Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1690/10.1TBSCR-D.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
PROMITENTE-COMPRADOR
RETENÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/17/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (art.º 663.º n.º 7 do CPC)

I. Tendo os embargos de terceiro sido instaurados antes da entrada em vigor do CPC de 2013, aplica-se-lhe as regras do CPC anterior.
II. À luz do CPC de 1961, na redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 180/96, de 25.9, seguindo os embargos de terceiro a forma de processo ordinário, o juiz pode dispensar a realização de audiência preliminar, ainda que tencione conhecer imediatamente do mérito da causa, se as questões relevantes já tiverem sido suficientemente debatidas nos autos e a sua apreciação revestir manifesta simplicidade.
III. A titularidade de direito de retenção sobre imóvel penhorado nos autos, por parte de terceiro seu promitente-comprador, não constitui fundamento de embargos de terceiro contra a respetiva penhora.
IV. O promitente-comprador poderá deduzir embargos de terceiro contra a penhora do imóvel que prometeu adquirir, para proteger o direito à execução específica do contrato-promessa, se as partes tiverem atribuído eficácia real ao contrato-promessa e tiver sido efetuado o competente registo antes do registo da penhora ou se o promitente-comprador tiver instaurado ação de execução específica do contrato-promessa e a tiver registado antes de efetuado o registo da penhora.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 09.5.2013 A intentou, por apenso a ação de execução instaurada no Tribunal Judicial da comarca de Santa Cruz (atualmente secção de execução da instância central do Funchal, Comarca da Madeira) por B, SA contra C, Lda, embargos de terceiro para defesa da posse de duas frações autónomas, sitas na freguesia de Machico, que haviam sido penhoradas na aludida execução.
O embargante alegou, em síntese, que as aludidas frações lhe foram entregues em 15.10.2009, na sequência de contrato-promessa de compra e venda das mesmas, que celebrara com a executada em 06.10.2009, pelo que o embargante tem a sua posse, correspondente ao direito de propriedade, e bem assim direito de retenção, tendo vindo a utilizar as lojas no exercício do comércio.
O embargante terminou pedindo que os embargos fossem julgados procedentes por provados e por via deles fosse ordenado o levantamento da penhora e o cancelamento ou suspensão do ato de abertura de proposta de venda agendado nos autos para o dia 09.9.2013, suspendendo-se os termos do processo e restituindo-se a posse ao embargante, com as demais consequências.
Os embargos foram liminarmente recebidos, suspendendo-se a execução quanto aos bens respetivos.
A exequente apresentou contestação, invocando a sua condição de credora hipotecária e de beneficiária da penhora, pugnando pela improcedência dos embargos.
O embargante respondeu à contestação, discreteando acerca do seu alegado direito de retenção sobre os imóveis penhorados e reiterando o peticionado.
Em 30.9.2015 foi proferido saneador-sentença, em que se julgou os embargos improcedentes, com custas pelo embargante.
O embargante apelou do saneador-sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
I) A decisão proferida a 01/10/2014 viola os artigos 3º, 201º, 592º, 593º, 342º, 607º e 759º, todos do CPC, e os artigos 755º/1-f) e 1.251, ambos do Código Civil.
II) Na verdade, não foi desde logo cumprido o princípio do contraditório plasmado no artigo 3º/2/3 e decorrente do artigo 195º, ambos do CPC.
III) Ao recorrente não foi sequer dada a oportunidade de previamente à decisão sobre o mérito da causa de se pronunciar sobre o entendimento do Tribunal sobre o assunto em discussão, sendo que aquela é uma autêntica decisão surpresa que é proibida pelo sobredito artigo 3º do CPC.
IV) A possibilidade de reacção relativamente a decisões judiciais é um direito constitucional e processualmente consagrado, pelo que a “execução”, ou cumprimento, das decisões judiciais sem possibilitar a reacção das partes é uma clara violação da lei fundamental e da lei adjectiva, designadamente do princípio do contraditório previsto no artigo 3º do CPC.
V) O M.mo Juiz a quo não poderia ter decidido sem antes ter convocado uma audiência prévia entre as partes e com os fins indicados no artigo 591º/1- a) e b) do CPC, só podendo dispensá-la nos casos/fins previstos nas alíneas d), e) e f) do artigo 591º do CPC, conforme expressamente dispõe o artigo 593º/1 do CPC
VI) A sentença proferida não respeita o princípio do contraditório, designadamente o disposto nos supra enunciados artigos 3º, n.ºs 2 e 3 e 201º do Código de Processo Civil.
VII) No presente caso, verifica-se que foi omitida a prática de acto ou formalidade que a lei prescreve, irregularidade que, atento o que já se disse, é, sem dúvida, susceptível de influir no exame e decisão da questão que foi suscitada, pelo que nos termos do artigo 195º, n.º 1 do Código de Processo Civil a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem a nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida posse influir no exame ou na decisão da causa, sendo que nos termos do disposto no n.º 2 do mesmo preceito, quando um acto tenha que ser anulado, anular-se-ão também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente.
VIII) Razão pela qual a omissão verificada não pode deixar de produzir a nulidade de todos os actos praticados posteriormente e, por via disso, também da decisão proferida.
XIX) A doutrina a jurisprudência vão no sentido de admitir claramente a dedução embargos de terceiro por parte do promitente comprador com traditio - neste sentido Calvão da Silva e Menezes Cordeiro, ACÓRDÃO RP DE 1993/04/27 IN CJ ANOXVIII TIII PAG225, ACÓRDÃO STJ DE 1998/02/17 IN CJSTJ ANOIV TI PAG70, ACÓRDÃO RE DE 1996/12/12 IN CJ ANOXXI TV PAG283, ACÓRDÃO STJ DE 1996/11/19 IN CJSTJ ANOIV TIII PAG109, ACÓRDÃO RL DE 1991/11/21 IN CJ ANOXVI TV PAG135STJ de 27/4/93, CJSTJ e ACÓRDÃO STJ DE 1999/01/20, in BMJ nº 483, pág. 195.
