Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
367/21.7YUSTR.L1-PICRS
Relator: ANA MÓNICA MENDONÇA PAVÃO
Descritores: PRÁTICAS DE PUBLICIDADE EM SAÚDE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/05/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I - Nos termos do disposto no artigo 75.º/1 do RGCO, a 2ª instância apenas conhece da matéria de direito, não podendo, assim, reapreciar a matéria de facto julgada pelo tribunal de 1ª instância, sem prejuízo de poder tomar conhecimento das nulidades previstas no artigo 410º/2 do Código de Processo Penal.
II - Constitui elemento essencial da configuração subjectiva da infracção prevista no art. 7º do  DL nº 238/2015, de 14 de Outubro (que estabelece o regime jurídico a que devem obedecer as práticas de publicidade em saúde), o facto de o agente, não sendo prestador de cuidados de saúde, ter necessariamente de assumir tal qualidade, isto é, comportar-se enquanto tal, o que resulta do art. 4º/3 do citado diploma legal. 
(da exclusiva responsabilidade da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção da Propriedade Intelectual e da Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:
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 I. RELATÓRIO
IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS impugou judicialmente a decisão da ENTIDADE REGULADORA DA SAÚDE (doravante, ERS), que a condenou no pagamento de uma coima única no valor de €15 000 pela prática de três contraordenações previstas e punidas pelo artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 238/2015, de 14 de Outubro, em violação do disposto no artigo 4.º n.º 3, artigo 6.º e artigo 7.º n.º 1 alínea c), todos do citado diploma legal.
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Foi proferida sentença pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (TCRS), que absolveu a arguida das referidas contra-ordenações.
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Inconformada com tal decisão, veio a Entidade Reguladora da Saúde (ERS) dela interpôr o presente recurso, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
A) A sentença recorrida considerou não estarem demonstrados factos capazes de se enquadrarem nas categorias sancionatórias expressas na lei, por entender que não ficou demonstrado que a Arguida tivesse a qualidade de prestadora de cuidados de saúde ou tivesse se tivesse voluntariamente apresentado como tal.
B) Não encontra respaldo na lei a interpretação segundo a qual os deveres decorrentes do artigo 6.º e 7.º do diploma apenas devem ser cumpridos pelos prestadores de cuidados de saúde ou por aqueles que assumam essa qualidade sem o serem.
C) Na verdade, o artigo 4.º, n.º 3 estabelece um tipo de infração que é independente da prática publicitária em causa.
D) Ou seja, o artigo 4.º, n.º 3 determina que a publicidade é sempre ilícita – ou seja, mesmo que concretamente não viole qualquer dos requisitos que a lei impõe quanto ao seu conteúdo e forma – se o interveniente for um prestador de cuidados de saúde que atua ilegalmente (neste caso, não cumpra com os requisitos de atividade e funcionamento, designadamente por não se encontrar registado na ERS ou por não deter licença de funcionamento) ou se não for de todo prestador de cuidados de saúde, mas se apresentar como tal.
E) Ora, trata-se de uma contraordenação distinta das que podem resultar da violação das disposições do artigo 6.º e 7.º.
F) Nada obsta a que um interveniente possa legitimamente difundir publicidade em saúde (nos termos da definição constantes do artigo 2.º, al. b)) sem que seja prestador de cuidados de saúde e sem que se esteja a apresentar como tal.
G) Veja-se, por exemplo, a publicidade amplamente difundida por companhias que operam no setor dos seguros de saúde ou dos cartões de saúde: difundem informação dirigida à proteção ou manutenção ou prevenção ou tratamento de doenças, mas não são nem se apresentam como prestadores de cuidados de saúde.
H) Ainda assim, nessa difusão de publicidade, estas empresas não podem deixar de ser consideradas intervenientes e não pode deixar de se afirmar que tal publicidade está vinculada às obrigações de transparência, fidedignidade e licitude, objetividade e rigor científico, bem como aos demais requisitos previstos na lei.
I) A qualidade de prestador de cuidados de saúde ou a aparência voluntária dessa qualidade, sem a deter, não são elementos do tipo (objetivo e subjetivo) das infrações decorrentes da violação do disposto no artigo 6.º e 7º do Decreto-Lei n.º 238/2015.
J) A sentença recorrida erra quando decide absolver a Arguida das infrações ao disposto nos artigos 6.º e alínea c) do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 238/2015, única e exclusivamente por considerar que a Arguida não era prestadora de cuidados de saúde, nem se apresentou como tal.
K) Caberia à sentença a quo apreciar se as mensagens publicitárias constantes dos autos e descritas nos factos provados são passíveis de ser consideradas “prática publicitária em saúde” à luz do disposto no artigo 2.º, al. b) do Decreto-Lei n.º 238/2015 e, nesse caso, se aquelas mensagens violam ou não o disposto no artigo 6.º e alínea c) do n.º 1 do artigo 7-º do mesmo diploma.
L) Defende a ERS que as mensagens constantes da publicidade analisada, designadamente as referentes à oferta de “tratamento” e “terapêutica adequada”, com indicação de “cura”, “em três minutos” e com “taxa de sucesso 100% garantida” consubstanciam uma prática publicitária em saúde, porquanto são objetivamente alusivas à proteção ou manutenção da saúde ou à prevenção e tratamento de doença.
M) Entende a ERS que o teor das informações/mensagens publicitárias em apreço (e constantes dos factos provados) difundidas pela Arguida não são suficientemente idóneas para o completo e efetivo esclarecimento dos seus destinatários nomeadamente quanto aos tipos de “tratamento” mencionados, as garantias de “cura” ou tipos de “terapêutica” aí referenciados.
N) Entende a ERS que as mensagens publicitárias em apreço, da forma como se encontram redigidas, abstratamente consideradas – segundo o critério do homem médio – , são suscetíveis de induzir em erro os seus destinatários quanto às verdadeiras caraterísticas dos métodos/tratamentos difundidos pela IURD, nomeadamente no que respeita à sua “capacidade curativa”, sendo, portanto, suscetíveis de os induzir, em erro, no sentido da existência de uma verdadeira cura fornecida pela Arguida.
O) Nem é claro ou transparente se, na obtenção da cura publicitada, são utilizados métodos clínicos tradicionais ou terapêuticas não convencionais reconhecidas pela comunidade científica, realizadas, portanto, por profissionais habilitados na área da saúde.
P) A ERS considera ainda que as mensagens publicitárias em apreço não possuíam o rigor científico que lhe deveria estar subjacente, traduzindo, ao invés informações que não são aceites pela comunidade técnico-científica, e, assim, suscetíveis de induzir os destinatários em erro acerca da utilidade e da finalidade real dos atos publicitados.
