Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1526/19.8TELSB-F.L1-5
Relator: ANA CLÁUDIA NOGUEIRA
Descritores: APOSIÇÃO DE SELOS EM BENS APREENDIDOS
IRREGULARIDADE PROCESSUAL
LEI DO CIBERCRIME
APREENSÃO DE CORRESPONDÊNCIA
RESERVA DA VIDA PRIVADA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: (Da responsabilidade da relatora)
I- A regra geral de procedimento na execução da apreensão de bens em processo penal é a da aposição de selos nos objetos apreendidos, nos termos gerais previstos sob o art. 184º do Código de Processo Penal, apenas se dispensando essa aposição quando não seja possível; a não aposição de selos, quando possível, configura irregularidade processual com o regime previsto sob o art. 123º do Código de Processo Penal.
II- A Lei do Cibercrime aprovada pela L. 109/2009, de 15/09 prevê sob o art. 16º/7 procedimento especial de execução da apreensão de dados ou documentos informáticos que, «consoante seja mais adequado e proporcional, tendo em conta os interesses do caso concreto, pode, nomeadamente, revestir as formas seguintes:
a) Apreensão do suporte onde está instalado o sistema ou apreensão do suporte onde estão armazenados os dados informáticos, bem como dos dispositivos necessários à respetiva leitura;
b) Realização de uma cópia dos dados, em suporte autónomo, que será junto ao processo;
c) Preservação, por meios tecnológicos, da integridade dos dados, sem realização de cópia nem remoção dos mesmos ; ou
d) Eliminação não reversível ou bloqueio do acesso aos dados.».
III- Neste procedimento especial, a selagem está apenas prevista no caso da apreensão efetuada nos termos da alínea b) com a aposição de selos na cópia dos dados apreendidos a ser confiada ao secretário judicial dos serviços onde corre termos o processo – nº 8 do art. 16º da Lei do Cibercrime.
IV- A aposição de selos visa primacialmente garantir a incolumidade do bem apreendido e preservar o seu valor comunicativo probatório.
V- Todavia, em situações particulares, sinalizadas pelo legislador mediante consagração de regimes especiais de busca e apreensão, mercê da sensibilidade dos interesses em causa, seja pelo objeto da apreensão, seja pelos concretos locais em que se processa essa apreensão, a aposição de selos pode funcionar também como forma de proteger o segredo a que estejam sujeitos os bens apreendidos e a reserva da intimidade da vida privada.
VI- É o caso da apreensão de correspondência – art. 179º do Código de Processo Penal -, aplicável também à correspondência eletrónica por via da remissão feita no art. 17º da Lei do Cibercrime, e da apreensão de bens que possam contender com segredo comercial, industrial ou do chamado  segredo do negócio, nos termos dos arts. 318º, 331º e 352º do D.L. 110/2018, de 10/12 que aprovou o Código da Propriedade Industrial.
VII- Havendo documentos com relevo para a prova a juntar ao processo, atenta a regra da publicidade do processo penal fixada no art. 86º/1 do Código de Processo Penal, terá que quanto a eles ser dada observância às regras legais relativas ao segredo, adotando-se todos os procedimentos legalmente previstos, e outros que se entendam necessários, à salvaguarda dos vários segredos que possam estar envolvidos, mas também da reserve da intimidade da vida privada.
VIII- No decurso do inquérito, cabe ao Ministério Público, seu titular, oficiosamente ou a pedido dos interessados, adotar esses procedimentos, e concretamente os previstos no art. 352º do D.L. 110/2018, de 10/12 que aprovou o Código da Propriedade Industrial, destinados à preservação da confidencialidade dos segredos comerciais em processos judiciais, o que pode passar pela criação de um apenso confidencial excluído da consulta por terceiros alheios ao processo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
1. No processo de inquérito que com o NUIPC 1526/19.8TELSB corre termos no DCIAP de Lisboa, e no âmbito do qual se investiga a prática dos crimes de crimes de administração danosa, previsto e punido pelo art. 235º, de corrupção ativa e passiva, previstos e punidos pelos arts. 373º a 374º-A, participação económica em negócio, previsto e punido pelo art. 377º, e abuso de poder, previsto e punido pelo art. 382º, todos do Código Penal, e de corrupção ativa com prejuízo do comércio internacional, previsto e punido pelo artigo 7º da L. 20/2008, de 21/04, foi ordenada pelo Ministério Público e realizada busca e apreensão nas instalações da ... de documentação e informação em formato digital; nessa sequência a visada veio requerer ao Juiz de Instrução Criminal que por se tratar de elementos de natureza sigilosa, se procedesse à sua selagem como documentos confidenciais por respeitar a segredo de negócios, pretensão que foi indeferida.
2. Inconformada com essa decisão, dela recorreu a visada ..., peticionando a sua revogação e substituição por outra que, aplicando corretamente o Direito, defira esse requerimento «(…) ou, pelo menos, que decrete medidas alternativas que assegurem o exigido balanceamento entre a afetação dos seus direitos fundamentais e a prossecução dos fins da investigação, necessariamente compatíveis com a proteção adequada da confidencialidade da informação contida nos documentos apreendidos.»; formula para tanto as seguintes conclusões [transcrição]:
«(…)
1. O presente recurso vem interposto quanto ao Despacho de fls. 2300 a 2302 dos autos, proferido em ........2023 pelo Mmo. Juiz de Instrução Criminal, que indeferiu o requerimento apresentado pela Recorrente nos autos em ........2023, na sequência de diligência de busca e apreensão realizada na sua sede.
2. A ... tinha requerido que (i) a documentação apreendida fosse tratada como confidencial, por respeitar a segredos de negócios e, por conseguinte, fosse mantida selada até ao momento em que, com a colaboração da Buscada ou por quem a represente, for determinada a sua relevância para a investigação e determinada a sua efetiva junção aos autos; (ii) a documentação que no entender da investigação tiver interesse para a descoberta da verdade e boa decisão da causa e que contenha informação confidencial e sensível, fosse integrada por apenso confidencial aos autos, restringindo-se a publicidade e o respetivo acesso por terceiros, que não sujeitos processuais, ao abrigo do disposto no artigo 86.º, n.º 7 do CPP e em respeito pelo disposto nos artigos 12.º n.º 2, 18.º, n es 1 e 2 e 61.º, n.º 1 da Constituição; e (iii) a documentação que não for objeto de seleção pelo Ministério Público, por não se revelar de importância para o objeto da investigação e para a descoberta da verdade fosse desentranhada, destruída ou devolvida à Buscada.
3. A decisão de indeferimento não se mostra suficientemente fundamentada e parece não ter adesão aos fundamentos do requerimento da Buscada, invocando o artigo 179º n 3 do CPP que não foi invocado nem tem aplicação ao requerido, o que acarretaria a sua invalidade, pretendendo, no entanto, a Recorrente centrar a discussão no mérito e nas razões que impõem a revogação dessa decisão.
4. A Decisão Recorrida incorre numa errada interpretação e aplicação do Direito, violando, em particular as normas que decorrem dos artigos 124.º , 180.º n.º 2, 184.º, 186.º n.º 1, 178.º n.º s 1 e 7 do CPP e 16.º n.º 3 da Lei do Cibercrime, o que redunda numa restrição desproporcionada (e, como tal, violação) dos direitos, liberdades e garantias da Recorrente à proteção dos seus segredos de negócio, enquanto refração do direito fundamental à propriedade, consignado no artigo 62.º, n.º 1 da CRP e à livre iniciativa económica, consagrada no artigo 61.º, n.º 1 da CRP, todos em conjugação com os artigos 12.º e 18.º também da Constituição, e, bem assim, nos mesmos termos, do direito fundamental à reserva da vida privada da ... e dos seus colaboradores, tal como consagrado no artigo 26.º n.º 1 da CRP, também conjugado com aqueles artigos 12.º e 18.º da Constituição, do direito à autodeterminação pessoal e à proteção dos dados pessoais, decorrente do artigo 35.º n.º s 1, 2 e 4 da CRP, e da proteção de sigilo profissional de advogado, protegido pelo princípio da tutela jurisdicional efetiva, ínsito no artigo 20.º da CRP.
5. A correta interpretação dos artigos 124.º, 180.º n.º 2, 184.º 186.º, n. 1, 178.º, n.ºs l e 7 do CPP e 16.º n.º 3 da Lei do Cibercrime é a de que:
(i) a apreensão só deve versar sobre os elementos que forem relevantes para a prova (artigos 124.º e 178.º do CPP);
(ii) se possível, os objetos apreendidos devem ser selados (artigo 184.º do CPP);
(iii) no caso de estar perante dados pessoais ou íntimos, os mesmos devem ser apresentados ao juiz para que o mesmo pondere a sua junção aos autos (artigo 16. º n.º 3 da Lei do Cibercrime);
(iv) documentos abrangidos pelo segredo profissional não podem ser apreendidos (artigo 180.º n.º 2 do CPP); e
(v) os restantes elementos serão sujeitos a uma ponderação pelo Ministério Público e, aqueles que não forem relevantes para a descoberta da verdade, podem ser restituídos, o que ao seu titular pode requerer (artigo 186.º n. º 1 do CPP).
