e decidida na Sentença final, uma vez que o Apelado não logrou afinal fazer prova de quaisquer prejuízos merecedores de tutela jurisidicional;
2) Se, não tendo sido demonstrada a existência de prejuízos para o Apelado e estando em causa uma eventual infracção por parte da Apelante com reflexos nas partes comuns do prédio, só o condomínio - representado pelo seu administrador, na qualidade de orgão executivo da assembleia de condóminos, e após ter sido devidamente autorizado por esta, como órgão deliberativo — teria legitimidade para demandar o ora Apelante, não possuindo o Apelado legitimidade, enquanto condómino, para - como fez na presente acção - alegar que a Apelante utiliza a sua fracção, prevista no titulo como comércio, para a actividade de indústria;
3) Se a resposta parcialmente positiva dada pelo tribunal de 1ª instância ao facto constante do artigo 8° da Base Instrutória deve ser alterada para “Não Provado”, ao abrigo do disposto nos arts. 690°-A e 712°, n.° 1, alínea a) e n.° 2 ambos do Cód. de Proc. Civil;
4) Se o conceito de restauração (e da mesma forma o de "actividade indústria de restauração") deve ser enquadrado no conceito de comércio, por ser esse o sentido que mais se coaduna com a actividade em causa;
5) Se, também para a declarante S, S.A.R.L (a quem coube, enquanto única proprietária do imóvel à data, a exclusiva iniciativa e responsabilidade pela constituição da propriedade horizontal e a atribuição do fim às respectivas fracções), o conceito de comércio incluia o exercício da restauração, pelo que não só do ponto de vista objectivo, como também numa perspectiva subjectiva, o destino de comércio constante do título constitutivo de propriedade horizontal como constituindo o destino a atribuir à fracção em causa nos autos devia ter sido interpretado como abrangendo a actividade de restauração;
6) Se, ao fundamentar a sua decisão de ordenar o encerramento do restaurante em causa no argumento de que, para a declarante S, a expressão "comércio" não incluía a actividade de restauração, a sentença recorrida incorreu em nulidade, por excesso de pronúncia, nos termos do art. 668°, n.° 1, alínea d), parte, do Cód. de Proc. Civil, visto tal argumento não ter sido equacionado pelo Autor, aqui Apelado, como objecto da acção, mesmo subsidiariamente, pelo que estava vedado processualmente ao Tribunal a quo conhecê-lo e fazer dele uso para fundamentar a decisão;
7) Se, ao considerar-se competente para o julgamento do presente litígio, o Tribunal a quo violou o princípio da separação de jurisdições e, consequentemente, as normas previstas nos arts. 213° e 214° da Constituição da República Portuguesa, art. 66° do Cód. de Proc. Civil, no art. 18° da Lei n.° 3/1999, de 13 de Janeiro (Organização dos Tribunais Judiciais), e 1° e 4° da Lei n° 13/2002, de 19 de Fevereiro (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), na medida em que, ao apreciar o mérito do pedido formulado pelo Autor/Apelado (de decretamento do encerramento do restaurante instalado e explorado pela Ré/Apelante na fracção autónoma em questão), o Tribunal a quo retirou validade às licenças camarárias atribuídas à ora Apelante, as quais foram emitidas validamente, de acordo com todas as normas, regulamentos e diplomas legais e pela edilidade competente na respectiva matéria (a Câmara Municipal de Lisboa);
8) Se, como o Apelado não fez prova de que sofresse qualquer tipo de dano ou prejuízo merecedor de tutela jurídica, resultante do exercício da actividade de restauração levado a cabo pela Apelante, constando, ao invés do processo elementos que permitem concluir que o encerramento do restaurante da Apelante, com a consequente impossibilidade de esta exercer a sua actividade económica, acarretará a esta graves prejuízos de ordem financeira (já para não falar daqueles que resultarão necessariamente da degradação da sua imagem), o Tribunal a quo devia ter decidido pela preservação do direito da Apelante em exercer a sua actividade económica, pois inexiste qualquer conflito de direitos a dirimir nos termos do art. 335°, n.° 2 do Cód. Civil;
9) Se, como, em matéria de direitos reais, vigora o princípio do numerus clausus ou da taxatividade, previsto no art. 1306° do Cód. Civil, o que consequencia que aos particulares está vedado modificar ou modelar o conteúdo dos direitos reais, salvo nos casos em que a lei excepcionalmente o permite, o Tribunal a quo, ao decidir nos termos que constam da sentença, impôs uma limitação ao direito da Apelante, traduzido na faculdade de aí exercer a actividade de restauração, que não se encontra legalmente tipificada, razão pela qual deve ser considerada ilícita, por violação do art. 10°, n.° 2, do Dec. Lei 149/95, de 24 de Junho, e dos arts. 1305° e 1306° do Cód. Civil.

MATÉRIA DE FACTO
Factos Considerados Provados na 1ª Instância:
A sentença recorrida elenca como provados os seguintes factos:
1) Mostra-se descrito na 6ª Conservatória de Registo Predial de Lisboa, o prédio urbano sito em São Paulo, Marquês do Pombal, (…) — (Al. A) dos factos assentes );
2) Mostra-se registada a favor do A., pela inscrição …, a aquisição por compra da fracção designada pela letra "E", correspondente ao segundo andar desse mesmo prédio, destinada a comércio, cfr. cit. doc. a fls 34 — (Al. B) dos factos assentes );
3) Mostra-se registada a favor da B, S.A., a aquisição por compra da fracção designada pela letra "A", correspondente à Cave desse mesmo prédio, destinada a comércio, cfr. cit. doc. a fls 33 — ( Al. C) dos factos assentes);
4) O A. comprou essa fracção em 26 de Julho de 2002, quando a mesma sempre havia sido destinada a comércio - (Al. D) dos factos assentes );
5) Sobre a mesma fracção "A", mostra-se ainda registada a favor da R., "T, Lda", a constituição do ónus de locação financeira, pelo prazo de 12 anos, com início em 2003/01/28, cfr. cit. doc. a fls 33 - ( Al. E) dos factos assentes);
6) Em assembleia geral de condóminos, realizada a 29 de Janeiro de 2002 e constante da acta n.° 32, foi alterado, por unanimidade, o destino da fracção "E", pertença do A., passando a mesma de comércio para habitação, cfr. doc. de fls 38 a 49 - (Al. F) dos factos assentes);
7) A R., "T, Lda", mostra-se matriculada na Conservatória de Registo Comercial de Lisboa e tem por objecto social o exercício da actividade de exploração turística e hoteleira, cfr. doc. de fls 50 a 52 - ( Al. G) dos factos assentes);
8) A R. instalou um restaurante na fracção "A" do prédio a que os autos se reportam — (Al. H) dos factos assentes)
9) No ano de 2002, a R. submeteu à aprovação da Câmara Municipal de Lisboa um projecto de arquitectura que tinha por objectivo a adaptação a restaurante da fracção "A" do prédio a que os autos se reportam, o qual foi aprovado em 13/12/2002, cfr. doc. de fls 81 – ( Al. I) dos factos assentes );
10) Em 23 de Abril de 2003, a R. deu entrada na Câmara Municipal de Lisboa dos projectos de especialidade, requerendo a consequente aprovação, cfr. doc. de fls 82, a que se seguiram a solicitação pela edilidade de vários elementos adicionais relativos a esses projectos, cfr. doc. de fls 83 - ( Al. J) dos factos assentes );
11) A R. iniciou obras no restaurante denominado "A", tendo concluído as mesmas em 6 de Outubro de 2003 – (Al. L) dos factos assentes );
12) A R. requereu a realização de vistoria ao estabelecimento para efeitos da emissão de licença de utilização, solicitando a liquidação das respectivas taxas, cfr. doc. de fls 84 — ( Al. M) dos factos assentes );
13) O processo foi deferido por despacho do vereador da Câmara Municipal de Lisboa, de 4 de Dezembro de 2003, cfr. doc. de fls 85, tendo a vistoria sido agendada para 29 de Outubro de 2004, cfr. doc. de fls 87 — ( Al. N) dos factos assentes );
14) A 7 de Dezembro de 2004 a Câmara Municipal de Lisboa passou a favor da R. licença de utilização para serviços de restauração ou de bebidas, através do Alvará n.° 740/PGU/2004, cfr. doc. de fls 169 - (Al. 0) dos factos assentes );
15) Por oficio, com data de 14/12/2004, a R. foi notificada de que o pedido de licenciamento relativo a urna esplanada aberta com 6 mesas e 12 cadeiras, em 7,58 m2, mereceu despacho final de deferimento, cfr. doc. de fls 171 - (Al. P) dos factos assentes);
16) O prédio dos autos tem um saguão central que serve fundamentalmente para ventilar, arejar e fornecer alguma luminosidade a todas as fracções do prédio - (Al. Q) dos factos assentes );
17) Tal saguão serve principalmente as divisões intemas das casas, nomeadamente, as casas de banho e quartos, como acontece com a casa do A. - ( Al. R) dos factos assentes );
18) Para cumprimento das suas funções, tal saguão central tem pequenas frestas sensivelmente com 50 cm de altura e 20 cm de largura - ( Al. S) dos factos assentes );
19) As frestas estão ao nível de cada um dos andares, conforme fotografia de fls 53 - (Al. T) dos factos assentes );
20) O A. adquiriu a fracção "E" do prédio dos autos para nela fixar a sua residência, com a sua família - ( Resposta ao 1° da base instrutória );
21) Devido ao avançado estado de degradação da sua fracção e porque ela se havia destinado a comércio, o A. teve de fazer investimentos avultados no sentido de recuperar o interior da casa e dotar a mesma de todas as características e comodidades inerentes a uma habitação familiar - ( Resposta ao 2° da base instrutória);
22) Quando as obras terminaram, em data não apurada do ano de 2004, o A. passou a residir nessa fracção com a sua família, sendo o seu agregado familiar composto por si, pela sua esposa e 3 filhos em idade escolar - (Resposta ao 3° da base instrutória );
23) Essas obras implicaram um enorme investimento em tempo, disponibilidade e trabalho do A. - ( Resposta ao 4° da base instrutória );
24) Essa obra correspondeu ao investimento da sua vida, do seu dinheiro e da sua família, num projecto habitacional que considerou importante para o futuro - ( Resposta ao 5° da base instrutória );
25) A R. decidiu unilateralmente instalar um restaurante na fracção "A" do prédio dos autos, a qual se destinava a comércio, sem ter proposto qualquer alteração do fim a que a fracção se destinava junto da assembleia de condóminos - ( Resposta ao 6° da base instrutória );
26) Os cheiros que derivam directamente da cozinha da R., dependendo das condições climatéricas, por vezes invadem as habitações do prédio, em particular as fracções do 4° andar do mesmo - ( Resposta ao 8° da base instrutória);
27) A R. colocou um acrescento metálico a uma chaminé j á existente e que fazia parte da estrutura do prédio, sem pedir autorização prévia aos restantes condóminos, cfr. fotos de fls 56 e 287 - ( Resposta ao 12° da base instrutória )
28) Esse acrescento foi montado sobre a chaminé em alvenaria existente no prédio, num material inestético para um edifício de traça pombalina, e termina, com a respectiva saída, a cerca de um metro acima do saguão central (Resposta ao 13° da base instrutória );
29) No Verão e aos fins-de-semana o restaurante costuma fechar cerca da 1 hora da madrugada, hora a que saem os últimos clientes - (Resposta ao 19° da base instrutória );
30) Por vezes os clientes do restaurante da R. saem para a rua, fazendo barulho - (Resposta ao 20° da base instrutória );
31) As janelas do quarto de casal do A. e do quarto do seu filho de 12 anos deitam directamente para a Travessa - ( Resposta ao 21° da base instrutória );
32) O filho do A. é estudante e acorda todos os dias às 6h30m da manhã para entrar no estabelecimento de ensino às 8h10m - ( Resposta ao 22° da base instrutória ),
33) O A. acorda às 7h00m da manhã para ir trabalhar - ( Resposta ao 23° da base instrutória );
34) Por vezes o A. e o seu filho são incomodados pelo barulho dos clientes que saem do restaurante da R. cerca da 1 hora da manhã - ( Resposta ao 24° da base instrutória )
35) Os empregados da R., logo após os últimos clientes saírem do restaurante, por vezes também fazem barulho, nomeadamente nas arrumações da esplanada que está instalada na Travessa - ( Resposta ao 26° da base instrutória );
36) A R. instalou uma esplanada na rua a funcionar até à noite, sem que tivesse pedido autorização aos condóminos do prédio ( Resposta ao 27° da base instrutória );
37) Desde 15 de Novembro de 2001, a R. compareceu em todas as assembleias de condóminos informando os restantes proprietários e condóminos sobre a actividade de restauração que pretendia exercer na fracção - ( Resposta ao 29° da base instrutória );
38) A R. remeteu uma carta a todos os condóminos do prédio para saber do seu entendimento sobre a sua utilização da fracção como restaurante, tendo obtido a resposta dos representantes da fracção "F" ( cfr. fls 103 ), "I" ( cfr. fls 105 ), "G" ( cfr. fls 107 ), do rés-do-chão direito ( cfr. fls 110 ) e rés-do-chão esquerdo ( cfr. fls 111 ), que disseram nada ter a opor à instalação de um restaurante, nos termos que aí deixaram consignados — ( Resposta ao 30° da base instrutória );
39) A R. instalou na chaminé, que já existia antes na fracção, uma conduta vertical de extracção de fumos e cheiros para o exterior - ( Resposta ao 31 ° da base instrutória ).