Q) Nessa medida, deverá concluir-se, ao contrário do que decidiu a sentença a quo que a Arguida violou o princípio do rigor científico da informação publicitada, consagrado no artigo 6.º, do Decreto-Lei n.º 238/2015, contraordenação prevista e punida pelo artigo 8.º, n.º 1, alínea a) do mesmo diploma.
R) Entende a ERS que o recurso a referências como “cura”, “há cura para a sua dor”, “taxa de sucesso garantida”; “terapêutica adequada”, “verdadeira cura para o seu caso depressivo”, “Fique livre da depressão em 3 minutos” (cfr. factos provados e) e f) da sentença recorrida) é, de per si, suscetível de criar no público em geral a ideia de que qualquer pessoa pode, através da Arguida obter a cura, garantida e definitivamente, para a patologia médica de que é detentora.
S) Ademais, entende a ERS que as mensagens publicitárias em apreço, da forma como se encontram redigidas, abstratamente consideradas – segundo o critério do homem médio –, não permitem extrair, com rigor, do seu teor, todas as informações necessárias e idóneas ao cabal esclarecimento do destinatário da mesma, nomeadamente quanto às verdadeiras caraterísticas dos métodos/tratamentos publicitados pela Arguida.
T) Ao amplamente publicitar a demonstração de garantias de cura no tratamento da depressão, a Arguida difundiu práticas de publicidade em saúde suscetíveis de induzir em erro os seus destinatários, violando as disposições conjugadas do artigo 5.º, do artigo 7.º, n.º 1, alínea c) do Decreto-Lei n.º 238/2015, contraordenação prevista e punida pelo artigo 8.º, n.º 1, alínea a) do mesmo diploma.
U) Ao contrário do que considerou a sentença recorrida, haverá que concluir-se estar igualmente preenchido o elemento subjetivo do tipo, em ambos os casos, porquanto a Arguida não atuou com a diligência e cuidado que lhe eram exigíveis, não tendo desenvolvido todos os esforços possíveis e exigíveis ao cumprimento das obrigações legalmente impostas e previstas no código da publicidade, bem como no regime jurídico das práticas de publicidade em saúde.
V) A Arguida atuou, assim, com negligência, porquanto deveria (e tinha capacidade par) ter elaborado as mensagens publicitárias de forma clara, completa e inteligível, sem dar azo a interpretações ambíguas ou duvidosas, por forma a que o(s) seu(s) destinatário(s) se encontrasse(m) em condições de entender que os métodos apresentados e publicitados não se reconduziam a um verdadeiro serviço de saúde, nem tao pouco garantissem uma verdadeira cura, fisiológica, da depressão, como é entendida pela medicina tradicional; nem se substituindo, de forma alguma aos métodos de medicina tradicionais ou terapêuticas não convencionais reconhecidas pela comunidade científica, não só desta patologia como demais patologias médicas.
W) Não tendo encetado todos os esforços possíveis e exigíveis ao cumprimento de tal obrigação legal
X) Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 6º, e artigo 7.º, n.º 1, alínea c) e artigo 8.º, n.º 1, alínea a), todos do Decreto- Lei n.º 238/2015, de 14 de outubro.
Terminou pedindo a revogação da decisão recorrida e a condenação da arguida pela prática das mencionadas contraordenações.
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A arguida respondeu ao recurso, apresentando as conclusões que se transcrevem:
I - Entende a ERS, em sede de recurso, que através dos conteúdos reproduzidos nos autos, a IURD: (i) divulgou informações “que não são aceites pela comunidade científica”, e (ii) levou a cabo práticas de publicidade proibidas e “suscetíveis de induzir os utentes em erro quanto à decisão a adotar”.
II. O entendimento propugnado pela ERS em sede de recurso jamais poderia merecer acolhimento pelo Tribunal ad quem, logo prima facie, face à matéria facto dada como provada na sentença recorrida, consolidada e estabilizada já nestes autos, a qual, de resto, não é sindicada no recurso apresentado pela ERS.
III. Efetivamente, a entender-se, por mero exercício hipotético de raciocínio, que se verificaria a prática de duas contraordenações com elementos diversos, a condenação pelas mesmas dependeria, naturalmente, da existência de matéria provada da qual fosse possível extrair, no plano factual, os elementos constitutivos de uma conduta passível de ser reputada como dolosa ou, no limite, negligente.
IV. Matéria essa que carecia de ser devidamente abordada no relatório da sentença e, subsequentemente, de ser dada como provada no elenco da matéria factual assente e devidamente fundamentada na sentença recorrida.
V. Ora, é certo que a sentença recorrida decidiu no sentido exatamente oposto, tendo discorrido amplamente e de forma sustentada sobre a completa ausência do elemento subjetivo do tipo. Veja-se, precisamente neste sentido, a flagrante comprovação fática que se encontra definitivamente fixada na sentença a quo, como facto não-provado, no ponto Y da mesma.
VI. É dizer, a sentença recorrida afastou, na sua decisão da matéria de facto, qualquer elemento que pudesse configurar uma conduta dolosa ou negligente.
VII. O recurso deve assim improceder uma vez que incide exclusivamente sobre matéria de direito, mas não encerra suficiente factualidade que pudesse suportar as conclusões jurídicas que se visam atingir.
VIII. É que a sentença a quo não só não contém elementos que sustentem factualmente o substrato subjetivo típico exigível em sede de imputação de condutas contraordenacionais como, pelo contrário, ativamente fundamenta a inexistência de tais elementos intelectuais ou cognoscitivos / volitivos, fixando-a como matéria de facto assente.
IX. Assim é, porque o recurso em apreço limita-se a sustentar um entendimento jurídico diverso da sentença recorrida, sem sindicar de forma idónea a decisão proferida pelo Tribunal a quo em matéria de facto.
X. Deixam-se por cumprir os requisitos elencados nos números 1 e 3 do artigo 412.º do CPP, sendo certo e absolutamente unânime na nossa jurisprudência superior que, em matéria de recurso, incumbe ao Recorrente um ónus naturalmente exigente de especificar, com clareza e precisão, os temas que pretende ver alterados no recurso por si apresentado, mormente em matéria de facto.
XI. Assim, não se afigura juridicamente possível que a ERS venha, em sede de recurso, pedir a condenação da IURD pela prática de uma qualquer contraordenação quando a sentença recorrida não considerou provada qualquer matéria factual em sede de culpa.
XII. Concluiu, por isso, muitíssimo bem o Tribunal a quo pela «falta de demonstração de factos capazes de serem subsumidos às categorias sancionatórias expressas na lei, pelo que vai a Arguida absolvida de todas as infrações» (cf. p. 26 da sentença recorrida).
XIII. Conclusão que se mostra de manter na instância recursiva, pois, como acima se notou, foi a própria Recorrente quem, com um recurso circunscrito à matéria de direito, aceitou tal matéria de facto!