X) Sucede que os embargos de terceiro já não se destinam somente a defender a posse do embargante, ofendida por qualquer acto ordenado judicialmente, mas destinam-se também a defender qualquer direito do embargante incompatível com a realização de diligência ordenada judicialmente.
XI) O direito de retenção nos contrato promessa é concedido para garantia do crédito do contraente, mas o seu crédito abrange quer a prestação que não foi cumprida e que ele pode exigir através da execução específica quer a indemnização monetária que ele pode preferir e que funciona como o sucedâneo daquele outra, sendo admissível e defensável que o retentor não possa impedir a penhora e venda da coisa retida, devendo entrar na graduação de créditos que sobre ela se faça, quando está em jogo tão - só um crédito monetário e/ou indemnizatório, mas já não é admissível que o retentor não possa reter a coisa (com todas as consequências) quando ela se destina a garantir uma prestação que tem por objecto (ainda que mediato) a própria coisa (neste sentido ACÓRDÃO STJ DE 1999/01/20).
XII) Podemos sinteticamente concluir que: a) no contrato-promessa dos autos, os recorrentes têm incluído no seu crédito o direito ao cumprimento em espécie, isto é, à execução específica; b) o direito de retenção de que dispõem tanto se reporta ao cumprimento em espécie (crédito à prestação de facto) como ao cumprimento em sucedâneo (crédito à indemnização); c) os embargos de terceiro - hoje desligados necessariamente da posse - são meio adequado para que se viabilize o direito de retenção do promitente - comprador que tem a faculdade de peticionar a execução específica da promessa (neste sentido ACÓRDÃO STJ DE 1999/01/20).
XIII) A admissão da reacção pelo Recorrente única e exclusivamente pela via da reclamação de créditos constituiria uma inadmissível negação directa do direito à execução específica, porque presume uma venda dos imóveis objecto da promessa de venda, razão pela qual deverão ser considerados procedentes os presentes embargos.
XIV) O Tribunal recorrido detém-se apenas no facto do contrato promessa dos autos não ter eficácia real, e que a alegada traditio, considerada como mera detenção ou até como verdadeira posse, não prevalece sobre uma hipoteca registada anteriormente, sendo que da sentença não se refere praticamente nada na fundamentação de direito quanto ao alegado direito de retenção, que é um direito real de garantia que mantém sequela.
XV) A jurisprudência citada pelo Tribunal recorrido não é aplicável ao caso dos autos em que se encontra em conflito dois direitos reais de garantia - retenção e hipoteca, situação que é expressamente resolvida pelo artigo 759º/2 do Código Civil.
XVI) Assim, pela fundamentação aduzida no presente deverá ser revogada a sentença recorrida e substituída por outra que decrete o embargo conforme peticionado.
O apelante terminou pedindo que o recurso fosse julgado procedente e em consequência a decisão recorrida fosse substituída por outra que decretasse a providência de embargos de terceiro nos termos requeridos.
A exequente/embargada contra-alegou, tendo rematado com as seguintes conclusões:
A) Vem o Recorrente interpor recurso da Sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância no âmbito da qual foram julgados improcedentes os embargos de terceiro, em que o Embargante requeria que se ordenasse o levantamento do acto de penhora e cancelamento, ou suspensão, do acto de abertura de propostas, e a restituição da posse ao Embargante quanto às Fracções destinadas a comércio individualizadas pelas letras “BL” e “BK”, localizadas no rés-do-chão do Edifico com estacionamento na cave menos um, identificados pelos n.ºs 84 e 85 inseridas no prédio urbano em regime de propriedade horizontal, localizado na Rua (…), freguesia de concelho de Machico. Denominado “Edifício (…)”, inscrito sob o artigo (…) da freguesia de Machico e descrito na Conservatória do Registo Predial de Machico sob o n.º (…).
B) No entender do Recorrente a sentença proferida não cumpriu o princípio do contraditório e a decisão revelou-se uma “decisão surpresa, os embargos de terceiro são o meio adequado para que se viabilize o direito de retenção da promitente-comprador, e, assim, “(…) deve ser decretada providência dos embargos de terceiro nos termos requeridos.”
C) Entendeu o Tribunal a quo, que estávamos perante um dos casos preceituados pelo art.º 595.º do Código de Processo Civil (doravante C.P.C.), e que nesses termos se encontrava o douto Tribunal em condições de conhecer do mérito da causa e nesse sentido apreciar totalmente o pedido deduzido, tendo dispensado a realização de audiência prévia, pelo facto da mesma se destinar somente aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) no n.º 1 do artigo 591, o douto Tribunal proferiu imediatamente despacho saneador nos termos do art.º 1 do artigo 595.º do C.P.C.
D) Vem o Recorrente alegar que não se cumpriu o dever do contraditório, sem que as partes tivessem oportunidade de se pronunciar, no entanto cabe desde já referir que o Recorrente apresentou os seus Embargos e com eles teve oportunidade de apresentar toda a prova documental necessária para fazer valer a sua pretensão.
E) Entendeu o Tribunal a quo no sentido de estarem reunidas condições, após o fim dos articulados, para proferir a sua decisão quanto ao mérito da causa, por entender que a prova produzida era bastante.
F) No entender da Recorrida, o Tribunal não praticou qualquer acto inadmissível ou omitiu qualquer acto ou formalidade prescrita pela Lei, limitando-se a agir no estreito cumprimento da lei, nos termos do preceituado pelo art.º 595.º n.º 1 e art.º 593, n.º 1 e 2 do C.P.C.
G) Portanto a invocação do art.º 195, n.º 1 do C.P.C., nada mais é que uma tentativa do Recorrente fazer valer o seu desejo de ver julgados procedentes o seus Embargos de Terceiro, na medida em que, conforme já exposto não se motivou qualquer nulidade que possa despoletar a anulação de quaisquer actos subsequentes e in caso, a sentença em crise.
