Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
12940/16.0T8LSB.L1-4
Relator: MARIA JOSÉ COSTA PINTO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
ADMISSIBILIDADE DO RECURSO
NULIDADE PROCESSUAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/25/2017
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO O RECURSO
Sumário: I-Não é admissível recurso em processo de contra-ordenação de decisões da 1.ª instância que apreciem vícios da decisão final da entidade administrativa e afirmem a sua nulidade sem, simultaneamente, porem termo ao procedimento contra-ordenacional.
II-É o que sucede se a decisão da 1.ª instância declara a nulidade da decisão da ACT, sem ordenar o arquivamento do processo, mas afirmando que a ACT deverá realizar o cúmulo jurídico das coimas aplicadas à recorrente, o que constitui uma decorrência lógica da aplicação do regime das nulidades do CPP, com os inerentes efeitos - art 122.º, segundo o qual as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar (n.º 1) os quais devem ser repetidos (n.º 2).
III-Sendo a contra-ordenação punida, em concreto, com uma coima inferior a € 25 UC’s, também por isso não é admissível o recurso.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:

   1. Relatório


1.1.A arguida AAA,  foi condenada, por decisão proferida em 22 de Abril de 2016 pela Autoridade das Condições do Trabalho (fls. 23), no pagamento de uma coima de 9 UC, correspondente a € 918,00, acrescida do valor das respectivas custas, pela prática de uma contra-ordenação prevista e punida pelo art.º 20º, nº 5, al. b) da Lei nº 27/2010, de 30 de Agosto, por referência ao art.º 4º, al. h) e art.º 8º, nº 6 do Regulamento (CE) n.º 561/2006, de 15 de Março, alterado pelo art.º 33º do Regulamento (UE) n.º 165/2014, de 04 de Fevereiro, do Parlamento Europeu e do Conselho.
1.2.Não se conformando com tal decisão, a arguida impugnou-a judicialmente, invocando, em suma, que a decisão administrativa é nula por não haver procedido ao cúmulo jurídico de todas as infracções praticadas pela recorrente.
1.3.A Mma. Julgadora a quo, uma vez recebidos os autos, solicitou certidão das decisões proferidas nos processos de contra-ordenação nº 171400265 e nº 171300403 e veio a proferir em 28 de Julho de 2016 decisão que terminou do seguinte modo:
«[…]
No caso presente, resulta evidenciado das certidões juntas a fls. 11 a 36 dos autos que a ACT deveria ter operado o cúmulo jurídico, pelo menos, entre a decisão impugnada e as decisões proferidas nos processos de contra-ordenação nº 171400265 e nº 171300403, também proferidas pela Directora do Centro Local de Lisboa Oriental da ACT e que ainda não tinham transitado em julgado.
Não tendo a autoridade administrativa operado o cúmulo jurídico referido, ocorre violação do disposto no art.º 19º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, acima transcrito.
Tal omissão de realização de cúmulo jurídico na fase administrativa gera a nulidade da decisão impugnada, nos termos do disposto no art.º 120º, nº 2, al. d) do Código de Processo Penal, aplicável ex vi dos artigos 60º da Lei n° 107/2009, de 14.09, e 41º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10, o que constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores portugueses.
Assim, nos termos do disposto o art.º 22º, nº 2 do C. P. Penal, deverá a ACT realizar o cúmulo jurídico das coimas aplicadas à recorrente pela prática de contra-ordenações que estão numa relação de concurso entre si, aplicando uma coima única.

III-Pelo exposto, julgo procedente a impugnação judicial interposta pela recorrente AAA e, em consequência, declaro nula a decisão da autoridade administrativa que lhe aplicou a coima.
Sem custas.
Proceda-se ao depósito da presente sentença na secretaria.
Notifique e comunique à autoridade administrativa (art.º 45º, nº 3 da Lei nº 107/2009, de 14.09).
[…]»