Sem prejuízo de tudo o que antecede ser já de si suficiente para ditar a improcedência do recurso, sempre se dirá o seguinte,
XIV. A sentença recorrida é exímia e rigorosa; diremos, mesmo, um repositório de bom senso no modo como muito bem se perspetivou e ajuizou o caso sub judice, não merecendo, como, o menor reparo – isto, claro está, na modesta perspetiva da Recorrida.
XV. Não faz sentido desde logo o juízo de censura brandido pela Recorrente a um pretenso erro do Tribunal a quo quando este procede a uma interpretação, acertadíssima aliás e até literal, dos elementos dos tipos legal contraordenacional que aqui se discutem.
XVI. De facto, acompanha-se como integralmente correto o entendimento do Tribunal e segundo o qual se afirma que: «só adquirem potencial sancionatório, quando quem as pratica, quando menos, assuma ou exteriorize a qualidade de prestador de cuidados de saúde (…) se tal qualidade não é assumida pelo pretenso prestador e/ou não é perspetivada junto do potencial interlocutor (utente da saúde), estamos no pleno domínio da liberdade: liberdade de expressão e liberdade de escolha» (cf. p. 22 de 27 da sentença recorrida).
XVII. É de manter o correto entendimento que o Tribunal fez quanto à atividade da Igreja Universal do Reino de Deus e o seu posicionamento face ao que é, também, uma questão das confissões religiosas.
XVIII. A atividade religiosa da IURD, em sindicância pela ERS, inscreve-se claramente no âmbito da assistência a pessoas afetadas a nível emocional e/ou psicológico.
XIX. É legítima e fundada a convicção da IURD, à semelhança de qualquer confissão religiosa, de que através da prossecução da fé e da espiritualidade é possível alcançar um maior bem-estar generalizado quanto às várias vertentes da sua vivência, nomeadamente a nível da consecução de um estado psicológico e espiritual pleno e sadio.
XX. E igualmente legítimo será, no quadro de uma plena afirmação da liberdade religiosa, defender (a IURD) que pela participação nos sacramentos e cultos religiosos seja associada a procura da salvação de cada um através da descoberta de um caminho para o seu bem-estar interior, saúde e prosperidade.
XXI. O lugar paralelo de que, com mundividência, se socorreu a douta Sentença recorrida – no apelo à “reza do nervo torcido” – é, aliás, um bom exemplo, para ilustrar que, para lá do mundo religioso até, como as crenças, históricas, regionais e de cariz sociológico, devem constituir um espaço de liberdade que à ERS compete respeitar!
XXII. Outrossim, também as comunicações da IURD em análise nos presentes autos revestem um pendor marcadamente espiritual, que resulta das próprias páginas em que se encontram insertas e, igualmente, da própria natureza da IURD, enquanto pessoa coletiva religiosa.
XXIII. Sendo de sublinhar, como bem fez a douta sentença recorrida, que os membros da IURD não assumem o papel de profissionais de saúde nem visam induzir em erro ou influenciar quaisquer outras pessoas no sentido de influenciar a escolha de cuidados médicos tradicionais em prol de atos de fé.
XXIV. É que, no quadro legal e jurídico vigente, somente se consideram como publicidade as comunicações ou divulgações realizadas no escopo de uma atividade estritamente comercial. Este entendimento, que avulta com absoluta clareza da própria letra a norma, tem sido aliás adotado de forma unânime pela jurisprudência e doutrina nacionais há largos anos, desde a vigência do Código da Publicidade.
XXV. Sucede que, para estar preenchido o conceito jurídico de publicidade, é necessário que a comunicação seja desenvolvida no contexto de uma atividade de cariz comercial da entidade que publicite e com o objetivo de conduzir o destinatário a adquirir bens ou serviços e, por conseguinte, a obter um resultado económico (lucro) inscrito em tal atividade comercial.
XXVI. Nada disso se verifica no caso da IURD, pois, como elege o probatório, a IURD é uma pessoa coletiva religiosa que se acha, por força de tal estatuto jurídico, completamente distanciada de uma atividade comercial.
XXVII. Do mesmo passo, as comunicações que são objeto dos presentes autos somente dão a conhecer os centros de ajuda da IURD e divulgam a fé e o credo religioso por esta professado.
XXVIII. Assim, a IURD não promoveu um serviço remunerado ou outra iniciativa enquadrada no plano comercial e/ou lucrativo.
XXIX. E, não estando preenchidos os elementos que caracterizam o conceito jurídico de publicidade, deve excluir-se desde logo as condutas da IURD em questão do âmbito de aplicação do DL 238/2015, bem como se deve afastar necessariamente a tipicidade objetiva das contraordenações imputadas.
Mais se diga,
XXX. Que entende a ERS, com pleno desacerto, que a conduta in casu configura uma violação do disposto no artigo 6.º do referido DL 238/2015, sustentando que nas páginas pertencentes à IURD consta informação não aceite pela comunidade científica.
XXXI. A IURD jamais se afirmou perante o público como sendo uma entidade prestadora de cuidados de saúde e não se vislumbra nos autos nenhum elemento sequer indiciador de que a IURD se afirme, de forma alguma, nessa qualidade. Bem pelo contrário, aliás, a sentença decidiu na sua matéria de facto precisamente em sentido diametralmente oposto!
XXXII. A IURD não presta, nem pretende transmitir a ideia de que presta, qualquer tipo de serviços que configurem cuidados de saúde ou qualquer tipo de ato médico, nem dispõe ao seu serviço quaisquer profissionais de saúde credenciados que prestem ou que se arroguem prestar esses mesmos cuidados.
XXXIII. A página da IURD é clara quanto à natureza da Igreja Universal do Reino de Deus.
XXXIV. Na página “Saindo da Depressão” são divulgados dados e informações justamente de base científica reiterada mundialmente.
XXXV. A IURD não se arroga, no âmbito das mesmas, de qualquer tipo de conhecimento médico nem de qualquer intuito de convencer os destinatários das mesmas acerca da autoridade científica da IURD sobre qualquer assunto médico.
XXXVI. Os conteúdos in casu, bem como o auxílio que nos mesmos é disponibilizado, assumem uma vertente exclusivamente espiritual e em nada visam interferir no campo da medicina ou da ciência.
XXXVII. O artigo 6.º do DL 238/2015 visa punir, tão-somente, condutas em que as comunicações endereçadas ao público tenham o alcance de ativamente rejeitar dados ou informações cientificamente comprovadas ou de difundir ativamente uma determinada informação como sendo cientificamente comprovada, o que não se verifica nos presentes autos.
XXXVIII. As considerações de caráter espiritual, nomeadamente testemunho de fiéis, inserem-se plenamente no âmbito da convicção religiosa propriamente dita, percetível pelas informações das páginas e respetivo contexto.
XXXIX. Não se verifica nas comunicações in casu uma prática de publicidade que falsamente se refira a uma demonstração ou garantia de cura, no plano médico-científico, em violação da norma contida no artigo 7.º, n.º 1, al. c) do DL 238/2015.