H) Face ao exposto, não merece qualquer censura a decisão do Tribunal a quo quando decidiu proferir decisão quanto final quanto ao mérito da causa, decisão essa que se deve manter para todos os efeitos, improcedendo, assim, a alegação do Recorrente.
I) Defendeu a Recorrente que a tradição da coisa resulta numa verdadeira posse, apelando à qualificação casuística do conceito, no entanto, conforme se verificou dos Embargos intentados o Recorrente não logrou provar qualquer utilização reiterada do imóvel.
J) No entanto desde já se evidencia que por via da mera celebração do contrato de promessa de compra e venda, sem eficácia real, o Recorrente não se tornou possuidor dos referidos imóveis, pois nestes termos o promitente adquirente apenas tem a seu favor um direito de crédito à celebração do contrato definitivo e não um direito real de aquisição, conforme se demostrará.
K) Como nos ensina o Ac. n.º 2301/03 proferido pelo Suprema Tribunal de Justiça em 05/07/2004 “1. À tradição material que acompanha o contrato-promessa de compra e venda não corresponde, em regra, a transmissão da posse correspondente ao direito de propriedade, porque a causa daquele acto translativo, que é o contrato-promessa e a convenção acessória de entrega antecipada da coisa, não se destina à constituição ou transferência de direitos reais, designadamente, o direito de propriedade, mas, tão só, à constituição de um direito de crédito a uma determinada declaração negocial.
L) E no que mesmo sentido “O promitente-adquirente, ainda quando utilizador [o que não logrou provar] da coisa prometida transmitir é um detentor (em nome alheio, através dele prossegue a posse do promitente alienante) e não um possuidor (formal ou causal) – Ac. do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 27-04-2004.
M) Assim, ao contrário do que defende o Recorrente a hipotética posse, na qualidade de “promitente alienante”, conferida pelo direito de retenção não lhe confere o direito de vir deduzir embargos com base na ofensa da posse ou na incompatibilidade do direito que alega, neste sentido o Ac. n.º 1381/07-1 do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido em 07-12-2007 que nos diz que o “credor garantido pelo direito de retenção, não pode ser oposta à penhora, sendo inoperante, por tal acto não prejudicar a garantia.
N) Assim, mesmo que se considere um direito de retenção ao Recorrente, por via do Contrato de Promessa de Compra e venda, tal facto não leva a que o Recorrente tenha qualquer legitimidade para vir deduzir embargos de terceiro, conforme decidiu a douta Sentença em crise, na medida em que o direito invocado não é impeditivo das garantias reais tituladas pela Recorrida.
O) Mesmo estando em causa a“ tutela não pode ser usada em face da penhora, tendo em vista obstaculizar à mesma, porquanto esta não prejudica ou diminui de qualquer modo o direito em causa (retenção), conforme refere o referido Acórdão.
P) Quer por via da alegada incompatibilidade do direito face à penhora, quer por via da alegada defesa da posse, se verifica que o alegado direito de retenção não é fundamento para que, possa o seu titular recorrer ao mecanismo de embargos de terceiro.
Q) Conforme é entendimento assente da jurisprudência, o direito de retenção não equivale ao direito de posse, pelo que somente assegura ao credor/retentor o poder de reclamar os seus créditos em sede executiva para receber o seu crédito pelo produto da venda.
R) Pois verifica-se que a penhora não afecta tal garantia, na medida em que conforme nos refere o Ac. nas palavras do Prof. Lebre de Freitas, in A acção executiva, págs. 286/287 e 284/285): “Se estiver em causa um direito real de aquisição ou um direito real de garantia, a incompatibilidade [com a penhora] não se verifica, visto que o respectivo titular encontrará satisfação no esquema da acção executiva [o credor com direito real de garantia reclamará o pagamento do seu crédito pelo produto da venda executiva]”. Assim, a posse de um direito real de garantia “não é, em regra, ofendida pela penhora, pois tem mero fim de garantia dum crédito do possuidor e, reclamando-o no processo de execução, o credor verá o seu interesse totalmente satisfeito” (neste sentido cita vários outros acórdãos, bem como a posição de Calvão da Silva). E lembra que “o novo preceito do art. 839/1c) constitui inequívoca manifestação da ideia de que o direito de retenção não pode fundar embargos de terceiro” e ainda conforme entende “L. Miguel Pestana de Vasconcelos (Direito das garantias, Almedina, 2011, págs. 319 a 326): “(…) Na eventualidade da penhora da coisa retida no seio de uma acção executiva interposta por um outro credor do seu dono, o retentor não poderá recorrer aos embargos de terceiro, uma vez que é titular não de um direito real de gozo, mas sim de um direito real de garantia. Pode, sim, intervir na execução, como credor beneficiário da garantia real” [neste sentido cita Antunes Varela, Romano Martinez/Fuzeta da Ponte, e Miguel Mesquita].”
S) Assim, parece resultar claro que está vedado ao titular o direito de lançar mão de embargos de terceiro, pois o promitente adquirente da coisa que entretanto foi penhorada é mero titular de um direito de crédito que não pode prevalecer sobre o direito real de garantia de cumprimento obrigacional derivado do acto de penhora.
T) O alegado direito de retenção garante o crédito emergente do não cumprimento imputável ao promitente-vendedor, no entanto não garante o crédito da celebração do contrato prometido que é o objecto directo do contrato-promessa, pelo não é por via do direito de retenção que se concretiza o direito à execução específica.
U) Assim, É por via da reclamação de créditos, na acção executiva que se verifica a garantia conferida pelo direito de retenção, e a sua existência não prejudica os demais credores do promitente – vendedor.
V) Os Embargos têm como função suspender e depois extinguir a execução, no entanto o direito do Recorrente passa pela salvaguarda do não prosseguimento da acção sem a salvaguarda dos direitos (decorrentes do incumprimento do contrato-promessa) da Recorrente, o que optou aliás por fazer através da reclamação de créditos.