6. O primeiro pedido da ... (a documentação apreendida ser selada até que, com a colaboração da Buscada ou por quem a represente, for determinada a sua relevância para a investigação e determinada a sua efetiva junção aos autos) deveria ter sido deferido, porquanto a lei prevê expressamente a possibilidade de os objetos apreendidos serem selados, sendo a selagem uma forma de preservação e proteção dos elementos apreendidos com assento legal, que assegura a autenticidade dos elementos e a sua proteção face a terceiros.
7. A selagem permite preservar os dados pessoais de colaboradores da ..., segredos de negócio da mesma e, eventualmente, sigilo profissional, protegidos pelo direito à privacidade e à vida privada do artigo 26.º da CRP e pelo direito à autodeterminação pessoal, decorrente do artigo 35.º n.ºs 1, 2 e 4 da CRP, pelo direito fundamental à propriedade, consignado no artigo 62.º, n. 0 1 da CRP e à livre iniciativa económica, consagrada no artigo 61.º, n.º 1 da CRP e pelo princípio da tutela jurisdicional efetiva, ínsito no artigo 20.º da CRP, respetivamente, até que seja possível fazer o teste de ponderação exigido pelo artigo 18.º n.º 2 da CRP para a manutenção dos elementos sob essa proteção nos autos, o que apenas ocorre no momento da relevação da prova. Até esse momento, e não sendo possível concluir até então que a afetação daqueles direitos é necessária, adequada e proporcional à investigação e à produção de prova nestes autos, não há razões para restringir esses direitos, liberdades e garantias nem razões para negar a selagem dos elementos apreendidos.
8. O segundo pedido da ... (a documentação com interesse para a descoberta da verdade e boa decisão da causa e que contenha informação confidencial e sensível seja integrada por apenso confidencial aos autos, restringindo-se a publicidade e o respetivo acesso por terceiros, que não sujeitos processuais) deveria também ter sido deferido porquanto, se se detetarem, aquando da relevação da prova, elementos que devam manter-se nos autos por serem relevantes para a descoberta da verdade e que tenham informação confidencial e sensível, pode (e deve) ser restringido o acesso aos mesmos, por via do disposto no artigo 86.º n.º 7 do CPP, limitando a afetação daqueles direitos, liberdades e garantias em cumprimento do disposto no artigo 18.º n.º 2 da CRP, ou seja de forma necessária, adequada e proporcional aos fins da investigação, que não ficam colocados em crise pelo peticionado pela ....
9. O terceiro pedido da ... (a documentação que não for objeto de seleção pelo Ministério Público, por não se revelar de importância para o objeto da investigação e para a descoberta da verdade seja desentranhada, destruída ou devolvida à Buscada) também deveria ter sido deferido, porquanto se, no momento da relevação da prova, forem detetados elementos que extravasam o mandado e não são relevantes para a descoberta da verdade, os mesmos podem e devem ser devolvidos à Recorrente, por não serem relevantes para a prova (nos termos do disposto nos artigos 124.º, 178.º do CPP), devendo ser eliminados dos autos, ao abrigo do disposto no artigo 18.º n.º 2 da CRP, por não haver fundamento para a restrição dos direitos fundamentais da ...
10. A Decisão Recorrida deve, assim, ser revogada e substituída por outra que decida pelo deferimento do requerimento da Recorrente de ........2023 ou, pelo menos, por outra que decrete medidas alternativas que assegurem o exigido balanceamento entre a afetação daqueles direitos fundamentais e a prossecução dos fins da investigação, necessariamente compatíveis com a proteção adequada da confidencialidade da informação contida nos documentos apreendidos, o que desde iá se requer.
(…)».
3. Na primeira instância, o Exm.º Procurador-Adjunto do Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, entre o mais, porque, resumidamente:
- Não há pertinência ou necessidade de os documentos apreendidos serem selados, pois o art. 184º do Código de Processo Penal apenas deverá ter aplicação quando a selagem seja efetivamente necessária à conservação da prova, sob pena de se tornar uma diligência inútil, em contrário do princípio da economia processual;
- Quanto à constituição de apenso confidencial integrando os elementos apreendidos, o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal não se pronunciou nem tinha que pronunciar-se acerca desse pedido porque não é sua função constitucional e legal decidir como se organiza o inquérito e respetivos apensos, sendo que o Ministério Público já organizou o inquérito de modo a salvaguardar os interesses da confidencialidade da buscada por despachos de fls. 2902 a 2906 e 3032 e 3033;
- Atenta a fase inicial da investigação, e tendo sido interpostos, estando pendentes, recursos, com efeito suspensivo, do despacho judicial que autorizou a realização das buscas com apreensão de correio eletrónico na sede da recorrente, o Ministério Público ainda não pôde iniciar a análise dos elementos apreendidos, aguardando as decisões do Tribunal da Relação de Lisboa.
(…)».
4. Neste Tribunal da Relação, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer acompanhando integralmente o teor da resposta apresentada pela Senhora Procuradora na primeira instância, e aduzindo ainda que:
«(…)
no essencial, o que o despacho recorrido veio dizer, em concordância com a promoção do Ministério Público, é que se deve distinguir entre o momento da apreensão da prova e o momento da revelação da prova, sendo que, aquando da apresentação do requerimento da Recorrente, ainda não se tinha dado cumprimento ao estatuído no art. 179.º, nº3, do Código de Processo Penal, e demais disposições aplicáveis.
Com efeito, importa ter presente que no momento da apreensão o que verdadeiramente interessa é a recolha de elementos e documentos suscetíveis de alicerçar as suspeitas existentes da prática dos ilícitos em investigação, sendo que a questão dos segredos e/ou da reserva da privacidade dos visados só se poderá colocar no momento seguinte, que será o da revelação formal dos conteúdos dos aludidos documentos.
E, caso no momento da revelação dos conteúdos dos documentos apreendidos venham a ser detetados elementos que não tenham relevância para a descoberta da verdade e esclarecimento dos factos em investigação, os mesmos sempre podem e devem ser restituídos à ora Recorrente (cfr. art. 179.º, nº3, do Código de Processo Penal).
(…)».
Pugna igualmente pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.
5. Foi cumprido o disposto no art. 417º/2 do Código de Processo Penal, sem resposta.
6. Realizado exame preliminar e colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, n.º 3, al. c) do citado código.
II- FUNDAMENTAÇÃO
1. QUESTÕES A DECIDIR
Em conformidade com o disposto no art. 412º/1 do Código de Processo Penal, o objeto do recurso, cingindo-se ao conteúdo da decisão recorrida, é delimitado pelas conclusões da motivação apresentada pelo recorrente, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme decorre da leitura conjugada do disposto nos arts. 119º/1, 123º/2 e 410º/2, a), b) e c), do Código de Processo Penal.1
São, assim três as questões a decidir:
- A apreensão da documentação resultante da busca realizada nas instalações da sociedade recorrente está sujeita a selagem e/ou a qualquer outro procedimento destinado a garantir o segredo do seu conteúdo?
- Deveria ter sido ordenado pelo Juiz de Instrução Criminal que os elementos que fossem selecionados com pertinência para a prova contendo informação confidencial fossem integrados em apenso confidencial, restringindo-se a publicidade e o respetivo acesso por terceiros, que não sujeitos processuais;
- Deveria ter sido ordenado pelo Juiz de Instrução Criminal que a documentação que não fosse objeto de seleção pelo Ministério Público, por não se revelar de importância para o objeto da investigação e para a descoberta da verdade, fosse desentranhada, destruída ou devolvida à buscada?
2. DECISÃO RECORRIDA E ENQUADRAMENTO PROCESSUAL
2.1 É do seguinte teor a decisão recorrida manuscrita e datada de .../.../2023 [transcrição]:
«(…)
Fls. 2293/2294:
S/ ponto I – Requerimento de ... c/ referência a fls. 2146 a 2149 e 2335 a 2249.
As diligências de busca foram efectuadas a coberto de mandados de Busca emitidos por autoridade judiciária competente, acompanhados de despacho judicial autorizativo da pesquisa em ficheiros electrónicos.
Seguir-se-á o cumprimento dos dispositivos legais aplicáveis quanto à visualização, no amparo do artigo 179.º, 3 do CPP.
Não há motivo legal para selagens, o que frustraria a investigação.
Há que distinguir entre o momento da apreensão da prova e o momento da relevação da prova.
Para operar a relevação tem que se cumprir o artigo 179º do CPP logo que possível/viável.
Indefere-se o requerido.
Notifique.
(…)».
2.2 Veio este despacho na sequência de requerimento da aqui recorrente de fls. 2146 a 2148, com o seguinte teor [transcrição]:
«(…)
...("Johnson"), pessoa coletiva com n.º ..., com sede no ..., vem, na qualidade de entidade visada pela diligência de busca (doravante "Buscada"), muito respeitosamente e na decorrência das mesmas, expor e requerer a V. Exas. o seguinte:
1. Conforme se alcança do auto de apreensão, no tocante aos dados informáticos apreendidos, os mesmos comportam um volume de dados de dimensão considerável, incluindo, designadamente:
(i) ficheiros informáticos de diversa índole; e
(ii) documentação contabilística de diversa natureza.
2. Relativamente ao conjunto de ficheiros informáticos apreendidos, parte dos mesmos foram selecionados com recurso a pesquisas realizadas no sistema informático da Buscada, com recurso a keywords.
