Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4829/16.0T8VFX-G.L1-1
Relator: NUNO TEIXEIRA
Descritores: RATEIO FINAL
PROPOSTA DO ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
PUBLICAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA PROPOSTA
PRAZO
CASO JULGADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – Conforme determina, expressamente, o artigo 182º, nº 3 do CIRE (na redacção dada pela Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro), o prazo de 15 dias para os credores (e a comissão de credores, se tiver sido nomeada) se pronunciarem sobre a proposta de distribuição e de rateio final apresentada pelo Administrador da Insolvência, conta-se desde a data da publicação daquela na Área de Serviços Digitais dos Tribunais, dispensando-se, portanto, a sua notificação aos credores e insolvente.
II – As nulidades processuais secundárias, previstas no artigo 195º, nº 1 do CPC, devem ser imediatamente arguidas, perante o tribunal que as pratica, sob pena de não poderem ser sindicadas posteriormente em sede de recurso.
III – A respectiva arguição tardia conduz à sanação da nulidade e à impossibilidade do seu conhecimento pelas instâncias de recurso, excepto nas situações em que a nulidade fica implicitamente coberta ou sancionada pela própria decisão de que se recorre.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,
1. CM, e MM, foram declarados insolventes por sentença de 22/03/2018, transitada em julgado.
Foram reclamados, verificados e graduados os créditos sobre os insolventes.
Notificado para apresentar mapa de distribuição e rateio quanto aos créditos subordinados (cfr. despacho de 31/10/2023, refª 158555984), veio o Administrador da Insolvência (AI),  por requerimento de 09/01/2024, “informar que o saldo da conta da MI é de € 21.021,76” e que “entregue aos insolventes o montante de € 1.790,00, resta para ratear a título de juros subordinados, o montante de € 19.231,78”, conforme o seguinte mapa que anexou:[1]

CredoresValores pagos%Rateio
Scalabis50.183,86 €62,17%11.956,40 €
Cofidis8.958,15 €11,10%2.134,73 €
Novo Banco16.655,98 €20,63%3.967,52 €
Winzi Bank4.926,73 €6,10%1.173,14 €
80.724,72100,00%19.231,78 €


Posteriormente, em 22/02/2024, foi junto o documento comprovativo da publicação da proposta de distribuição e rateio na Área de Serviços Digitais dos Tribunais, em 09/01/2024.[2]
De seguida, em 27/02/2024, foi proferido o seguinte despacho (refª 159969778):
“I. Instância principal de insolvência - Rateio, 09-01-2024
Decorridos 10 dias após a notificação do presente despacho (que incluirá o requerimento de 09-01-2024), e não sobrevindo oposição:
Cumpra o(a) Sr.(a) Administrador(a) da Insolvência o disposto no artigo 183.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), documentando nos autos os pagamentos.
Não sendo indicado IBAN, tenha-se em consideração o disposto no artigo 183.º/2, do CIRE.
O(a) Sr.(a) Administrador(a) da Insolvência documentará o encerramento da conta bancária.
Comprove o(a) Sr.(a) Administrador(a) da Insolvência a notificação dos pagamentos aos Credores e Devedor(a)(s).”
Notificada a mandatária dos insolventes, em 28/02/2024 (refª 160042538), deste despacho e do teor de requerimento do AI de 09/01/2024, vieram os insolventes, por requerimento de 01/03/2024 (refª 48152345), apresentar “oposição à proposta de rateio”, alegando que:
- O credor hipotecário CGD foi pago integralmente em 05/04/2022, conforme o artigo 174º do CIRE, e, portanto, os juros só podem ser calculados até essa data, pois não há dívida após esse momento;
- O valor dos juros calculados pelo Sr. Administrador da Insolvência está incorreto: o montante devido à Scalabis a título de juros, calculados a 4%, é de 8.084,41 € e não 11.956,40 €;
- Os montantes a pagar aos restantes credores também estão incorretos: a Cofidis deve receber 1.890,78 € em vez de 2.134,73 €; o Novo Banco deve receber 3.515,55 € em vez de 3.967,52€; e, o Winzi Bank deve receber 1.039,88 € em vez de 1.173,14 €. ​
Pedem, por isso, a retificação da proposta de rateio apresentada pelo AI.
Num segundo requerimento, datado de 08/04/2024 (refª 48524333), insistiram na retificação da proposta de rateio, pedindo ainda a transferência para a sua conta dos valores excedentes.