O MÉRITO DA APELAÇÃO

1) A SUSCEPTIBILIDADE DE SER REAPRECIADA, NA SENTENÇA A QUESTÃO DA EVENTUAL ILEGITIMIDADE (ACTIVA) DO AUTOR PARA INTENTAR A PRESENTE ACÇÃO - A DESPEITO DO TRÂNSITO EM JULGADO DO DESPACHO SANEADOR, NO SEGMENTO EM QUE JULGOU, EX PROFESSO, IMPROCEDENTE TAL EXCEPÇÃO DILATÓRIA -, VISTO O AUTOR NÃO TER, AFINAL, LOGRADO PROVAR QUE DO FUNCIONAMENTO DO RESTAURANTE DA APELADA LHE ADVÊEM (PARA ELE, AUTOR) QUAISQUER PREJUÍZOS MERECEDORES DE TUTELA JURISDICIONAL.

Como se referiu, o despacho saneador desatendeu, julgando-a improcedente, a excepção dilatória de ilegitimidade (activa) do Autor para intentar a presente acção oportunamente deduzida pela Ré.
E, não obstante a Ré haver interposto recurso deste segmento do despacho saneador, tal recurso veio a ficar deserto, por falta de alegações (nos termos das disposições conjugadas dos arts. 291º, nº 2, e 690º, nº 3, ambos do Cód. Proc. Civil), pelo que, nesta parte, o despacho saneador transitou em julgado (art. 677º do mesmo Código).
Ainda assim, sustenta a Ré/Apelante que, como a decisão de improcedência da referida excepção dilatória de ilegitimidade activa teve como premissa a eventual existência de prejuízos para o Apelado, supostamente causados pelo funcionamento do restaurante da Apelante, a questão da legitimidade do Apelado devia ter sido reapreciada e decidida na sentença final, uma vez que o Apelado não logrou, afinal, fazer prova de quaisquer prejuízos merecedores de tutela jurisidicional.
Quid juris ?
Relativamente ao pressuposto da legitimidade, o Assento do S.T.J. de 1/2/1963 (publicado in D.R., I Série, de 21/2/1963 e também in BMJ nº 124, p. 414) tinha resolvido, em sentido afirmativo, a questão, controvertida no direito processual civil anterior à Reforma de 1995/1996, de saber se o despacho saneador genérico produzia caso julgado formal quanto à ocorrência dos pressupostos processuais e à inexistência de nulidades, tirando o caso da competência em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia, em que a lei era expressa em dizer que assim não sucedia (cfr. o anterior art. 104º-2 do CPC). Assim sendo, «não era mais possível, depois do despacho saneador que, sem mais, declarasse as partes legítimas, levantar questão que pusesse em causa a legitimidade do autor ou do réu, a menos que, como no ac. do STJ de 5/7/1984, [in] BMJ 339, p. 370, factos supervenientes pusessem em causa a legitimidade da parte, entendida como ALBERTO DOS REIS a entendia»5.
Porém, em face da actual redacção do nº 3 do art. 510º do C.P.C. (proveniente do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12-XII, com pequenos aperfeiçoamentos formais devidos ao Decreto-Lei nº 180/96, de 25-IX), «se (…) o juiz referir genericamente [no despacho saneador] que determinados pressupostos, dos constantes do art. 494º (por exemplo, a competência, a capacidade, a legitimidade ou os da coligação) ou outros (por exemplo os que tornam admissível a reconvenção, ou o pedido genérico: respectivamente, arts. 274º-2 e 471º-1), se verificam, o despacho saneador não constitui, nessa parte, caso julgado formal (art. 672º), pelo que continua a ser possível a apreciação duma questão concreta de que resulte que o pressuposto genericamente referido afinal não ocorre ou que há nulidade»6.
Consequentemente, generalizou-se a todos os pressupostos processuais (incluindo a legitimidade) a solução que, em sede de competência, constava do art. 104º, nº 2, do CPC, na redacção anterior à Reforma de 1995/1996 e, portanto, caducou a solução afirmada, no âmbito da legitimidade, pelo cit. Assento do STJ de 1/2/19637.
Donde que, a partir da revisão do CPC, ficou claro que o despacho saneador apenas constitui caso julgado formal em relação às questões concretamente apreciadas. «Do que resulta que as declarações genéricas proferidas no despacho saneador sobre pressupostos processuais ou nulidades não formam caso julgado»8. «O regular preenchimento de um pressuposto, que o tribunal declarou em termos genéricos verificar-se, pode ser questionado em fase ulterior da instância»9.
De todo o modo, no caso dos autos, a excepção dilatória de ilegitimidade (activa) do Autor para intentar a presente acção não foi apreciada no despacho saneador de modo genérico. Antes, pelo contrário, o despacho saneador ocupou-se, ex professo, da questão da legitimidade/ilegitimidade do Autor para propor a presente acção (suscitada pela Ré na sua contestação).
Daí que o despacho saneador, na parte em que julgou improcedente tal excepção dilatória, constitui caso julgado formal impeditivo da reapreciação, no âmbito do presente processo (art. 672º do CPC) da questão da legitimidade do Autor para intentar esta acção10.
Consequentemente, a reapreciação, na sentença final, da questão da legitimidade do Autor para propor a presente acção envolveria violação do caso julgado formal que se formou com o trânsito em julgado do despacho saneador, no segmento em que, ocupando-se concretamente de tal excepção dilatória (oportunamente deduzida pela ora Ré/Apelante), a julgou improcedente.
Tanto bastaria para que a apelação tivesse de improceder, quanto a esta 1ª questão.
Acresce que – contrariamente ao sustentado (nas respectivas alegações) pela Ré/Apelante – a decisão de improcedência da excepção dilatória de ilegitimidade (activa) do Autor não teve como premissa a eventual existência de prejuízos para o Apelado, supostamente causados pelo funcionamento do restaurante da Apelante.
Efectivamente, o despacho saneador, no segmento em que se ocupou expressamente da questão da legitimidade do Autor para pedir o encerramento do restaurante explorado pela Ré, foi do seguinte teor:
“Quanto ao direito ao encerramento do estabelecimento fundado na utilização da fracção para fim diverso do que consta do título constitutivo da propriedade horizontal, admitimos que tal pretensão pudesse ser formulada em juízo pelo administrador do condomínio no exercício das suas funções (Art. 1436º al.s f) e al. l) e Art. 1437º nº 1 do C.C.).
No entanto, a legitimidade atribuída ao administrador no mencionado preceito não é retirada por lei ao proprietário que seja confrontado com a violação do art. 1422º nº 2 do C.C..
Qualquer proprietário da fracção, lesado pela alteração da utilização do fim a que determinada fracção está adstrita, tem legitimidade própria para intentar tal acção, sem prejuízo do administrador também a ter, em representação do condomínio.
O Art. 1437º do C.C. não retira legitimidade aos condóminos para agir em juízo.
A legitimidade dos condóminos para as acções que intentem afere-se individualmente nos termos do Art. 26º do C.P.C..
O Art. 1437º do C.C. aplica-se só ao administrador, que para certas acções pode agir em juízo, em representação do “condomínio”, conseguindo-se, desse modo, que uma entidade que não tem personalidade jurídica, mas goza de personalidade judiciária (Art. 6º al. e) do C.P.C.), possa intervir como parte numa acção”.
Daí que a circunstância de, afinal, no termo da discussão da causa, o Autor não haver conseguido provar que o funcionamento do restaurante da Ré/Apelante constitua, para ele, causa de quaisquer prejuízos merecedores de tutela jurisidicional – motivo pelo qual a sentença recorrida julgou improcedente o pedido indemnizatório formulado pelo Autor contra a Ré com base no art. 1346º do Código Civil – nunca poderia repercutir-se, por qualquer modo, na questão da legitimidade do Autor para pedir o encerramento do restaurante explorado pela Ré, ainda mesmo que tal questão não tivesse sido objecto de decisão expressa no despacho saneador oportunamente proferido e, portanto, não se tivesse já constituído nos autos caso julgado formal impeditivo da sua reapreciação na sentença.
Eis por que a apelação improcede, necessariamente, quanto à 1ª questão suscitada nas conclusões da alegação da Ré/Apelante – o que, obviamente, prejudica, em termos lógicos, a apreciação da 2ª questão levantada pela Apelante (a de saber se, não tendo sido demonstrada a existência de prejuízos para o Apelado e estando em causa uma eventual infracção por parte da Apelante com reflexos nas partes comuns do prédio, só o condomínio - representado pelo seu administrador, na qualidade de orgão executivo da assembleia de condóminos, e após ter sido devidamente autorizado por esta, como órgão deliberativo — teria legitimidade para demandar o ora Apelante, não possuindo o Apelado legitimidade, enquanto condómino, para - como fez na presente acção - alegar que a Apelante utiliza a sua fracção, prevista no titulo como comércio, para a actividade de indústria).

2) O PRETENSO ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS COMETIDO PELO TRIBUNAL RECORRIDO AO CONSIDERAR PARCIALMENTE PROVADO (EM LUGAR DE “NÃO PROVADO”) O FACTO CONSTANTE DO ARTIGO 8° DA BASE INSTRUTÓRIA.
A Ré ora Apelante impugna, no presente recurso, a decisão sobre matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido, no segmento em que considerou parcialmente provado (em vez de não provado) o facto vertido no artigo 8º da Base Instrutória.
Na tese da Apelante, as provas testemunhais produzidas em audiência de julgamento reclamavam que o tribunal a quo tivesse respondido negativamente (em lugar de afirmativamente) ao referido artigo 8º da Base instrutória.
Quid juris ?
Como é sabido, o CPC de 1939 estabelecia como regra a inalterabilidade da decisão do tribunal colectivo sobre a matéria de facto constante do questionário. Solução que, podendo ser criticada (por, eventualmente, cercear excessivamente as garantias de um bom julgamento), tinha, todavia, uma justificação lógica e cabal: «na verdade, não havendo redução a escrito das provas produzidas perante o tribunal colectivo, não podia a Relação controlar o modo como o mesmo Colectivo apreciara essas provas»11.
Posteriormente, «o CPC de 1961 procurou ampliar os poderes da Relação no que toca, não só à apreciação das respostas à matéria de facto dadas pelo tribunal de 1ª instância, mas também à imposição duma fundamentação mínima relativamente às decisões do Colectivo, e determinou a possibilidade de anulação, ainda que oficiosa, quando as respostas à matéria de facto fossem deficientes, obscuras ou contraditórias»12.
Todavia, «na prática, apesar de se prever um segundo grau de jurisdição em matéria de facto, face à redacção anterior do art. 712º do C.P.C., só muito excepcionalmente tal garantia era exequível»13.
De facto, perante a anterior redacção da al. a) do nº 1 do cit. art. 712º, a Relação só gozava do poder-dever de alterar a decisão sobre a matéria de facto se do processo constassem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão – o que apenas sucedia quando, havendo prova testemunhal, todas as testemunhas tivessem sido ouvidas por deprecada, estando os respectivos depoimentos reduzidos a escrito14, ou se os elementos fornecidos pelo processo impusessem decisão diversa insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas15.
«Nos demais casos, que a experiência demonstrou constituírem a larga maioria, bastava que na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, o tribunal indicasse, ainda que em termos genéricos ou imprecisos, a interferência de prova testemunhal, declarações emitidas pelas partes, esclarecimentos prestados pelos peritos ou por quaisquer outras pessoas ouvidas na audiência de discussão e julgamento ou, ainda, o resultado da observação directa que o tribunal retirasse das inspecções judiciais, para que o tribunal superior ficasse impedido de sindicar a decisão proferida pelo tribunal “a quo”»16.
«Aqui se fundaram, embora em termos não exclusivos, as principais críticas apontadas ao sistema da oralidade plena ou pura, implementado no CPC de 1939 e continuado no CPC de 1961 e que acabaram por levar o legislador a aprovar as medidas intercalares previstas no Dec-Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro, posteriormente mantidas na redacção final do CPC»17.
Efectivamente, o cit. DL nº 39/95 veio possibilitar um recurso amplo sobre a matéria de facto, ao prescrever a possibilidade de registo ou documentação da prova, solução que a revisão do CPC operada em 1995/1996 (pelos Decretos-Leis nºs 329-A/95, de 12-XII, e 180/96, de 25-IX) sedimentou.
Assim, «a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto passou a poder ser alterada, não só nos casos previstos desde 1939, mas também quando, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tenha sido impugnada, nos termos do art. 690º-A, a decisão com base neles proferida»18.
O cit. DL. nº 39/95 aditou ao Código de Processo Civil então vigente os arts. 522º-A, 522º-B, 522º-C, 684º-A e 690º-A, atinentes ao registo dos depoimentos, à forma de gravação e ao modo como se deveria proceder para impugnar a matéria de facto, em sede de recurso.
Após a mencionada Revisão de 1995/96 do Código de Processo Civil, o fulcral art. 690º-A passou a ter a seguinte redacção:
[“Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão de facto”]
1- Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda.
3 - Na hipótese prevista no número anterior, incumbe à parte contrária, sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, proceder, na contra-alegação que apresente, à transcrição dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente.
4- O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso nos termos do nº2 do art. 684º-A”.