3. Apesar do recurso a keywords, a Buscada não exclui que parte dos documentos apreendidos respeitem a matérias que não tenham qualquer ligação aos factos em investigação, atenta a abrangência das keywords utilizadas. Da mesma forma, a Buscada não exclui que parte dos documentos apreendidos possam ter natureza pessoal, respeitando à vida pessoal dos seus colaboradores. Por último, a Buscada também não exclui que parte dos documentos apreendidos possam estar protegidos por sigilo, nomeadamente de advogado.
4. A Buscada desde já se reserva o direito, logo que lhe seja dada oportunidade de analisar o conteúdo do que foi apreendido, de invocar as razões que possam sustentar a invalidade da apreensão de algum(ns) documento(s), por extravasamento temporal ou material do mandado e/ou por serem confidenciais por respeitarem à vida pessoal dos seus colaboradores.
5. No que respeita à informação contabilística, foram apreendidas informações referentes aos anos de ... a ..., em particular Diários de Contabilidade, que contêm muita informação que não tem qualquer ligação material com o escopo da investigação nem com os factos descritos no despacho que fundamenta a realização da diligência.
6. Quanto a toda essa informação cuja apreensão extravasa o âmbito do mandado conferido, requer-se que, logo que seja extraída a informação considerada relevante para a investigação, a mesma seja devolvida à Buscada e eliminada dos autos, por não ter qualquer relevância para a investigação e respeitar a informação sensível da Buscada, sobre a sua contabilidade e vida empresarial.
7. Nesse sentido, requer-se a V. Exas. que sejam devidamente guardadas a informação e a documentação apreendidas na presente diligência, apreendidas em suporte digital, e que, tendo em atenção a respetiva natureza sigilosa ou protegida (máxime segredos de negócios, segredos profissionais de advogados e dados pessoais, sensíveis ou não), seja determinada a sua selagem e exclusão da respetiva publicidade, nos termos do disposto no artigo 86.º n.º 7, do Código de Processo Penal ("CPP"), e em respeito pelo disposto nos artigos 12.º n.º 2, 18.º n.º s 1 e 2 e 61º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa ("CRP").
8. Desde já se consigna a disponibilidade e vontade da Buscada para auxiliar o Ministério Público no ato de definição da concreta documentação, física ou digital, a ser abrangida pela requerida selagem e exclusão de publicidade, para que, após, seja determinado — consoante os casos — o desentranhamento, destruição ou devolução à Buscada, dos elementos apreendidos que não se revelam com interesse para a investigação em curso nos presentes autos.
9. Em síntese, e sem prejuízo de reações adicionais a apresentar quando for possível analisar o manancial de informação apreendida, requer-se que:
- Seja a documentação hoje apreendida tida e tratada como confidencial, por respeitar a segredos de negócios e, por conseguinte, mantida selada até ao momento em que, com a colaboração da Buscada ou por quem a represente, for determinada a sua relevância para a investigação e determinada a sua efetiva junção aos autos;
- No tocante à documentação que no entender da investigação tiver interesse para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, requer-se que a mesma seja integrada por apenso confidencial aos autos, restringindo-se a publicidade e o respetivo acesso por terceiros, que não sujeitos processuais;
- Relativamente à documentação que não for objeto de seleção pelo Ministério Público, por não se relevar de importância para o objeto da investigação e para a descoberta da verdade, requer-se, consoante os casos, o desentranhamento, destruição ou devolução à Buscada, dos elementos apreendidos que não se relevam com interesse para a investigação em curso nos presentes autos.
10. No âmbito desta diligência, foi também iniciada a cópia da caixa de correio eletrónico de AA, colaboradora da ..., a qual se mantém a ser extraída do sistema informático da Buscada, não estando ainda terminada a extração dos ficheiros.
11. Uma vez que não foi, na presente data, apreendido qualquer mensagem de correio eletrónico obtida na caixa de correio da referida colaboradora, a Buscada reserva-se o direito de, quando tal ocorrer, requerer o que tiver por conveniente.
(…)».
2.3 O auto de busca e apreensão a que diz respeito o recurso tem o seguinte teor:
«(…)
Foi efetuada a entrega do duplicado do Mandado de Busca e cópia do despacho do Ex.mo Sr. Juiz de Instrução, de fls. 1822, 1835 e 1862. No decorrer da diligência, foi remetido à Exma. Sra Dra BB, via faxe, para a ..., na qualidade de mandatária da sociedade ..., o documento proferido no dia de hoje, cuja cópia se junta, rubricada pela Sra. Procuradora, no qual se esclarece o sentido da decisão do MM. JIC, Dr. CC, relativamente ao decidido, por despacho datado de ... de ... de 2023, sobre as pesquisas informáticas. —
A diligência de busca foi iniciada na presença de DD, BI 11709129, ... interna da empresa buscada, diligência que também foi acompanhada por EE, BI 10979182, Diretora Financeira da buscada, e por FF, BI 10101538, Analista Sénior de Software, em outsourcing na sociedade "..." e que presta apoio informático à empresa buscada. -
Pelas 10h50, chegou ao local a Dra. GG, ... no escritório ..., com a cédula profissional 52257L. ---
Pelas 11h15, chegaram ao local a Dra. HH, ... no escritório ..., cédula profissional n.0 63314L, e II, BI 11007970, Diretora-Geral da empresa buscada. ---
Pelas 11h35, chegaram ao local o Dr. JJ, Advogado, cédula profissional n. 0 50940L, e Dra. KK, ... Estagiária, cédula profissional n. 0 48508L, ambos do escritório ....
Pelas 12:15, chegou ao local o Dr. LL, advogado no escritório ..., cédula profissional n. 0 61286L. ---
Pelas 12h30, saíram do local os Especialistas MM e NN, exercendo o direito de greve às horas fora do normal horário de trabalho. —
Pelas 14h00, regressaram os Especialistas MM e NN. —
Pelas 14h00, chegou ao local a Dra. BB, ... no escritório ..., cédula profissional n. 0 17184L. —
Pelas 18h00, saíram do local os Especialistas MM e NN, exercendo o direito de greve às horas fora do normal horário de trabalho.
A diligência deu o seguinte resultado:
Percorridas as instalações da sociedade buscada, situadas no segundo piso, foi localizado e apreendido o seguinte: ---
DOC. 1 — Uma pen USB, da marca ..., capacidade de 256 GB, contendo uma pasta denominada "Documentação Contabilística", uma outra pasta denominada "Hosp Sra Oliveira Contratos" e outra pasta denominada "...-...-2023 Protocolos" acondicionada em saco de prova de uso nesta Polícia da série A 126144.