Notificados da oposição formulada pelos insolventes, apenas os credores, SCALABIS – STC, S.A. e NOVO BANCO, S.A. se pronunciaram, o primeiro para dizer que não existem valores a devolver e para pedir a notificação do AI para prestar esclarecimentos, e o segundo para dizer que aderia ao requerimento do primeiro.
Notificado o AI para prestar os “requeridos esclarecimento quanto aos cálculos efectuados, taxa de juro e datas do terminus do vencimento de juros incluídas” (cfr. despacho de 17/09/2024, com a refª 162083489), veio esclarecer que não considera ser necessário devolver valores solicitados pela Scalabis, pois não equacionou montantes. Afirma que os cálculos estão documentados nos anexos ao rateio e sustenta que estão correctos. ​Argumenta, por fim, que os juros devem ser calculados a partir da data da sentença de insolvência, pois todos os credores foram ressarcidos, sendo inadequado calcular juros apenas para o credor hipotecário desde a prolação da sentença.
Também a credora SCALABIS voltou a pronunciar-se, sustentando que os pagamentos foram autorizados pelo despacho de 27/02/2024, pelo que, sendo extemporânea, a pretensão dos insolventes deve ser indeferida.
Por fim, em apreciação do requerimento dos insolventes de 01/03/2024, foi proferido o seguinte despacho (refª 164402596):
“Em 01-03-2024, os Devedor(a)(s) apresentaram “oposição à proposta de rateio” publicada em 09-01-2024, impugnando-se os termos do vencimento de juros e a aplicação da taxa de juros comercial.
Invocam que o proposto excede o devido nos seguintes montantes:
- Caixa Geral de Depósitos, S.A. € 3871,99
- Cofidis, Sucursal em Portugal da S.A. Francesa Cofidis € 243,95
- Novo Banco, S.A. € 451,97
- Wizink Bank, S.A. - Sucursal em Portugal € 133,26.
Concluem peticionando “(…) que ordene ao Senhor AI, a retificação da proposta de rateio.”
Cumpre apreciar e decidir.
São factos assentes:
1. A proposta de rateio de 09-01-2024 foi alvo do despacho de 27-02-2024, determinando pagamentos.
2. O despacho de 27-02-2024 não foi impugnado, designadamente, através de recurso.
Vertendo ao direito.
O despacho de 27-02-2024 admitia recurso de apelação autónomo. Não impugnado, transitou em julgado.
Está esgotado o poder jurisdicional da signatária quanto à referida “proposta de rateio” – artigo 613/1, do Código de Processo Civil.
A prolação de decisão distinta da proferida em 27-02-2024 seria ineficaz – artigo 625 do Código de Processo Civil.
Pelo exposto, com fundamento no caso julgado, indefiro o requerido em 01-03-2024.”
Não se conformando com este despacho, dele interpuseram recurso os insolventes, mediante o qual pedem que se “determine que os Insolventes estavam em tempo quando deduziram oposição ao rateio e aos juros calculados pelo Sr. Administrador de insolvência, nomeadamente no que se refere ao credor Scalabis, já que, a data em que o comprovativo da publicidade do rateio foi publicada nos autos e a falta do cumprimento do artº 182º nº 4 do CIRE, levam-nos a um vício processual que prejudica a validade do procedimento de rateio”.
Terminam as respectivas alegações formulando as conclusões que ora se transcrevem:
A) O Sr. AI veio juntar aos autos proposta de rateio e cálculo de juros no dia 09/01/2024.
B) O credor hipotecário Caixa Geral de Depósitos e depois a Scalabis, por cessão de créditos, foi pago, integralmente, nos termos do artigo 174º do CIRE, no dia 05/04/2022.
C) Os juros a pagar a este credor, CGD, só podem ser calculados até 05/04/2022 e não depois, por não existir dívida.
D) Uma vez que havia dinheiro, os credores vieram requerer o pagamento dos juros a 4%, até integral pagamento.
E) Assim, o valor a pagar à Scalabis a título de juros, contabilizados a 4%, até ao dia 05/04/2022 totaliza o valor de 8.084,41€ e não o montante de 11.956,40€, determinado pelo Sr. AI que calculou os juros deste credor até 05/07/2023, a juros de 7%, 9,50%, 11%.
F) Ora em 05/07/2023 o Sr. Administrador de Insolvência pagou aos outros credores, com exceção da Scalabis (credor hipotecário) que tinha sido pago na integra em 05/04/2022.
