Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4705/16.6T8LSB-A.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: LETRA PRESCRITA
QUIRÓGRAFO
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/23/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I- Sendo o título executivo uma letra prescrita utilizada como quirógrafo, não se pode julgar improcedente a oposição à execução com o fundamento de que o executado estava obrigado pelo aceite, ou seja, com fundamento cambiário.
II- Se o exequente, ao requerer, contra uma sociedade comercial e uma pessoa física, a execução de uma letra prescrita da qual apenas constava a referência a ‘transacção comercial’, se limita a dizer, no requerimento executivo, que “a dívida tem a causa que se extrai da letra ‘reforma da letra’, ou seja, um financiamento (desconto de letra) cujo pagamento, por via da reforma, foi prorrogado” não está a dar cumprimento à obrigação de expor os factos constitutivos da relação subjacente à obrigação cambiária prescrita (arts. 703/1-c e 724/1-e, do CPC).
III- E a falta de cumprimento da indicação de causa de pedir não pode ser suprida na contestação à oposição, ainda para mais se nela se tenta indicar como relação subjacente um desconto bancário, sem qualquer concretização.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

A 11/02/2016, o Banco-SA, requereu uma execução contra J-Lda, e J (este sem outra identificação para além da morada e n.º de identificação fiscal) com base numa letra prescrita, para obter o pagamento de 13.273,06€, dos quais 9500€ de capital e o resto de juros vencidos desde 12/09/2006.
Alegava para o efeito que: em 12/07/2006, a executada reconheceu dever ao exequente 9500€, tendo entregue (endossado) para o efeito, ao exequente, a letra que se junta como doc.1; a dívida reconhecida tem a causa que se extrai do doc.1: “Reforma da letra 9500€ com vencimento em 12/09/2006”. Ou seja, um financiamento (desconto de letra) cujo pagamento, por via da reforma, foi prorrogado; a obrigação exequenda venceu-se em 12/09/2006; apesar de por diversas vezes interpelada [sic] para o fazer, pelos serviços do exequente, os executados [sic] ainda deve [sic] à exequente o capital de 9500€; o referido título de crédito, ainda que como mero quirógrafo, vale como título executivo, nos termos do previsto no art. 703/1-c do CPC; além do capital os executados devem os juros vencidos, contados desde a data de entrada em mora - 12/09/2006 -, e vincendos até integral pagamento, à taxa legal em vigor de 4%.
Do doc.1 consta apenas o seguinte: no rosto da letra, da esquerda para a direita: um n.º com 18 algarismos, o escrito ‘local e data de emissão - importância’, tendo por baixo manuscrito: T. 2006/07/12 – 9500€. A seguir: ‘nome e morada ou carimbo do sacador’: J-Lda. Contribuinte n.º 000000000. A seguir; ‘saque nº’, ‘outras referências’ sem qualquer correspondência. Depois: ‘vencimento’: 2006/09/12. A seguir: ‘Valor’ Transacção comercial. Depois, impresso: ‘No seu vencimento pagara(ão) V.Exª(s) por esta única via de letra a’ e a manuscrito: nós ou à nossa ordem a quantia de nove mil e quinhentos euros. Depois o ‘local de pagamento / domiciliação’: 00100000 0000000000000. Depois um espaço para a assinatura do sacador: J-Lda, tendo por baixo uma assinatura que parece ser de JJES. Depois ‘(NIB n.º de identificação bancária): Bx. Depois: ‘preço, 0,50€. A seguir: ‘n.º de contribuinte do sacado – aceite n.º’ estando só preenchido o espaço debaixo do n.º de contribuinte. Por fim, um espaço destinado ao nome e morada do sacado, com os elementos do executado. A seguir: a referência ao […]posto de selo pago por meio de guia: 47,50€ - valor; data de liquidação: 2006-08-31. Depois um n.º mecanográfico. Na lateral esquerda, verticalmente, está escrito ‘aceite’ e por baixo um ‘rubrica’ ininteligível mas que é diferente daquela que consta debaixo da assinatura da sociedade sacadora também executada. No verso da letra, constam dois carimbos iguais com o nome da sociedade executada. O primeiro deles tem manuscrito por cima: sem despesas. Ambos têm por baixo mesma assinatura que a que consta por baixo do nome da sociedade no rosto da letra. No verso consta outro número mecanográfico.