Posteriormente, o Decreto-Lei nº 183/2000, de 10 de Agosto, eliminou a exigência (estabelecida na redacção originária do nº 2 deste art. 690º-A) de que o recorrente procedesse, sob pena de rejeição do recurso, à “transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda”, passando a prescrever que o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento devem ficar registados na acta da audiência de julgamento (cfr. o nº 2 aditado por este diploma ao cit. art. 522º-C do CPC) e possibilitando que as partes possam recorrer da matéria de facto com base na simples referência ao assinalado na acta (cfr. a nova redacção conferida por este diploma aos nºs 2 e 3 do cit. art. 690º-A), devendo o tribunal de recurso proceder à audição e visualização do registo áudio e vídeo, respectivamente, excepto se o juiz relator considerar necessária a sua transcrição, a qual será realizada por entidades externas para tanto contratadas pelo tribunal (cfr. o nº 5 aditado ao cit. art. 690º-A por este diploma).
Porém, o poder de cognição do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto.
Desde logo, a possibilidade de conhecimento está confinada aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, com os pressupostos adrede estatuídos no art. 690º-A nºs 1 e 2 do CPC. «A expressão “ponto da matéria de facto” procura acentuar o carácter atomístico, sectorial e delimitado que o recurso ou impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto em regra deve revestir, estando em harmonia com a terminologia usada pela alínea a) do nº 1 do art. 690º-A: na verdade, o alegado “erro de julgamento” normalmente não inquinará toda a decisão proferida sobre a existência, inexistência ou configuração essencial de certo “facto”, mas apenas sobre determinado e específico aspecto ou circunstância do mesmo, que cumpre à parte concretizar e delimitar claramente»19 20 21 22.
Por outro lado, o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Efectivamente, «a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no art. 655º, nº 1, do CPC: “o juiz aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição23 24.
Ora, «contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo»25 26 27. «O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado»28.
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (art. 653º, nº 2, do CPC).
«Determinando a norma jurídica que o juiz faça uma análise crítica das provas produzidas (expressão que já estava prevista, no que concerne à sentença, no art. 659º, nº 3) e que especifique os fundamentos decisivos para a sua convicção, deve ser posto definitivamente de parte o método (ou o “expediente”) frequentemente utilizado de apresentar, como fundamentação, os simples meios de prova, v.g. “os depoimentos prestados pelas testemunhas e a inspecção ao local”»29 «A exigência legal, para ser acatada, impõe que, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, se estabeleça o fio condutor entre a decisão da matéria de facto (resultado) e os meios de prova que foram usados na aquisição da convicção (fundamentos), fazendo a respectiva apreciação crítica, nos seus aspectos mais relevantes»30 «Por conseguinte, quer relativamente aos factos provados quer quanto aos factos não provados, deve o tribunal justificar os motivos da sua decisão, declarando por que razão, sem perda da liberdade de julgamento garantida pela manutenção do princípio da livre apreciação das provas (art. 655º do CPC), deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões dos peritos, achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos particulares, etc.»31.
«Nesta perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção»32.
Daí que - conforme orientação jurisprudencial prevalecente - «o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, pelas razões já enunciadas, está em melhor posição»33 34 35.
Na verdade, «só perante tal situação [de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão] é que haverá erro de julgamento; situação essa que não ocorre quando estamos na presença de elementos de prova contraditórios, pois nesse caso deve prevalecer a resposta dada pelo tribunal a quo, por estarmos então no domínio e âmbito da convicção e da liberdade de julgamento, que não compete a este tribunal ad quem sindicar (artº 655-1 do CPC), e pelas razões já supra expandidas»36 37.
Em conclusão: «mais do que uma simples divergência em relação ao decidido, é necessário que se demonstre, através dos concretos meios de prova que foram produzidos, que existiu um erro na apreciação do seu valor probatório, conclusão difícil quando os meios de prova porventura não se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo apelante ou quando também eles sejam contrariados por meios de prova de igual ou de superior valor ou credibilidade»38.
É que «o tribunal de 2ª jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si»39.
«Sendo, portanto, um problema de aferição da razoabilidade - à luz das regras da ciência, da lógica e da experiência (Miguel Teixeira de Sousa in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, 1997, pág. 348) -, da convicção probatória do julgador recorrido, aquele que essencialmente se coloca em sede de sindicabilidade ou fiscalização do julgamento fáctico operado pela 1ª instância, forçoso se torna concluir que, na reapreciação da matéria de facto, à Relação apenas cabe, pois, um papel residual, limitado ao controle e eventual censura dos casos mais flagrantes, como sejam aqueles em que o teor de algum ou alguns dos depoimentos prestados no tribunal “a quo” lhe foram indevidamente indiferentes, ou, de outro modo, eram de todo inidóneos ou ineficientes para suportar a decisão a que se chegou»40.
Casos excepcionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e a decisão do tribunal recorrido sobre matéria de facto serão, por exemplo, os de o depoimento de uma testemunha ter um sentido em absoluto dissonante ou inconciliável com o que lhe foi conferido no julgamento, de não terem sido consideradas - v.g. por distracção - determinadas declarações ou outros elementos de prova que, sendo relevantes, se apresentavam livres de qualquer inquinação, e pouco mais.
«A admissibilidade da respectiva alteração por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação»41 «Assim, por exemplo:
a) apoiar-se a prova em depoimentos de testemunhas, quando a prova só pudesse ocorrer através de outro sistema de prova vinculada;
b) apoiar-se exclusivamente em depoimento(s) de testemunha(s) que não depôs(useram) à matéria em causa ou que teve(tiveram) expressão de sinal contrário daquele que foi considerado como provado;
c) apoiar-se a prova exclusivamente em depoimentos que não sejam minimamente consistentes, ou em elementos ou documentos referidos na fundamentação, que nada tenham a ver com o conteúdo das respostas dadas»42.
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se os Apelantes deram cumprimento aos procedimentos legalmente exigíveis que lhes possibilitam o recurso sobre a decisão de facto e, em caso afirmativo, se lhes assiste razão.
Sob o ponto de vista formal, há que reconhecer que a ora Apelante cumpriu escrupulosamente o que lhe era exigido pela lei processual para poder atacar a decisão de facto da 1.ª instância, na medida em que indicou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (al. a), do n.º 1 do art.º 690.º-A, do CPC) e referiu os concretos meios probatórios, constantes do processo, que – na sua perspectiva - imporiam decisão de facto diversa da recorrida (al. b), do n.º 1, do art.º 690.º-A, do CPC), tendo curado de o fazer por referência ao assinalado na acta, nos termos do art. 522º, nº 2, do CPC (como exige o nº 2 do cit. art. 690º-A) e – se bem que dispensada de o fazer – havendo mesmo procedido a uma transcrição das passagens (por ela consideradas) mais relevantes dos depoimentos prestados pelas testemunhas que, na sua óptica, deviam ter levado o tribunal a quo a proferir uma distinta decisão sobre matéria de facto, no segmento concretamente referido (resposta ao artigo 8º da Base instrutória).
Mas se é verdade que tais formalismos foram integralmente respeitados pela ora recorrente, não deixa de ser menos exacto que este tribunal da Relação, atento o que supra se referiu sobre a sua limitada possibilidade de alterar a matéria de facto (respeito pelo princípio da livre apreciação das provas, atribuído ao julgador em 1.ª instância), não encontra razões bastantes para alterar a factualidade apurada pelo tribunal a quo.
Com efeito, o Senhor Juiz do Tribunal a quo fez a sua valoração da prova produzida, tendo apresentado a respectiva motivação de facto, na qual explicitou minuciosamente, não apenas os vários meios de prova (documentos, inspecção judicial e depoimentos testemunhais) que concorreram para a formação da sua convicção, como os critérios racionais que conduziram a que a sua convicção acerca dos diferentes factos controvertidos se tivesse formado em determinado sentido e não noutro.
Os depoimentos testemunhais, que a ora Apelante pretende que sejam agora valorados diversamente do que o foram pelo Senhor Juiz a quo, de molde a levarem à alteração da matéria de facto, são, consabidamente, elementos de prova a apreciar livremente pelo tribunal (arts. 396º do Cód. Civil e 655.º, n.º 1, do C.P.C.). Se o julgador de 1ª instância entendeu valorar diferentemente da ora Recorrente tais depoimentos, não pode esta Relação pôr em causa a convicção daquele, livremente formada, como antes se referiu, tanto mais que dispôs de outros mecanismos de ponderação da prova global que este tribunal ad quem não detém aqui (v.g. a inquirição presencial das testemunhas e, sobretudo, a inspecção judicial levada a cabo ao prédio dos autos).
No que concerne à concreta factualidade cuja alteração é pretendida pela Apelante (resposta ao artigo 8º da Base Instrutória), estamos perante duas versões radicalmente distintas, não dispondo este tribunal de 2ª instância de outros elementos probatórios, sejam documentais sejam testemunhais que, com razoável consistência, comprovem, corroborem, enfatizem ou infirmem qualquer dessas versões.
À partida, portanto, qualquer uma destas versões contraditórias poderia ser aceite. Simplesmente, o Tribunal a quo, apreciando livremente a prova, entendeu dar mais crédito (se bem que não integralmente) à versão do Autor ora Apelado. E fê-lo de forma fundamentada, amparado sobretudo nos conhecimentos adquiridos através da inspecção judicial levada a cabo ao prédio dos autos e dos depoimentos testemunhais prestados pelas testemunhas, que, não sendo partes na causa, nenhum interesse directo têm no seu desfecho.
Foram os seguintes os termos em que o Sr. Juiz “a quo” fundamentou a sua resposta restritiva ao mencionado artigo 8º da Base Instrutória (no qual se indagava se os cheiros que derivam directamente da cozinha da Ré invadem permanentemente as habitações do prédio e a do Autor, tendo o tribunal respondido o seguinte: “Provado que os cheiros que derivam directamente da cozinha da R., dependendo das condições climatéricas, por vezes invadem as habitações do prédio, em particular as fracções do 4° andar do mesmo”):
“A resposta aos pontos 7º a 16° e 31° da base instrutória, relativos aos cheiros, fumos, janelas e/ou frestas para o saguão e a chaminé, foi relevado fundamentalmente o resultado da inspecção ao local e da experiência de assar carne que então foi levada a efeito e cujo resultado consta do auto de fls 343 a 344, para além das fotografias de fls 56 e 287 (esta última mais actual que a primeira ) e que reflectem a mesma realidade que foi verificada "in loco". No entanto, em face da disposição local da chaminé e das queixas que foram relatadas pelas testemunhas (…), que são os condóminos das duas fracções sitas no 4° andar do prédio dos autos, admitimos como perfeitamente razoável que, por vezes, em função da direcção do vento e das demais condições climatéricas que possam influir em concreto, pode haver cheiros vindos da chaminé que possam afectar em particular as fracções do 4° andar. Não se fez prova suficiente que esses cheiros alguma vez se sintam na casa do A., que fica ao nível do 2° andar. O que justificou a resposta ao ponto 8° da base instrutória.”.
As razões pelas quais a ora Apelante sustenta que os depoimentos testemunhais em que se ancorou o tribunal de 1ª instância para fundamentar a sua convicção, no que tange à resposta dada ao aludido artigo 8º da Base instrutória (…) não seriam, afinal, merecedores de crédito, relevam duma apreciação puramente subjectiva e arbitrária (a Apelante considera que, como a 1ª destas testemunhas se equivocou quanto à pré-existência duma chaminé em alvenaria embutida na própria parede, a 2ª se equivocou quanto à comparência, nas assembleias de condóminos, do legal representante da Ré, a fim de informar da intenção desta de instalar um estabelecimento de restauração na cave do prédio, e a 3ª se equivocou quanto à existência ou não, no prédio dos autos, duma cave e quanto à existência ou não, na Travessa do Alecrim, de outros restaurantes, tanto bastaria para que os depoimentos prestados por estas três testemunhas não merecessem qualquer crédito).
Os equívocos e confusões em que estas testemunhas porventura incorreram, ao longo dos seus depoimentos, versam sobre questões marginais e acessórias, que nada têm que ver com a questão de facto objecto do mencionado artigo 8º da Base Instrutória, sobre a qual tais testemunhas evidenciaram possuir uma inquestionável razão de ciência: todas elas residem no prédio dos autos e são precisamente os condóminos das fracções situadas no 4º andar do mesmo.
Perante os limitados meios de que esta Relação dispõe, a apreciação do Mm.º Juiz a quo - efectivada no insubstituível contexto da imediação da prova -, surge-nos assim como claramente sufragável, com iniludível assento na prova produzida e em que declaradamente se alicerçou, nada justificando por isso a respectiva alteração.
O presente caso, manifestamente, não se reconduz, pois, a um daqueles casos flagrantes e excepcionais em que - como vimos - essa alteração é de ocorrência forçosa.
Não há, pois, que alterar a decisão recorrida, quanto à matéria de facto, visto que não se mostra verificado qualquer dos fundamentos tipificados no n.º 1 do art.º 712.º do CPC, improcedendo, por isso, o recurso quanto à impugnação da matéria de facto, mantendo-se intocada a fixada pela 1ª instância.
Eis por que a apelação da Ré improcede, necessariamente, quanto à 3ª questão suscitada nas conclusões da sua alegação de recurso.

3) SE O CONCEITO DE RESTAURAÇÃO (E DA MESMA FORMA O DE "ACTIVIDADE INDÚSTRIA DE RESTAURAÇÃO") DEVE SER ENQUADRADO NO CONCEITO DE COMÉRCIO, POR SER ESSE O SENTIDO QUE MAIS SE COADUNA COM A ACTIVIDADE EM CAUSA.
A sentença ora sob recurso perfilhou o entendimento segundo o qual «a confecção de refeições na fracção em causa não se integra no conceito comum de comércio, mas sim no de indústria». «Mais comummente designada por "indústria hoteleira"».
«De facto, a ideia comum de indústria está relacionada com a actividade de transformação de matérias primas, com vista a obter um determinado resultado, que constitui o produto dessas operações de transformação».