W) Defende o Recorrente que o confronto entre os dois direitos reais de garantia em causa é resolvido pelo art.º 759, n.º 2 do C. C., no entanto não pode a Recorrida concordar com tal defesa.
X) A interpretação do citado artigo 754.º do C.C., nos termos plasmados pelo Recorrido viola a segurança jurídica e a tutela da confiança, princípios fundamentais e constitucionalmente consagrados, pelo que a Recorrida contesta a aplicação do n.º 2 do art. 759.º do CC, com base a decisão adoptada pelo Tribunal Constitucional, a propósito dos privilégios mobiliários gerais conferidos à Fazenda Nacional e Segurança Social, pronunciando-se sobre a prevalência daqueles face a hipoteca, ao abrigo do art. 751.º do CC “ (…) o principio da protecção da confiança (…) postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis, arbitrarias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia moral e razoavelmente contar. (…) não estando o crédito da Segurança Social sujeito a registo, o particular que registou o seu privilegio, uma vez instaurada a execução com fundamento nesse crédito privilegiado, ou que ali venha a reclamar o seu crédito, pode ser confrontado com uma realidade – a existência de um crédito da Segurança Social – que frustra a fiabilidade que o registo naturalmente merece.”
Y) O entendimento perfilhado pelo Tribunal Constitucional é perfeitamente aplicável no que respeita à prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca.
Z) A ora Impugnante viu-se confrontada com um crédito que poderá restringir, gravemente, o núcleo essencial da sua garantia hipotecária e, consequentemente, poderá ver o conteúdo do seu direito hipotecário esvaziado, pois a consistência jurídica do seu direito de garantia hipotecário em muito sai, abalada, não procedendo.
AA) Cumpre defender na senda do Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, processo nº 03A1808 de 21-11-2002) ” Entre os dois créditos, um munido de garantia do direito de retenção, e outro da garantia hipotecária, há uma incompatibilidade jurídica, relegando o primeiro o segundo para uma posição jurídica secundária”.
BB) Conforme e bem, refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27.10.2009, “a situação é de tal maneira grave, que, por causa do reconhecimento do direito de retenção feito à revelia da impugnante, esta pode ficar sem receber um cêntimo que seja do seu crédito, apesar de este estar garantido por uma hipoteca.” e ainda “ A consistência jurídica do seu direito de garantia hipotecário em muito sai, portanto, abalada, não procedendo, destarte, a pretensão da eficácia reflexa do caso julgado, já que o direito do retentor entra em conflito e faz recuar aquele garantido pela hipoteca”.
CC) Por tudo quanto exposto, andou bem o Tribunal a quo quando decidiu que a hipoteca mesmo realizada em data anterior deve prevalecer na medida em que por via da sequela, aquela acompanha o bem.
DD) E pese embora a doutrina divirja na questão supra exposta, grande parte entende que deve ser dada uma tutela especial aos promitentes-compradores, quando assumem a qualidade de consumidores quando está em causa a compra do imóvel para habitação própria e permanece, o que não é de todo o presente caso, pelo que não e compadece que de forma a pode um alegado direito de retenção prevalecer perante o direito de hipoteca registado anteriormente.
EE) Como tal, andou bem o Tribunal de Primeira Instância ao considerar que a possível produção de prova relativa à matéria factual controvertida em nada alteraria o sentido da decisão e nesse sentido proferiu decisão final decidindo pela improcedência dos embargos de terceiro.
FF) Em face de tudo quanto exposto, não merece qualquer censura a decisão do Tribunal a quo sobre a matéria de direito, decisão essa que se deve manter para todos os efeitos, improcedendo, assim, a alegação da Recorrente.
A apelada terminou pedindo que o recurso fosse indeferido e mantida a decisão recorrida.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões suscitadas neste recurso são as seguintes: violação do princípio do contraditório; proteção do alegado direito de retenção do apelante sobre os bens penhorados.
Primeira questão (violação do princípio do contraditório)
Na apreciação desta questão, o factualismo a ter em consideração é o constante do Relatório supra.
O Direito
O apelante entende que o tribunal a quo violou o disposto nos artigos 593.º e 591.º do CPC, tendo omitido a realização de audiência prévia, a qual se impunha antes de o tribunal a quo decidir como decidiu, assim se violando o princípio do contraditório, consignado no art.º 3.º, n.ºs 2 e 3 do CPC.
Cumpre realçar que atendendo a que estes embargos de terceiro, procedimento de natureza declarativa, tiveram o seu início antes da entrada em vigor do atual CPC, aplicar-se-lhes-á o texto legal do CPC anterior (cfr. art.º 6.º n.º 4 da Lei n.º 41/2013, de 26.6).
Nos termos do art.º 357.º n.º 1 do CPC de 1961 (redação introduzida pelo Dec.-Lei n.º 180/96, de 25.9), recebidos os embargos, são notificados para contestar as partes primitivas, seguindo-se os termos do processo ordinário ou sumário de declaração, conforme o valor.
In casu, o valor dos embargos é de € 277 668,00 (cfr. despacho a fls 52), pelo que cabia a forma do processo ordinário.
Nos termos do art.º 508.º-A do CPC de 1961 (na redação já referida), terminada a fase dos articulados e do “pré-saneador“ (art.º 508.º), é convocada audiência preliminar, destinada, nomeadamente, “a facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar excepções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa” (alínea b)).
Porém, o art.º 508.º-B permite ao juiz dispensar a audiência preliminar, quando “a sua realização tivesse por fim facultar a discussão de excepções dilatórias já debatidas nos articulados ou do mérito da causa, nos casos em que a sua apreciação revista manifesta simplicidade”.
E, nos termos do art.º 510.º, findos os articulados e se não houver lugar à audiência preliminar, “o juiz profere, no prazo de vinte dias, despacho saneador destinado a:
(…)
b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.