G) Os montantes pagos aos restantes credores também não estão corretos, uma vez que, em vez de os juros terem sido calculados a 4% como requerido, foram calculados a percentagens muito mais elevadas.
H) O credor Cofidis deve receber 1.890,78€ e não 2.134,73€,
I) O credor Novo Banco deve receber o montante de 3.515,55€, em vez de 3.967,52€.
J) O credor Winzi Bank deve receber o montante de 1.039,88€, em vez de 1.173,14€.
K) O comprovativo da publicidade no Portal Citius que se encontra nos autos é datado de 22/02/2024.
L) Não houve cumprimento do nº 4 do artº 182º do CIRE.
M) Os Insolventes foram notificados do rateio no dia 28/02/2024.
N) Pelo que, julgando estar em tempo, os Insolventes não recorreram do despacho de 27/02/2024, notificado a 28/02/2024.
O) O Sr. Administrador de Insolvência foi por diversas vezes alertado para o erro no cálculo de juros sobretudo, no respeitante ao credor Scalabis, optando por persistir, prejudicando assim os Insolventes.
P) A 01/03/2024 os Insolventes apresentaram a oposição ao rateio.
Q) O cálculo apresentado pelo Sr. Administrador de Insolvência, viola os princípios da legalidade e da justa distribuição do rateio entre os credores, consagrados nos artigos 174.º e 180.º do CIRE.
R) A jurisprudência é uniforme em considerar que os juros de créditos que foram integralmente pagos não se podem computar para além da data do respetivo pagamento, sob pena de enriquecimento sem causa do credor.
S) Os credores receberam os valores que lhes foram entregues, mas no caso do credor Scalabis é manifestamente indevido.
T) Em 10/04/2024 foi notificado o Senhor Administrador de Insolvência e credores nos termos do artº 3º nº 3 do CPC.
U) Nem o Sr. Administrador de insolvência nem os credores se manifestaram.
V) A 2ª prestação referente a IMI do ano de 2020 e que, perante inúmeras insistências junto do Sr. Administrador de Insolvência, não foi liquidado, tendo agora os Insolventes pago o referido IMI, pagando três vezes mais que o valor inicial, resultando em prejuízo para os mesmos.
W) Assim, o comprovativo da publicidade do rateio só chegou aos autos a 22/02/2024, não se tendo verificado o cumprimento do artº 182º nº 4 do CIRE.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Finalmente, em 11/07/2025, foi proferido despacho a admitir a apelação, com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
2. Como é sabido, o teor das conclusões formuladas pela recorrente define o objecto e delimitam o âmbito do recurso (artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 todos do Código de Processo Civil).
Assim, considerando as conclusões apresentadas pelos Recorrentes, cumpre responder às seguintes questões:
- tempestividade da oposição apresentada à proposta de rateio e de cálculos dos juros de 09/01/2024;
- falta de cumprimento do artigo 182º, nº 4 do CIRE e repercussão na validade do procedimento de rateio;
3. No despacho recorrido deram-se por assentes os seguintes factos:
1. A proposta de rateio de 09/01/2024 foi alvo do despacho de 27/02/2024, determinando pagamentos.
2. O despacho de 27/02/2024 não foi impugnado, designadamente através de recurso.
4. Para além dos que já constam do relatório antecedente, resultam ainda dos autos com interesse para o mérito do recurso, os seguintes factos:
3. CM e MM foram declarados insolventes por sentença proferida em 22/03/2018, transitada em julgado.
4. Foram reclamados créditos sobre os insolventes, nos termos e prazo estabelecidos para o efeito, findo o qual o Sr. Administrador da Insolvência apresentou a relação de créditos prevista no art.º 129º do CIRE.
5. Da relação de créditos apresentada constava:

CredorNatureza
do crédito
CapitalJuros vencidos até 27/03/2018Imposto de  selo, custas e comissõesTotal
Caixa Geral de Depósitos, S.A.Garantido49.919,05 €264,80 € 50.183,85 €
Cofidis, S.A.Comum8.958,15 € 8.958,15 €
Novo Banco, S.A.Comum11.324,84 €5.331,14 € 16.655,98 €
Wizink Bank, S.A.Comum4.183,92 € 742,81 €4.926,73 €

6. Não foram apresentadas impugnações à lista de credores.
7. Por sentença de 18/10/2021, transitada em julgado, foi homologada a relação apresentada pelo AI, julgando verificados os créditos reclamados e procedendo à respectiva graduação como dela consta.