Estes elementos foram obtidos por consulta do processo principal no citius, depois deste TRL ter obtido acesso a ele, já que o apenso foi enviado sem os mesmos.
O executado deduziu oposição à execução, excepcionando a prescrição da letra e dos juros que vão para além dos últimos 5 anos e a inconstitucionalidade da atribuição de exequibilidade ao quirógrafo da letra prescrita pelo art. 703/1-c do CPC e impugnando que lhe tivesse sido feito qualquer empréstimo, tanto que o exequente afirma no seu requerimento que a executada (que não o executado) reconheceu dever ao exequente os 9500€; conclui pela procedência das excepções e impugnação deduzidas e pela sua absolvição do pedido.
O B-SA contestou, impugnando as excepções deduzidas; e ocupa os restantes 36 artigos a impugnar a matéria de impugnação do executado; porque, face ao que consta do doc.1, se poderia pensar que o exequente se tinha equivocado na letra junta, importa esclarecer que nesta contestação ele diz: “Tal como referido, em sede de requerimento executivo, a letra que serve de base à presente execução emerge de um financiamento sob a forma de "desconto de letra", melhor identificado no texto do título cambiário em causa como "transacção comercial", cujo pagamento, por via da respectiva reforma, foi prorrogado pelo exequente - idem doc.1 do requerimento executivo.” E depois, naqueles artigos 36 a 53 diz, no essencial: No presente caso, a letra aceite pelo executado e endossada pelo sacador, o co-executado, J-Lda, incorpora uma obrigação abstracta, literal, autónoma e de livre circulabilidade — cfr. art. 46.° da LULL. O executado figura na indicada letra como aceitante e como tal é responsável cambiário directo — v. art. 47.° da LULL. No caso sub judice, o credor da quantia titulada pela letra é o exequente, na medida em que é o legítimo portador da mesma, por via de endosso efectuado pelo co-executado – J-Lda. Do teor da letra, resulta de forma inequívoca a cadeia de endosso realizado e por via do qual o exequente ficou investido na posse da mesma. Assim, o exequente apenas estabeleceu relação directa com aquele último endossante. Consequentemente, o exequente - na qualidade de descontador — entregou por antecipação, o montante titulado pela letra ao indicado co-executado – J-Lda. E, por conseguinte, é credor do descontário (co-executado J-Lda), relativamente à obrigação de restituição da quantia antecipada, tendo adquirido, portanto o título de crédito sobre a descontária/endossante e sobre terceiros — entenda-se, demais intervenientes, cfr. art. 47 LULL. O desconto bancário de letras representa uma situação em que este instrumento se apresenta como fonte de financiamento da empresa, a co-executada J-Lda. Sendo, a letra (prescrita) válida como título executivo contra a co-executada – J-Lda - porque, relativamente a este, contém a promessa duma prestação ou o reconhecimento duma dívida perante o credor (cfr. artigos 458/1 do CC e 703/1-c do CPC). Por sua vez, o exequente como legítimo portador, por endosso validamente prestado, da letra dada à execução, tem nessa qualidade o direito de accionar, também, o opoente — sacado/ aceitante da letra -, enquanto devedor principal, pois foi este que assumiu, em primeiro lugar, o compromisso de efectuar o pagamento da letra, na data do seu vencimento. De facto, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 47.° da LULL: "Na falta desse pagamento, o portador, mesmo no caso de ser ele o sacador, tem contra o aceitante um direito de acção resultante da letra, em relação a tudo o que pode ser exigido nos termos dos artigos 48 e 49. Dispõe, ainda, o artigo 14 da LULL que: "O Endosso transmite todos os direitos emergentes da letra" entenda-se, ao seu legítimo portador. Na verdade, o aceitante é responsável pelo pagamento do montante da letra, ainda que nada devesse ao sacador e deve-o pela promessa directa que fez ao tomador, firmando a letra com a sua assinatura, sendo a relação cartular uma obrigação abstracta, literal e autónoma e de livre circulabilidade, independente da causa que lhe deu origem. Em conclusão, resulta claro e evidente que a letra prescrita é exequível contra sacador/endossante e sacado/aceitante. Incumbia então ao embargante articular factos extintivos ou modificativos da obrigação exequenda, ilidindo, assim, a indicada presunção criada pelo próprio título executivo; não obstante, em momento algum logrou fazê-lo. Ora, a causa de pedir é a assinatura aposta na letra, que equivale a reconhecimento da dívida, nos termos do art. 458/2 do CPC. E a verdade é que, em momento algum o executado põe em crise a sua assinatura aposta na letra dada à execução; pelo que, para todos os efeitos legais, equivale a reconhecimento da divida. Se resultar da lei que a forma do acto constitutivo da relação fundamental é apenas exigida ad probationem, a promessa ou o reconhecimento produzirá os seus efeitos se constar de documento de igual ou superior força obrigatória — art. 364 do CC (Almeida Costa, Obrigações, 3ª ed, 306). É o que sucede na situação dos presentes autos: a forma exigida para o mútuo bancário é o documento particular e sua exigência, como se viu, tem apenas propósitos probatórios.