«Claro está que não estamos perante uma grande unidade industrial, sendo igualmente certo, que a actividade em causa também tem uma componente de compra e venda, que comummente está associada à ideia "comércio"».
«No entanto, esse não é esse o elemento caracterizador típico da actividade de restauração no seu conjunto, que se funda essencialmente na produção de comida resultante da confecção de matéria primas, utilizando os conhecimentos e meios técnicos próprios da actividade de cozinha».
«Neste termos entendemos que uma fracção que tem por fim o "comércio" não pode ser utilizada pelo condómino, ou pela locatária, para o exercício da actividade industrial de restauração».
Sustenta, porém, ex adverso, a ora Ré/Apelante que, pelo contrário, o conceito de restauração (e da mesma forma o de "actividade indústria de restauração") deve ser enquadrado no conceito de comércio, por ser esse o sentido que mais se coaduna com a actividade em causa.
Isto porque:
a) Todas as entidades e organismos oficiais que a Apelante teve oportunidade de consultar perfilham tal entendimento;
b) De acordo com a Classificacão Portuguesa das Actividades Económicas, o estabelecimento de restauração da ora Apelante detém o CAE 55301, que se inclui na Subclasse "restaurantes de tipo tradicional", que por sua vez se insere na Classe "restaurantes", que se inclui na Divisão "alojamento e restauração (restaurantes e similares)", que faz parte da Secção "H", sendo certo que, na versão anterior desta Classificação, as actividades de comércio por grosso e a retalho, restaurantes e hotéis, estavam todas incluídas na mesma categoria, classificadas pelo número 6, sendo que as actividades industriais, por sua vez, encontram-se definidas e caracterizadas nas Secções C e D;
c) Por outro lado, para a Câmara Municipal de Lisboa, o conceito de comércio engloba tanto a actividade de restauração como a industria hoteleira e o exercício destas actividades apenas é permitido em fracções cujo uso registado seja comércio – cfr. o parecer emitido em 15.02.2006 pelo Vice-Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Dr. Fontão de Carvalho, junto às alegações da Apelante, de acordo com o qual a actividade de restauração se insere no uso terciário (comércio);
d) O entendimento do Ministério da Economia e Inovação vai, também, no sentido de inserir a actividade de restauração na competência da Secretaria de Estado do Comércio, Serviços e Defesa do Consumidor: este é, aliás, o sentido do Despacho n.° 13027/2005, de 14 de Junho (Despacho de delegação de competência do Ministro da Economia e Inovação nos respectivos Secretários de Estado), do qual resulta que grande parte das competências delegadas no Secretário de Estado do Comércio se referem a institutos, conselhos ou comissões que se relacionam claramente com a actividade de restauração;
DD) Também no site do ICEP (www.icep.pt) e a propósito do Investimento Internacional e do Investimento Directo Português no Estrangeiro, na informação referente aos sectores de actividade, fornecida pelo Banco de Portugal, encontramos numa das secções as "indústrias transformadoras" e numa outra divisão o "comércio por grosso e a retalho, reparações, alojamento e restauração".
Quid juris?
Temos por certo que, «na falta de uma definição específica do que deva entender-se, no domínio do direito da urbanização e da edificação, por actividades comerciais, e não sendo, para tanto, adequado nem o recurso ao disposto no Decreto-Lei nº 339/95, de 21-8 (que regula o acesso à actividade comercial), nem ao Decreto-Lei nº 462/99, de 5-11 (que estabelece o regime do cadastro dos estabelecimentos comerciais), nem tão pouco às normas específicas de licenciamento sanitário constantes do Decreto-Lei nº 370/99, de 18-9, atenta a especificidade de todas elas, (…) o termo “comércio”, quando utilizado para identificar o uso de determinada fracção em prédio de habitação colectiva, deve ter o sentido e o ancance com que aquele mesmo termo é assumido pela ciência económica, por corresponder também ao da linguagem usual e corrente, com exclusão portanto do conceito de comércio em sentido jurídico, alicerçado no art. 230º do Código Comercial»43 44 45 .
Ora, «do ponto de vista das ciências económicas, comércio “é toda a actividade de mediação entre a produção e o consumo de bens, em que o agente económico especula com o valor dos bens, correndo um risco e visando obter um lucro»46. «Elementos característicos da actividade económica comercial são, pois, a intermediação e a especulação, compreendendo esta última os elementos risco e finalidade lucrativa»47. «Assim, o comércio não é uma actividade criadora, no plano material, o que a distingue das actividades puramente industriais (em sentido económico)»48. «A utilidade que o comércio cria consiste no acesso aos bens por parte de consumidores ou de outros comerciantes situados na fase seguinte da cadeia de comercialização»49.
A esta luz, «a noção de comércio não abarca a actividade, industrial, de produção e transformação de mercadorias»50. «Do ponto de vista económico, deve entender-se por comércio a permuta de produtos (naturais ou manufacturados), bem como a troca de produtos por dinheiro, em cuja prática se mantenha o intuito lucrativo»51. «Por indústria entende-se toda a actividade lucrativa relacionada com a produção, transformação e transporte de produtos»52. «Envolve economicamente a ideia de transformação de matérias-primas, com o fim de lhes aumentar o valor ou de produzir novas utilidades»53.
«A noção do comércio que está generalizada coincide com a ideia de compra e venda de valores, mercadorias, negócio, permutação de produtos, troca de um produto por outro, troca de valores, ao passo que a noção de indústria respeita a habilidade para fazer alguma coisa, artifício, invenção, engenho, ou seja, ao conjunto de actividades de produção e transformação de matérias»54. Por isso, «estipulando-se no título constitutivo da propriedade horizontal que determinada fracção é “destinada a comércio”, na falta de outros elementos, essa cláusula só pode ter o sentido vulgar e corrente de mediação nas trocas, coincidente com o seu sentido económico, aquele que um declaratário normal deduz, pelo que não abarca a actividade de produção e transformação de mercadorias, que é uma indústria no seu sentido vulgar e corrente»55.
À luz de quanto precede, tem sido entendido, na jurisprudência, que:
a) «Constando do título constitutivo da propriedade horizontal que a fracção se destina a comércio, não pode o condómino afectá-la ao fabrico de pão e pastéis, mesmo que seja para serem vendidos na fracção» (Ac. da Rel. de Coimbra de 10/1/1995 in Col. Jur., 1995, tomo 1, p. 15);
b) «É considerada actividade industrial o fabrico de pão, pastéis e doces para serem comercializados no locado» (Ac. da Rel. do Porto de 20/6/1996, sumariado in BMJ nº 458, p. 402);
c) «A confecção de alimentos pressupõe a manufactura de matérias-primas, a introdução de um valor acrescentado por via culinária, a transformação, de forma a poderem ser comidas», pelo que, «nesta perspectiva económica, constitui uma actividade tipicamente industrial» (Ac. do S.T.J. de 28/11/1996, proferido no Proc. nº 167/96 56);
d) «A instalação de um forno para fabrico de pão e produtos de pastelaria em fracção autónoma destinada a comércio, constitui violação do nº 1 do art. 1419º do C. Civil, que só pode ser ressalvada através de alteração do próprio título constitutivo da propriedade horizontal, por acordo de todos os condóminos, em escritura pública» (Ac. do S.T.J. de 15/10/1998 57);
e) «Dão uso diverso ao fim a que é destinada a fracção, o comércio, os condóminos que nela passam a servir refeições rápidas, hamburguers, batatas fritas e saladas frias, sem autorização e contra a vontade dos restantes condóminos» (Ac. da Rel. de Coimbra de 20/10/1998 in Col. Jur., 1998, tomo IV, p. 39);
f) «Tendo o título constitutivo da propriedade horizontal destinado uma loja a comércio, não pode o respectivo dono, sem o acordo dos demais condóminos, materializado numa alteração daquele título, dar-lhe o destino de “snack-bar”, que se integra na actividade industrial» (Ac. do S.T.J. de 18/5/1999 in Col. Jur., 1999, tomo II, p. 99);
g) «Se a cave do prédio for destinada, segundo o título constitutivo da propriedade horizontal, ao exercício do comércio, não pode o condómino, pelo facto de ter obtido alvará de licença de utilização do estabelecimento como “estabelecimento de bebidas com fabrico próprio de pastelaria”, usar a cabe para uma actividade industrial, como é o fabrico de pão, ainda que exercida conjuntamente ou em complementaridade com o estabelecimento de bebidas» (Ac. da Rel. do Porto de 9/11/1999 sumariado in BMJ nº 491, p. 332);
h) «Se consta da escritura pública de constituição da propriedade horizontal que a fracção “X” se destina a comércio, e aí se instala um restaurante, que é actividade industrial, dá-se à fracção um uso diverso do fim a que foi destinada, ocorrendo violação do disposto no art. 1422º, nº 2, al. c), do Código Civil» (Ac. da Rel. de Coimbra de 29/5/2001 58);
i) «Constando do título constitutivo da propriedade horizontal que uma determinada fracção autónoma se destina a “comércio”, não é legítimo, sem autorização dos condóminos, o exercício da actividade da “restauração”, a qual se não adequa com o sentido económico da “actividade comercial” (Ac. da Rel. de Lisboa de 4/3/2004 59);
j) «Se uma fracção autónoma de um prédio constituído em regime de propriedade horizontal consta como destino “lojas”, não é lícito ao condómino seu dono nela proceder ao fabrico de pão e pastéis para venda» (Ac. da Rel. do Porto de 26/4/2004 60).
Assim sendo, devendo a declaração constante do título de constituição da propriedade horizontal, quanto ao destino das suas fracções autónomas, ser interpretada com base num critério económico e no significado corrente das expressões usadas, em consequência do que a cláusula inserta no título constitutivo da propriedade horizontal que estipula que determinada fracção é “destinada a comércio”, na falta de outros elementos, só pode ter o sentido vulgar e corrente de mediação nas trocas, coincidente com o seu sentido económico, pelo que não abarca a actividade de produção e transformação de mercadorias, parece incontroverso que a confecção de alimentos pressupõe a manufactura de matérias-primas, a introdução de um valor acrescentado por via culinária, a transformação, de forma a elas poderem ser comidas, constituindo, portanto, nesta perspectiva económica, uma actividade tipicamente industrial.
Subscreve-se, pois, plenamente o entendimento adoptado na sentença recorrida, segundo o qual uma fracção autónoma que tem por fim, segundo o título constitutivo da propriedade horizontal, o "comércio" não pode ser utilizada pelo respectivo condómino, ou pelo locatário financeiro do mesmo, para o exercício da actividade industrial de restauração, por tal constituir violação do disposto no art. 1422º, nº 2, al. c), do Código Civil.
É, assim, totalmente irrelevante, para este efeito, que, de acordo com a Classificacão Portuguesa das Actividades Económicas, o estabelecimento de restauração da ora Apelante detenha o CAE 55301, que se inclui na Subclasse "restaurantes de tipo tradicional", que por sua vez se insere na Classe "restaurantes", que se inclui na Divisão "alojamento e restauração (restaurantes e similares)", que faz parte da Secção "H", enquanto as actividades industriais, por sua vez, se encontram definidas e caracterizadas nas Secções C e D.
Como igualmente irrelevante, para a dilucidação da questão que nos ocupa, é a opinião manifestada pelo Vice-Presidente da Câmara Municipal de Lisboa numa carta (e não parecer técnico – como, pomposa e despropositadamente, lhe chama a Apelante) dirigida em resposta a um pedido de informação formulado pela Ré/Apelante.

Efectivamente, os conceitos utilizados no título constitutivo da propriedade industrial não têm, forçosamente, de coincidir com os do Plano Director Municipal de Lisboa, pois – como bem observa o Apelado (nas suas contra-alegações) - o que interessa é o sentido atribuído às expressões naquele título constitutivo, que representa a vontade dos declarantes ou declarante aquando da referida constituição.
“Se as partes contratantes da propriedade horizontal, fazendo uso da liberdade contratual que lhes é atribuída pela lei, no art. 405° do Código Civil, decidem, dentro dos limites da lei, que as fracções autónomas serão destinadas a comércio, com isso querendo significar que não são permitidas actividades industriais, de restauração, de hotelaria, etc., é este o sentido que deve vigorar” (cfr. as mencionadas contra-alegações do Apelado).
Na verdade, «Um despacho camarário segundo o qual determinada fracção autónoma de prédio constituído em regime de propriedade horizontal pode ser destinada a comércio não tem a virtualidade de alterar o estatuto da propriedade horizontal constante do respectivo título constitutivo, segundo o qual essa fracção se destina a habitação» (Ac. da Rel. do Porto de 22/5/1990, proferido no Proc. nº 12084, apud ABÍLIO NETO in “Manual da Propriedade Horizontal” cit., p. 226). Na mesma linha, «o fim a que determinada fracção está destinada no título constitutivo da propriedade horizontal (escritórios) não pode ser alterado apenas pela deliberação camarária que nela autorizou e licenciou o funcionamento de um estabelecimento comercial» (Ac. da Rel. do Porto de 19/4/1993, proferido no Proc. 8342, apud ABÍLIO NETO in “Manual da Propriedade Horizontal” cit., p. 230). E, ainda na mesma senda, «o facto de a Câmara [Municipal] ter concedido alvará para o fabrico [de pão e pastéis] não confere ao proprietário direitos que ele não tinha perante os demais condóminos [em face do título constitutivo da propriedade horizontal]» (Ac. da Rel. de Coimbra de 10/1/1995 in Col. Jur., 1995, tomo I, p. 15).