--A pasta "Documentação Contabilística" contém: ---
--- Diversos prints relativos aos donativos efetuados pela "..." no período relativo aos anos de ... a ...;
--- Balancetes gerais dos anos de ..., ... a ... das entidades "...', "..." e "... "que partilham o mesmo número identificativo de pessoa coletiva ... - "..."; No que respeita ao ano de ..., o balancete geral da entidade "...", no qual a identificação das contas encontra-se descrita pelo código americano, havendo necessidade de efetuar comparação com os outros balancetes recolhidos para identificação da conta SNC, uma vez que não foi possível efetuar a recolha nos mesmos trâmites dos restantes anos;
--- Extrato de conta corrente da sociedade "...", única entidade com movimentos nos anos de ... a ...;
--- Fatura n 0 436S4300004956 da "..." de ........2018 referente à aquisição do equipamento médico denominado "... no valor de €246.000,00 e comprovativo de pagamento;
--- Diário de movimentos da entidade" ..."dos anos de ... a .... ...; ---Guias de remessa dos anos de ... a ..., ... e ... do equipamento fornecido pela "..." ao ..., acompanhado por algumas fotografias relativas a esse equipamento no início do ano de ...; ---
--- Cálculo do Rappel dos anos ... a ... "...", concretamente "..." e notas de crédito emitidas nos anos de ..., ... e ...; ---
--- PDF's das faturas: n ... - Ril 0450 de ........2016 da sociedade "..." no valor de €61.500,00; n o 17032208 - RI 10450 de ........2017 da sociedade "..." no valor de €67.650,00; n. ... — RI 10450 de ........2023 da sociedade "..." no valor de El 4.760,00 e n. ... - RI 10450 de ........2023 da sociedade" ...", no valor de €73.800,00; ----
--- Mapas de Excel relativos aos recebimentos diários da sociedade "..." dos anos de ... a ........2023; ---
--- Mapa de reconciliações do ... dos anos ... a ...; ---
--- Documento Word relativo a prints dos clientes inativos e sem movimentos dos anos de ... a ...; ---
--- Mapa de excel da conta corrente dos clientes da sociedade "..." dos anos de ... a ...; ---
--- No que respeita aos balancetes analíticos dos meses de ... dos anos de ... a ..., EE, diretora financeira da sociedade buscada, transmitiu que desconhece que tal documento exista e que não tem, nem nunca teve na sua posse esse documento, tendo solicitado o mesmo a diversos parceiros, concretamente junto dos serviços da ..., entidade responsável peia transmissão dos dados contabilísticos/financeiros que lhe são transmitidos pela sociedade ... à Autoridade Tributária; bem como junto do parceiro OO, Senior Tax Manager do Sh Tax, em ...; -
--- Por não terem sido fornecidos os balancetes analíticos, foram solicitados e apreendidos os documentos que infra e de imediato se irão descrever: ---
--- Declaração IES dos anos de ... a ... (apreendidas). Relativamente aos anos de ... e ... não se encontram disponíveis no site da Autoridade Tributária, pelo que não foi possível efetuar a sua recolha, tendo EE, diretora financeira da sociedade buscada, solicitado prazo para fazer chegar aos autos essa informação. No que concerne ao ano de ... este ano ainda não se encontra fechado, pelo que a respetiva declaração não foi junta.---
---No que respeita ao ficheiro SAFT integrado dos anos de ... a ..., essa informação, que de acordo com EE, diretora financeira da sociedade buscada, não se encontra compilada, tendo a mesma solicitado prazo para fazer chegar aos autos essa informação, esclarecendo, no entanto, que a mesma não se mostra produzida e que a sua compilação é de difícil realização, senão mesmo impossível, sendo certo que apurou junto da ... que o relativo ao ano de ... já se encontra em fase de conclusão. Foi ainda informado, pela Dra. GG que nos anos de ... a ... o parceiro não era a ... era o parceiro centro de excelência ..., em ..., o que foi corroborado pela Dra. EE
---No que respeita ao ficheiro SAFT das vendas dos anos de ... a ..., de acordo com EE, diretora financeira da sociedade, essa informação não pode ser entregue no ato, uma vez que os serviços que têm essa informação na sua posse - a ... - de momento já se encontra encerrada, solicitando, -----Por conseguinte, prazo para fazer chegar aos autos essa informação; ---
---No que respeita à demonstração de resultados dos anos de ... a ..., não foi fornecida essa informação autonomamente, tendo sido transmitido por EE, diretora financeira da sociedade buscada, que essa informação se encontra plasmada nas declarações IES; ---
--- No que respeita aos fluxos de caixa dos anos de ... a ..., não foi fornecida essa informação uma vez que, segundo foi transmitido por EE, diretora financeira da sociedade buscada, não possuem conta caixa, apenas possuindo conta bancos, como é percetível pelos balancetes gerais; ---
--- No que respeita à documentação de suporte aos lançamentos nos extratos de conta corrente do cliente ..., apurou-se que o seu total ascenderá a cerca de 12.500 documentos, o que foi transmitido por PP — assistente de controlo de crédito da sociedade buscada. Por esta, foi ainda referido que o sistema que utilizam na sociedade apenas permite a extração de cem ficheiros de cada vez e que nalgumas situações bloqueia. Começou então a extrair documentos do ano de ... e no período de cerca de 45 minutos apenas conseguiu extrair setenta e seis documentos. Esta informação foi transmitida à Sra. Procuradora para posterior tomada de posição. ---
--- A pasta "Hosp Sra Oliveira Contratos” (apreendida), contém documentação relativa aos contratos celebrados entre a ... e o ... dos anos de ... parcial, ... a .... Relativamente aos contratos celebrados com o ..., em ... (...), referente a parte de ..., ... e ..., foi transmitido pela Sra. Dra. GG que não existe digitalização da referida documentação e que os suportes físicos se encontram no arquivo morto, fora das instalações, em concreto nas instalações da ..., sitas no ..., pelo que foi pela mesma solicitado que lhe fosse concedido prazo para proceder à sua entrega nos autos.---
--- Em relação aos contratos de ..., foi transmitido pela Dra. GG, que se encontram em fase de assinatura, aguardando-se que alguns, sejam assinados por ambas partes. ---
--- A pasta "...-...-2023 Protocolos" contém protocolos celebrados entre a sociedade ... e o ... dos anos de ... a .... ---
-- Não foram localizados documentos referentes a: 1. contratos e/ou protocolos e/ou acordos celebrados entre a buscada e a ... e o ...; e, 2. documentos referentes a participação em ensaios clínicos dos médicos QQ e RR.
--Relativamente à componente informática: ---
--- Recorrendo a ferramentas forenses certificadas internacionalmente e em uso por todas as congéneres para buscas em ambiente digital, foram realizadas pesquisas informáticas com base nas palavras-chave fornecidas pela investigação. As pesquisas foram realizadas nas pastas armazenadas remotamente no servidor de ficheiros da empresa visada, através da conta de utilizador da funcionária SS, na seguinte localização: "jnjptdfsroot (\\eu.ini.com)" pasta "JNJPTQL" e subpastas. Das pesquisas realizadas resultou a apreensão de vários ficheiros informáticos do tipo documento, que foram vertidos em relatório digital e gravados em suporte ótico (DVD). O suporte ótico digital foi acondicionado em saco de prova com a referência SÉRIE B 099160, tudo conforme relatório preliminar de colaboração em diligências, anexo ao presente auto e que dele faz parte integrante. ---
--- As palavras-chave utilizadas foram: ... / ... / ... / Unidade de Diagnóstico e de Intervenção Cardiológica / TT / QQ / RR / UU / VV / WW / XX / ... - NIPC ... / .... - MPC ... / Alfa 4R .... - NIPC ... / Alfa 4R II Unipessoal Lda. - MPC ... / .... - NIPC ... / .... - MPC ... / ... – MPC ... / YY, Unipessoal Lda. - NIPC ... / .... NIPC .../ ... - NIPC ... / ... – NIPC ... / .... - NIPC ... / .... - NIPC .... ---
--- Foi ainda identificada e foi dado inicio ao processo de recolha, no espaço de servidor de correio eletrónico, sem qualquer acesso e/ou visualização de conteúdos, a caixa de correio eletrónico pertencente ao utilizador ... pertencente a SS. Atendendo ao tamanho da caixa de correio a extrair (cerca de 89,62 Gb) e ao facto de decorridas cerca de duas horas apenas terem sido extraídos cerca de 8 Gb, donde se constata a morosidade do processo de extração, dado o adiantado da hora, a sala (3.15) onde se encontra o computador para o qual está a ser extraída a caixa de correio foi neste ato selada, o que sucedeu pelas 20h45, com os selos de segurança n. 0s ..., ..., ... e .... À hora da selagem a quantidade de informação extraída era a de 15.86 Gb. No dia de amanhã será dada continuidade à extração e/ou cópia do conteúdo da referida caixa de correio eletrónico para um suporte que será junto aos autos, sendo de tal lavrado o competente auto.
---Nada mais foi encontrado com interesse para os autos. ---
--- A sociedade buscada, ..., apresentou procuração, que se junta rubricada pela Sra. Procuradora.
--- Concluída a leitura do presente auto, foi pedida a palavra pela Dra. BB que no seu uso disse que, no decurso da diligência a ..., solicitou cópia dos elementos aqui acima apreendidos e que se encontram supra descritos o que não foi verbalmente autorizado. Nesta sequência, renovou o aludido requerimento para que sejam disponibilizadas cópias de todos os elementos apreendidos com a brevidade possível, de modo a que os mesmos possam ser cabalmente analisados e suscitadas eventuais questões relacionadas com a respetiva apreensão. Termos em que, dada a impossibilidade de análise de toda a documentação apreendida durante a diligência e a circunstância de não terem sido entregues as cópias, requer que tais fatores sejam considerados justo impedimento para efeitos de início de prazo para potenciais reações às apreensões em causa. Tudo para efeitos do disposto nos artigos 183.º do Cód. Proc. Penal e 20.º da CRP.
- Pela Dra. GG foi requerida cópia deste auto; assim como a junção de requerimento, relacionado com a salvaguarda de informação confidencial da empresa e dos seus colaboradores que foi apreendida.
- Relativamente aos prazos que foram solicitados para a entrega dos vários documentos que acima estão descritos, pela Sra. Procuradora foi proferido o seguinte despacho:---
"Para a entrega das declarações IES relativas aos anos de ... e ..., do ficheiro SAFT integrado dos anos de ... a ..., bem como do ficheiro SAFT das vendas dos anos de ... a ..., concede-se o prazo de 30 dias, sem prejuízo de eventual prorrogação a ser decidida pela titular do inquérito.-—
Para a entrega da documentação de suporte aos lançamentos nos extratos de conta corrente do cliente ..., dado o seu extenso volume e a morosidade da sua extração, concede-se o prazo de 30 dias, sem prejuízo de eventual prorrogação a ser decidida pela titular do inquérito.--
---Para a entrega dos suportes físicos dos contratos celebrados com o ..., em ... (...), referente a pane de ..., ... e ..., concede-se o prazo de 30 dias, sem prejuízo de eventual prorrogação a ser decidida pela titular do inquérito. —
---Para a entrega do projeto de criação e instalação de equipamentos na ..., concede-se o prazo de 30 dias, sem prejuízo de eventual prorrogação a ser decidida pela titular do inquérito.
No que concerne à apreciação do requerimento apresentado pela Senhora Dra. BB, ditado para este auto, consigna-se que tal ficará a cargo da Sra. Procuradora da República titular do inquérito, pelo que, neste ato, não se irá sobre ele tomar posição.
No que concerne ao requerimento ditado para este auto pela Senhora Dra. GG, defere-se a requerida cópia do presente auto, nos termos do disposto no artigo 183.º n.º 2 do Cód. Proc. Penal.