No despacho saneador considerou-se que o objecto do litígio era: (a) da prescrição do título cambiário e (b) do título cambiário enquanto documento particular; (c) da prescrição dos juros. E depois considerou-se que (i) a obrigação cambiária incorporada na letra dada à execução estava há muito extinta por prescrição; (ii) a letra prescrita era título executivo enquanto quirógrafo, porque, embora ela apenas contivesse a habitual frase ‘transacção comercial’ que não equivalia à causa da obrigação, no requerimento executivo o exequente identificou, embora de forma sumária, o negócio subjacente ao título (arts. 703/1-c e 724/1-e, do CPC); (iii) não havia nisso qualquer inconstitucionalidade, tanto que o Tribunal Constitucional (acórdão 408/2015, de 23/09/15, publicado no DR 1ª Serie, de 14/10/15), até tinha reconhecido exequibilidade a títulos particulares que entretanto tinham deixado de ser títulos executivos; e (iv) estava prescrito o direito de crédito do exequente quanto aos juros vencidos até 5 anos antes da data da citação do executado para a execução. Após fixou o seguinte tema de prova: saber se o exequente emprestou 9500€ ao executado, o que deu origem à emissão da letra junta aos autos.
Realizada a audiência final, foi depois proferida sentença julgando “os embargos de executado parcialmente procedentes e, consequentemente, ordenando o prosseguimento da execução e declarando a prescrição dos juros peticionados até 5 anos antes da data de citação do executado para a execução de que dependem estes autos de embargos de executado.”
O executado vem recorrer desta sentença, com as seguintes  alegações que reproduziu nas conclusões:
Vem o presente recurso interposto da sentença que indeferiu os embargos apresentados invocando que existia responsabilidade solidária do executado.
1-Na verdade lê-se na decisão recorrida que, pese embora, resultasse provado que o exequente não emprestou ao executado a quantia constante da letra junta aos autos e que havia dado origem à mesma, mesmo assim o executado era responsável pelo seu pagamento a título de responsabilidade solidária.
2- Saliente-se, desde já, que esse era o único tema da prova como consta do despacho saneador e que tendo sido considerado não provado deveria, obrigatoriamente, implicar a procedência dos embargos.
3- Ora no despacho saneador considerou-se prescrita a relação cambiária sendo que não tendo havido recurso daquele despacho o mesmo transitou em julgado.
4- Sendo que o tribunal, naquele mesmo despacho considerou não estar prescrita a obrigação enquanto documento particular.
6- Contudo a sentença recorrida fazendo tábua rasa desse facto considerou a existência jurídica de responsabilidade solidária com fundamento nas normas constantes da LULL julgando improcedentes os embargos única e exclusivamente por esse motivo.
7/8 - Todavia, andou mal o tribunal a quo: valendo o título dos autos unicamente como documento particular não existe, nem a sentença recorrida em passo algum refere essa possibilidade, responsabilidade solidária do executado.
9- Pois em lado algum da lei essa solidariedade está estatuída.
10- À excepção da responsabilidade solidária estatuída na LULL.
11- Contudo essa responsabilidade só existe se existir relação cambiária válida entre as partes.
12- Ora essa relação por decisão transitada em julgado prescreveu pelo que, logo, não é invocável no caso vertente.