Por isso é que «se a cave do prédio for destinada, segundo o título constitutivo da propriedade horizontal, ao exercício do comércio, não pode o condómino, pelo facto de ter obtido alvará de licença de utilização do estabelecimento como “estabelecimento de bebidas com fabrico próprio de pastelaria” usar a cave para uma actividade industrial, como é o fabrico de pão, ainda que exercida conjuntamente ou em complementaridade com o estabelecimento de bebidas» (Ac. da Rel. do Porto de 9/11/1999, sumariado in BMJ nº 491, p. 332).
Tão pouco relevam minimamente, para a resolução da questão de saber se uma fracção autónoma que tem por fim, segundo o título constitutivo da propriedade horizontal, o "comércio" pode ou não ser utilizada pelo respectivo condómino, ou pelo locatário do mesmo, para o exercício da actividade industrial de restauração, os despachos de delegação de poderes do Ministro da Economia e Inovação nos seus Secretários de Estado (como é que a orgânica dum qualquer Governo pode ajudar à interpretação da vontade dos declarantes manifestada no acto de constituição da propriedade horizontal dum determinado imóvel ?) e, ainda menos, o contéudo do site do Instituto do Comércio Externo Português (ICEP).
Eis por que a apelação da Ré improcede, fatalmente, quanto a esta 3ª questão por ela levantada nas conclusões da sua alegação.

4) SE, TAMBÉM NUMA PERSPECTIVA SUBJECTIVA, O DESTINO DE COMÉRCIO CONSTANTE DO TÍTULO CONSTITUTIVO DE PROPRIEDADE HORIZONTAL COMO CONSTITUINDO O DESTINO A ATRIBUIR À FRACÇÃO EM CAUSA NOS AUTOS DEVE SER INTERPRETADO COMO ABRANGENDO A ACTIVIDADE DE RESTAURAÇÃO, POR ISSO QUE TAMBÉM PARA A DECLARANTE S, S.A.R.L (A QUEM COUBE, ENQUANTO ÚNICA PROPRIETÁRIA DO IMÓVEL À DATA, A EXCLUSIVA INICIATIVA E RESPONSABILIDADE PELA CONSTITUIÇÃO DA PROPRIEDADE HORIZONTAL E A ATRIBUIÇÃO DO FIM ÀS RESPECTIVAS FRACÇÕES), O CONCEITO DE COMÉRCIO INCLUÍA O EXERCÍCIO DA RESTAURAÇÃO.
Decorre da sentença ora sob censura que o Tribunal a quo elegeu como principal fundamento para a decisão de encerramento do restaurante da Apelante o sentido da expressão "comércio" subjacente à vontade do declarante aquando da constituição da propriedade horizontal. Com efeito, entendeu aquele Tribunal que "o que interessa de facto é o sentido comum da palavra «comércio», pois será esse o que necessariamente esteve subjacente à manifestação de vontade expressa pelos declarantes ao formalizarem o acto constitutivo da propriedade horizontal."
Ora – argumenta ex adverso a ora Apelante -, desde logo, a constituição da propriedade horizontal e a atribuição do fim às respectivas fracções foi da exclusiva iniciativa e responsabilidade da sua única proprietária à época, a sociedade S, S.A.R.L., inversamente ao que parece resultar da afirmação do Tribunal a quo supra transcrita, que, com a utilização da expressão no plural – declarantes - inculca a ideia de que a vontade foi expressa por vários interessados, verbi gratia, por aqueles que são hoje os condóminos do prédio.
Por outro lado – sempre segundo a Apelante -, o sentido comum da palavra «comércio» para a referida sociedade S, S.A.R.L - cujo interesse foi aquele que mais relevou para o Tribunal a quo, na medida em que foi aquele que presidiu exclusivamente à atribuição do fim às fracções aquando da constituição da propriedade horizontal, nos termos da passagem supra citada, não foi aquele que o referido Tribunal entendeu. Dito de outra forma: para a sociedade S, única declarante aquando da formalização do acto constitutivo da propriedade horizontal, o fim que esta pretendeu que a fracção agora explorada pela Apelante tivesse, ou seja, o comércio, englobava o exercício da actividade de restauração.
Com efeito, foi esta mesma sociedade quem, cerca de 22 anos depois da outorga da escritura pública de constituição da propriedade horizontal, celebrou com um dos legais representantes da ora Apelante, o contrato promessa de compra e venda da fracção aqui em causa, do qual consta uma cláusula que refere expressamente que a fracção se destinaria ao sector da Restauração (Bar e/ou Restaurante).
Acresce que, durante cerca de vinte e nove anos, dezanove dos quais após a constituição da propriedade horizontal e da atribuição de comércio como fim a prosseguir na dita fracção, ali esteve instalada uma oficina de metais, exercendo uma actividade de natureza claramente industrial, conforme se alcança do auto de vistoria lavrado pela Câmara Municipal de Lisboa em 06.04.1977, que viria a instruir a escritura pública de constituição de propriedade horizontal do prédio em causa.
De qualquer modo, se, para o Tribunal a quo, era decisivo saber qual o sentido comum que a expressão comércio teve para a declarante S aquando da constituição da propriedade horizontal e da atribuição da correspondente actividade como fim da fracção em análise, então teria que ter ido mais longe na análise da prova que foi sendo produzida nos autos.
Teria, assim, que se atender ao destino natural da fracção, preparada e já dotada de instrumentos para o exercício da actividade de restauração (cfr. o ponto 39) da Matéria de Facto provada), ao uso normal que era dado à fracção, onde anteriormente havia funcionado um estabelecimento denominado "C...", que se dedicava ao mesmo ramo de actividade a que se dedica a Apelante.
Devia, ainda, ter-se conferido relevância ao facto de a fracção se localizar numa área onde funcionam restaurantes do mesmo tipo do da Apelante, instalados em fracções em tudo idênticas àquela que aqui está em causa, tendo como fim atribuído pelo respectivo título constitutivo de propriedade horizontal o comércio.
Impunha-se, ainda e principalmente, ao Tribunal a quo ter conferido a necessária relevância ao facto de as entidades camarárias terem emitido todas as licenças necessárias à instalação e funcionamento do restaurante da Apelante, conforme resultou provado (vd. sentença pontos 12) a 15) da Matéria de Facto).
No limite, da actuação da referida S, das menções constantes dos documentos juntos com as alegações da Apelante (escritura pública de constituição da propriedade horizontal, contrato-promessa de compra e venda celebrado entre a mencionada S e a ora Ré/Apelante e auto de vistoria lavrado pela Câmara Municipal de Lisboa em 06.04.1977, que viria a instruir a escritura pública de constituição de propriedade horizontal do prédio em causa) e da experiência prática do passado mais recente, sempre se teria que interpretar a vontade daquela sociedade no sentido de que pretendeu afectar a fracção em questão aos dois usos, comércio e indústria, caso tal fosse possível.
Quid juris ?
Parece incontroverso que «a interpretação do título constitutivo deve seguir as regras de interpretação do negócio jurídico»61. Donde que, «nos termos do artigo 236º [do Cód. Civil], o título vale com o sentido que dele possa retirar um declaratário normal»62.
Por outro lado, «sendo o título constitutivo um negócio formal, não pode ser feito valer um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no seu texto, ainda que esse sentido seja imperfeitamente expresso (cfr. art. 238º, nº 1)» 63.
Ora – como se viu -, a cláusula inserta no título constitutivo da propriedade horizontal que estipula que determinada fracção é “destinada a comércio”, na falta de outros elementos, só pode ter o sentido vulgar e corrente de mediação nas trocas, coincidente com o seu sentido económico, pelo que não abarca a actividade de produção e transformação de mercadorias. Efectivamente, é esse o significado corrente do vocábulo “comércio”, pelo que, como «o título constitutivo da propriedade horizontal deve ser interpretado de acordo com o significado corrente das expressões nele usadas» (Ac. da Rel. de Lisboa de 17/12/1992, in Col. Jur., 1992, tomo 5, p. 162), é com esse sentido e segundo um critério económico que a cláusula de destinação duma fracção autónoma “a comércio” deve ser interpretada, à luz da teoria da impressão do destinatário consagrada no cit. art. 236º-1 do Código Civil.
Por outro lado – como bem observa o Apelado (na sua contra-alegação) -, na propriedade horizontal, o uso das fracções autónomas apenas por escritura pública e com o acordo de todos os condóminos pode ser alterado. Consequentemente, não é porque a declarante do título constitutivo (a mencionada sociedade S, S.A.R.L), 22 anos mais tarde da outorga da escritura pública de constituição da propriedade horizontal, veio a celebrar um contrato promessa com terceiro, em violação do referido título, que o título se pode considerar validamente modificado e ser imposta tal modificação aos restantes condóminos. Tal entendimento viola frontalmente a norma contida no art. 1419° do Código Civil, segundo a qual o título constitutivo da propriedade horizontal só pode ser modificado por escritura pública, havendo acordo de todos os condóminos. Pelo que tal contrato-promessa é absolutamente ineficaz para o efeito pretendido pela Apelante.
Quanto ao anterior funcionamento na fracção autónoma em questão de uma denominada "C...", o facto de, anteriormente, aí ter funcionado um estabelecimento em violação do disposto no título constitutivo, sem qualquer oposição dos então condóminos, não serve para tornar legal a atribuição pela Apelante de um fim diverso do previsto no título constitutivo da propriedade horizontal à fracção em causa.
Finalmente, quanto ao facto de as entidades camarárias terem emitido todas as licenças necessárias à instalação e funcionamento do restaurante da Apelante, na fracção em causa, já se viu que a emissão de alvará de licença de uso de restaurante pela câmara municipal não significa nada mais do que a aptidão, dadas as condições técnicas e de salubridade do espaço, para funcionar como tal. «O fim a que determinada fracção está destinada no título constitutivo da propriedade horizontal (escritórios) não pode ser alterado apenas pela deliberação camarária que nela autorizou e licenciou o funcionamento de um estabelecimento comercial» (Ac. da Rel. do Porto de 19/4/1993, proferido no Proc. 8342, apud ABÍLIO NETO in “Manual da Propriedade Horizontal” cit., p. 230).
Não colhem, portanto, as razões aduzidas pela Ré/Apelante para fundamentar a sua alegação de que também numa perspectiva subjectiva, o destino de comércio constante do título constitutivo de propriedade horizontal como constituindo o destino a atribuir à fracção em causa nos autos devia ter sido interpretado como abrangendo a actividade de restauração.
Eis por que a apelação da Ré também improcede, quanto à 4ª questão por ela suscitada nas conclusões da sua alegação de recurso.

5) A PRETENSA NULIDADE DA SENTENÇA RECORRIDA, POR EXCESSO DE PRONÚNCIA, NOS TERMOS DO ART. 668°, N.° 1, ALÍNEA D), PARTE, DO CÓD. DE PROC. CIVIL, DECORRENTE DA CIRCUNSTÂNCIA DE O TRIBUNAL TER FUNDAMENTADO A SUA DECISÃO DE ORDENAR O ENCERRAMENTO DO RESTAURANTE EM CAUSA NO ARGUMENTO DE QUE, PARA A DECLARANTE SOBIGER, A EXPRESSÃO "COMÉRCIO" NÃO INCLUÍA A ACTIVIDADE DE RESTAURAÇÃO, VISTO TAL ARGUMENTO NÃO TER SIDO EQUACIONADO PELO AUTOR, AQUI APELADO, COMO OBJECTO DA ACÇÃO, MESMO SUBSIDIARIAMENTE.
Segundo a Apelante, ao fundamentar a sua decisão de ordenar o encerramento do restaurante em causa no argumento de que, para a declarante S, S.A.R.L, a expressão "comércio" não incluía a actividade de restauração, a sentença recorrida incorreu em nulidade, por excesso de pronúncia, nos termos do art. 668°, n.° 1, alínea d), parte, do Cód. de Proc. Civil, visto tal argumento não ter sido equacionado pelo Autor, aqui Apelado, como objecto da acção, mesmo subsidiariamente, pelo que estava vedado processualmente ao Tribunal a quo conhecê-lo e fazer dele uso para fundamentar a decisão. Quid juris ?
O cit. art. 668.°, n.° 1, al. d), do C.P.C. comina a nulidade da sentença “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
«Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de excepções na exclusiva disponibilidade das partes (art. 660º-2), é nula a sentença que o faça»64 .
No caso dos autos, porém, o tribunal a quo, ao fundamentar a sua decisão de ordenar o encerramento do restaurante em causa, entre outras razões, no argumento de que, para a declarante S (a quem coube, enquanto única proprietária do imóvel à data, a exclusiva iniciativa e responsabilidade pela constituição da propriedade horizontal e a atribuição do fim às respectivas fracções), a expressão "comércio" não incluía a actividade de restauração, não se ocupou de qualquer questão de que não pudesse conhecer ex officio.
Efectivamente, tudo quanto o tribunal a quo fez, ao tomar em consideração a vontade declarada pela sociedade S (na escritura pública de constituição da propriedade horizontal), foi apreciar o mérito do pedido de encerramento do estabelecimento de restauração explorado pela Apelante no prédio dos autos. Se o que se discute na presente acção é precisamente o sentido da palavra “comércio”, contida no título constitutivo da propriedade horizontal enquanto destino a dar ao uso da fracção em questão, como não poderia o Tribunal a quo procurar estabelecer o seu alcance e significado, colocando-se na posição da declarante Sobiger e dos respectivos declaratários?
A sentença recorrida não violou, portanto, o cit. art. 660º, nº 2, do CPC e, consequentemente, não enferma da nulidade prevista na cit. al. d) do nº 1 do art. 668º do mesmo diploma.
Donde que a apelação da Ré também improcede, quanto a esta questão.