No caso destes autos, ambas as partes tiveram a possibilidade de expor os seus pontos de vista acerca dos pressupostos dos embargos deduzidos, tendo inclusive o embargante respondido à contestação apresentada pela exequente, pelo que não se vê, contrariamente ao afirmado pelo apelante, que este tenha sido alvo de qualquer violação do princípio do contraditório.
O Mm.º juiz entendeu que os autos já reuniam os elementos necessários e suficientes à prolação de uma decisão final, tendo carecido tão só de duas páginas para a respetiva apreciação de direito – o que dá bem conta da simplicidade, na perspetiva da 1.ª instância, do objeto da causa.
Face ao supra exposto, o tribunal a quo encontrava-se legitimado para proferir saneador-sentença, não se vislumbrando que o tenha feito com desrespeito pelo princípio do contraditório.
Segunda questão (proteção do alegado direito de retenção do apelante sobre os bens penhorados)
O tribunal a quo deu como provada (sem impugnação pelas partes) a seguinte
Matéria de facto
A. Encontram-se registadas a favor da executada as fracções autónomas designadas pelas letras BK e BL do prédio urbano, sito na freguesia e concelho de Machico, descrito no Conservatória do Registo Predial de Machico sob o n.º (…) e inscrito na respectiva matriz sob o n.º (…).
B. Pela Ap. 8 de 12/05/2004 foi registada em cada uma das fracções uma hipoteca voluntária (capital: 302.013,15 euros; montante máximo assegurado: 436.409,00 euros) a favor do Banif – Banco Internacional do Funchal, SA, para garantia de um empréstimo.
C. Pela Ap. 9. de 12/05/2004 foi registada em cada uma das fracções uma hipoteca voluntária (capital: 92.986,85 euros; montante máximo assegurado: 134.365,99 euros) a favor do Banif – Banco Internacional do Funchal, SA, para garantia de um empréstimo.
D. Pela Ap. 9. de 21/12/2004 foi registada em cada uma das fracções uma hipoteca voluntária (capital: 149.759,58 euros; montante máximo assegurado: 197.308,24 euros) a favor do Banif – Banco Internacional do Funchal, SA, para garantia de todas as obrigações ou responsabilidades que existam ou venham a existir.
E. Pela Ap. 3392 de 15/02/2011 foi registada em ambas as fracções uma penhora no âmbito da presente execução, para pagamento da quantia exequenda.
F. Por documento particular, ao qual foi dado o nome de contrato promessa de compra e venda, a executada declarou prometer vender ao embargante, que declarou prometer comprar, as fracções autónomas referidas em A), livres de ónus, encargos ou responsabilidades, registadas ou não, desocupadas de pessoas e bens, pelo montante de 402.000,00€ (quatrocentos e dois mil euros), a ser pago em 133 prestações mensais e sucessivas, sendo a primeira no valor de 6.000,00 euros e as restantes de 3.000,00 euros, vencendo-se a primeira no dia 01/11/2009 e a última em 01/11/2020.
G. A executada e o embargante declararam acordar ainda que, com a assinatura do documento particular, este tomaria posse das fracções a partir de 15/10/2009, responsabilizando-se por todos os custos inerentes às mesmas, tais como água, luz e condomínio.
O Direito
Nos termos do art.º 351.º n.º 1 do Código de Processo Civil (de 1961), os embargos de terceiro são deduzidos por quem, não sendo parte na causa, seja titular de posse ou de qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito de ato ou diligência judicialmente ordenada, de apreensão ou entrega de bens.
A penhora dos imóveis a que respeitam estes autos ofende a posse que terceiro se arrogue sobre eles. Com efeito, a penhora é um ato de apreensão judicial de bens, tendo em vista a sua posterior transmissão para terceiros, no âmbito de uma execução (art.º 824.º n.º 1 do Código Civil).
A posse é, conforme a define o legislador (art.º 1251.º do Código Civil), “o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.”
Tem-se em vista uma situação de facto que a lei protege com base na aparência de um direito real de gozo (Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV volume, Almedina, pág. 29). Quem beneficia dessa situação pode pedir a respetiva tutela judicial (ações de prevenção, de manutenção e de restituição da posse e, no caso de esbulho violento, ação de restituição provisória da posse – artigos 1276.º a 1279.º do Código Civil -, além dos embargos de terceiro).
As razões dessa tutela, que de resto é provisória (“no caso de recorrer ao tribunal, o possuidor perturbado ou esbulhado será mantido ou restituído enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito” – n.º 1 do art.º 1278.º do Código Civil), são a defesa da paz pública, a dificuldade de prova do direito definitivo e o valor económico da posse (Mota Pinto, “Direitos Reais”, segundo Álvaro Moreira e Carlos Fraga, Almedina, 1976, páginas 192 a 195).
No direito português a posse reporta-se ao exercício de um direito real (em regra, de gozo). Assim, aqueles que usam ou gozam a coisa ao abrigo de um direito creditício, obrigacional, são meros detentores, pois possuem a coisa em nome de outrem, o titular do direito real (artigo 1253.º alínea c) do Código Civil), a quem terão de restituir a coisa uma vez terminado o prazo ou a causa legal da detenção. São, pois, possuidores precários (Moitinho de Almeida, “Restituição de posse e ocupações de imóveis”, Coimbra Editora, 5ª edição, páginas 59 e seguintes).
Os promitentes-compradores são, em regra, possuidores precários. O poder material que, na sequência da celebração do contrato-promessa de compra e venda, porventura detenham sobre o bem objeto do contrato, exerce-se no âmbito de uma relação jurídica de natureza obrigacional (art.º 410.º do Código Civil), em que está patente que a titularidade do direito de propriedade se mantém na esfera jurídica do promitente-vendedor.