1.4.O Digno Magistrado do Ministério Público interpôs recurso da decisão para este Tribunal da Relação, tendo formulado, a terminar a respectiva motivação, as seguintes conclusões:
 “1.ºSalvo melhor opinião, não se perfilha o entendimento expresso no douto despacho recorrido que considerou nula a decisão da autoridade administrativa por não ter operado o cúmulo jurídico entre a decisão impugnada e as decisões proferidas nos processos de contra-ordenação 171400265 e 171300403.
2.ºCom efeito, no caso das contra-ordenações, não está em causa um tipo de censura ético-jurídico uma vez que a punição se funda no poderdever do agente poder agir de outro modo, pelo que a aplicação subsidiária do processo penal não pode deixar de conhecer esta diferença basilar entre a aplicação das sanções contra-ordenacionais e a aplicação de sanções penais.
3.ºAcresce que no caso em apreço não se verifica em relação aos processos identificados no douto despacho recorrido qualquer situação de conexão, nos termos do artigo 24.º do C. P. Penal, que impusesse a respectiva apensação.
4.ºAssim, parece-nos que a aplicação das regras do concurso e aplicação do cúmulo jurídico nos termos do artigo 19.º do RGCL deverá estar vinculada, no âmbito contra-ordenacional laboral e no sei[o] da fase administrativa do processo, aos casos em que se verifique uma efectiva situação de conexão.
5.ºAssim, não se verificando entre as contra-ordenações de cada um dos referidos processos quaisquer factos que permitam concluir pela invocada relação de concurso, não se impõe a realização do cúmulo jurídico por parte da autoridade administrativa.
6.ºAliás, na prática, torna-se impossível muitas vezes a Autoridade Administrativa efectuar o cúmulo jurídico incluindo para o efeito processos que já correm termos no Tribunal, por estarem a aguardar decisão na sequência da impugnação judicial, por desconhecer o teor da decisão que virá a ser proferida.
Assim, deverá ser dado provimento ao recurso e, em consequência, ser o douto despacho revogado por outro que receba a acusação nos termos e para os efeitos do artigo 37.º da Lei 107/09 de 14 de Setembro, dessa forma se fazendo JUSTIÇA.”

1.5.O recurso foi admitido por despacho de fls. 56.

1.6.Respondeu a arguida pugnando pela manutenção da decisão recorrida (fls. 59 e ss.).

1.7.Uma vez remetido o mesmo a este Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido de que se deveria negar provimento ao recurso.
Cumpre decidir.
*
2. Fundamentação