4. Fixada a matéria de facto, cumpre agora responder às questões colocadas pelos Recorrentes nas suas alegações.
4.1. Tempestividade da oposição apresentada à proposta de rateio.
Entendem os Recorrente que “estavam em tempo quando deduziram oposição ao rateio e aos juros calculados pelo Sr. Administrador da Insolvência (…), já que, a data em que o comprovativo da publicidade do rateio foi publicada nos autos e a falta de cumprimento do art. 182º, nº 4 do CIRE, levam-nos a um vício processual que prejudica a validade do procedimento de rateio” (cfr. alínea X) das conclusões).
Cremos, no entanto que falece razão aos Recorrentes.
O rateio final no processo de insolvência é a última divisão e distribuição proporcional aos credores dos valores remanescentes obtidos da liquidação dos bens e rendimentos do devedor, após o pagamento das custas do processo da massa insolvente. Esse rateio (a elaborar de acordo com a sentença de verificação e graduação de créditos) deverá ocorrer no final do processo, da seguinte forma: 1) após o encerramento da liquidação, a secretaria do tribunal elabora a conta final e calcula o valor das custas do processo; 2) são pagas as custas do processo e as demais dívidas da massa insolvente com o produto da liquidação; 3) só depois é feito o rateio final e a distribuição do valor que sobrou, de forma proporcional aos créditos, respeitando a hierarquia legal: créditos garantidos primeiro, seguidos pelos privilegiados, comuns e subordinados; 4) uma vez julgadas as contas e paga a conta das custas, o administrador da insolvência deve apresentar, no prazo de 10 dias, uma proposta de rateio final, acompanhada da respectiva documentação de suporte caso seja diferente daquela que já exista no processo; 5) a proposta é publicada na Área de Serviços Digitais dos Tribunais; 6) a partir da data da publicação da proposta inicia-se o prazo de 15 dias para os credores e a comissão de credores, caso exista, se pronunciarem sobre a proposta de distribuição e de rateio final; 6) logo que se mostre decorrido aquele prazo, a secretaria deve apreciar a proposta de rateio final, elaborando, para o efeito, um termo nos autos, e remeter o processo ao juiz, que, no prazo de 10 dias, deve decidir as impugnações que tenham sido apresentadas e validar a proposta (cfr. artigo 183º do CIRE, na redacção dada pela Lei nº 9/2022, de 11 de Janeiro).[3] Se, no final desta sequência de actos processuais, a proposta de rateio for validada, transforma-se em mapa de rateio final.
Não resulta, assim, da regulamentação do rateio final constante do CIRE e, designadamente, do seu artigo 182º, que a proposta de distribuição e de rateio a apresentar pelo administrador da insolvência tenha de ser notificada, quer à comissão de credores, quer aos credores, ou até aos insolventes, como seria o caso. É certo que, nas versões daquele artigo anteriores à da Lei nº 09/2022, de 11 de Janeiro, a distribuição e o rateio final eram da competência da secretaria do tribunal (podendo, no entanto, o administrador da insolvência apresentar proposta) e, como tal, nada se dispunha àcerca da notificação do acto realizado pela secretaria. Daí que se aplicassem as regras próprias das notificações constantes do CPC (artigo 220º, nº 2 ex vi artigo 17º do CIRE). Mas, a versão posterior, dada por aquela Lei, que é a aplicável aos autos, estabeleceu uma regra que rompeu com o regime anterior, estabelecendo-se agora no nº 3 do artigo 182º que o prazo para apresentar impugnação contra a proposta de rateio final é de 15 dias, “contados desde a data da publicação”, na Área de Serviços Digitais dos Tribunais.
Os Recorrentes, porém, entendem que estavam em tempo para impugnar a proposta de rateio, em razão de o comprovativo da publicação da proposta de rateio no Portal Citius apenas ter sido junto aos autos em 22/02/2022 e eles terem sido notificados do rateio no dia 28/02/2024.
E, na verdade, resulta dos autos que a “oposição à proposta de rateio” deu entrada após notificação, datada de 28/02/2024, dirigida à mandatária dos Recorrentes do despacho proferido a 27/02/2024 e do requerimento do AI de 09/01/2024.