13- Deste modo todas as remissões e fundamentos legais constantes da sentença recorrida não se aplicam ao caso vertente configurando errada aplicação do Direito
14- E, inclusive, violação de caso julgado.
15- Deste modo deve ser revogada a sentença recorrida.
O exequente contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso, com a seguinte síntese [que se transcreve na íntegra na parte que interessa, apenas com algumas simplificações]:
III- A condenação do executado no pagamento da quantia exequenda [sic] não advém – não poderia advir - da sua solidariedade enquanto avalista desde logo porque o título que serve de base à presente execução não é, nem nunca foi, um título cambiário, mas um documento particular (quirógrafo) ao qual a lei atribui força executiva nos termos previstos no art. 703/1-c do CPC.
IV- Tal prescrição não pode ter sido ignorada pelo tribunal a quo até porque foi por este, desde logo, decidida em sede de despacho saneador, transitado em julgado.
V- Uma vez admitida como título executivo por decisão judicial transitada em julgado, a letra dos autos vale enquanto tal para todos os executados – circunstância com a qual o executado se conformou ao não recorrer do despacho saneador.
VI- O executado nunca questionou, por outro lado, a validade / existência do título executivo / documento particular contra a sua pessoa.
VII- Identicamente, constando “os factos essenciais constitutivos da relação causal” do requerimento executivo e resultando os mesmos do próprio título, o executado jamais os colocou em crise; pelo contrário, reconheceu que assinou a letra, reconheceu que o exequente emprestou a quantia nela aposta à sociedade subscritora e reconheceu que a avalizou de forma voluntária e consciente as obrigações dali decorrentes.
VIII- A condenação [sic] do executado no pagamento da quantia exequenda (capital e juros não prescritos) decorre, pois, da solidariedade legal expressa voluntariamente pelas partes no documento particular dado à execução – cfr. artigo 513 do CC – e não da responsabilidade cambiária do avalista prevista na LULL.
IX- Acresce que, o contrato subjacente à letra em apreço tem, inegavelmente, natureza comercial atenta a qualidade da subscritora (sociedade comercial) e a relação subjacente à letra (transacção comercial) – cfr. artigos 425 e 455 do Código Comercial.
X- Sendo, também por esta via, necessariamente solidária a responsabilidade entre os executados - cfr. art. 100 do CCom.
XI- Em síntese, o executado é responsável pelo pagamento da quantia exequenda não por força da prescrita relação cambiária mas porque a obrigação exequenda - constante do documento particular dado à execução - não se encontra prescrita, à luz dos artigos 309-d e 310, ambos do CC.
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Questão a decidir: se os embargos deviam ter sido julgados procedentes, por não se ter provado a relação subjacente à obrigação cambiária prescrita.
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Foram dados como provados os seguintes factos que importam à decisão daquela questão:
1. A letra dada à execução a que foi oposta a presente oposição venceu-se e deveria ter sido paga no dia 12/09/2006, cfr. doc.1 que aqui se dá por integralmente reproduzido.
2. O exequente instaurou, em 20/02/2016, com base na letra referida, acção executiva.
3. A letra referida em 1 não foi paga na sua data de vencimento.
4. O exequente não emprestou qualquer quantia ao executado.
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A sentença recorrida tem a seguinte fundamentação, em síntese na parte que interessa:
“[E]stabelece o art. 28 da [LULL] que ‘O sacado obriga-se pelo aceite a pagar a letra à data do vencimento.’
Na falta de pagamento, o portador, mesmo no caso de ser ele o sacador, tem contra o aceitante um direito de acção resultante da letra, em relação a tudo o que pode ser exigido nos termos dos artigos 48 e 49 [da LULL]”.
Daqui resulta que o aceite é a declaração cambiária pela qual o sacado se obriga a pagar a letra ao portador.
A obrigação cambiária do sacado nasce com o aceite.
Dito isto, e apesar de o executado não ter usufruído dos montantes titulados na letra, não deixa de ser responsável pelo seu pagamento.
Ou seja, o sacado ao apor a sua assinatura no local destinado ao aceitante, aceitou responsabilizar-se pelo pagamento da letra, constituindo-se assim devedor dos montantes nela apostos.
Ora, aqui chegados, resta concluir que os presentes embargos terão necessariamente, nesta parte, que improceder.”