Porém, a jurisprudência tem reconhecido situações em que, excecionalmente, o promitente-comprador enverga as vestes de verdadeiro possuidor da coisa alvo do contrato-promessa, exercendo sobre ela poderes não na qualidade de mero titular de uma posição jurídica de natureza obrigacional, que apenas o legitime a aspirar, no futuro, à titularidade de uma posição de natureza real, conforme o negocialmente prometido, mas, mais do que isso, assume-se já como proprietário da coisa, atuando sobre ela e apresentando-se perante a comunidade jurídica como seu proprietário, possuindo-a em nome próprio. Nesses casos a celebração do contrato prometido constituirá, pelo menos do ponto de vista do promitente-comprador, apenas a formalização de uma transmissão que, em termos materiais, já ocorreu. Como exemplos dessa situação referem-se casos em que o promitente-comprador, a par da entrega da coisa, paga a totalidade ou parte substancial do preço, pratica sobre a coisa atos normalmente a cargo do proprietário, inclusive a satisfação de obrigações fiscais, beneficia de procuração irrevogável com poderes para outorgar, a seu favor, escritura de compra e venda do bem alvo do contrato-promessa (vide, v.g., acórdãos do STJ, de 21.3.2013, processo 1223/05.1TBCSC-B.L1.S1; de 29.11.2011, processo 322-D/1991.E1.S2; de 07.01.2010, processo 860/03.3TLBGS-B.E1.S1, todos consultáveis em www.dgsi.pt).
No caso destes autos, está provado que em 06.10.2009 o embargante celebrou, com a ora executada/embargada, um contrato-promessa de compra e venda dos dois imóveis referidos nos autos. Nessa mesma data ficou acordado que o promitente-comprador “tomaria posse das fracções a partir de 15/10/2009, responsabilizando-se por todos os custos inerentes às mesmas, tais como água, luz e condomínio” (alínea G) da matéria de facto).
No mais, o embargante alegou que já pagara à executada a quantia de € 108 000,00 (num total de preço acordado de € 402 000,00), que realizou nas frações obras de reparação, instalou sistema de videovigilância e averbou em seu nome o contrato de eletricidade e de água, passando a utilizar as lojas para o comércio de vestuário e calçado, perfumaria, bijutaria e brinquedos.
Porém, não se mostra provado nem alegado factualismo do qual decorra a intenção, o propósito e a convicção, por parte do embargante, de agir desde já como proprietário das duas frações. Pelo contrário, o posicionamento do embargante, reiterado claramente na apelação, é o de invocar os seus direitos enquanto promitente-comprador dos bens penhorados, ou seja, enquanto titular da correspondente relação jurídica obrigacional, brandindo o direito de retenção que deteria nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 754.º, 755.º n.º 1 alínea f), 442.º e 759.º n.º 2 do Código Civil.
Ainda que o apelante lograsse demonstrar a titularidade de verdadeira posse (à sombra de um arrogado direito de propriedade), a pretensão de levantamento da penhora naufragaria perante o direito do exequente, cujo crédito se mostra garantido por hipoteca constituída antes da celebração do contrato-promessa, gozando do direito de sequela inerente (art.º 686.º do Código Civil). O apelante tão-só poderia expurgar a hipoteca, se adquirisse a titularidade do imóvel prometido (art.º 721.º do Código Civil). Assim, ainda que porventura sustentado em verdadeira posse, o apelante não poderia obstar à realização e manutenção da penhora, ato de apreensão judicial destinado a obter o pagamento do crédito hipotecário (neste sentido, cfr., v.g., STJ, 21.3.2013, processo 1223/05.1TBCSC-B.L1.S1, citado na decisão recorrida, e Relação de Lisboa, 13.9.2012, processo 1223/05.1TBCSC-B.L1-6).
Porém, conforme supra aduzido, o apelante alicerça a sua pretensão de procedência dos embargos e de consequente levantamento da penhora no direito de retenção que alega deter sobre os imóveis penhorados.
Invocando a jurisprudência contida num acórdão do STJ, datado de 20.01.1999 e publicado no BMJ n.º 483, pág. 195 e seguintes.
Vejamos.
Com o objetivo declarado de proteger os adquirentes de imóveis para habitação própria (vide preâmbulo do Dec.-Lei n.º 236/80, de 18.7), num contexto económico de rápida desvalorização da moeda, que estimulava o incumprimento dos contratos promessa por parte dos promitentes vendedores, o legislador, entre outras medidas, alterou os artigos 442.º e 830.º do Código Civil, aí estipulando a possibilidade de qualquer das partes obter a execução específica do contrato-promessa, mediante sentença que produzisse os efeitos do contraente faltoso (n.º 1 do art.º 830.º); havendo tradição da coisa e se o incumprimento do contrato fosse do promitente-vendedor, o promitente-comprador poderia exigir, em alternativa ao valor do sinal em dobro, o valor da coisa à data do incumprimento (n.º 2 do art.º 442.º); nos termos do n.º 3 do art.º 442.º, “no caso de ter havido tradição da coisa objecto do contrato-promessa, o promitente-comprador goza, nos termos gerais, do direito de retenção sobre ela, pelo crédito resultante do incumprimento pelo promitente-vendedor.” Tal direito de retenção, no pensamento legislativo, destinava-se a garantir o crédito do promitente-comprador emergente do incumprimento definitivo do contrato-promessa (veja-se o que se exarava no preâmbulo do diploma: “Relativamente à resolução do contrato, mantém-se, em princípio, a regra actual - havendo sinal passado - da perda deste ou da sua restituição em dobro, conforme o outorgante causador da resolução. Estabelece-se, porém, que, no caso de ter havido tradição da coisa para o promitente-comprador, em que se criou forte expectativa de estabilização do negócio e uma situação de facto socialmente atendível, a indemnização devida por causa da resolução do contrato pelo promitente-vendedor seja o valor que a coisa tiver ao tempo do incumprimento - medida do dano efectivamente sofrido -, conferindo-se ao promitente-comprador o direito de retenção da mesma coisa por tal crédito”.