XL. As páginas em apreço não exprimem qualquer tipo de fundamentação científica errónea que seja direcionada ao engano do público.
XLI. Não se tecem considerações de teor científicos nas quais se sustentem qualquer tipo de garantias ou curas do foro medicinal.
XLII. Os testemunhos e comunicações constituem opiniões de pessoas acerca do efeito positivo que as iniciativas espirituais possam ter tido no seu bem-estar, sem que seja dada qualquer tipo de justificação médica que possa ser tida como válida,como se compreende plenamente pela análise completa de qualquer uma das páginas.
XLIII. Os rituais religiosos referidos jamais atribuem direta ou causalmente a tais elementos quaisquer capacidades curativas em sentido médico, antes enquadrados como uma prática sagrada e de cariz religioso.
XLIV. Pelo que as comunicações da IURD não se subsumem a qualquer tipo de mensagem ou publicidade no domínio da saúde e, consequentemente, não se verificam os tipo de ilícitos objetivos imputados.
Aliás!
XLV. A liberdade religiosa constitui um direito basilar que se encontra consagrado no plano constitucional, no artigo 41.º da CRP, consagrado no elenco dos direitos, liberdades e garantias, e bem assim na Lei da Liberdade Religiosa.
XLVI. A liberdade religiosa é desdobrada pelo próprio artigo 41.º, n.º 1 da CRP em três vertentes essenciais – liberdade de consciência, liberdade de religião e liberdade de culto.
XLVII. Abrangendo igualmente a expressão religiosa e a promoção das respetivas ideias e conteúdos, esta liberdade não é apta a ser limitada ou coartada por uma lei, atenta a sua natureza e enquadramento como direito, liberdade e garantia, apenas passível de restrição dentro de apertadíssimos limites.
XLVIII. Assume cabal relevância a liberdade de expressão e de imprensa das igrejas e confissões religiosas, que surge no âmbito dos direitos coletivas neste campo, bem como a liberdade de culto propriamente dita.
XLIX. Sendo precisamente neste plano em que se situa a questão em apreço nos presentes  autos, na medida em que a condenação da IURD pela prática das contraordenações em apreço, como supra atalhado, configura, indubitavelmente, um manifesto entrave ao direito de liberdade religiosa que a CRP expressamente consagra.
L. Não podem as condutas da IURD ser sujeitas a punição a título de infração contraordenacional, sob pena, em contrário, da violação do direito à liberdade religiosa, consagrado no artigo 41.º da Constituição a República Portuguesa, cuja hierarquia constitucional prevalece, a todos os títulos, sobre a disciplina do DL 238/2015.
Por fim,
LI. Alegando a ERS a verificação de uma conduta violadora de uma prática proibida em publicidade, nos termos do artigo 8.º, n.º 1, al. b), tal circunstância sempre determinaria, necessariamente, a absorção da contraordenação restante.
LII. Donde se conclui, a título subsidiário e sem conceder, que tão-somente poderia vir a ser imputada à IURD, em abstrato, uma única infração contraordenacional, nos termos do artigo 8.º, n.º 1, al. b).
Concluiu que deve ser negado provimento ao recurso e em consequência pela mantida a decisão recorrida.
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O Ministério Público respondeu ao recurso pugnando pela sua improcedência e concluindo nos seguintes termos [transcrição]: 
1. O objeto do presente recurso é delimitado pelas conclusões da sua motivação e restrito à matéria de direito, sem prejuízo da cognição pelo Tribunal ad quem dos vícios constantes do texto da decisão recorrida;
2- Corresponde a uma solução plausível de direito a premissa de que, ao abrigo da conjugação com as previsões dos art.ºs 2.º, alínea a) e 4.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 238/2015, de 14 de outubro, o cometimento das infrações previstas nos art.ºs 6.º e 7.º, n.º 1, alínea c), desse diploma, seja a da efetiva assunção pela interveniente da qualidade de prestadora de serviços de saúde;
3 - Não se demonstra existir na douta sentença, de forma evidente, os erros de direito apontados pela recorrente.
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Neste Tribunal da Relação, o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto, aderindo à fundamentação aduzida nas alegações do Ministério Público junto da primeira instância, emitiu parecer consonante no sentido da improcedência do recurso.
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Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
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II. QUESTÕES A DECIDIR
O âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (cf. artigos 402º, 403º e 412º/1 do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. artigos 119º/1, 123º/2 e 410º/ 2 als. a), b) e c) do Código de Processo Penal).
Estando em causa o recurso de sentença que conheceu de impugnação judicial de uma decisão administrativa proferida em processo de contra-ordenação, importa ainda ter presente o disposto no artigo 75º/1 do D.L. n.º 433/82, de 27/10 (RGCO), nos termos do qual, em regra e salvo se o contrário não resultar deste diploma, a 2ª instância apenas conhecerá da matéria de direito.
Assim, nos termos da disposição legal citada, este Tribunal da Relação não pode reapreciar a matéria de facto julgada pelo Tribunal recorrido, sem prejuízo de poder tomar conhecimento das nulidades previstas no artigo 410º nº 2 do Código de Processo Penal.
Atentas as conclusões apresentadas, importa decidir a seguinte questão:
- Se a decisão recorrida violou o disposto nos arts  6º, 7º/1 c) e 8º/1 a) do DL 238/2015, de 14 de Outubro.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1. FACTOS PROVADOS
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
A. Nos dias 20 e 21 de setembro de 2019, na página de endereço eletrónico: https://saindodadepressao.pt/, propriedade de IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS, encontrava-se difundida informação sobre depressão, nomeadamente o seguinte: O refúgio de uma pessoa depressiva costuma ser… Antidepressivos. Mas que estas pessoas encontraram uma saída”, associada aos testemunhos de C… R…, S… e C….
B. (…) no testemunho de C…., o mesmo relatou o seguinte: “[…] veio-me à cabeça procurar um Centro de Ajuda. Quando lá cheguei, recebi uma oração e uma mensagem de fé, que imediatamente me fizeram sentir uma nova pessoa. Não tardou até que ficasse livre da depressão, dos remédios, daquele sofrimento e hoje considero que sou um novo homem. Não dependo de medicamentos para viver bem, hoje não importa a luta que enfrente, pois vivo certo da vitória.”.
C. (…) no testemunho de S…., foi por aquela relatado o seguinte: “[…] conheci o Centro de Ajuda através da minha mãe, comecei a seguir as orientações dadas e o meu interior começou a mudar (…) passei a dormir bem e a ter razão para viver. Nasceu dentro de mim amor próprio, felicidade e passei a amar-me a mim e ao próximo, tudo porque conheci o Centro de Ajuda”.