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Decidindo:
Como decorre do que antecede, o executado tem razão na crítica que dirige à fundamentação da sentença. Depois de, no saneador, ter dito que a obrigação cambiária incorporada na letra dada à execução estava há muito extinta por prescrição, acaba por julgar improcedente a oposição à execução porque o executado estava obrigado pelo aceite, ou seja, com fundamento cambiário. A fonte da obrigação do executado, para a sentença recorrida, é a actuação do executado a nível cambiário, que já estava extinta.
Mais ainda, a sentença é contraditória com o saneador: este deixou prosseguir a causa apenas para resolver a questão de saber se o exequente tinha emprestado 9500€ ao executado, o que deu origem à emissão da letra junta aos autos. Ora, ao não ter dado como provado este quesito, na lógica do assumido, devia ter considerado que não havia nenhuma relação subjacente à obrigação cambiária prescrita.
Mas não há, nisto, violação do caso julgado, porque a execução foi, desde o início, uma execução de uma letra prescrita, como quirógrafo, e não uma execução cambiária, e o saneador não disse o contrário, limitou-se a constatar que assim era. Há contradições lógicas na fundamentação das duas peças processuais, mas elas não se concretizam numa violação de um caso julgado.
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Da inexequibilidade do título e da inexistência de causa de pedir
O art. 703/1-c do CPC diz que “à execução apenas podem servir de base […] os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo; […]”
E o art. 724/1-e do CPC, bem lembrado pela sentença recorrida, diz que no requerimento executivo, dirigido ao tribunal de execução, o exequente […] expõe sucintamente os factos que fundamentam o pedido, quando não constem do título executivo […].”, em claro paralelo com o art. 57? que dispõe o mesmo para a petição da acção declarativa e se refere à causa de pedir da mesma.
Portanto, quando, como no caso, o título de crédito não é executado como tal, mas como quirógrafo, o exequente, se do documento não constarem os factos constitutivos da relação subjacente, tem de os expor no requerimento executivo. Esta exposição vale, pois, neste caso, como causa de pedir da execução.
No caso dos autos, como se disse no despacho saneador, aquilo que constava do título executivo não era nada. A simples referência a transacção comercial é um simples pró-forma, sem qualquer conteúdo material, pois que não elucida minimamente quais são os factos constitutivos da relação subjacente. E não importa que o exequente, nas contra-alegações do recurso, venha tentar fazer renascer esta referência, sem sequer tentar argumentar como é que tal referência concretiza uma relação subjacente entre o exequente e o executado. Aliás, não podendo deixar de saber que não é assim como ele diz, o exequente, no requerimento executivo, não faz qualquer referência à expressão ‘transacção comercial’ que constava da letra.
No requerimento executivo, o exequente altera a realidade das coisas, dizendo que “a dívida reconhecida tem a causa que se extrai do doc.1: “Reforma da letra 9500€ com vencimento em 12/09/2006”. Ou seja, um financiamento (desconto de letra) cujo pagamento, por via da reforma, foi prorrogado.”
Ora, como decorre da transcrição do doc.1, dele não consta a parte colocada entre aspas pelo exequente, isto é, nele não se diz que se trata de uma reforma de letra e, por isso, não existindo a parte pretensamente citada entre aspas, não se pode deduzir dela aquilo que o exequente deduz.
Ao remeter para algo que não consta do doc.1, como se dele constasse, o exequente está a reconhecer (i), por um lado, que o que lá consta não identifica a relação subjacente e, (ii), por outro lado, que aquela que ele indica não serve para o efeito, pois que se apoia em algo que lá não consta.
Note-se que a obrigação subjacente exequenda resultaria presumida pela conjugação da promessa de pagamento que consta do doc.1 com a alegação do exequente de que a razão da promessa desse pagamento era x e com a norma que prevê a presunção legal (art. 458/1 do CC). Portanto, a alegação da relação subjacente é um dos factos base da presunção que o exequente obrigatoriamente tem de alegar para que se possa ter por assente a obrigação exequenda.
É isto que é explicado por Lebre de Freitas, depois de dizer que a promessa de cumprimento e o reconhecimento de dívida constituem presunções legais que, como tal, invertem o ónus da prova, mas não dispensam o ónus da alegação (A acção executiva,
7.ª edição, Gestlegal, Set2017, nota 48-B, pág. 75).