O Dec-Lei n.º 379/86, de 11.11, revisitou o instituto do contrato-promessa. Quanto ao direito de retenção, procedeu-se à correção de “inadvertências terminológicas” (sic, preâmbulo) e deslocou-se essa norma para lugar considerado mais adequado (como se diz no preâmbulo), incluindo-a entre os restantes casos de direito de retenção (artigo 755.º, n.º 1, alínea f), que passou a ter a seguinte redação: “O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos temos do artigo 442.º”).
Não se dá nota, no preâmbulo do diploma, que houvesse da parte do legislador a intenção de modificar o campo de proteção conferido pelo direito de retenção ao promitente-comprador, ou seja, que o mesmo passasse a incluir o direito à execução específica do contrato-promessa. Nem tal faria sentido: se o direito de retenção consiste num mecanismo de defesa e compulsividade usado por quem está a obrigado a restituir uma coisa, e que pode recusar-se a fazê-lo enquanto não lhe for satisfeito um determinado crédito (art.º 754.º do Código Civil), desafiaria as leis da lógica que o promitente-comprador invocasse o direito de retenção para garantir a execução específica do contrato-promessa: satisfeito este crédito (execução específica do contrato), não haveria lugar à restituição da coisa…
Constitui, pois, posição consolidada, tanto na doutrina (consolidada mas não unânime, como parece decorrer do estudo de Menezes Cordeiro, “Da retenção do promitente na venda executiva”, ROA, ano 57, 1997, volume II, pág. 547 e seguintes, onde se defende que o direito de retenção do promitente-adquirente que beneficiou da traditio visa, também, assegurar o gozo da coisa, sobrevivendo à venda executiva, se o direito de retenção for anterior à penhora) como na jurisprudência (onde também existe uma opinião contrária, minoritária, traduzida no acórdão do STJ de 20.01.1999 supra referido e no acórdão da Relação do Porto, de 15.4.2008, processo n.º 0820536, in www.dgsi.pt), que o direito de retenção reconhecido ao promitente-adquirente nos termos da alínea f) do art.º 755.º, n.º 1 do Código Civil, se destina a garantir os créditos que para ele emergem do incumprimento definitivo do contrato-promessa pela contraparte, ou seja, nos termos do art.º 442.º do Código Civil, o dobro do sinal prestado ou o valor da coisa traditada, calculado nos termos aí previstos (neste sentido, v.g., Remédio Marques, “Curso de processo executivo comum à face do Código revisto”, Almedina, 2000, pág. 331, nota 934; Luís Miguel de Andrade Mesquita, “Apreensão de bens em processo executivo e oposição de terceiro”, Almedina, 2.ª edição, 2001, páginas 170 e 171; João Calvão da Silva, “Sinal e contrato-promessa”, Almedina, 12.ª edição, 2007, páginas 178 e 182; L. Miguel Pestana de Vasconcelos, “Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência”, in Cadernos de Direito Privado, n.º 33, Janeiro/Março de 2011, página 4; José Lebre de Freitas, “A Acção Executiva Depois da reforma da reforma”, Coimbra Editora, 5.ª edição, 2009, pág. 283, nota 24; na jurisprudência, v.g., STJ, de 04.12.2007, processo 07A4070; STJ, 08.10.2013, processo 10262/06.4TBMTS.P1.S1; STJ, 04.02.2014, processo 360/09.8TCGMER.G1.S1; STJ, 30.4.2015, processo 1187/08.0TBTMR-A.C1.S1).
O direito de retenção existe para garantir o crédito gerado pelo incumprimento definitivo do contrato-promessa, e não para garantir o crédito à prestação de facto ou seja, o uso ou fruição da coisa.
O direito de retenção, como qualquer outro direito real de garantia, extingue-se com a venda executiva, ou melhor, passará a incidir sobre o produto da venda (art.º 824.º n.ºs 2 e 3 do Código Civil), posto que o respetivo credor garantido tenha reclamado o seu crédito na execução
Assim sendo, o eventual direito de retenção titulado pelo promitente-comprador não é oponível à penhora, ou seja, não obsta à efetivação ou subsistência de penhora incidente sobre o imóvel que lhe tenha sido entregue pelo promitente-vendedor, ora executado, no âmbito do contrato-promessa.
Aliás, tal ficou claramente expresso no art.º 839.º n.º 1 alínea c) do CPC de 1961, na redação que lhe foi introduzida pelo Dec.-Lei n.º 38/2003, de 08.3, o qual, regulando a constituição de depositário dos imóveis penhorados, passou a estipular que, se o bem for objeto de direito de retenção, “em consequência de incumprimento contratual judicialmente verificado”, o retentor será constituído depositário do bem. Por conseguinte, a penhora mantém-se, e a nomeação do retentor como depositário (até à venda executiva do imóvel) só sucederá se o direito de retenção for reconhecido com base em incumprimento contratual judicialmente verificado (no mesmo sentido, no atual CPC, art.º 756.º n.º 1 alínea c)).
De resto, na petição de embargos o ora apelante não invocou o incumprimento definitivo do contrato-promessa por parte da executada, nem se arrogou a titularidade de qualquer crédito sobre a executada, emergente desse incumprimento. Tal omissão manteve-se, aliás, na resposta do embargante à contestação apresentada pela exequente. Assim, não foram invocados nos embargos os pressupostos constitutivos de um pretenso direito de retenção, por parte do embargante, sobre os dois imóveis penhorados. O qual, a existir, também não fundaria, pelas razões invocadas, embargos de terceiro: o direito de retenção do imóvel é um direito real de garantia, que confere ao seu titular o direito de executar a coisa nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor (n.º 1 do art.º 759.º do Código Civil), ou de invocar o seu direito em execução instaurada contra o devedor por terceiro, no âmbito do concurso de credores, meio através do qual é assegurada a sua posição jurídica (artigos 864.º e seguintes do CPC de 1961; artigos 786.º e seguintes do atual CPC). Note-se que a eventual entrega da coisa pelo retentor ao depositário não opera a caducidade do direito de retenção nos termos e para os efeitos previstos no art.º 761.º do Código Civil (assim redigido: “o direito de retenção extingue-se pelas mesmas causas por que cessa o direito de hipoteca, e ainda pela entrega da coisa”): a extinção do direito de retenção causada pela entrega da coisa pressupõe que esta ocorra por iniciativa do retentor, voluntariamente, no exercício da sua autonomia de vontade, o que não sucede no âmbito da execução forçada (vide, neste sentido, Luís Miguel de Andrade Mesquita, “Apreensão de bens…, citado, pág. 159).