No que se refere ao requerimento apresentado pela Senhora Dra. GG, admite-se a sua junção aos autos, o que se fará rubricado pela signatária, sendo que a sua apreciação ficará a cargo da Sra. Procuradora da República titular do inquérito, pelo que, neste ato, não se irá sobre ele tomar posição.
Notifique.
(…)».
2.4 Com data de .../.../2020, foi elaborado documento designado de Relatório Preliminar com o seguinte teor [transcrição]:
«RELATÓRIO PRELIMINAR
-----Aos vinte dias do mês de junho do ano dois mil e vinte e três, os Especialistas de Polícia Científica NN e MM, a exercer funções no ..., no âmbito das buscas não domiciliárias presididas pelo Mmo. Juiz de Direito ZZ, a que diz respeito o NUIPC 1526/19.8..., iniciaram as pesquisas forenses em vários computadores e sistemas informáticos, pertencentes à empresa ..., sita em ....
---Foram realizadas pesquisas informáticas com base nas palavras-chave fornecidas pela investigação. As pesquisas foram realizadas nas pastas armazenadas remotamente no servidor de ficheiros da empresa visada, através da conta de utilizador da funcionária SS, na seguinte localização: “jnjptdfsroot (\\eu.jnj.com) "pasta '"JNJPTQL" e subpastas. Das pesquisas realizadas resultou a apreensão de vários ficheiros informáticos (documentos), que foram vertidos em relatório digital e gravados em suporte ótico (DVD), o relatório digital foi criado em dois formatos distintos (PDF e HTML) de forma proporcionar maior compatibilidade de leitura. O suporte ótico digital foi encerrado em saco de prova com a seguinte referência: SÉRIE B 099160, que se anexa ao presente relatório.
---Os itens anteriormente mencionados foram encerrados, sem qualquer visualização, em suporte de armazenamento autónomo. Foi efetuada a certificação digital dos elementos recolhidos.-------
---A diligência deu-se por terminada no dia .../.../2023, pelas 15h00.
(…)».
3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
3.1 QUESTÃO PRÉVIA
Muito embora se censure no recurso a fundamentação da decisão recorrida por insuficiente e por «não ter adesão aos fundamentos do requerimento da Buscada, invocando o artigo 179º n 3 do CPP que não foi invocado nem tem aplicação ao requerido, o que acarretaria a sua invalidade», logo em seguida a recorrente deixa claro que pretende, apesar disso, «centrar a discussão no mérito e nas razões que impõem a revogação dessa decisão», assim, prescindindo da invocação de vício formal da mesma.
Ora, ainda que pudesse divisar-se eventual irregularidade deste despacho por falta de fundamentação, nos termos das disposições conjugadas do disposto nos arts. 97º/1, b) e 5, e 123º, do Código de Processo Penal, e 205º da Constituição da República Portuguesa, nunca a mesma careceria de reparação oficiosa por não afetar o valor do ato praticado e termos subsequentes, conforme se constatará pela fundamentação deste acórdão.
Nessa medida, considera-se tal questão excluída do objeto do presente recurso.
3.2 DA SELAGEM DOS CONTEÚDOS DIGITAIS APREENDIDOS E A PROTEÇÃO DO SEGREDO
A recorrente ... vem no recurso sustentar que quando da apreensão de documentos decorrente de pesquisa informática realizada em dispositivos eletrónicos existentes nas suas instalações, deveriam os mesmos ter sido objeto de selagem como forma de garantir o segredo a que estarão sujeitos, até que com a sua colaboração seja determinada a sua relevância para a investigação e a sua efetiva junção aos autos.
Defende que a selagem dos objetos apreendidos se encontra legalmente prevista, sendo uma forma de preservação e proteção dos elementos apreendidos, que assegura a sua autenticidade e proteção face a terceiros; permite também preservar os dados pessoais dos seus colaboradores, segredos do negócio e eventualmente o sigilo profissional, até que seja possível fazer o teste de ponderação exigido pelo art. 18º/2 da Constituição da República Portuguesa e para manutenção dos elementos sob essa proteção, o que apenas ocorre no momento da relevação da prova.
Até esse momento, entende não haver razões para negar essa selagem e desse modo restringir os direitos à privacidade e à vida privada, previstos no art. 26º, e bem assim à autodeterminação pessoal, do art. 35º/1, 2 e 4, à propriedade, do art. 61º/1 e à livre iniciativa económica, do art. 61º/1, todos da Constituição da República Portuguesa, assim como o princípio da tutela jurisdicional efetiva ínsito no art. 20º deste diploma fundamental.
Recorre, por isso, do despacho que indeferiu o requerimento formulado nesse sentido junto do Juiz de Instrução Criminal.
O Ministério Público veio defender que ao abrigo do disposto no art. 184º do Código de Processo Penal não é necessária essa selagem para garantir a preservação da prova.
Quid iuris?
Vejamos antes de mais o quadro legal.
Como resulta do estatuído no art. 178º/1 do Código de Processo Penal, a apreensão de objetos, nos quais se incluem os documentos, visa, entre o mais, a preservação da prova do crime, garantindo a sua integridade e a conservação do seu valor comunicativo e probatório; processualmente, a apreensão visa ainda garantir a execução do confisco dos instrumentos, produtos e vantagens decorrentes da prática do crime.
Como nos diz João Conde Correia2, a apreensão estabelece, pois, sobre os bens apreendidos um vínculo de indisponibilidade com vista à sua futura utilização processual, sem o qual esses bens podem ser destruídos, desaparecer ou ser adulterados, perdendo-se a aptidão probatória que encerram, assim prejudicando a descoberta da verdade e o consequente exercício do ius puniendi estadual.
Importando a apreensão grave restrição, desde logo, do direito de propriedade sobre o bem, em obediência aos princípios da necessidade e da proporcionalidade em matéria de restrição de direitos liberdade e garantias, consagrados no art. 18º/2 da Constituição da República Portuguesa, deverá cingir-se ao estritamente necessário para prossecução do desígnio de conservação da prova em que se consubstancia o bem a apreender, quer quanto à sua extensão, quer quanto à forma de execução, quer ainda quanto à duração da indisponibilidade sobre o bem.
Neste quadro, estabelece o disposto no art. 184º do Código de Processo Penal, inserido no Título II- Dos meios de obtenção de prova, Capítulo III- Das apreensões, e sob a epígrafe «Aposição e levantamento de selos», o seguinte:
«Sempre que possível, os objetos apreendidos são selados. Ao levantamento dos selos assistem, sendo possível, as mesmas pessoas que tiverem estado presentes na sua aposição, as quais verificam se os selos não foram violados nem foi feita qualquer alteração nos objetos apreendidos.».
Na prática judiciária, na ausência de uma definição do que se entende por “selos”, o oficial de justiça ou o agente policial incumbido da tarefa procede, quando possível, ao fechamento do bem apreendido em local, recipiente ou invólucro próprio, com carácter de estanquicidade, apondo, na zona de fecho, chumbo, lacre ou cera, e mais recentemente cola quente ou cintas autocolantes cujo descolamento provoca a sua danificação, por forma a que qualquer acesso ao mesmo implique o levantamento ou violação desses “selos”, consoante seja ou não legítimo, sendo, por isso, sempre passível de ser detetado.
A aposição e o levantamento dos selos serão documentados no processo mediante auto lavrado nos termos do disposto no art. 99º do Código de Processo Penal, por forma a que fique registado qualquer acesso aos bens apreendidos, limitando e identificando as pessoas a quem esse acesso seja concedido, e as condições em que foi efetuado.
Sempre que possível, e é possível no caso dos documentos, deverá ainda proceder-se à sua junção ao processo, tal como preceitua o art. 178º/2 do Código de Processo Penal, passando a dele fazer parte integrante.
Com a previsão deste procedimento terá o legislador visado primacialmente acautelar a destruição, manipulação ou alteração do bem apreendido, impondo-lhe um selo oficial como forma de assinalar a sua sujeição ao poder público.
Pelo que, muito embora a aposição do selo sobre o bem apreendido não constitua garantia de inexistência de um acesso indevido ao mesmo, pois que poderá sempre ser violado, não deixa de configurar uma barreira, é certo, mais normativa do que física, erguida em ordem a garantir a sua integridade e manutenção de todo o seu potencial probatório.
E assim sendo, a não aposição de selos, quando possível, do ponto de vista formal, configura irregularidade processual com o regime previsto sob o art. 123º do Código de Processo Penal.
De um ponto de vista material, ou seja, do valor probatório do objeto da apreensão não sujeito a selagem sendo a mesma possível, mas não necessária à preservação da prova, não se suscitando dúvidas sobre a sua incolumidade, não resultará qualquer consequência ou diminuição em termos da comunicação probatória dele decorrente; todavia, não pode deixar de se admitir seja suscitada incidentalmente eventual contaminação da prova que ponha em causa esse potencial probatório, o que, diga-se, pode ocorrer mesmo com a existência de selagem caso, ainda assim, possa ter ocorrido acesso indevido ao bem apreendido.3
Do exposto resulta que, contrariamente ao que parece ser entendimento do Tribunal a quo, a regra é a da aposição de selos nos objetos apreendidos, nos termos gerais previstos sob o art. 184º do Código de Processo Penal, apenas se dispensando essa aposição quando não seja possível.4
Mas decorre também que essa aposição de selos visará primacialmente garantir a incolumidade do bem apreendido e preservar o seu valor comunicativo probatório; o que, não significa que não possa por essa via conferir-se igualmente proteção a segredo a que esteja sujeito o conteúdo dessa apreensão.