Ou seja:
“Sendo que a inversão do ónus da prova não dispensa do ónus da alegação e que o autor tem de alegar, na petição inicial, a causa de pedir (CPC, art. 467/1-c [=> agora 552/1-d na redacção de 2013]), o credor que, tendo embora em seu poder um documento em que o devedor reconhece uma dívida ou promete cumpri-la sem indicar o facto que a constituiu, contra ele propuser uma acção, deverá alegar o facto constitutivo do direito de crédito - o que é confirmado pela exigência de forma do art. 458/2 do CC, que pressupõe o conhecimento da relação fundamental. Este facto ficará provado por apresentação do documento, isto é, por ilação tirada, nos termos do art. 458/1 do CC, da declaração representada nesse documento conjugada com a alegação do credor, a qual, ao mesmo tempo que satisfaz uma exigência processual, é um acto integrador da fatispécie da norma probatória do art. 458 do CC, isto é, um acto processual com mera relevância substantiva […]. Não se verifica, pois, o perigo de a prova se fazer relativamente a qualquer possível causa constitutiva do direito, pois se faz apenas relativamente àquela que for invocada pelo credor, e configura-se assim uma prova por presunção. […] O devedor terá de fazer prova do contrário para que a presunção seja ilidida […] A ilação que permite dar como provado o facto constitutivo da obrigação não é extraída directamente da declaração do devedor, mas sim do conjunto formado por esta declaração e pela alegação do credor” (A confissão no direito probatório, Coimbra Editora, 1991, págs. 387 a 394, espec. págs. 390 a 392; ou A acção declarativa (pág. 245, nota 26): […] No caso da promessa de cumprimento ou do reconhecimento de dívida, a invocação da causa pelo credor completa a base da presunção, assim se configurando a presunção e não a dispensa de prova (A confissão, n.º 19.2.2.A […]).
E ainda (Lebre de Freitas, AD, pág. 243):
Presunção legal (art. 344-1 CC). Consiste na ilação que a lei tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (art. 349 CC). Este não tem de ser provado, bastando que o seja o facto (exterior à previsão normativa em que se integra o facto presumido) que serve de base à ilação. […] A presunção legal apela sempre a regras da experiência que, atendido o elevado grau de probabilidade ou verosimilhança da ligação concreta entre o facto que constitui base da presunção e o facto presumido, permitem dar este por assente quando o primeiro é provado). […]”. Introdução, 4.ª ed, págs. 180/181: “De qualquer modo, o ónus da prova só em princípio repousa nas mesmas regras distributivas do ónus da alegação, pois tal deixa de acontecer quando se dá a sua inversão (arts. 344 CC e 345-1 CC), isto é, quando passa a caber à parte contrária àquela que com ele estava originariamente onerada, por disposição da lei (presunção ou dispensa legal) (62) ou, no campo do direito disponível, por convenção das partes (63): a inversão do ónus da prova não dispensa nunca o ónus da alegação (64), pelo que não está dispensado de os alegar aquele a quem, nos termos do art. 342 CC, aproveitam os factos não carecidos de prova (65). […] (62) A distinção entre as figuras da presunção e da dispensa de prova, bem como a definição do facto impeditivo, não são fáceis e aparecem frequentemente confundidas na doutrina. A presunção estabelece-se entre um facto que é objecto de prova (base da presunção) e outro que dela é dispensado, considerada a ligação que, de acordo com a experiência, normalmente existe entre ambos […]. (65) Tem assim o credor de dívida reconhecida sem indicação do facto que a constituiu o ónus de alegar este, não obstante não ter de o provar (art. 458-1 CC)”]
Isto aplica-se directamente, quer às acções declarativas, quer às execuções. Neste sentido, dizendo o que antecede, agora para a execução, veja-se de novo Lebre de Freitas, A acção executiva, 7.ª edição, Gestlegal, 2017, págs. 76/77, complementado a 184:
“Quanto aos títulos de crédito prescritos dos quais não conste a causa da obrigação, há que distinguir consoante a obrigação a que se repor­tam emerja ou não dum negócio jurídico formal. No primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não constitui título executivo (arts. 221-1 CC e 223-1 CC). No segundo caso, porém, a autonomia do título executivo em face da obri­gação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento de dívida (art. 458-1 CC) leva a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação dever ser invocada na petição executiva [como causa de pedir da acção…] e poder ser impugnada pelo executado [nos termos do art. 731…].”