Nos presentes autos suscita-se-nos a questão prévia da admissibilidade do recurso.
Na impugnação judicial que deduziu perante o tribunal recorrido, o Digno Magistrado do Ministério Público ora recorrente peticionou, a final, se revogasse a decisão proferida que declarou nula a decisão administrativa, substituindo-se por despacho que receba a acusação nos termos e para os efeitos do artigo 37.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro.
A decisão da 1.ª instância sob recurso, referindo que a “omissão de realização de cúmulo jurídico na fase administrativa gera a nulidade da decisão impugnada, nos termos do disposto no art.º 120º, nº 2, al. d) do Código de Processo Penal, aplicável ex vi dos artigos 60º da Lei n° 107/2009, de 14.09, e 41º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10”, vem a julgar procedente a impugnação judicial interposta pela recorrente e, em consequência, declara “nula a decisão da autoridade administrativa que lhe aplicou a coima”.
Analisando a argumentação desenvolvida pela arguida, a Mma. Julgadora a quo veio a dar acolhimento à impugnação judicial apresentada e, em consequência, declarou a nulidade da decisão administrativa, referindo expressamente que “deverá a ACT realizar o cúmulo jurídico das coimas aplicadas à recorrente pela prática de contra-ordenações que estão numa relação de concurso entre si, aplicando uma coima única”.
Trata-se, pois, de uma decisão que não incide directamente sobre o mérito da decisão final do processo de contra-ordenação proferida pela ACT em 22 de Abril de 2016, mas que aprecia a sua validade e consonância com regras processuais, concluindo que a mesma é nula nos termos do artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do Código de Processo Penal – ou seja, por omissão de diligências tendo em vista a realização do cúmulo jurídico a que deveria proceder – e afirmando que a ACT deverá repeti-la, nela realizando o cúmulo jurídico das coimas aplicadas à recorrente pela prática de contra-ordenações que estão numa relação de concurso entre si, aplicando uma coima única.
Nos termos do artigo 55.º do RGCO, aplicável ex vi do artigo 60.º do RGCOL, “as decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo são susceptíveis de impugnação judicial por parte do arguido ou das pessoas contra as quais se dirigem” (n.º 1), decidindo “em última instância” o tribunal competente para o efeito (n.º 3).
O mesmo não acontece relativamente às decisões proferidas pelo tribunal de 1.ª instância que incidem sobre a decisão final da entidade administrativa a que se reporta o artigo 39.º do RGCOL. Destas decisões judiciais que:
· ordenam o arquivamento do processo,
· absolvem o arguido, ou
· mantêm ou alteram a condenação,
pode ser interposto recurso para o Tribunal da Relação, nos termos do artigo 49.º do RGCOL, mas apenas desde que se verifiquem os requisitos enunciados neste preceito (equivalente ao artigo 73.º do RGCO), na medida em que, contrariamente ao que sucede no regime penal (art. 399.º do CPP), em matéria contra-ordenacional vigora o princípio da irrecorribilidade das decisões judiciais, sendo apenas admitido o recurso da sentença ou despacho que ponham termo ao processo e apenas nos casos expressamente previstos.
A única excepção mostra-se expressamente contemplada na lei e reporta-se ao recurso da decisão de não aceitação da impugnação judicial [arts. 38.º, n.º 2, e 49.º, n.º 1, al. d), do RGCO].
Verifica-se, pois, que o Decreto-Lei n.° 107/2009, tal como o Decreto-Lei n.º 433/82, quanto à impugnações judiciais das decisões adoptadas pelas autoridades administrativas que apliquem coimas ou outras sanções previstas na lei, admite recurso para o Tribunal da Relação da decisão da 1.ª instância que sobre elas incida, no condicionalismo previsto no artigo 49.º do RGCOL (quando se verifique alguma das circunstâncias previstas nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 49.º ou quando o próprio tribunal ad quem o aceitar nos casos enunciados no n.º 2 desse mesmo preceito), quer se trate de sentenças, quer de despachos proferidos nos termos do artigo 39.º do mesmo diploma.
Não consta do elenco de decisões que admitem recurso para a Relação previstas nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 49.º do RGCOL, uma qualquer referência a decisões da 1.ª instância que apreciem vícios da decisão final da entidade administrativa e afirmem a sua nulidade sem, simultaneamente, porem termo ao procedimento contra-ordenacional.
Ora, no caso presente, a douta decisão da 1.ª instância de fls. 39 a 41 tem como ratio decidendi, exclusivamente, a invocada nulidade processual prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d) do Código de Processo Penal, aplicável por força do artigo 60.º do RGCOL e 41.º do RGCO, não incidindo a sua apreciação sobre a substância da decisão condenatória da ACT.
Ou seja, em termos materiais, a decisão sob censura conheceu de um vício procedimental da decisão da ACT, julgando que o mesmo se verifica nos termos nela explanados e declarando a nulidade de tal decisão, sem que tenha ordenado o arquivamento do processo.
E afirmou que a ACT deverá realizar o cúmulo jurídico das coimas aplicadas à recorrente, aplicando uma coima única, o que constitui uma decorrência lógica da aplicação do regime das nulidades do Código de Processo Penal, com os inerentes efeitos – cfr. o artigo 122.º do Código de Processo Penal, segundo o qual as nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar (n.º 1) os quais devem ser repetidos (n.º 2).
Assim, uma vez que a decisão da 1.ª instância não se encontra prevista em qualquer das hipóteses de admissibilidade de recurso enunciadas no n.º 1 do artigo 49.º do RGCOL, não é admissível a interposição de recurso da mesma para o Tribunal da Relação.
Considerando verificada a indicada nulidade, o tribunal da 1.ª instância decidiu definitivamente a questão, tendo transitado em julgado, pelo que se impõe cumprir a sua determinação.
Deve acrescentar-se, ainda, que mesmo que fosse em abstracto admissível recurso deste tipo de despachos, uma vez que a contra-ordenação sobre que versam os presentes autos foi punida, em concreto, com uma coima inferior a € 25 UC – sendo este o valor a atender, independentemente do valor da coima única, como resulta do disposto no n.º 3 do artigo 49.º do RGCOL –, não se verificariam os pressupostos necessários à admissão do recurso, por força do artigo 49.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 da Lei nº 107/2009, de 14 de Setembro.
A circunstância de o recurso ser admitido na 1.ª instância não vincula o tribunal superior por força do que estabelece o artigo 414.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
*
3. Decisão

Em face do exposto, rejeita-se o recurso interposto pelo Ministério Público.
Sem custas.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2016

Maria José Costa Pinto