Com efeito, em situações particulares, já sinalizadas pelo legislador mediante consagração de regimes especiais de busca e apreensão, mercê da sensibilidade dos interesses em causa, seja pelo objeto da apreensão, seja pelos concretos locais em que se processa essa apreensão, a aposição de selos pode funcionar também como forma de proteger o segredo a que estejam sujeitos os bens apreendidos,5 pelo menos até que sejam admitidos como prova, caso a apreensão tenha essa finalidade.
Será o caso, nomeadamente, da apreensão:
- de correspondência – art. 179º do Código de Processo Penal -, aplicável também à correspondência eletrónica por via da remissão feita no art. 17º da Lei do Cibercrime aprovada pela L. 109/2009, de 15/09;
- em escritório de advogado ou em consultório médico – art. 180º do Código de Processo Penal, arts. 75º e 76º, do Estatuto da Ordem dos Advogados aprovado pela L. 145/..., de 09/09 e art. 16º/5 da Lei do Cibercrime;
- em escritório de solicitador ou agente de execução – art. 120º do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução, aprovado pela L. 154/..., de 14/09;
- em órgão de comunicação social – art. 11º/6,7 e 8 do Estatuto do Jornalista aprovado pela L. 1/99, de 01/01, e art. 16º/5 da Lei do Cibercrime;
- em estabelecimento bancário – art. 181º do Código de Processo Penal e art. 16º/5 da Lei do Cibercrime;
- de bens que contendam com os segredos profissional, de funcionário ou de Estado – arts. 135º, 136º, 137º e 182º, do Código de Processo Penal e art. 16º/6 da Lei do Cibercrime;
- de bens que possam contender com segredo comercial, industrial ou do chamado segredo do negócio (invenções, saber-fazer, processos de produção, técnicas de organização empresarial, técnicas de marketing, receitas, fórmulas, códigos-base de software, algoritmos, modelos e desenhos, protótipos, ideias, listas de clientes, análises de mercado, datas de lançamento de produtos, fórmulas e processos, códigos fonte, etc6) – arts. 318º, 331º e 352º do D.L. 110/..., de 10/12 que aprovou o Código da Propriedade Industrial, e arts. 15º/3, c), 20º e 30º, do Novo Regime Jurídico da Concorrência aprovado pela L. 19/2012 de 08/05.
Nestes casos será, pois, de admitir o recurso à aposição de selos como forma de garantir a preservação do segredo, pelo menos até ao momento em que exista uma decisão sobre a sua quebra e a relevação do objeto da apreensão para a prova; e mesmo depois de estarmos diante um elemento de prova, pode justificar-se a salvaguarda do segredo em relação ao mesmo, como decorre, por exemplo, do disposto no art. 352º do Código da Propriedade Industrial, acerca do segredo comercial, conforme adiante melhor se detalhará.
Sendo esta a regra geral a observar em matéria de apreensão de bens, no caso em mãos, estando em causa a apreensão de dados ou documentos informáticos, rege a norma especial do art. 16º da L. 109/2009, de 15/09, que aprovou a Lei do Cibercrime, nos termos da qual:
« (…)
3 - Caso sejam apreendidos dados ou documentos informáticos cujo conteúdo seja suscetível de revelar dados pessoais ou íntimos, que possam pôr em causa a privacidade do respetivo titular ou de terceiro, sob pena de nulidade esses dados ou documentos são apresentados ao juiz, que ponderará a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto.
(…)
5 - As apreensões relativas a sistemas informáticos utilizados para o exercício da advocacia e das atividades médica e bancária estão sujeitas, com as necessárias adaptações, às regras e formalidades previstas no Código de Processo Penal e as relativas a sistemas informáticos utilizados para o exercício da profissão de jornalista estão sujeitas, com as necessárias adaptações, às regras e formalidades previstas no Estatuto do Jornalista.

6 - O regime de segredo profissional ou de funcionário e de segredo de Estado previsto no artigo 182.º do Código de Processo Penal é aplicável com as necessárias adaptações.
7 - A apreensão de dados informáticos, consoante seja mais adequado e proporcional, tendo em conta os interesses do caso concreto, pode, nomeadamente, revestir as formas seguintes:
a) Apreensão do suporte onde está instalado o sistema ou apreensão do suporte onde estão armazenados os dados informáticos, bem como dos dispositivos necessários à respetiva leitura;
b) Realização de uma cópia dos dados, em suporte autónomo, que será junto ao processo;
c) Preservação, por meios tecnológicos, da integridade dos dados, sem realização de cópia nem remoção dos mesmos; ou
d) Eliminação não reversível ou bloqueio do acesso aos dados.
8 - No caso da apreensão efetuada nos termos da alínea b) do número anterior, a cópia é efetuada em duplicado, sendo uma das cópias selada e confiada ao secretário judicial dos serviços onde o processo correr os seus termos e, se tal for tecnicamente possível, os dados apreendidos são certificados por meio de assinatura digital.».

Como decorre do nº 8 do art. 16º da Lei do Cibercrime, está aqui prevista uma específica forma de preservação dos dados informáticos objeto de apreensão mediante busca em ambiente digital, através de certificação por meio de assinatura digital, mas que não dispensa a realização de cópia e selagem da mesma, para confiança ao secretário judicial.
Ou seja: estando em causa a apreensão de dados ou documentos informáticos a regra geral da selagem prevista sob o art. 184º do Código de Processo Penal, dá lugar ao regime especial aqui previsto.
*
Revertendo para o caso em mãos, postas estas premissas legais e a diferenciação do tratamento legal conferido consoante o tipo de bens apreendidos, não pode deixar de se notar a forma genérica e simplista como foi fundamentado no despacho recorrido o indeferimento do requerimento da recorrente para que se procedesse à selagem dos documentos apreendidos nas suas instalações.
Por um lado, estribando esse indeferimento numa suposta ausência de motivo legal para selagens, com o argumento de que tal frustraria a investigação, quando, na realidade, como decorre do que vimos de expor, a regra na apreensão de bens, e também de documentos, é a da selagem que, na apreensão de dados informáticos, é adaptada a essa específica natureza do objeto da apreensão; e a selagem ou qualquer outro procedimento destinado a assegurar a incolumidade do bem apreendido, como é óbvio, não impede nem frustra a investigação, na justa medida em que não veda o acesso ao bem apreendido, condicionando apenas os acessos ao mesmo, assim como permitindo um registo e controlo das pessoas que lhe podem aceder, tudo em ordem a garantir a sua incolumidade enquanto potencial elemento de prova, bem como, em certos casos, o segredo a que estejam sujeitos.
Por outro lado, o despacho recorrido parece ignorar o facto de terem sido objeto de apreensão outros documentos e em formato digital, para além de correio eletrónico, sendo que apenas a este será aplicável o disposto no art. 179º do Código Penal citado nesse despacho, por via da já indicada remissão do art. 17º da Lei do Cibercrime.
A recorrente parte da premissa de que está em falta a selagem das apreensões e que sem esse procedimento estão postos em causa o segredo a que estarão sujeitos os documentos apreendidos, nomeadamente o segredo do negócio, assim como, entre outros direitos, o direito à reserva da vida privada.
Ora, como resulta do que acabamos de expor, estando em causa dados e documentos informáticos obtidos em ambiente digital, o procedimento a adotar na sua apreensão não é já o geral, nomeadamente o da aposição de selos prevista no art. 184º do Código de Processo Penal, outrossim o regime especial previsto no art. 16º/7 e 8 da Lei do Cibercrime, por ser o considerado adequado e necessário a acautelar a incolumidade dos dados apreendidos.
Pelo que importa aferir se esse concreto procedimento, não o da selagem prevista no art. 184º do Código de Processo Penal, se mostra observado.
Vejamos o que consta dos autos a este propósito.
Atentando no auto de busca e apreensão acima transcrito, foram objeto dessa apreensão nas instalações da sociedade comercial recorrente documentos informáticos e em formato digital que podem repartir-se de acordo com a fonte/origem dos mesmos em três tipos:
- documentos contabilísticos e relativos a contratos/protocolos realizados pela recorrente com outras entidades no âmbito da sua atividade comercial acondicionados em pen USB, da marca ..., capacidade de 256 GB, contendo uma pasta denominada "Documentação Contabilística", uma outra pasta denominada "Hosp Sra Oliveira Contratos" e outra pasta denominada "...-...-2023 Protocolos";
- documentos extraídos de pastas armazenadas remotamente no servidor de ficheiros da recorrente, na localização: “jnjptdfsroot (\\eu.jnj.com) "pasta '"JNJPTQL" e subpastas; e
- correio eletrónico extraído da caixa de correio eletrónico correspondente ao utilizador ..., pertencente a SS.
Dos elementos processuais remetidos no presente apenso de recurso, quanto aos procedimentos adotados para a preservação do conteúdo destas apreensões consta a descrição exarada no auto de busca e apreensão cujo teor se transcreveu supra, e bem assim o «relatório preliminar», também acima transcrito.