6) A PRETENSA INCOMPETÊNCIA MATERIAL DO TRIBUNAL “A QUO” PARA O JULGAMENTO DO PRESENTE LITÍGIO.
Sustenta a Ré/Apelante que, ao considerar-se competente para o julgamento do presente litígio, o Tribunal a quo violou o princípio da separação de jurisdições e, consequentemente, as normas previstas nos arts. 213° e 214° da Constituição da República Portuguesa, art. 66° do Cód. de Proc. Civil, no art. 18° da Lei n.° 3/1999, de 13 de Janeiro (Organização dos Tribunais Judiciais), e 1° e 4° da Lei n° 13/2002, de 19 de Fevereiro (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), na medida em que, ao apreciar o mérito do pedido formulado pelo Autor/Apelado (de decretamento do encerramento do restaurante instalado e explorado pela Ré/Apelante na fracção autónoma em questão), o Tribunal a quo retirou validade às licenças camarárias atribuídas à ora Apelante, as quais foram emitidas validamente, de acordo com todas as normas, regulamentos e diplomas legais e pela edilidade competente na respectiva matéria (a Câmara Municipal de Lisboa).
Quid juris ?
Como bem observa (nas suas contra-alegações) o Autor/Apelado, na presente acção, “estão em causa questões de direito privado, entre condóminos, respeitantes à constituição da propriedade horizontal, totalmente distintas das questões administrativas que rodeiam a abertura de qualquer estabelecimento de restauração”. “Está em causa um litígio entre condóminos, do foro privado, e não um problema com a Câmara Municipal de Lisboa”.
Por isso, o facto de existir uma licença de utilização [emitida pela Câmara Municipal de Lisboa] não implica que o título constitutivo da propriedade horizontal [do prédio onde se situa a fracção para a qual aquela Câmara licenciou um estabelecimento de restauração] seja interpretado à luz dessa licença”.
Tanto basta para evidenciar a improcedência da apelação da Ré, quanto a esta questão por ela suscitada nas conclusões da sua alegação.

7) SE, COMO O APELADO NÃO FEZ PROVA DE QUE O EXERCÍCIO DA ACTIVIDADE DE RESTAURAÇÃO LEVADO A CABO PELA APELANTE LHE ACARRETASSE QUALQUER TIPO DE DANO OU PREJUÍZO MERECEDOR DE TUTELA JURÍDICA - CONSTANDO, AO INVÉS DO PROCESSO ELEMENTOS QUE PERMITEM CONCLUIR QUE O ENCERRAMENTO DO RESTAURANTE DA APELANTE, COM A CONSEQUENTE IMPOSSIBILIDADE DE ESTA EXERCER A SUA ACTIVIDADE ECONÓMICA, ACARRETARÁ A ESTA GRAVES PREJUÍZOS DE ORDEM FINANCEIRA (JÁ PARA NÃO FALAR DAQUELES QUE RESULTARÃO NECESSARIAMENTE DA DEGRADAÇÃO DA SUA IMAGEM) -, O TRIBUNAL A QUO DEVIA TER DECIDIDO PELA PRESERVAÇÃO DO DIREITO DA APELANTE EM EXERCER A SUA ACTIVIDADE ECONÓMICA, POIS INEXISTE QUALQUER CONFLITO DE DIREITOS A DIRIMIR NOS TERMOS DO ART. 335°, N.° 2 DO CÓD. CIVIL.
Contrariamente ao que alegara, o Autor/Apelado não fez prova de que sofresse qualquer tipo de dano ou prejuízo, resultante do exercício da actividade de restauração levado a cabo pela Apelante, merecedor de tutela jurídica.
Ao invés, estão provados factos que demonstram que a Apelante efectuou vários investimentos com vista à aquisição da fracção, obtenção do licenciamento, aquisição de equipamento e instalação do restaurante (cfr. pontos 5), 9) a 15) e 28 da Matéria de Facto considerada provada na sentença).
Acresce que a Apelante suporta ainda diversos encargos resultantes de compromissos financeiros assumidos, designadamente aqueles que resultam dos contratos de locação financeira imobiliária e mobiliária celebrados (cuja denúncia não é possível com fundamento no encerramento do restaurante), impostos e com os seus trabalhadores, cujo valor ascendeu no ano transacto a cerca de € 350.000,00 (cfr. pontos 3) e 5) da Matéria de Facto).
Ora, a realização dos referidos investimentos e a assunção dos citados encargos tiveram como pressuposto a legítima expectativa – criada pela concessão administrativa do respectivo licenciamento – que a Apelante tinha em poder exercer naquele espaço a sua actividade de restauração, daí retirando os proventos necessários para fazer face às mencionadas despesas.
Neste cenário, como facilmente se percebe, o encerramento do restaurante da Apelante determinado pelo Tribunal a quo na sentença ora sob censura, com a consequente impossibilidade de esta exercer a sua actividade económica acarretará a esta graves prejuízos de ordem financeira (já para não falar daqueles que resultarão necessariamente da degradação da sua imagem).
Em contraposição, o facto de o restaurante se manter em actividade não acarreta qualquer prejuízo para o Apelado.
Dito de outro modo, a decisão de encerramento prende-se, exclusivamente, com o facto de, alegadamente, a Apelante lhe estar a dar um fim distinto daquele que consta do título constitutivo e não com qualquer dano ou prejuízo que o Apelado estivesse a sofrer.
Assim sendo, o Tribunal a quo – sustenta a Ré - devia ter decidido pela preservação do direito da Apelante em exercer a sua actividade económica, pois inexiste qualquer conflito de direitos a dirimir nos termos do art. 335°, n.° 2 do Cód. Civil.
Quid juris ?
A sentença recorrida julgou improcedente a excepção de abuso de direito arguida pela Ré/Apelante na sua contestação, com base no seguinte argumentário:
“Já vimos que assiste a R. está a violar os limites impostos pelo Art. 1422° n.° 1 e n.° 2 al. c) do C.C., por utilizar a fracção para fim diverso daquele a que a mesma se destina.
Nessa medida, assiste ao A., enquanto condómino e titular de interesse relevante, o direito de fazer cessar esse tipo de utilização por parte da R..
Efectivamente, a justificação para as limitações constantes do n.° 2 do Art. 1422° do C.C. não se encontra nas regras da compropriedade, mas sim no facto de, estando diversas fracções integradas na mesma unidade predial, como propriedades confinantes ou sobrepostas, verificam-se entre elas, e no respectivo uso, especiais relações de interdependência e de vizinhança. Pelo que, a estreita comunhão em que vivem os condóminos, como co-utentes de um mesmo edifício, sujeita-os a limitações que a lei não impõe ao proprietário normal e que são reclamadas pela necessidade de conciliar os interesses de todos ou de proteger interesses de outra ordem (Vide: Pires de Lima e Antunes Varela in "Código Civil Anotado", Vol. III, 3° Ed., pag. 425 ).
É precisamente esse conjunto de interesses que o A. pretende fazer valer nesta acção, sendo um dos titulares dos mesmos, enquanto condómino do prédio dos autos.
Portanto, é indiscutível que está no exercício de um direito próprio.
Para o exercício do direito se considerar abusivo, deverá demonstrar-se que o A. agiu de forma que excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e o fim económico ou social desse direito ( Art. 334° do C.C. ).
Haverá assim que se concluir que o A. age formalmente a coberto de um direito que lhe assiste, mas visa com o exercício do mesmo resultados que objectivamente chocam qualquer sensibilidade juridica, por referência aos limites da boa-fé, bons costumes e limites económico-sociais do direito exercido.
No caso concreto o resultado é o encerramento do estabelecimento comercial por parte da R..
Ora, esse resultado compreende-se dentro dos limites sociais e económicos do direito exercido, na medida em que originariamente a R. estava limitada pelo título constitutivo da propriedade horizontal a não utilizar a fracção de que é locatária para outro fim que não fosse o "comércio".
Ou seja, a cessação de utilização da fracção como restaurante, não resulta de um mero capricho do A., pois corresponde precisamente ao fim para o qual foi estabelecido o limite legal imposto pelo Art. 1422° n.° 2 al. c) do C.C..
Pelo que, se a R. não poderia desde o início exercer a actividade industrial de restauração na fracção "A" do prédio dos autos, não se poderá dizer que o exercício do direito destinado a fazer cumprir essa obrigação seja ilegítimo ou abusivo. (…)
Acresce que, nada nos autos nos leva à conclusão de que os condóminos alguma vez tenham manifestado, nomeadamente de forma conjunta e unânime, seja em assembleia geral, seja por outros actos, o seu consentimento à utilização daquela fracção como restaurante.
Bem pelo contrário, o que se pode constatar é que a R. iniciou obras no restaurante denominado "A", as quais apenas se concluíram em 6 de Outubro de 2003, e a presente acção deu entrada em 27 de Agosto de 2004, ou seja, menos de um ano depois.
Por outro lado, ao que percebemos da contestação, do que a R.. se queixa é precisamente da insistência das diligências realizadas pelo A. precisamente com o intuito de obstar a que pudesse abrir o estabelecimento de restaurante, nomeadamente pela via administrativa, tentando que aquela não conseguisse o licenciamentos necessários ao exercício na fracção da actividade de restauração. Pelo que, nunca se criou uma relação de confiança justificada na estabilidade duma situação de facto que permitisse A. R. pensar que poderia instalar um restaurante na fracção em causa sem oposição dos restantes condóminos, nomeadamente da parte do A..
Portanto, não se pode falar em "venire contra factum proprium", nem em qualquer outra modalidade de abuso de direito estudadas na nossa doutrina (Vide, a propósito: Menezes Cordeiro in "Tratado de Direito Civil Português — I parte Geral", Tomo I, 2ª Ed., pag. 241 e ss ).
Finalmente, a circunstância da R. ter visto aprovados todos os procedimentos administrativos de licenciamento que requereu às respectivas entidades competentes, tal não significa, de forma alguma, que estivesse legitimidade a exercer a actividade de restauração numa fracção destinada ao comércio, contra a vontade dos condóminos do prédio.
Uma coisa são os requisitos administrativos para licenciamento de actividades económicas e outra são os requisitos impostos pela lei civil para exercer uma actividade económica num imóvel constituído em propriedade horizontal.
A circunstância do direito do A. se encontrar em conflito com o efeito produzido pelos licenciamentos administrativos da actividade da R., não tem como consequência tomar o direito do A. ilegítimo.
De facto, as entidades administrativas estão subordinadas à lei e às decisões judiciais (Art. 2° da C.R.P. ), competindo aos tribunais o poder judicial de determinação do direito aplicável a cada caso concreto e, portanto era perfeitamente legítimo ao A. recorrer a este tribunal para exercer o seu direito e definir, em termos definitivos, a situação juridica que o opunha à R. (Art. 20° da C.R.P.).
Em conformidade, só poderemos concluir que o A. agiu no exercício legítimo de um direito, pelo que não se verifica a excepção alegada.”
Tem-se por inquestionável que, «se um condómino dá à sua fracção um uso diverso do fim a que, segundo o título constitutivo da propriedade horizontal, ela é destinada, ou seja, se ele infringe a proibição contida no art. 1422º, nº 2, alínea c), do Cód. Civil, (…), pelo menos em via de princípio, o único remédio para essa situação é a reconstituição natural (a afectação da fracção em causa ao fim a que ela estava destinada), solução que obriga tanto o condómino como o terceiro que, com base em qualquer negócio com ele celebrado, esteja a utilizar essa fracção, desde que o título de constituição da propriedade horizontal esteja registado, em obediência ao determinado no art. 2º, nº 1, do Cód. de Reg. Predial» (Ac. do S.T.J. de 19/3/1981 in BMJ nº 305, p. 303) 65 66 67 68 69 70.
Consequentemente, «a primeira consequência a tirar da utilização de uma fracção autónoma para fim diverso daquele a que se destina é a proibição de continuação de tal uso ainda que desenvolvido por terceiro com o consentimento do respectivo condómino» (Ac. da Rel. de Lisboa de 24/11/1994 71). «Outra reacção possível – a indemnização por danos produzidos – é complementar daquele, já que, em primeira linha, há que obter a cessação de um estado de coisas anti-jurídico quando ele perdura» (ibidem).
A esta luz, «não configura abuso de direito a situação de um condómino exigir do outro condómino que faça cessar uma actividade exercida por este na respectiva fracção autónoma, diferente do fim a que esta é afectada no título constitutivo da propriedade horizontal» (Ac. da Rel. de Lisboa de 26/3/1992 72). Efectivamente, «não pode invocar o abuso de direito a parte que se tenha colocado em situação de ilicitude ou antijuridicidade, por não ser então merecedora dessa tutela jurídica» (Ac. da Rel. do Porto de 9/11/1995) 73.
E «isto, ainda que [o uso da fracção para fim distinto do que consta do título constitutivo da propriedade horizontal] seja anterior à data em ele adquiriu a sua fracção, que esse funcionamento se mantenha há mais de 10 anos, que [no estabelecimento a funcionar na fracção em questão] trabalhem 15 empregados e que do seu funcionamento não resultem maus cheiros ou qualquer prejuízo para os restantes condóminos» (Ac. da Rel. de Coimbra de 5/11/1996, in Col. Jur., 1996, tomo V, p. 8). É que «a utilização de uma fracção para fim diverso do constante do título constitutivo da propriedade horizontal constitui violação grave do direito dos condóminos, legitimando o recurso à tutela cautelar independentemente da verificação de ruidos, fumos e cheiros proveniente do estabelecimento de restaurante» (Ac. da Rel de Lisboa de 4/3/2004) 74.