Com efeito, ficou a constar do despacho de 27/02/2024 que “decorridos 10 dias após a notificação do presente despacho (que incluirá o requerimento de 09/01/2024) e não sobrevindo oposição:”, o Administrador da Insolvência deveria cumprir o disposto no artigo 183º do CIRE, documentando nos autos os pagamentos. O que resulta deste despacho é que o tribunal a quo, em vez de cumprir o disposto no nº 4 do artigo 182º do CIRE –  proferindo decisão a validar ou não a proposta de distribuição e de rateio final apresentada pelo AI a 09/01/2024, após a secretaria apreciar a proposta mediante termo nos autos –, ordenou ao AI, que procedesse aos pagamentos, concedendo, no entanto, o prazo de 10 dias para dedução de oposição, quando há muito que se havia esgotado o prazo legal de 15 dias para quem quisesse pronunciar-se sobre a proposta.
Mas, o mero facto de o tribunal ordenar ao administrador da insolvência que proceda aos pagamentos conforme a proposta de rateio final, sem previamente validar formalmente a proposta (quando publicada há mais de 15 dias sem impugnações), não legitima o insolvente a deduzir oposição após esgotado o referido prazo legal. Como recentemente sustentou esta Relação no Acórdão de 29/04/2025 (proc. 13612/14.6T8LSB-I.L1-1), “o que a lei menciona, tal como em procedimentos semelhantes, é expressamente que o prazo de impugnação se inicia da data da publicação e não da data da junção aos autos do comprovativo da publicação. Não se trata, nestes termos, de uma formalidade prescrita por lei.//É obviamente uma diligência útil, nomeadamente para a secretaria e magistrados, mas sem valor de formalidade essencial.//Acresce que, não sendo sequer uma formalidade prevista por lei, não se encontra legalmente cominada com nulidade a respetiva omissão, e seguramente não influi no exame ou decisão da causa dado que os interessados podem e devem consultar a publicação para poderem exercer os seus direitos. //Diferentemente do alegado, a nova redação do art.º 182º do CIRE não passou para os credores o ónus de consultarem os processos com vista a aferir se já foi apresentado e publicado o mapa de rateio. O ónus que recai sobre os credores é o de consultarem o portal citius para aferirem se já foi publicada a proposta de distribuição e rateio final.”.
Assim, pese embora a tramitação adoptada pelo tribunal não esteja de acordo o que determina o artigo 182º do CIRE, temos por certo que a impugnação deduzida pelos insolventes à proposta de rateio entrou claramente fora de prazo, que, como expressamente determina o nº 3, é de 15 dias “contados desde a data da publicação”.
Improcede, pois a primeira questão colocada pelos Recorrentes.
4.2. Nulidade secundária resultante da falta de cumprimento do nº 4 do artigo 182º do CIRE.
Argumentam ainda os Recorrente que, “a falta do cumprimento do artigo 182º, nº 4 do CIRE, levam-nos a um vício processual que prejudica a validade do procedimento”. Embora de forma um tanto ou quanto simplista, parece-nos que foi intenção dos Recorrentes arguir uma nulidade secundária, com base na omissão de um acto ou de uma formalidade prescrita pela lei.
Na verdade, como determina o artigo 195º, nº 1 do CPC, “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva” pode resultar numa nulidade processual, “quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”. Trata-se das chamadas nulidades secundárias, atípicas ou inominadas, nas quais se integram todas as irregularidades ou desvios ao formalismo processual quando relevantes nos termos daquele artigo 195º, nº 1. A não ser que sejam de conhecimento oficioso, “tais nulidades devem ser arguidas perante o juiz (arts. 196º e 197º do CPC) e é a decisão que for proferida que poderá ser impugnada pela via recursória, agora com a séria limitação constante do nº 2 do artigo 630º (…)”.[4]
Porém, não se tratando de nulidade de conhecimento oficioso (artigo 196º do CPC), e pese embora não tenha sido arguida perante o juiz da 1ª instância (artigo 197º do CPC), se estiver coberta por uma decisão judicial, ainda “poderá ser arguida no prazo de interposição de recurso respectivo e no próprio requerimento de interposição deste, sempre que o recorrente pretenda arguir a nulidade processual e, simultaneamente, invocar fundamentos de recurso em relação à decisão judicial proferida, prevenindo a hipótese da nulidade processual não ser julgada procedente”[5]. Com efeito, tem-se entendido que a omissão de determinada formalidade obrigatória (v.g. cumprimento do contraditório antes de apreciar ex officio uma determinada questão) pode traduzir-se numa nulidade da própria decisão, ajustando-se, então, a interposição de recurso no âmbito do qual essa nulidade seja suscitada.[6] Por outras palavras, “sempre que o juiz se abstenha de apreciar uma situação irregular directamente detetável ou omita uma formalidade de cumprimento obrigatório, com repercussão na decisão proferida, o interessado (parte vencida) deve reagir mediante interposição de recurso sustentado na nulidade da própria decisão, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea d) [do CPC].”[7]
Quanto aos efeitos do reconhecimento das nulidades secundárias, regem os artigos 195º, nº s 2 e 3 e 202º do CPC: será anulado o respectivo acto, bem como os termos ulteriores, mas só os que dependam absolutamente do acto ou omissão cometida.