D. (…) no testemunho de C…, a mesmo relatou o seguinte: “Não dormia, dava voltas na cama, até que, um dia, ao assistir televisão, conheci o trabalho do Centro de Ajuda. Durante seis meses assistir à programação do Centro de Ajuda, ao mesmo tempo que frequentava a igreja católica, videntes e cartomantes. Mas, foi depois de ouvir vários testemunhos que resolvi ir. Na primeira vez foi como se um peso tivesse saído de cima de mim e hoje estou livre da depressão, tenho paz interior e sou feliz.”.
E. (…) na sobredita página, associada à interrogação “Existirá cura para a depressão?”, encontrava-se associada seguinte afirmação: “Deve perseguir-se as causas da depressão e não os sintomas. No Centro de Ajuda, milhares de pessoas já encontraram não apenas a terapêutica adequada, como a verdadeira cura para o seu caso depressivo”.
F. (…) a tanto se associando as seguintes expressões: “gratuito”, “sem remédios”, “sem exames”, “acompanhamento personalizado”, “sem internamento”, e, ainda, a “taxa de sucesso 100% garantida”.
G. (…) encontrava-se ainda a seguinte afirmação: “Tratamos cada caso de forma isolada, com discrição e de forma gratuita. Procure-nos e conheça a nossa abordagem e cura”.
H. (…) quando consultado o separador “Casos Reais” da sobredita página, encontravam-se disponibilizados numerosos testemunhos, alguns em formato escrito (acompanhado de fotografia de rosto), outros em formato vídeo com relato na primeira pessoa, onde se encontravam reladas as experiências vivenciadas após a obtenção de ajuda da IURD, no tratamento de várias patologias médicas.
I. (…) e no canto superior direito da sobredita página, eram visíveis duas ligações, respetivamente para a página da rede social “Facebook”https://www.facebook.com/saindodadepressaoportugal/?modal=admin_todo_to ur) e para a página da rede social  “Youtube” (https://www.youtube.com/channel/UCD4ArigAn4u9XWwUw4nD8rg?view_as=sub scriber).
J. (…) em ambas se encontravam difundidos vários conteúdos relacionados com a depressão, nomeadamente a mensagem: “Fique livre da depressão em 3 minutos”.
K. (…) também no endereço eletrónico: https://www.igrejauniversal.pt/, se apresentavam conteúdos muito semelhantes aos do “Saindo da depressão”, nomeadamente: na página inicial, foi identificada a interrogação “Você sabia que a depressão tem cura?”, associada à seguinte mensagem: “Você também tem passado por uma situação difícil? Se sente triste e acumula angústias? Então, saiba que há cura para a sua dor. Participe todas as terças-feiras na Universal do Templo Maior ou em uma Universal mais próxima de si”.
L. (…) consultado o separador intitulado “Casos Reais”, aí se encontravam disponíveis vários testemunhos, os quais relatavam que a IURD, na sua ótica, ajudou no tratamento e “cura” de várias patologias, como Depressão; Dores lombares e coluna; Lordose, Escoliose, Osteoporose; Cancro (leucemia, linfoma); Nódulos; Ideação suicida; Hemorragias; “Fissuras” no tubo digestivo; Paralisia parcial dos membros inferiores; Doença Venosa Crónica; Problemas oftalmológicos (ou “problemas de visão”); Diabetes; Doenças dermatológicas (ou “doença de pele”).
M. (…) sendo destacados como métodos: “Gota do Milagre”; “Fogueira Santa”; “Tratamento com Água”; “Unção com o Óleo Consagrado”, nos seguintes testemunhos: “[…] O que fiz para mudar esta situação? Comecei a frequentar as reuniões da Universal e a obedecer às orientações que me eram dadas, mas foi a Fogueira Santa que transformou por completo a minha vida. Hoje, sinto-me realizado pessoal e profissionalmente. Saldei as dívidas que tinha por causa da clínica, casei e tenho uma família linda. Já não sofro de depressão, não sou dominado pela tristeza, nem me isolo mais. Hoje, sou feliz e realizado!”.
N. (…) “[…] entretanto, comecei a participar nas reuniões, às quartas-feiras e aos domingos, e a fazer o Tratamento com a Água, bebendo e lavando os olhos e o corpo. Com a graça de Deus, fui curada de tudo! Posso dizer que a minha vida e o meu interior foram totalmente transformados. Mas só quando o meu interior foi transformado é que aconteceu um milagre na minha saúde. Antes também era uma pessoa muito nervosa, tudo me enervava, mas Deus libertou-me. Agora tenho paz dentro de mim! Tenho, acima de tudo, a certeza da salvação e o Espírito Santo dentro de mim.”.
O. (…) “[…] sofria com problemas nas pernas, pois tinha varizes internas, derivadas da diminuição da circulação sanguínea, o que me dava formigamento e me fazia perder a força nas pernas. Quando fiz exames, o médico disse-me que teria de fazer uma cirurgia para ajudar a melhorar a circulação sanguínea, tendo a mesma sido marcada. Mas, entretanto, fiz uso da água com a Gota do Milagre, que recebi na Universal, e, quando cheguei ao hospital para fazer a cirurgia, o médico repetiu o exame, tendo-me depois dito que os outros exames deviam estar todos errados, pois eu não tinha necessidade de fazer a cirurgia. Sei que regressei a casa curada e não precisei fazer nenhuma cirurgia às pernas.”.
P. (…) “[…] tinha uma fissura no sistema digestivo que me causava muitas dores e hemorragias. Embora existisse tratamento médico para este problema, ele era muito caro e teria que me tornar dependente de alguém durante o período em que o tratamento estivesse a ser realizado. Eu não aceitei essa situação e usei a minha fé, bebendo da Água. Sim, foi ao participar no Tratamento da Água que fui curada, algo que aconteceu de um dia para o outro, eu fui, literalmente, curada! Desapareceram as dores e todas as hemorragias das quais sofria.”.
Q. (…) “[…] embora tenha ficado com medo, preocupada e tivesse perdido o apetite, fiz a corrente da Cura, fazendo uso da fé e tomando a Gota do Milagre, eu sabia que iria ser curada. No entanto, para remover o tumor, fui submetida a uma cirurgia e, quando acordei, o médico disse-me que me abriram, procuraram e não encontraram nada. O tumor tinha desaparecido! Não fiz quimioterapia, radioterapia, absolutamente nada, até os médicos ficaram incrédulos! Fui diagnosticada com um adenocarcinoma, um tumor maligno no estômago, mas hoje, posso comprovar pela fé e pela medicina que estou completamente curada”.
R. (…) “[…] fui curada através da água abençoada. Bebia a água e ungia o local da enfermidade e, por vezes, lavava-me com ela, porque eu sabia que, através daquela água, iria ser curada. Eu tinha essa certeza no meu coração, porque já estava farta de sofrer e de tomar tantos medicamentos. E, certamente, hoje posso afirmar: estou totalmente curada.”.