Daí resulta que:
- a pen USB na qual se encontram gravados os documentos contabilísticos, contratos e protocolos, se encontra acondicionada em saco de prova de uso na Polícia Judiciária da série A 126144;
- os ficheiros informáticos obtidos na sequência das pesquisas realizadas por keyword nas pastas armazenadas no servidor de ficheiros da ora recorrente, na localização: “jnjptdfsroot (\\eu.jnj.com) "pasta '"JNJPTQL", se encontram gravados em suporte ótico (DVD), acompanhado de relatório digital, o qual foi encerrado em saco de prova com a referência: SÉRIE B 099160 anexa a relatório, sem qualquer visualização e com certificação digital dos elementos recolhidos.
Feita consulta no processo principal na parte que consta disponível no sistema CITIUS, constatamos ainda que em .../.../2023, ocorre remessa eletrónica do processo ao TCIC, referência 2106267, com a seguinte menção:
«Em ...-...-2023, em virtude de o presente inquérito se encontrar remetido ao TCCIC desde o dia ...-...-2023, junto se remete conclusão avulsa com a referência 2106121; bem como o expediente com a referência 1805650, e 1 (um) envelope castanho fechado, com uma etiqueta da PJ referindo “Apreensão 14-07-... ...”, em envelope selado, para acto jurisdicional (finalidade: “Distribuir”), ao : Lisboa – Tribunal Central Instrução Criminal – TCIC – JUIZ 1».
Seguiu com esta remessa ofício também de .../.../2023, da Polícia Judiciária, Unidade de Combate à Corrupção, dirigido à Sra. Procuradora da República, Dra. AAA, sob o assunto: “Remessa de expediente e suportes digitais”, no qual se alude à remessa do dispositivo de armazenamento onde se encontram gravados os ficheiros de correio eletrónico extraído da caixa de correio eletrónico correspondente ao utilizador ..., “devidamente acondicionado e fechado em saco de prova, para que seja levado ao primeiro conhecimento do Mm.º Juiz de Instrução Criminal”; é ainda mencionado em ofício anexo o facto de a extração destes elementos se haver concluído apenas em .../.../2023, mediante apreensão do dispositivo onde se encontravam gravados os ficheiros de correio eletrónico, em disco rígido interno, com a marca Seagate, ... ST4000NM 0115-1YZ107, “que se encontrava nas instalações da empresa, o qual foi acondicionado, sem qualquer visualização, no saco de prova Série C com o número 072232, devidamente fechado”.
É junto auto de apreensão de .../.../2023, em que se dá conta dos procedimentos técnicos que determinaram que apenas nessa data se tenha conseguido concluir a extração e apreensão do conteúdo da referida caixa de correio eletrónico, assim como documentando o levantamento dos selos colocados na sala onde desde .../.../2023, se tinha iniciado a operação de extração; foram ainda indicadas as assinaturas digitais relativas a tais ficheiros e cópias de segurança, com assinatura a final do auto de apreensão por todos os intervenientes, incluindo da representante legal e da mandatária da aqui recorrente.
Este expediente foi assim remetido ao TCIC com a promoção do Ministério Público para validação da apreensão do correio eletrónico nos termos do art. 179º/1, 3 e 6, do Código de Processo Penal, vindo a ser proferido em .../.../2023 despacho judicial de validação da apreensão do referido correio eletrónico.
Encontram-se pendentes recursos interpostos, nomeadamente, pela aqui recorrente em relação ao despacho judicial de .../.../2023, que autorizou a realização das pesquisas informáticas e apreensão de ficheiros informáticos e correspondência eletrónica armazenados em computadores, telemóveis e outros suportes.
Ora, de tudo o exposto, resulta que, no concernente aos documentos e dados informáticos objeto de apreensão nas instalações da aqui recorrente, quer os documentos em formato digital armazenados na pen USB, quer os extraídos de pastas armazenadas no servidor de ficheiros da recorrente, quer ainda o correio eletrónico extraído da caixa de correio eletrónico, foram cumpridos, pelo menos em parte, os procedimentos legalmente previstos, destinados à preservação da prova digital assim recolhida, mormente no disposto nos acima citados arts. 16º/7, b) e 8, da Lei do Cibercrime e 179º do Código de Processo Penal ex vi do art. 17º da Lei do Cibercrime
Assim, está documentado nos autos o acondicionamento dos suportes eletrónicos onde se encontram gravados os ficheiros correspondentes em sacos de prova fechados e numerados, sendo nos dois últimos casos, que são de extração de dados, com indicação de assinatura digital; aquele que continha o correio eletrónico foi apresentado em primeira mão ao Juiz de Instrução Criminal.
Estará, porventura, em falta a realização de um duplicado da cópia dos dados apreendidos, a selar e confiar, selada, ao secretário de Justiça, como prescrito pelo nº 8 do art. 16º da Lei do Cibercrime, parte final; isto porque não se divisa no expediente remetido que haja sido dado cumprimento a esta disposição.
Em suma: tratando-se de dados em formato digital e dados informáticos recolhidos em ambiente digital, com regime especial previsto no art. 16º da Lei do Cibercrime, não há lugar à selagem prevista para as apreensões em geral no art. 184º do Código de Processo Penal; dos autos resulta que foram adotados procedimentos legalmente previstos para assegurar a incolumidade desses dados e dessa apreensão, procedimentos que, do mesmo passo, garantem a reserva e o segredo que o seu conteúdo possa merecer; não se mostra, porém, documentada nos autos a operação prevista no nº 8 do art. 16º da Lei do Cibercrime, de duplicação da cópia dos dados que foi apreendida em diferentes suportes digitais, duplicado esse a confiar, depois de selado, ao Secretário de Justiça.
Assim, e muito embora seja a não selagem das apreensões que vem reclamada com o presente recurso, a qual, como vimos, não era devida nos termos gerais do art. 184º do Código de Processo Penal, mas verificando-se não ter sido integralmente observado o procedimento especificamente previsto para o tipo de apreensão em causa, que respeita a dados informáticos em formato digital, e que inclui a selagem de uma cópia dos dados a entregar ao Secretário de Justiça, entendemos proceder quanto a esta questão, ainda que parcialmente, o recurso.
*
3.3. DA RESTRIÇÃO DA PUBLICIDADE SOBRE DOCUMENTAÇÃO RELEVANTE PARA A PROVA E DESTRUIÇÃO/DEVOLUÇÃO DA DOCUMENTAÇÃO NÃO RELEVANTE PARA A PROVA
Peticionou ainda a recorrente junto do Tribunal a quo que:
- a documentação com interesse para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, mas de conteúdo confidencial e sensível fosse integrada por apenso confidencial aos autos, restringindo-se a publicidade e o respetivo acesso por terceiros, que não sujeitos processuais, com base no disposto no art. 86º/7 do Código de Processo Penal, e art. 18º/2 da Constituição da República Portuguesa, ou seja, de forma necessária, adequada e proporcional aos fins da investigação;
- a documentação que não for objeto de seleção pelo Ministério Público, por não se revelar de importância para o objeto da investigação e para a descoberta da verdade seja desentranhada, destruída ou devolvida, por força do disposto nos arts. 124º e 178º, do Código de Processo Penal, e do art. 18º/2 da Constituição da República Portuguesa, por falta de fundamento, nesse caso, para a restrição dos direitos fundamentais da ...
Sobre estas questões, o despacho recorrido nada refere em específico, dele decorrendo apenas com interesse que, no entender do Mm.º Juiz de Instrução Criminal, este não será ainda o momento para aferir das questões suscitadas por não ser o momento da “relevação da prova”, mas apenas da sua apreensão.
E, de facto, assim será.
Com efeito, sendo desconhecido o conteúdo dos documentos apreendidos, não se sabendo sequer se estão ou não sujeitos a algum tipo de segredo, cremos também que não haverá muito a dizer para além do que consta das normas legais em matéria de prova e do tratamento a dar à documentação digital apreendida, em conjugação com as regras sobre segredo, nomeadamente as supra indicadas, e da reserva de publicidade nos termos do art. 86º do Código de Processo Penal, normas que vinculam todos os operadores judiciários que tomarem contacto com tal documentação, sem necessidade de prolação de despacho judicial para esse efeito.
É que, os dados recolhidos nas instalações da recorrente terão que ser objeto de análise com vista à decisão sobre se e quais deles serão juntos como prova aos autos.
Concluindo-se pela irrelevância para a prova de tais elementos ou de alguns deles, em consonância com o disposto no art. 186º do Código de Processo Penal, deverão os mesmos ser restituídos ao seu titular; no caso particular da correspondência eletrónica, atenta a remissão constante do art. 17º da Lei do Cibercrime para o regime legal da apreensão de correspondência física, nos termos do nº 3 do art. 179º do Código de Processo Penal caberá sempre ao juiz que autoriza a diligência decidir da sua relevância para a prova; decidindo-se pela sua irrelevância, deverá restituir essa correspondência «a quem de direito, não podendo ser utilizada como meio e prova, e fica ligado por dever de segredo relativamente àquilo de que tiver tomado conhecimento e não tiver interesse para a prova.».