Eis por que, no caso dos autos, a circunstância de o Autor/Apelado não ter logrado provar que do exercício da actividade de restauração levado a cabo pela Apelante resultasse para ele qualquer tipo de dano ou prejuízo, merecedor de tutela jurídica, irreleva para se poder concluir que a exigência, por parte do Autor/Apelado, da cessação da actividade exercida pela Ré na fracção autónoma em questão, porque desconforme com a finalidade assinalada a tal fracção no título constitutivo da propriedade horizontal, configura abuso de direito.
Tão pouco assume qualquer relevância, para a caracterização dessa exigência do Autor/Apelado como abusiva, o facto de o encerramento do restaurante explorado pela Ré/Apelante na fracção autónoma em questão acarretar a esta graves prejuízos de ordem financeira.
Ainda assim, ter-se-á de concluir que, no caso dos autos, a exigência, por parte do Autor/Apelado, da cessação do uso que vem sendo dado pela ora Ré/Apelante à fracção autónoma em questão, traduzida no decretamento do encerramento imediato do estabelecimento de restauração que a Ré/Apelante instalou e explora em tal fracção, configura uma situação de abuso de direito, na modalidade de tu quoque.

Efectivamente, está provado que, tal como a fracção designada pela letra "A", correspondente à Cave do prédio e na qual a Ré/Apelante instalou um restaurante, também a fracção designada pela letra "E", correspondente ao segundo andar desse mesmo prédio e registada a favor do A., Eduardo Rosa Silva, está destinada a comércio — (Al. B) dos factos assentes).
E, contudo, o A. adquiriu a referida fracção "E" do prédio dos autos para nela fixar a sua residência, com a sua família - ( Resposta ao 1° da base instrutória ).
E, em data não apurada do ano de 2004, o A. passou a residir nessa fracção com a sua família, sendo o seu agregado familiar composto por si, pela sua esposa e 3 filhos em idade escolar - (Resposta ao 3° da base instrutória ).
Assim sendo, temos que, a exemplo do que faz a Ré, também o Autor vem usando a fracção autónoma de que é proprietário para uma finalidade (a habitação) distinta da que lhe está atribuída no título constitutivo da propriedade horizontal.
É certo que – segundo se provou -, em assembleia geral de condóminos do prédio da Rua do Alecrim n.° 33, Lisboa, realizada a 29 de Janeiro de 2002 e constante da acta n.° 32, foi alterado, por unanimidade, o destino da fracção "E", pertença do A., passando a mesma de comércio para habitação, cfr. doc. de fls 38 a 49 - (Al. F) dos factos assentes).
Simplesmente, o título constitutivo da propriedade horizontal só pode ser modificado por escritura pública e havendo acordo de todos os condóminos (art. 1419º, nº 1, do Código Civil).
Consequentemente, «é nula, nos termos dos arts. 220º ou 294º, do Código Civil, a deliberação da assembleia de condóminos que altere o título constitutivo da propriedade horizontal, se não houver uma escritura pública de que conste o acordo unitário dos condóminos no sentido dessa alteração» (Ac. do S.T.J. de 8/2/2001 75). Efectivamente, «para que seja legítima a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal exige-se, para além do acordo de todos os condóminos, que ele fique a constar de escritura pública (art. 1419º, nº 1, do CC)» (Ac. do S.T.J. de 26/2/1998, proferido no Proc. nº 83995, apud ABÍLIO NETO in “Manual da Propriedade Horizontal” cit., pp. 107-108).
«Sem esta, tal acordo é irrelevante, quer para terceiros, quer para os próprios condóminos, sendo mesmo nula a modificação do título constitutivo, operada mediante simples acordo, consoante deriva do disposto no art. 294º do CC» (ibidem).
Pode, pois, assentar-se em que, dada a nulidade da mencionada deliberação da assembleia geral de condóminos, realizada a 29 de Janeiro de 2002 e constante da acta n.° 32, que alterou, por unanimidade, o destino da fracção "E", pertença do Autor, de comércio para habitação, o uso habitacional que o Autor/Apelando vem fazendo de tal fracção, desde data não apurada do ano de 2004, constitui violação da proibição a que o mesmo está sujeito, nos termos da cit. al. c) do nº 2 do art. 1422º do Código Civil, de dar à sua fracção uso diverso do fim a que ela é destinada, de acordo com o título constitutivo da propriedade horizontal.
Donde que, afinal, também o Autor/Apelado faz da sua fracção autónoma um uso diverso do fim a que ela está destinada.
Se assim é, pode ele exigir da Ré a cessação duma utilização para fim industrial da fracção autónoma correspondente à cave desconforme com a finalidade comercial a que ela está destinada, se ele próprio aplica a sua fracção a uma finalidade (a habitação) igualmente distinta daquela finalidade comercial a que o título constitutivo da propriedade horizontal destina todas as fracções do prédio em questão?
A resposta a esta questão não pode senão ser negativa.
No estudo do abuso do direito, a doutrina construiu vários tipos de condutas activas ou omissivas que constituem exercício abusivo do direito subjectivo. Estes tipos designam apenas os casos mais frequentes e emblemáticos – tipos representativos – de exercício abusivo de direitos subjectivos. Entre os tipos mais comuns figura, nomeadamente, a par da exceptio doli, do venire contra factum proprium, das inalegabilidades formais, da suppressio e da surrectio e do exercício em desequilíbrio, o chamado Tu quoque.
«A fórmula tu quoque (também tu) exprime a regra geral pela qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode depois, em abuso:
- ou prevalecer-se da situação daí decorrente;
- ou exercer a posição violada pelo próprio;
- ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada»76
«Está em jogo um vector axiológico intuitivo, expresso em brocardos como turpitudinem suam allegans non auditur ou equity must come with clean hands»77 «Fere a sensibilidade primária, ética e jurídica, que uma pessoa possa desrespeitar um comando e, depois, vir exigir a outrem o seu acatamento»78 ..
«A pessoa que, mesmo fora do caso nuclearmente exemplar do sinalagma, desequilibre, num momento prévio, a regulação material expressa no seu direito subjectivo, não pode, depois, pretender, como se nada houvesse ocorrido, exercer a posição que a ordem jurídica lhe conferiu» 79. «Distorcido o equilíbrio de base, sofre-lhe as consequências» 80 «A nova situação criada altera a configuração da posição jurídica do exercente; no limite, pode ir até à extinção» 81. «Cometida a violação pelo próprio, apenas formalmente tudo parece idêntico»82. «A materialidade subjacente, porém, já é outra» 83.
«Esta construção tem um espaço descritivo triplo de aplicação»84. «Funciona perante prestações em sinalagma e, ainda, no campo contratual não sinalagmático, nos termos acima examinados»85. «Mas funciona, também, no campo não contratual»86. «Impõe, aí, que quem tenha firmado um direito, formalmente correcto, numa situação material que não corresponda à querida pela ordem jurídica não possa, em consequência disso, exercer a sua posição de modo incólume» 87.

«As possibilidades de exercício são restringidas ou, até, suprimidas – com a extinção do direito implicado – por forma a recuperar o desequilíbrio causado» 88.
«Deve, pois, considerar-se cada posição jurídico-subjectiva sempre integrada no complexo regulativo a que pertença»88. «O titular que, em comportamento prévio, altere a figuração do complexo em causa e pretenda, depois, contrapor o seu direito a actuações de outras pessoas, pode abusar do direito»90. «Basta, para tanto, que tal contraposição, embora conforme com os aspectos formais da atribuição jurídico-subjectiva, ultrapasse a realidade material de base, na sua nova compleição»91 «Tente fazê-lo e pode-se contrapor-lhe a fórmula tu quoque: também ele cometeu prevaricação» 92.
À luz de quanto precede, é manifesto que, no caso dos autos, tendo-se o Autor/Apelado antecipado à ora Ré/Apelante na aplicação da sua própria fracção autónoma a um fim diverso do que lhe está destinado no título constitutivo da propriedade horizontal, não pode ele depois, como se nada houvesse ocorrido, exigir dum outro condómino (in casu, do locatário financeiro do condómino proprietário da fracção correspondente à cave do mesmo prédio) o acatamento escrupuloso do título constitutivo da propriedade horizontal, no que ao destino das fracções concerne.
Ocorre, pois, a excepção dilatória material de abuso de direito (art. 334º do Cód. Civil) e, consequentemente, a apelação da Ré procede, quanto a esta questão, o que consequencia a insubsistência da sentença recorrida, no segmento em que julgou procedente o pedido (formulado pelo Autor/Apelado) de decretamento do encerramento imediato do restaurante instalado e explorado pela Ré/Apelante na fracção “A” do prédio constituído em propriedade horizontal, sito na Rua do Alecrim n .°s 27 a 35 e Travessa do Alecrim n.°s 2 a 4, bem como na parte em que condenou a mesma Ré no pagamento duma sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no encerramento do restaurante, no montante de € 250,00/dia, a contar do trânsito em julgado da sentença.

DECISÃO
Acordam os juízes desta Relação em conceder provimento ao presente recurso de Apelação, alterando a sentença recorrida, no segmento em que condenou a R., T, Lda, ao encerramento imediato do restaurante que instalou e explora na fracção "A" do prédio, constituído em propriedade horizontal, sito (...) em Lisboa, bem como na parte em que condenou a mesma Ré no pagamento duma sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso no encerramento do restaurante, no montante de € 250,00/dia, a contar do trânsito em julgado da sentença, absolvendo a Ré de ambos esses pedidos.
No mais, confirma-se a sentença recorrrida
Custas da apelação a cargo do Apelado.
Lisboa, 30 de Janeiro de 2007
Rui Torres Vouga (Relator)
Carlos Moreira (1º Adjunto) - tem voto de vencido.
Isoleta Almeida Costa (2º Adjunto)
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Voto de vencido:
A figura do abuso de direito fundamentada no brocado aforístico “Tu quoque” – nem sequer invocada nestes autos – tem de ser aplicada “cum granno sallis”. Pois que com base num acto ilícito – mesmo que praticado pelo impetrante – não pode justificar-se ou deixar-se incólume, outro facto ilícito.
Acresce que, “in casu”, a ilicitude da actuação do autor é apenas formal ou aparente. Pois que, substancialmente, todos os condóminos do prédio anuíram na alteração do uso da sua fracção para habitação. Apenas o não fizeram pela via jurídico-formal exigida.
Depois não há termo de comparação possível na gravidade da alteração no uso de um prédio que inicialmente está adstrito a comércio, para habitação ou para indústria. Além fixa-se um uso menos pesado e desgastante quer para o prédio, quer para os ocupantes. Aqui é exactamente o contrário. Com a agravante de, no caso “sub judice”, esta ocupação industrial lesar, como se provou, direitos de eminente relevância – Direito ao sossego, ao descanso e, consequentemente, à saúde – do autor e da sua família, “maxime” filhos em idade escolar.
Confirmaria, assim, a decisão.
(Carlos Moreira)
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1 Cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363.
2 Cfr., também neste sentido, os Acórdãos do STJ de 6/5/1987 (in Tribuna da Justiça, nºs 32/33, p. 30), de 13/3/1991 (in Actualidade Jurídica, nº 17, p. 3), de 12/12/1995 (in BMJ nº 452, p. 385) e de 14/4/1999 (in BMJ nº 486, p. 279).
3 O que, na alegação (rectius, nas suas conclusões), o recorrente não pode é ampliar o objecto do recurso anteriormente definido (no requerimento de interposição de recurso).
4A restrição do objecto do recurso pode resultar do simples facto de, nas conclusões, o recorrente impugnar apenas a solução dada a uma determinada questão: cfr., neste sentido, ALBERTO DOS REIS (in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 308-309 e 363), CASTRO MENDES (in “Direito Processual Civil”, 3º, p. 65) e RODRIGUES BASTOS (in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. 3º, 1972, pp. 286 e 299).
5 LEBRE DE FREITAS – MONTALVÃO MACHADO – RUI PINTO in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 2001, p. 371.
6 LEBRE DE FREITAS – MONTALVÃO MACHADO – RUI PINTO in ob. e vol. citt., pp. 370-371.
7 Cfr., explicitamente neste sentido, CARLOS LOPES DO REGO (in Comentários ao Código de Processo Civil”, Vol. I, 2ª ed., 2004, p. 442).
8 PAULA COSTA E SILVA in “Saneamento e condensação no novo Processo Civil”, inserto in “Aspectos do Novo Processo Civil”, 1997, p. 264.
9 PAULA COSTA E SILVA, ibidem.
10 Cfr., no sentido de que, «excepcionada na contestação a ilegitimidade singular, julgada improcedente no despacho saneador não impugnado, transitou em julgado a decisão sobre a legitimidade, adquirindo força obrigatória no processo (arts. 677º e 672º do Código de Processo Civil», o Ac. do S.T.J. de 10/12/1997 (in BMJ nº 472, p. 501).
11 LEBRE DE FREITAS-ARMINDO RIBEIRO MENDES in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 3º, 2003, p. 95.
12 LEBRE DE FREITAS-ARMINDO RIBEIRO MENDES, ibidem.
13 ABRANTES GERALDES in “Temas da Reforma do Processo Civil”, II Vol., 3ª ed., Janeiro de 2000, p. 186.
14 Na verdade, com o CPC de 1961, a possibilidade de certos depoimentos ficarem registados por escrito só ocorria em caso de depoimentos antecipados (arts. 520º e 521º), cartas precatórias ou rogatórias (arts. 563º e 623º) e depoimentos de determinadas entidades (nos termos dos arts. 625º e segs.): cfr. ABRANTES GERALDES in ob. e vol. citt., p. 185.