S. (…) “[…] ao conhecer o trabalho da Igreja Universal através da rádio, comecei a fazer as correntes de Unção com o Óleo Consagrado e aprendi a usar a fé. Como consequência, comecei a ter paz, fiquei livre das insónias e da depressão. Recebi muitas orações e fui muito bem orientada e acompanhada pelos pastores e obreiras da Universal. Hoje, posso afirmar que estou curada e que venci o cancro.”.
T. (…) “[…] vinha à igreja com muitas dificuldades, mas todas as terças-feiras recebia orações e a Unção com o Óleo Consagrado. Participei também com os meus votos no Altar, sempre pedindo a Deus o livramento das dores, que eram horríveis. E assim aconteceu, não demorou muito e fiquei completamente livre, curada. Hoje faço tudo, tenho muita disposição, já não sou mais nervosa e também a insónia teve um fim”.
U. IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS é uma associação religiosa com sede em Lisboa, constituída por escritura pública de 24 de julho de 1990, publicada no Diário da República, III Série, n.º 229, de 3.10.1990, e destina a sua atividade à realização de atividades e iniciativas de cariz religioso nas suas Igrejas e Templos, bem como à difusão do credo religioso que lhe subjaz, como organiza diversos tipos de atividades enquadradas na sua ação social.
V. (…) não se encontra inscrita na Entidade Reguladora da Saúde, como entidade prestadora de cuidados de saúde ou responsável pela exploração de estabelecimento prestador de cuidados de saúde.
W. (…) e não dispõe ao seu serviço, em nenhuma das instalações por si detidas ou exploradas, quaisquer profissionais de saúde habilitados e qualificados profissionalmente para a prestação de cuidados de saúde.
X. (…) e não tem antecedentes contraordenacionais.
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2. FACTOS NÃO PROVADOS
O tribunal recorrido considerou não provado que:
Y. IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS, ao difundir os conteúdos nas páginas eletrónicas, assumia-se enquanto prestadora de cuidados de saúde, e não atuou com a diligência e cuidado que lhe eram exigíveis, não tendo desenvolvido todos os esforços possíveis e exigíveis ao cumprimento das obrigações legalmente impostas e previstas no código da publicidade, bem como no regime jurídico das práticas de publicidade em saúde.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Defende a recorrente Entidade Reguladora da Saúde que a sentença recorrida enferma de erro de julgamento de direito, por ter efectuado errada interpretação do regime jurídico em causa nos autos, estabelecido pelo D.L. nº 238/2015, de 14 de Outubro.
Alega nas conclusões infra identificadas que:
A)  A sentença recorrida considerou não estarem demonstrados factos capazes de se enquadrarem nas categorias sancionatórias expressas na lei, por entender que não ficou demonstrado que a arguida tivesse a qualidade de prestadora de cuidados de saúde ou tivesse se tivesse voluntariamente apresentado como tal.
B) Não encontra respaldo na lei a interpretação segundo a qual os deveres decorrentes do artigo 6.º e 7.º do diploma apenas devem ser cumpridos pelos prestadores de cuidados de saúde ou por aqueles que assumam essa qualidade sem o serem.
C) O artigo 4.º, n.º 3 estabelece um tipo de infração que é independente da prática publicitária em causa.
D) O artigo 4.º, n.º 3 determina que a publicidade é sempre ilícita – ou seja, mesmo que concretamente não viole qualquer dos requisitos que a lei impõe quanto ao seu conteúdo e forma – se o interveniente for um prestador de cuidados de saúde que atua ilegalmente (neste caso, não cumpra com os requisitos de atividade e funcionamento, designadamente por não se encontrar registado na ERS ou por não deter licença de funcionamento) ou se não for de todo prestador de cuidados de saúde, mas se apresentar como tal.
E) Trata-se de uma contraordenação distinta das que podem resultar da violação das disposições do artigo 6.º e 7.º.
I) A qualidade de prestador de cuidados de saúde ou a aparência voluntária dessa qualidade, sem a deter, não são elementos do tipo (objetivo e subjetivo) das infrações decorrentes da violação do disposto no artigo 6.º e 7º do Decreto-Lei n.º 238/2015.
J) A sentença recorrida erra quando decide absolver a arguida das infrações ao disposto nos artigos 6.º e alínea c) do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 238/2015, única e exclusivamente por considerar que a arguida não era prestadora de cuidados de saúde, nem se apresentou como tal.
K) Caberia à sentença a quo apreciar se as mensagens publicitárias constantes dos autos e descritas nos factos provados são passíveis de ser consideradas “prática publicitária em saúde” à luz do disposto no artigo 2.º, al. b) do Decreto-Lei n.º 238/2015 e, nesse caso, se aquelas mensagens violam ou não o disposto no artigo 6.º e alínea c) do n.º 1 do artigo 7º do mesmo diploma.
L) Defende a ERS que as mensagens constantes da publicidade analisada, designadamente as referentes à oferta de “tratamento” e “terapêutica adequada”, com indicação de “cura”, “em três minutos” e com “taxa de sucesso 100% garantida” consubstanciam uma prática publicitária em saúde, porquanto são objetivamente alusivas à proteção ou manutenção da saúde ou à prevenção e tratamento de doença.
M) Entende a ERS que o teor das informações/mensagens publicitárias em apreço (e constantes dos factos provados) difundidas pela arguida não são suficientemente idóneas para o completo e efetivo esclarecimento dos seus destinatários nomeadamente quanto aos tipos de “tratamento” mencionados, as garantias de “cura” ou tipos de “terapêutica” aí referenciados.
N) Entende a ERS que as mensagens publicitárias em apreço, da forma como se encontram redigidas, abstratamente consideradas – segundo o critério do homem médio – , são suscetíveis de induzir em erro os seus destinatários quanto às verdadeiras caraterísticas dos métodos/tratamentos difundidos pela IURD, nomeadamente no que respeita à sua “capacidade curativa”, sendo, portanto, suscetíveis de os induzir, em erro, no sentido da existência de uma verdadeira cura fornecida pela arguida.
Q) Nessa medida, deverá concluir-se, ao contrário do que decidiu a sentença a quo que a arguida violou o princípio do rigor científico da informação publicitada, consagrado no artigo 6.º, do Decreto-Lei n.º 238/2015, contraordenação prevista e punida pelo artigo 8.º, n.º 1, alínea a) do mesmo diploma.
V) A arguida atuou, assim, com negligência, porquanto deveria (e tinha capacidade para) ter elaborado as mensagens publicitárias de forma clara, completa e inteligível, sem dar azo a interpretações ambíguas ou duvidosas, por forma a que o(s) seu(s) destinatário(s) se encontrasse(m) em condições de entender que os métodos apresentados e publicitados não se reconduziam a um verdadeiro serviço de saúde, nem tão pouco garantissem uma verdadeira cura, fisiológica, da depressão, como é entendida pela medicina tradicional; nem se substituindo, de forma alguma aos métodos de medicina tradicionais ou terapêuticas não convencionais reconhecidas pela comunidade científica, não só desta patologia como demais patologias médicas.