De resto, todos os que contactem com esses dados sem relevo para a prova, mas que sejam protegidos pelo segredo e /ou contendam com a reserva da vida privada, com tutela constitucional nos termos do art. 26º/1 da Constituição da República Portuguesa, nomeadamente os agentes policiais que procedem à investigação, oficiais de justiça e magistrados, ficam quanto a eles vinculados ao dever de segredo, reforçado pelos respetivos deveres profissionais de reserva relativamente aos conhecimentos adquiridos no exercício das suas funções.7
Processualmente, vigorando a regra da publicidade do processo consagrada no art. 86º/1 do Código de Processo Penal, o nº 7 deste preceito assinala que essa publicidade não abrange os dados relativos à reserva da vida privada que não constituam meios de prova, cabendo à autoridade judiciária especificar, «(…) por despacho, oficiosamente ou a requerimento, os elementos relativamente aos quais se mantém o segredo de justiça, ordenando, se for caso disso, a sua destruição ou que sejam entregues à pessoa a quem disserem respeito.».
Havendo elementos com relevo para a prova a juntar ao processo, terá que quanto a eles ser dada observância às aludidas regras legais relativas ao segredo, adotando-se todos os procedimentos legalmente previstos, e outros que se entenda necessários à salvaguarda dos vários segredos que possam estar envolvidos, mas também da reserva da vida privada, sempre sem perder de vista a regra da publicidade do processo penal fixada no art. 86º/1 do Código de Processo Penal.
Tudo, num balanço, que se quer constante em processo penal, entre o interesse público da realização da justiça e descoberta da verdade material, e os direitos, liberdades e garantias individuais, com previsão constitucional, cuja restrição se deve limitar ao «necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.», como impõe o nº 2 do art. 18º da Constituição da República Portuguesa.
Assim e no que concerne aos dados que contendem com a intimidade e reserva da vida privada, dispõe especificamente o nº 3 do art. 16º da Lei do Cibercrime que:
«Caso sejam apreendidos dados ou documentos informáticos cujo conteúdo seja suscetível de revelar dados pessoais ou íntimos, que possam pôr em causa a privacidade do respetivo titular ou de terceiro, sob pena de nulidade esses dados ou documentos são apresentados ao juiz, que ponderará a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto.» (negrito nosso).
Já no concernente especificamente aos segredos comerciais ou do negócio, rege o disposto no art. 352º do D.L. 110/..., de 10/12 que aprovou o Código da Propriedade Industrial, sob a epígrafe «Preservação da confidencialidade dos segredos comerciais em processos judiciais», e que dispõe o seguinte:
«(…)
1 - Qualquer pessoa que participe em processo judicial ou que tenha acesso aos documentos que dele fazem parte, não está autorizada a utilizar ou divulgar qualquer segredo comercial ou alegado segredo comercial que o tribunal, em resposta a um pedido devidamente fundamentado da parte interessada, tenha identificado como confidencial e do qual tenha tomado conhecimento em resultado dessa participação ou acesso.
2 - A obrigação de confidencialidade não se extingue com o termo do processo judicial, salvo quando se constate, por decisão transitada em julgado, que o alegado segredo comercial não preenche os requisitos previstos no artigo 313.º ou que as informações em causa tenham passado a ser do conhecimento das pessoas nos círculos que normalmente lidam com esse tipo de informações ou se tenham tornado facilmente acessíveis a essas pessoas.
3 - A pedido devidamente fundamentado de uma das partes ou por iniciativa do tribunal e tendo sempre em conta a necessidade de salvaguardar o direito à ação e a um tribunal imparcial, bem como os interesses das partes ou de terceiros, podem ser tomadas medidas específicas e proporcionais para preservar a confidencialidade de qualquer segredo comercial ou alegado segredo comercial utilizado ou mencionado no decurso de um processo judicial, nomeadamente as seguintes:
a) Limitação do acesso a documentos que contenham segredos comerciais ou alegados segredos comerciais e que tenham sido apresentados pelas partes ou por terceiros, na sua totalidade ou em parte, a um número restrito de pessoas;
b) Limitação a um número restrito de pessoas do acesso a audiências, assim como aos respetivos registos e transcrições, quando existir a possibilidade de divulgação de segredos comerciais ou alegados segredos comerciais;
c) Disponibilização a pessoas não incluídas no número restrito a que se referem as alíneas anteriores de uma versão não confidencial de decisões judiciais das quais tenham sido removidas ou ocultadas as passagens que contêm os segredos comerciais.
4 - O número de pessoas a que se referem as alíneas a) e b) do número anterior não deve exceder o necessário para assegurar o respeito do direito das partes à ação e a um julgamento imparcial e deve incluir, pelo menos, uma pessoa singular de cada uma das partes e os respetivos mandatários ou outros representantes.».
Assim, vindo a verificar-se poder estar efetivamente em causa com a revelação de algum dos documentos apreendidos e considerados para juntar como prova ao processo, segredo comercial ou de negócio, importará sobre essa matéria ouvir o titular do mesmo e, sendo como tal reconhecido, adotar os procedimentos práticos necessários a preservar na medida do possível a sua confidencialidade; o que pode passar efetivamente pela criação de um apenso confidencial excluído da consulta por terceiros alheios ao processo, como pretendido pela recorrente.
Seja como for, nesta fase de inquérito, dirigida pelo Ministério Público, caberá antes de mais ao magistrado do Ministério Público titular adotar, se necessário com intervenção do Juiz de Instrução Criminal, como sucede no caso do disposto no art. 16º/3 da Lei do Cibercrime, todos esses procedimentos em ordem a salvaguardar os segredos a que possam estar sujeitos documentos que pretenda usar como prova, assim como o direito à reserva da intimidade da vida privada.
Pelo que, muito embora na fase em que nos encontramos que é prévia à análise da documentação apreendida e revelação do seu conteúdo, bem como da sua eventual relevância para a prova, não se justificando uma pronúncia jurisdicional, não pode deixar de se reconhecer ao requerimento da recorrente junto do Juiz de Instrução Criminal que deu origem ao despacho recorrido, a virtualidade de sinalizar no processo a possibilidade de se encontrarem entre a documentação apreendida relevante para a prova elementos sujeitos a segredo, nomeadamente segredo comercial ou do negócio, sobre os quais deverá ser, pois, ouvida por forma a ter a possibilidade de exercer a faculdade de requerer medidas em vista da preservação da sua confidencialidade.
Ressalvada essa virtualidade, trata-se, nesta parte, de requerimento prematuro e sem substância para justificar uma intervenção jurisdicional, que sempre mereceria, por isso, despacho de indeferimento quanto ao peticionado.
Isto porque, como começamos por referir, as normas legais que regem a matéria do segredo e da reserva da vida privada a todos vinculam sem necessidade de despacho judicial que o ordene; por outro lado, desconhecendo-se nesta fase os conteúdos concretos da documentação apreendida e, portanto, não dispondo de elementos para aferir da pertinência da convocação desses segredo e reserva, nada há efetivamente a decidir, como não foi decidido pelo Tribunal a quo.
Nestes termos, improcede nesta parte o recurso.

III- DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o recurso da “...” e consequentemente:
- determinar que, em observância do disposto no art. 16º/8 da Lei do Cibercrime, seja efetuado duplicado da cópia dos dados informáticos apreendidos na busca realizada nas suas instalações no dia .../.../2023, com conclusão no dia .../.../2023, devendo o mesmo ser encerrado em invólucro selado e entregue ao Secretário de Justiça;
- confirmar no mais o despacho recorrido.
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Sem custas - art. 513º/1 do Código de Processo Penal “a contrario”.
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Lisboa,
09 de Janeiro de 2024

Ana Cláudia Nogueira
Paulo Barreto
Manuel Advínculo Sequeira
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1. Cfr. acórdão de fixação de jurisprudência 7/95 do STJ, de 19/10/1995, in Diário da República – I Série, de 28/12/1995.
2. Vide João Conde Correia, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 3ª ed. Tomo II, Almedina, pág. 638.
3. Neste sentido, João Conde Correia, ob. cit., pág. 709.
4. João Conde Correia, entende ainda ser essa aposição dispensável e até inadmissível por representar a prática de um ato inútil, quando desnecessária para acautelar a incolumidade do bem apreendido, face ao disposto no art. 130º do Código de Processo Civil, in ob. cit. pág. 707.
5. Ainda, João Conde Correia, ob. cit., págs. 708 e 709.
6. Vide Concorrência Desleal: o segredo de negócio O Segredo de negócio na atualidade A Diretiva (UE) 2016/943 de 8 de junho de 2016, estudo de Paula Alexandra Pereira de Matos, UCE, 2017, acessível online em https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/35062/1/201963418.pdf .
7. Art. 7º-B do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela L. 21/85, de 30/07, art. 102º do Estatuto do Ministério Público aprovado pela L. 68/2019, de 27/08, art. 66º/2, a) do Estatuto dos Funcionários de Justiça, aprovado pelo D.L. 343/99, de 26/08, e quanto às polícias, o art. 29º do Estatuto Profissional do Pessoal da Polícia Judiciária, aprovado pelo D.L. 138/2019, de 13/09, o art. 14º do Estatuto Profissional do Pessoal com Funções Policiais da Polícia de Segurança Pública, aprovado pelo D.L. 243/2015, de 19/10 e art. 13º/h) do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo D.L. 30/2017, de 22/03.