Era esta posição, de Lebre de Freitas, que era seguida, no essencial, de há muito, pela maioria da doutrina e da jurisprudência nas execuções e foi ela que foi consagrada na lei, por força do art. 703-c do CPC, na redacção que lhe foi dada pela reforma de 2013 do CPC.
E deve continuar a ser seguida, não só por necessidade de coerência, mas pela necessidade de alegação/invocação da causa de pedir, de formação de caso julgado (Lebre de Freitas, A confissão, pág. 391, nota 26) suficientemente identificado e de controlabilidade da validade formal da relação fundamental em causa.
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Para além da inexistência da invocação da relação subjacente que resulta do facto de se remeter para algo que não existe, a conclusão tirada pelo exequente estava errada: o financiamento que resultaria de uma reforma da letra, seria, logicamente, ao sacador, não ao sacado, pelo que, mesmo que houvesse financiamento à executada (através da reforma da letra), esse não seria a causa de obrigação do executado.
Por sua vez, a segunda tentativa de enunciação expressa da causa de pedir, agora na contestação à oposição, é, por um lado, manifestamente ilegítima: não é num articulado de oposição à execução que o exequente pode introduzir uma nova causa de pedir, ao menos sem o acordo do executado, acordo que obviamente não existe [“se o exequente não a invocar, ainda que a título subsidiário,  no requerimento executivo,  não será possível fazê--lo na pendência do processo […] sem o acordo do executado (art. 264), por tal impli­car alteração da causa de pedir.” – Lebre de Freitas, A acção executiva, citado, pág. 77]; por outro lado, o empréstimo invocado, através de um desconto bancário, que aliás é coisa diferente da reforma de uma letra, teria também como contraparte a executada, não o executado, pelo que, de novo, não se traduziria numa relação subjacente que ligasse o exequente ao executado. 
Sublinhe-se o comportamento processual do exequente: segundo ele, a relação subjacente (necessariamente também quanto ao executado…) é (i) uma transacção comercial [mas não diz qual, nem como é que o executado participou nela, nem a invocava no requerimento executivo]; (ii) é também uma reforma de letra ‘referida’ no título [mas tal não consta do título e o exequente não diz como é que o executado se comprometeu nela perante o exequente, para mais extracambiariamente]; e (iii) é ainda um desconto bancário [não invocado no requerimento executivo, mas na contestação à oposição e não diz como é que ocorreu e de que forma é que o executado se vinculou perante o exequente, para mais extracam-biáriamente, sendo que, normalmente, se houver favor anterior ao desconto, a relação extracartular de favor é entre o favorecente e o favorecido]. E alega tudo isto como se tudo fosse o mesmo e tudo fosse compatível.
Em suma, do requerimento executivo não constavam os factos constitutivos da relação subjacente – que vinculasse o executado ao exequente - à obrigação cambiária prescrita pelo que, (i) o título executivo não reunia as condições legais exigidas para o efeito, (ii) não existia causa de pedir, (iii) ultrapassada que estava a fase do despacho saneador [não se pode levantar, na fase do recurso da sentença a questão da ineptidão da petição inicial, por força da preclusão decorrente do art. 200/2 do CPC], a consequência da omissão da causa de pedir, isto é, dos factos constitutivos da obrigação subjacente exequenda, é que não se pode dizer que ela existe (pois que nem se sabe qual é), pelo que, (iv), a execução dessa obrigação não pode prosseguir.
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Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revoga-se a sentença recorrida e em sua substituição julga-se procedente a oposição à execução deduzida pelo executado, julgando-a extinta em relação a ele (as consequências desta decisão neste apenso de oposição terão de ser retiradas pelo tribunal recorrido na execução em relação ao que aí exista contra o executado, designadamente, se for o caso, o levantamento da penhora de bens que lhe tenham sido penhorados).
Custas, na vertente de custas de parte (não existem outras), no recurso, nos embargos de executado e na execução em tudo quanto tem a ver com o executado, pelo exequente.

Lisboa, 23/05/2019
Pedro Martins
Laurinda Gemas
Gabriela Cunha Rodrigues