W) Não tendo encetado todos os esforços possíveis e exigíveis ao cumprimento de tal obrigação legal.
X) Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 6º, e artigo 7.º, n.º 1, alínea c) e artigo 8.º, n.º 1, alínea a), todos do Decreto-Lei n.º 238/2015, de 14 de outubro.
Como decorre do alegado, a questão a decidir prende-se directamente com o âmbito de aplicação do DL nº 238/2015, de 14 de Outubro, que estabelece o regime jurídico a que devem obedecer as práticas de publicidade em saúde (cf. art. 1º).
A arguida IURD foi condenada pela ERS pela prática de três contraordenações previstas e punidas pelo artigo 8.º do citado Decreto-Lei n.º 238/2015, em violação do disposto no artigo 4.º/3, artigo 6.º e artigo 7.º/1 alínea c), todos do mesmo diploma legal.
O tribunal de 1ª instância veio a absolver a arguida de tais infracções, podendo ler-se, em sede de fundamentação jurídica, na sentença posta em crise, que:
“Neste conspecto, assume particular pertinência o disposto no artigo 4.º, n.º 3, quando refere que a publicidade é considerada ilícita sempre que o interveniente a favor de quem a prática de publicidade em saúde é efetuada assumir a qualidade de prestador de cuidados de saúde, sem efetivamente o ser, ou, sendo prestador de cuidados de saúde, não cumpra os requisitos de atividade e funcionamento, designadamente não se encontre devidamente registado na Entidade Reguladora da Saúde e não seja detentor da respetiva licença de funcionamento, quando aplicável.
Avulta, evidentemente, a caracterização de interveniente (conferir artigo 2.º, alínea a), do mesmo diploma), como aquele que assume, sem efetivamente o ser, a qualidade de prestador de cuidados de saúde. Desta mesma premissa, resulta o âmbito de aplicação do artigo 6.º, bem como do artigo 7.º, n.º 1, alínea, do aludido Decreto-Lei n.º 238/2015.
Ora, sem extensas considerações que se aferem como ociosas e despiciendas, importa concluir pela falta de demonstração de factos capazes de serem subsumidos às categorias sancionatórias expressas na lei, pelo que vai a Arguida absolvida de todas as infrações”.
Subscrevemos o entendimento do tribunal de 1ª instância.
A interpretação das normas contraordenacionais em causa tem de ser feita em termos sistemáticos, considerando os objectivos e princípios gerais a que devem obedecer  as práticas de publicidade em saúde, tal como definido no diploma em apreço.
Como consta do preâmbulo do DL 238/2015, «o presente decreto-lei visa acautelar os direitos e os interesses legítimos dos utentes relativos à protecção de saúde e à segurança dos actos e serviços, através de normas necessárias, adequadas e proporcionais ao imperativo constitucional de protecção da saúde e dos direitos dos consumidores. Nesta medida, toda e qualquer prática publicitária em saúde deve nortear-se pelo interesse do utente, abstendo-se de condutas que pressuponham ou criem falsas necessidades de consumo.
(…)
O direito à informação em saúde surge como um dos principais corolários do princípio da autonomia, reconhecido a todos os indivíduos. Tal direito deve contribuir para que todos os utentes passam participar de modo informado e responsável nos diferentes processos de tomada de decisão sobre a sua saúde e a sua vida.»
Sob a epígrafe “princípios gerais das práticas de publicidade em saúde”, dispõe o art. 3º do DL nº 238/2015 que:
As práticas de publicidade em saúde e a informação nestas contida deve reger -se pelos seguintes princípios: a) Transparência, fidedignidade e licitude; b) Objetividade; c) Rigor científico.
Cada um destes princípios é objecto de regulação nos preceitos seguintes, respectivamente nos artigos 4º, 5º e 6º.
Sob a epígrafe “Princípios da transparência, da fidedignidade e da licitude da informação” estabelece o art. 4º que:
1 - De forma a garantir o direito do utente à proteção da saúde, à informação e à identificabilidade, as práticas de publicidade em saúde devem identificar de forma verdadeira, completa e inteligível o interveniente a favor de quem a prática de publicidade em saúde é efetuada, de modo a não suscitar dúvidas sobre a natureza e idoneidade do mesmo.
2 - No caso de o interveniente ser prestador de cuidados de saúde, a prática de publicidade em saúde não pode suscitar dúvidas sobre os atos e serviços de saúde que se propõe prestar e sobre as convenções e demais acordos efetivamente detidos, celebrados e em vigor, habilitações dos profissionais de saúde e outros requisitos de funcionamento e de exercício da atividade.
3 - A publicidade é considerada ilícita sempre que o interveniente a favor de quem a prática de publicidade em saúde é efetuada assumir a qualidade de prestador de cuidados de saúde, sem efetivamente o ser, ou, sendo prestador de cuidados de saúde, não cumpra os requisitos de atividade e funcionamento, designadamente não se encontre devidamente registado na Entidade Reguladora da Saúde e não seja detentor da respetiva licença de funcionamento, quando aplicável.
E sob a epígrafe “princípio do rigor científico da informação” dispõe o art. 6º que:
Na mensagem publicitada apenas devem ser utilizadas informações aceites pela comunidade técnica ou científica, devendo evitar-se todas as referências que possam induzir os utentes a quem a mesma é dirigida em erro acerca da utilidade e da finalidade real do ato ou serviço.
Só depois surge a norma contraordenacional que constitui o art. 7º com a epígrafe “Práticas de publicidade em saúde”, nos termos do qual:
1 — São proibidas as práticas de publicidade em saúde que, por qualquer razão, induzam ou sejam suscetíveis de induzir em erro o utente quanto à decisão a adotar, designadamente:
a) Ocultem, induzam em erro ou enganem sobre características principais do ato ou serviço, designadamente através de menções de natureza técnica e científica sem suporte de evidência da mesma ou da publicitação de expressões de inovação ou de pioneirismo, sem prévia avaliação das entidades com competência no sector;
b) Aconselhem ou incitem à aquisição de atos e serviços de saúde, sem atender aos requisitos da necessidade, às reais propriedades dos mesmos ou a necessidade de avaliação ou de diagnóstico individual prévio;
c) Se refiram falsamente a demonstrações ou garantias de cura ou de resultados ou sem efeitos adversos ou secundários.
Da conjugação dos preceitos transcritos com o objecto e âmbito definido no art. 1º e os considerandos constantes do preâmbulo extraímos que o interveniente (definido no art. 2º do diploma como aquele que beneficia da, ou participa na, concepção ou na difusão de uma prática de publicidade em saúde)  a favor de quem a prática de publicidade em saúde é efetuada tem de assumir a qualidade de prestador de cuidados de saúde, sem efetivamente o ser, ou sendo prestador de cuidados de saúde, não cumpra os requisitos de actividade e funcionamento (v.g. registo na ERS e licença de funcionamento).