15 «É o caso de o tribunal a quo ter desprezado a força probatória dum documento não impugnado nos termos legais» (MANUEL DE ANDRADE in “Noções Elementares de Processo Civil”. 1979, p. 209). «Com efeito, encontrando-se junto aos autos documento que faça prova plena de certo facto se o juiz, na sentença, não o der como provado, incumbe à Relação alterar a decisão de 1ª instância, nessa parte, fazendo prevalecer a força probatória do documento (arts. 371º, nº 1, 376º, nº 1, e 377º do CC)» (FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA in “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 4ª ed., Abril de 2003, p. 202). «E o mesmo fenómeno ocorrerá no respeitante a um facto sobre que verse confissão judicial escrita, desde que desfavorável ao confitente (art. 358º, nº 1, do CC)» (FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, ibidem).
16 ABRANTES GERALDES in ob. e vol. citt., pp. 193-194.
17 ABRANTES GERALDES in ob. e vol. citt., p. 186.
18 LEBRE DE FREITAS-ARMINDO RIBEIRO MENDES in “Código de Processo Civil Anotado” cit., Vol. 3º cit., p. 96.
19 CARLOS LOPES DO REGO in “Comentários ao Código de Processo Civil”, Vol. I, 2ª ed., 2004, p. 608.
20 Este é aliás o sentido que o legislador pretendeu dar à possibilidade do duplo grau de jurisdição, em sede de matéria de facto, pois que expressamente refere, no preâmbulo do diploma que possibilitou a documentação da prova (Dec.-Lei n.º 39/95, de 15/12), que “…a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.
21 Cfr., também no sentido de que, «apesar da maior amplitude conferida pela reforma de processo civil a um segundo grau de jurisdição em sede de matéria de facto, a verdade é que não se trata de um segundo julgamento, devendo o tribunal apreciar apenas os aspectos sob controvérsia», o Ac. da Rel. de Lisboa de 13-11-2001 (in Col. de Jur., 2001, tomo V, pág. 85).
22 Cfr., igualmente no sentido de que «a reforma processual operada pelo DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Dec. Lei nº 180/96, de 25 de Setembro, dando nova redacção ao artº 712 do C. P. Civil, ampliou os poderes da Relação quanto à matéria de facto, mas não impõe a realização de novo e integral julgamento, nem admite recurso genérico contra a errada decisão da matéria de facto», o Ac. da Rel. do Porto de 19/09/2000 (in Col. Jur., Ano XXV - 2000, tomo IV, p. 186).
23 Ac. da Relação de Coimbra de 3-10-2000 (in Col. de Jur., 2000, tomo IV, pág. 28).
24 De facto, «é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.» (ABRANTES GERALDES in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 201). «E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância» (ibidem). «Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores» (ABRANTES GERALDES in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 273).
25 Ac. da Rel. de Coimbra de 25/5/2004, proferido no Proc. nº 17/04 e relatado pelo Desembargador JORGE ARCANJO RODRIGUES, cujo texto integral está disponível para consulta no site htpp//www.dgsi.pt.
26 «Ressalvam-se (…) do poder de livre apreciação do tribunal colectivo os casos em que a lei exija, para a existência ou para a prova de algum facto, qualquer formalidade especial» (ANTUNES VARELA in “Manual de Processo Civil”, 1984, p. 643). «No 1º caso, a formalidade diz-se ad substantiam; no 2º, ad probationem» (ibidem). «Em qualquer das circunstâncias, o colectivo não pode considerar o facto como provado, enquanto a formalidade exigida (ou a forma do seu suprimento, no caso da formalidade ad probationem) não tiver sido observada» (ibidem).
27 «Estão, de acordo com essa regra da liberdade de apreciação da prova pelo tribunal, sempre sujeitas à livre apreciação do julgador a prova testemunhal (art. 396º CC), a prova por inspecção (art. 391º CC) e a prova pericial (art. 389º CC)» (LEBRE DE FREITAS-MONTALVÃO MACHADO-RUI PINTO in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 2001, p. 635). «Têm, pelo contrário, valor probatório fixado na lei os documentos escritos, autênticos (art. 371º-1 CC) ou particulares (art. 376º-1 CC), e a confissão escrita ou reduzida a escrito, seja feita em documento autêntico ou particular, mas neste caso só quando dirigida à parte contrária ou a quem a represente (art. 358º-2 CC)» (ibidem). «Já quando não reúna os requisitos exigidos para ter força probatória legal, a confissão fica sujeita à regra da livre apreciação (art. 361º CC); o mesmo acontece com o documento escrito (art. 366º CC)». «Valor probatório fixado por lei têm também as presunções legais stricto sensu (art. 350º CC) e a admissão (arts. 484º-1, 490º-2, 505º e outros semelhantes)» (ibidem).
28Miguel Teixeira de Sousa in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348”.
29ABRANTES GERALDES in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 256.
30 ABRANTES GERALDES, ibidem.
31 ABRANTES GERALDES in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 259.
32 Cit. Ac. da Rel. de Coimbra de 25/5/2004.
33 Cit. Ac. da Rel. de Coimbra de 25/5/2004.
34 Cfr., também no sentido de que, «porque se mantêm vigorantes os princípios de imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca, de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados”, o Ac. da Rel. do Porto de 19/09/2000 (in “Col. Jur., Ano XXV - 2000, tomo 4, p. 186).
35 Cfr., igualmente no sentido de que «a reanálise das provas gravadas pelo Tribunal da Relação só pode abalar a convicção criada pelo Juiz da 1.ª instância, traduzida nas respostas aos quesitos, e determinar a alteração dessas respostas, em casos pontuais e excepcionais, quando, não se tratando de confissão ou de qualquer facto só susceptível de prova através de documento, se verifique que as respostas dadas não têm qualquer fundamento face aos elementos de prova trazidos ao processo ou estão profundamente desapoiados face às provas recolhidas», o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 21/1/2003, proferido no Proc. nº 02A4324 e relatado pelo Conselheiro AFONSO CORREIA (cujo texto integral está disponível para consulta no site htpp//www.dgsi.pt.).
36 Ac. da Rel. de Coimbra de 25/11/2003, proferido no Proc. nº 3858/03 e relatado pelo Desembargador ISAÍAS PÁDUA (cujo texto integral está disponível para consulta no site htpp//www.dgsi.pt.).
37 Cfr., igualmente no sentido de que, «quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face ás regras da experiência comum», o Ac. da Rel. de Coimbra de 6/03/2002 (in Col. Jur., 2002, tomo II, p. 44). Assim, «assentando a decisão recorrida na atribuição de credibilidade a uma fonte de prova em detrimento de outra, com base na imediação, tendo por base um juízo objectivável e racional, só haverá fundamento válido para proceder à sua alteração caso se demonstre que tal juízo contraria as regras da experiência comum» (Ac. da mesma Relação de 18/8/2004, prolatado no Proc. nº 1937/04 e relatado pelo Desembargador BELMIRO ANDRADE, cujo texto integral pode ser livremente consultado no site htpp//www.dgsi.pt).
38 Ac. da Rel. de Lisboa de 13/11/2001 (in Col. Jur., 2001, tomo V, p. 85).
39 Ac. da Relação de Coimbra de 3/10/2000 (in Col. Jur., 2000, tomo IV, p. 28).
40 Ac. da Rel. de Coimbra de 22/6/2004, prolatado no Proc. nº 1861/04 e relatado pelo Desembargador HÉLDER ALMEIDA (cujo texto integral está disponível para consulta no site htpp//www.dgsi.pt.).
41 Cit. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 21/1/2003, proferido no Proc. nº 02A4324 e relatado pelo Conselheiro AFONSO CORREIA.
42 Ibidem.
43 ABÍLIO NETO in “Manual da Propriedade Horizontal”, 3ª ed., Outubro de 2006, p. 188.
44 Cfr., também no sentido de que «o título constitutivo da propriedade horizontal deve ser interpretado de acordo com o significado corrente das expressões nele usadas», o Ac. da Rel. de Lisboa de 17/12/1992 (in Col. Jur., 1992, tomo 5, p. 162).
45 Cfr., igualmente no sentido de que «a declaração constante do título de constituição da propriedade horizontal, quanto ao destino das suas fracções autónomas, deve ser interpretada com base num critério económico e no significado corrente das expressões usadas, adoptando-se a doutrina objectiva de interpretação e os respectivos critérios legais dos arts. 236º e 238º do Cód. Civil», o Ac. da Rel. do Porto de 9/11/1995 (apud ABÍLIO NETO in “Manual da Propriedade Horizontal” cit., p. 232).
46 ABÍLIO NETO in “Manual da Propriedade Horizontal”, p. 187.
47 ABÍLIO NETO, ibidem.
48 ABÍLIO NETO, ibidem.
49 ABÍLIO NETO, ibidem.
50 SANDRA PASSINHAS in “A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal”, 2000, p. 128.
51 SANDRA PASSINHAS, ibidem.
52 SANDRA PASSINHAS, ibidem.
53 SANDRA PASSINHAS, ibidem.
54 Ac. do S.T.J. de 27/1/1993, relatado pelo Conselheiro FIGUEIREDO DE SOUSA e proferido no Proc. nº 082630, cujo sumário pode ser consultado, via Internet, no sítio www.dgsi.pt.
55 Ac. do S.T.J. de 22/11/1995 (apud ABÍLIO NETO in “Manual da Propriedade Horizontal” cit., p. 232).
56 Apud ABÍLIO NETO in “Manual da Propriedade Horizontal” cit., p. 234.
57 Apud ABÍLIO NETO in “Manual da Propriedade Horizontal” cit., p. 236.
58 Apud ABÍLIO NETO in “Manual da Propriedade Horizontal” cit., p. 239.
59 Apud ABÍLIO NETO in “Manual da Propriedade Horizontal” cit., pp. 241-242.
60 Apud ABÍLIO NETO in “Manual da Propriedade Horizontal” cit., p. 242.
61 SANDRA PASSINHAS in “A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal”, p. 126.
62 SANDRA PASSINHAS, ibidem.
63 SANDRA PASSINHAS in ob. cit., pp. 126-127.
64 LEBRE DE FREITAS-MONTALVÃO MACHADO-RUI PINTO in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2º, 2001, p. 670.
65 Cfr., igualmente no sentido de que «as relações entre os condóminos na propriedade horizontal são de natureza real, sendo-lhes inaplicáveis os preceitos legais que regulam relações de natureza obrigacional», o Ac. do S.T.J. de 29/1/1974 (in BMJ nº 233, p. 201).
66 Cfr., também no sentido de que «o estatuto da propriedade horizontal tem eficácia absoluta, sendo vinculativa erga omnes», pelo que «o contrato de arrendamento para uso diferente, de uma fracção autónoma, não é nulo mas ineficaz em relação aos condóminos», o saneador-sentença do Juiz de Almada de 22/1/1979 (in Col. Jur., 1979, tomo IV, p. 1362).
67 Cfr., ainda no sentido de que «as restrições de origem negocial, como seja a do uso que a fracção se destina constituem parte integrante do estatuto do domínio quando inscritas no registo predial, devendo entender-se nesse caso que vinculam os futuros subadquirentes das fracções autónomas», o Ac. da Rel. de Lisboa de 19/10/1979 (in Col. Jur., 1979, tomo IV, p. 1205).
68 Cfr., uma vez mais no sentido de que «as restrições negociais quanto à utilização de fracções autónomas têm natureza real e, desde que constem do título constitutivo da propriedade horizontal e estejam inscritas no registo predial, têm eficácia em relação a terceiros», o Ac. da Rel. de Lisboa de 1/2/1990 (in Col. Jur., 1990, tomo I, p. 155).
69 Cfr., ainda no sentido de que «as restrições ao direito de propriedade dos condóminos são de natureza real, com eficácia “erga omnes”, impondo-se ao locatário do condómino», o Ac. da Rel. de Lisboa de 4/5/1993 (sumariado in BMJ nº 457, p. 574).
70 Cfr., igualmente no sentido de que «se um dos condóminos dá à sua fracção (uma cave) uso diverso do fim a que, de acordo com o título constitutivo da propriedade horizontal, ela é destinada (arrumos), a decisão que decreta a afectação da fracção ao fim que lhe estava destinado impõe-se também ao terceiro que, com base em qualquer negócio com aquele celebrado, está a ocupar a fracção em causa», o Ac. da Rel. de Coimbra de 28/9/1993 (sumariado in BMJ nº 429, p. 898).
71 Apud ABÍLIO NETO in “Manual da Propriedade Horizontal” cit., p. 231.
72Apud ABÍLIO NETO in “Manual da Propriedade Horizontal” cit., p. 229.
73 Apud ABÍLIO NETO in “Manual da Propriedade Horizontal” cit., p. 232.
74 Apud ABÍLIO NETO in “Manual da Propriedade Horizontal” cit., pp. 241-242.
75 Apud ABÍLIO NETO in “Manual da Propriedade Horizontal” cit., p. 109.
76 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO in “Tratado de Direito Civil Português”, I, Parte Geral, Tomo IV, 2005, p. 327.
77 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, ibidem.
78 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, ibidem.
79 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, in ob., vol. e tomo citt., p. 336.
80 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, ibidem.
81 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, in ob., vol. e tomo citt., pp. 336-337.
82 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, in ob., vol. e tomo citt., p. 337.
83 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, ibidem.
84 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, ibidem.
85 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, ibidem.
86 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, ibidem.
87 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, ibidem.
88ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, ibidem.
89 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, ibidem.
90 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, ibidem.
91 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, ibidem.
92 ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, ibidem.