A todos estes obstáculos à admissibilidade dos embargos de terceiro com base num direito de retenção, por parte do apelante, incidente sobre os imóveis penhorados nos autos, soma-se ainda o obstáculo emergente da interpretação restritiva da lei, quanto ao âmbito subjetivo do direito de retenção previsto na alínea f) do n.º 1 do art.º 755.º do Código Civil: na esteira do defendido por L. Miguel Pestana de Vasconcelos, “Direito de retenção, contrato-promessa e insolvência”, supra citado, a jurisprudência tem vindo a entender, por ora ainda no âmbito do processo de insolvência, mas com potencialidade expansiva para outros foros, que o direito de retenção concedido aos promitentes-compradores de imóveis beneficiados com a traditio da coisa apenas é concedido aos consumidores, como tal entendidos na conceção restritiva própria da legislação de proteção do consumidor, ou seja, pessoa singular que acedeu ao bem para satisfação das suas necessidades pessoais, estranhas, pois, à sua atividade profissional (vide acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ, n.º 4/2014, de 20.3.2014, publicado no D.R., I, n.º 95, de 19.5.2014; acórdão do STJ, de 14.6.2011, processo 6132/08.0TBBRG-J.G1.S1; acórdão do STJ, de 30.4.2015, processo 1187/08.0TBTMR-A.C1.S1; acórdão do STJ, de 09.7.2015, processo 1242/10.6YYPRT-A.P1.S1).
Ora, o apelante alegou e resulta do teor do contrato-promessa que os imóveis foram destinados, pelo promitente-comprador, ao exercício, por este, de atividade comercial – o que lhe retiraria a qualidade de consumidor e, por conseguinte, o direito de retenção.
Resta analisar o direito do apelante aos embargos de terceiro na perspetiva do direito à execução específica do contrato-promessa.
Com efeito, o apelante invoca o direito de retenção enquanto meio de garantir a execução do contrato-promessa e, desse modo, fundamento para os deduzidos embargos.
Ora, poderá transcrever-se aqui o expendido por Calvão da Silva, a propósito do acórdão do STJ, de 20.01.1999, invocado pelo apelante:
Cfr. ac. do S.T.J., de 20 de Janeiro de 1999, in “BMJ” n.º 483, p. 195:
“Os embargos de terceiro – hoje desligados necessariamente da posse – são meio adequado para que se viabilize o direito de retenção do promitente-comprador que tem a faculdade de peticionar a execução específica da promessa.”
A impropriedade da expressão apresenta-se clara: o que os embargos de terceiro viabilizam é o direito à execução específica e não o direito de retenção – direito de retenção que, de resto, surge apenas para garantia do crédito derivado do incumprimento definitivo e não constitui um direito incompatível com a realização da penhora, a defender por embargos de terceiro.
Ou seja: quem pede a execução específica não goza de direito de retenção; quem invoca o direito de retenção não goza de execução específica” (“Sinal e contrato-promessa”, citado, pág. 178, nota 197).
Desfeita a confusão, admite-se que a execução específica, ou seja, o intuito de obter, por via judicial, o cumprimento do contrato-promessa, através de declaração que produza os efeitos translativos do direito de propriedade sobre o imóvel, seja oponível a terceiros, inclusive ao exequente beneficiário da penhora do imóvel, fundamentando a dedução de embargos por parte do promitente-comprador.
Porém, para que os embargos possam proceder, isto é, sejam oponíveis ao exequente, prevalecendo sobre a garantia real que a penhora lhe confere (art.º 822.º n.º 1 do Código Civil), é necessário que as partes tenham atribuído ao contrato-promessa eficácia real e tenham procedido ao seu registo antes do registo da penhora (artigos 413.º n.º 1 do Código Civil, 2.º n.º 1, alíneas f) e n), 5.º e 6.º do Código de Registo Predial - CRP) ou, se o contrato-promessa tiver eficácia meramente obrigacional (art.º 406.º n.º 2 do Código Civil), é necessário, para os mesmos fins, que tenha sido instaurada ação de execução específica e que esta tenha sido registada antes do registo da penhora (art.º 3.º n.º 1 alíneas a) e c) e 6.º n.º 3 do CRP). Neste sentido, veja-se, na doutrina, v.g., Remédio Marques, obra citada, pág. 323, nota 915 e páginas 324 e 325; Luís Miguel de Andrade Mesquita, obra citada, páginas 165 a 167, 181 a 188; João Calvão da Silva, “Sinal e contrato-promessa”, citado, páginas 172 e 173; na jurisprudência, STJ, 29.4.2008, processo 08A745; Relação de Lisboa, 14.6.2012, processo 5962/07.4TCLRS-B.L1-2; Relação de Guimarães, 22.01.2013, processo 3090/07.1TBVCT-D.G1).
No caso destes autos, as partes não convencionaram a eficácia real do contrato-promessa e não se mostra instaurada e registada ação de execução específica do contrato-promessa.
Aliás, nos embargos o apelante não invocou sequer o direito à execução específica do contrato-promessa.
Por tudo o exposto conclui-se que o apelante não é titular de posição jurídica que seja oponível à penhora efetuada nos autos sobre os identificados imóveis, pelo que bem andou o tribunal a quo ao julgar os embargos improcedentes.
DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação são a cargo do apelante, que nela decaiu.
Lisboa, 17.3.2016

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Jorge Leal

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Ondina Carmo Alves

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Olindo dos Santos Geraldes