Donde, o estatuído no nº 3 do art. 4º, acerca do princípio da transparência, fidedignidade e licitude da informação, na medida em que este princípio é um dos que rege as práticas de publicidade em saúde e a informação nelas contidas [como definido no art. 3º a)], não pode deixar de constituir pressuposto da subsunção da conduta na norma contra-ordenacional (art. 7º).
Não colhe, pois, a tese sustentada pela recorrente de que a qualidade de prestador de cuidados de saúde ou a aparência dessa qualidade sem a deter não são elementos do tipo (cf. conclusão I) do recurso), porquanto tal interpretação não tem amparo na letra nem no espírito da lei, cujo escopo é acautelar os direitos e interesses legítimos dos doentes, bem como a sã concorrência entre os prestadores de cuidados de saúde (cf preâmbulo do DL nº 238/2015).
Seguimos, assim, de perto o entendimento do tribunal a quo, segundo o qual constitui elemento essencial da configuração subjectiva da infracção, o facto de o agente, não sendo prestador de cuidados de saúde, ter necessariamente de assumir tal qualidade, isto é, comportar-se enquanto tal, o que resulta do art. 4º/3 do DL 238/2015  (cf. pág 21 da sentença).
Neste conspecto, refere-se na sentença que:
“Se o diploma legal procura disciplinar a atividade de práticas de publicidade em saúde desenvolvidas por quaisquer intervenientes, naturalmente tais práticas só adquirem potencial sancionatório, quando quem as pratica, quando menos, assuma ou exteriorize a qualidade de prestador de cuidados de saúde.
Com efeito, se tal qualidade não é assumida pelo pretenso prestador e/ou não é perspetivada junto do potencial interlocutor (utente da saúde), estamos no pleno domínio da liberdade: liberdade de expressão e liberdade de escolha. As pessoas, não só são livres de prosseguir os tratamentos ou práticas que entendem melhor para a sua saúde, ainda que inaceitáveis do ponto de vista científico (vide recentemente as inúmeras deambulações terapêuticas proporcionadas pela COVID-19), como se impõe o respeito pela liberdade de expressar um pensamento quanto aquilo que entendem como mais adequado e apropriado para a defesa e proteção da saúde, nisto se materializando, em traços singelos, a consagração plasmada nos artigos 37.º e 41.º, da Constituição da República Portuguesa.
O cidadão é livre de acreditar, e mesmo defender publicamente, tratamentos médicos rejeitados pela ciência. Só não pode publicitar tal pensamento, quando de forma explícita ou implícita, assuma a qualidade de prestador de cuidados de saúde, porque assim recorre a um argumento de autoridade e fica investido de uma confiança junto do potencial utente, qualidade essa de que se arroga, mas não possui”.
Nesta linha, não podemos extrair da factualidade assente que a ora arguida, associação religiosa, que não prestador de cuidados de saúde, assumiu esta última qualidade. Como afirmou o tribunal recorrido, não pode confundir-se ciência e religião, assim como a resposta que as pessoas buscam no campo da religião é uma resposta espiritual e não científica, sendo livres de procurar esta ou aquela, desde que as opções sejam claras e não susceptíveis de induzir em erro.
Ora, atendendo ao vertido nos factos provados designadamente factos A., E., K. a T., afigura-se-nos que a divulgação exposta nas páginas electrónicas da arguida se apresenta num quadro puramente espiritual, apelando-se ao uso da fé, orações e milagres, com testemunhos de pessoas que declaram ter obtido a cura de doenças fazendo uso da sua fé e desses milagres e orações. Estamos, pois, no domínio do religioso/espiritual e não de qualquer tratamento médico-medicamentoso, pelo que ali não se descortina o propósito de a arguida se fazer passar por prestador de cuidados de saúde. Entendimento contrário poderia conduzira a assacar responsabilidades a todas as confissões religiosas, que por definição apelam à salvação/cura/redenção do indivíduo com base na sua crença numa entidade superior ou divina.
Por outra banda, é de rejeitar a conclusão da recorrente acerca do elemento subjectivo do tipo, alegando que a arguida não actuou com a diligência e cuidado que lhe eram exigíveis e que, por isso, agiu com negligência porquanto “deveria (e tinha capacidade) ter elaborado as mensagens publicitárias de forma clara, completa e inteligível sem dar azo a interpretações ambíguas ou duvidosas, por forma a que o(s) seu(s) destinatário(s) se encontrasse(m) em condições de entender que os métodos apresentados e publicitados não se reconduziam a um verdadeiro serviço de saúde, nem tao pouco garantissem uma verdadeira cura, fisiológica, da depressão, como é entendida pela medicina tradicional; nem se substituindo, de forma alguma aos métodos de medicina tradicionais ou terapêuticas não convencionais reconhecidas pela comunidade científica, não só desta patologia como demais patologias médicas.” (conclusão V das alegações de recurso).
Tal objecção da recorrente não é mais do que uma impugnação da matéria de facto, na medida em que não se conforma com o facto dado como não provado (facto Y), cujo teor é o seguinte: “IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS, ao difundir os conteúdos nas páginas eletrónicas, assumia-se enquanto prestadora de cuidados de saúde, e não atuou com a diligência e cuidado que lhe eram exigíveis, não tendo desenvolvido todos os esforços possíveis e exigíveis ao cumprimento das obrigações legalmente impostas e previstas no código da publicidade, bem como no regime jurídico das práticas de publicidade em saúde.”
Ora, como acima referimos, nos termos do disposto no artigo 75.º/1 do RGCO o recurso de sentença em processo de contraordenação/recurso de impugnação judicial é somente de direito, funcionando o Tribunal da Relação como tribunal de revista, sem prejuízo da apreciação dos vícios previstos no artigo 410.º do CPP, por via do previsto no n.º 2 do mesmo normativo. Em todo o caso, a matéria de facto provada ou não provada fica estabilizada na sentença da 1.ª instância. É esta a expressa opção legislativa, já respaldada pelo Tribunal Constitucional, ao declarar que a Constituição não impõe, para o direito das contraordenações, duplo grau de recurso em matéria de facto – cf. acórdão do TC n.º 632/2009 de 3/12/2009, www.tribunalconstitucional.pt.
Assim, face ao facto não provado Y, improcedem as conclusões da recorrrente quanto ao preenchimento pela arguida do elemento subjectivo do tipo.
Mostrando-se prejudicadas todas as demais questões suscitadas no recurso, concluimos pela sua total improcedência.
*
V. DECISÃO
Em face do exposto, acordam em julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC’s.
Notifique.

Lisboa, 5 de Dezembro de 2022
Ana Mónica C. Mendonça Pavão
Luís Ferrão
Rute Lopes