No caso dos autos, apesar de os Recorrentes não especificarem qual a parte do nº 4 do artigo 182º do CIRE que foi omitida – se a apreciação da proposta de rateio final pela secretaria, se a apreciação dos requisitos de validação da proposta pelo tribunal –, deduz-se da conclusão final das alegações de recurso (alínea X) que se pretendeu apenas arguir a invalidade do procedimento de rateio, sem, no entanto, por em causa a validade, em si, do despacho objecto de recurso.
Com efeito, como resulta provado, depois de junta aos autos a proposta de distribuição e rateio final por parte do AI e do comprovativo da publicação daquela na Área de Serviços Digitais dos Tribunais, o tribunal a quo passou de imediato a proferir o despacho de 27/02/2024, mediante o qual ordenou ao AI que cumprisse o disposto no artigo 183º do CIRE, sem que constasse dos autos o termo com a apreciação da proposta de rateio final pela secretaria, acto que está previsto, precisamente, no nº 4 do artigo 182º do CIRE. Apesar de o referido despacho não afirmar expressamente que “homologava” ou “validava” a proposta de rateio final apresentada pelo AI, podemos concluir que foi essa a intenção do tribunal ao determinar ao AI que desse cumprimento ao disposto no artigo 183º do CIRE, até porque já estava esgotado o prazo para os credores ou os insolventes impugnarem a proposta de rateio final, sem que algum deles o tivesse feito. Ou seja, podemos afirmar, sem dúvidas, que o tribunal a quo ultrapassou uma das fases da tramitação do rateio final, conforme regulamentada no artigo 182º do CIRE, omitindo, assim, a prática de um acto (apreciação pela secretaria da proposta de rateio final, elaborando, para o efeito, um termo nos autos, com remessa do processo ao juiz) prescrita no nº 4 do referido artigo, omissão essa potenciadora de nulidade processual por poder influir no exame (instrução e discussão) ou na decisão da causa.
Com efeito, a proposta apresentada pelo administrador de insolvência não é vinculativa para a secretaria nem para o tribunal, podendo este último (mesmo após a emissão de parecer favorável da secretaria) decidir de forma diferente para garantir o respeito pela sentença de graduação de créditos.​ Por isso, a omissão da apreciação fere o princípio do contraditório, da boa-fé e dos deveres processuais do tribunal e da secretaria, podendo justificar censura processual e anulação, caso se verifique prejuízo concreto para os sujeitos processuais.​
Em suma, a falta de apreciação da proposta de rateio final pela secretaria do tribunal pode conduzir à nulidade dos actos subsequentes, à necessidade de retificação, e à proteção dos direitos dos credores, mediante efetivo controlo jurisdicional e respeito pelos princípios processuais aplicáveis, como pode levar também a um enriquecimento sem causa dos credores à custa do insolvente, caso a proposta de rateio final não estivesse conforme ao decidido na sentença de verificação e graduação de créditos.
Mas, apesar de se entender que a omissão desse acto processual previsto na lei consubstancia uma nulidade secundária, o certo é que os ora Recorrentes, desde logo, não estavam em tempo para a arguir.
Na verdade, ao serem notificados da proposta de rateio final apresentada pelo AI, bem como do despacho de 27/02/2024 que ordenava ao AI para cumprir o disposto no artigo 183º do CIRE, no prazo de 10 dias, sendo previsível que a proposta já teria sido apreciada pela secretaria, caso os insolventes (através do seu mandatário) tivessem agido com a devida diligência – consultando os autos – poderiam ter logo tomado conhecimento que o tribunal havia decidido, sem que a secretaria tivesse elaborado o respectivo termo. Apesar de terem reagido rapidamente à notificação de 28/02/2024 (refª 160042538) para deduzir “oposição à proposta de rateio” – que, como vimos, foi tardia – não arguiram nesse articulado a nulidade processual resultante do não cumprimento do nº 4 do artigo 182º do CIRE. Apenas a mencionaram nas alegações recursivas, as quais tiveram como objecto um despacho proferido em data muito posterior à daquele, sendo certo que a referida nulidade processual nem sequer está coberta pelo despacho objecto de recurso, que apenas se limitou a afirmar que se havia esgotado o poder jurisdicional quanto à proposta de rateio.
Sobre esta questão, consolidou-se na jurisprudência o entendimento de que as nulidades processuais secundárias devem ser imediatamente arguidas, perante o tribunal que as pratica, sob pena de não poderem ser sindicadas posteriormente em sede de recurso. A arguição tardia conduz à sanação da nulidade e à impossibilidade do seu conhecimento pelas instâncias de recurso, excepto nas situações referidas em que a nulidade fica implicitamente coberta ou sancionada pela própria decisão de que se recorre, o que não é o caso dos autos, como vimos.[8]
Desta feita, improcedem, na totalidade, as alegações de recurso.
5. Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação improcedente, assim confirmando o despacho recorrido.
Custas da apelação a cargo dos Recorrentes.

Lisboa, 25 de Novembro de 2025
Nuno Teixeira
Susana Santos Silva
Paula Cardoso
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[1] Com o requerimento foi ainda junto um documento, em 4 folhas impressas, com o cálculo de juros comerciais, referindo-se o artigo 102º, nº 3, sem indicação do diploma legal, mas que se julga ser do Código Comercial.
[2] Print de consulta em www.citius.mj.pt/portal/consultas/consultascire.aspx.

[3] Cfr. MARCO CARVALHO GONÇALVES, Processo de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais, Coimbra, 2023, pág. 528.
[4] Cf. ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, 6ª Edição Actualizada, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 24.
[5] Cfr. TRG, Ac. de 15/02/2024 (proc. 309/13.3TBVLN-P.G1), disponível em www.direitoemdia.pt.
[6] Cf. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil Anotado, volume I, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 776.
[7] Cf. ABRANTES GERALDES, Ob. Cit., pág. 28. Para TEIXEIRA DE SOUSA, se “o tribunal profere uma decisão depois da omissão de um acto obrigatório, a decisão é nula por excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1, alínea d)), dado que conhece de matéria de que, nas circunstâncias em que o faz, não podia conhecer” (cfr. JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Manual de Processo Civil, volume I, Lisboa, 2022, pág. 44).
Também o STA, no Ac. de 16/09/2020 (proc. 01762/13.0BEBRG), disponível em https://www.dgsi.pt/jsta.nsf/-/caeac863c0b75e8b802585ee0044fddf, entendeu que nos casos em que a nulidade secundária só se torna conhecida com a prolação da sentença (por exemplo, a omissão de actos processuais que deveriam ter sido praticados antes da decisão final), a respectiva arguição pode ser feita nas alegações do recurso interposto da sentença, pois a nulidade fica implicitamente coberta ou sancionada pela própria sentença. Neste caso, a arguição é atempada e válida, pois o vício só se torna evidente com a decisão recorrida.
[8] Cfr neste sentido TRL, Ac. de 25/09/2025 (proc. 464/25.0T8OER.L1-2), onde se refere que a invocação tardia de nulidade secundária não pode ser conhecida pelo Tribunal da Relação se não tiver sido oportunamente apresentada na instância de origem, reafirmando que apenas as nulidades reveladas na sentença poderão ser arguidas nas alegações de recurso; TRP, Ac. de 10/07/2025 (proc. 2258/24.0T8VNG.P1), que diferencia nulidades principais de secundárias e realça que as secundárias (irregularidades) seguem o regime dos artigos 195º e 199º do CPC, exigindo arguição atempada, sob pena de sanação; e, TRG, Ac. de 10/07/2025 (proc. 6800/16.2T8GMR-C.G1), que sustenta que em matéria de tramitação processual, confirma a natureza secundária da nulidade decorrente da prática de um acto de violação da sequência legal, salientando a necessidade de arguição, sob pena de preclusão e sanação, todos publicados em www.dgso.pt.