Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5372/2003-3
Relator: CARLOS ALMEIDA
Descritores: MEDIDAS DE COACÇÃO
PRISÃO PREVENTIVA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/02/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário: I – Considerar-se que existe perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas por causa da natureza do crime indiciado e da nocividade que o mesmo encerra pressupõe uma interpretação da alínea c) do artigo 204º que conflitua de uma forma clara com a presunção de inocência do arguido constitucionalmente consagrada (artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa) uma vez que atribui às medidas de coacção em geral, e à prisão preventiva em particular, finalidades próprias das penas e não finalidades estritamente processuais como exige o artigo 191º do Código de Processo Penal.
II – Essa interpretação pressupõe que se atribua à medida de coacção um efeito de pacificação social que é um dos que se compreendem no conceito de prevenção geral positiva e se reconhecem ser co-naturais à aplicação das penas, efeito esse que se produz «quando a consciência jurídica geral se tranquiliza, em virtude da sanção, depois da violação da lei e considera solucionado o conflito com o agente».
III – Para que a limitação da liberdade resultante do perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, a que se refere a mencionada alínea c) do artigo 204º, seja uma exigência processual de natureza cautelar (artigo 191º) esse perigo tem necessariamente de se reportar a um comportamento futuro do arguido e não ao seu comportamento pretérito e à reacção que a sua prática pode gerar na comunidade
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
1 – A requerimento do Ministério Público, a srª juíza colocada no 2º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, no termo do 1º interrogatório judicial de arguido detido, aplicou ao recorrente M. a prisão preventiva por considerar que, encontrando-se fortemente indiciada a prática de um crime de tráfico de droga p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, existia, em concreto, perigo de fuga e perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas.

2 – O arguido interpôs recurso desse despacho, apresentando motivação que termina formulando as seguintes conclusões:
«I – O despacho recorrido não fundamentou solidamente a prisão preventiva do recorrente em indícios válidos, fortes e receios concretos;
II – Limitando-se a aderir à tese da perigosidade social e continuação da actividade criminosa, em dados abstractos e no livre arbítrio de quem, no caso, deve devidamente proceder à investigação e que nada de ilícito encontrou na posse do recorrente, não sabendo, tão pouco para se poder defender, da existência, da qualidade ou quantidade de estupefaciente que foi, em princípio, apreendida nos autos;
III – O despacho recorrido ao aplicar a prisão preventiva ao recorrente não obedeceu à excepcionalidade da mesma, aos princípios da adequação e da proporcionalidade, violando, por erro e má interpretação, os artigos 191º, nº 1, 193º, 202º, nº 1, e 204º do Código de Processo Penal.
Nestes termos e nos mais de direito deve o presente recurso ser considerado procedente por provado e o arguido restituído, imediatamente, à liberdade com termo de identidade e residência, assim se fazendo a costumada e sã justiça».

3 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 86.

4 – O Ministério Público respondeu à motivação apresentada dizendo, em síntese, que o recurso não merecia provimento.

5 – Neste tribunal, o sr. procurador-geral-adjunto, quando o processo lhe foi apresentado, emitiu o parecer de fls. 95 a 97.

6 – Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, o arguido respondeu a esse parecer nos termos constantes de fls. 101 a 103.

II – FUNDAMENTAÇÃO
Análise dos indícios recolhidos nos autos, até à data em que foi proferido o despacho recorrido, quanto ao comportamento do recorrente
7 – O conhecimento do recurso interposto pelo arguido M. impõe, em primeiro lugar, que se verifique se os indícios recolhidos durante o inquérito, até ser proferido o despacho impugnado, permitem acompanhar a srª juíza de instrução na conclusão de que neles estava fortemente indiciada a prática pelo recorrente, em co-autoria, de um crime de tráfico de droga p. e p. pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.
Para a formulação desse juízo há que atender ao depoimento das testemunhas identificadas a fls. 19, 20, 22, 23 e 27 destes autos, aos relatórios das vigilâncias constantes de fls. 32 e 33, que se traduzem também em prova testemunhal, às fotografias juntas a fls. 35 a 42, que pretendem corroborar o relato da última das mencionadas vigilâncias, às declarações prestadas pela co-arguida C. (fls. 65) e ao auto da busca e apreensão realizada em casa dela (fls. 51 e 52).
Do depoimento daquelas cinco testemunhas resulta que o recorrente e o arguido S., durante cerca de 1 ano, no Bairro 6 de Maio, procederam à venda de heroína e de cocaína a terceiros, quer directamente, quer mediante o auxílio da arguida C. e de uma outra pessoa, de nome P, que posteriormente se veio a saber ser P..
Tal versão dos factos é corroborada pelas vigilâncias efectuadas e pelas fotografias tiradas, cuja obtenção e junção aos autos foi autorizada e ordenada pela srª juíza de instrução, nos termos do artigo 6º da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro.
A referida co-arguida tinha em seu poder 7 pequenas embalagens de heroína e 3 de cocaína, droga que foi apreendida na busca efectuada na sua casa em execução de um mandado judicial.
Nas suas declarações, essa arguida confirmou que vendia os referidos produtos por conta do recorrente e do co-arguido S., recebendo em troca produtos para o seu consumo.
Por sua vez, o recorrente, nas declarações prestadas durante o 1º interrogatório judicial, negou a prática destes factos, dizendo nunca ter sequer entrado em casa da C., apenas a conhecendo de vista, facto que é claramente contrariado pelas indicadas vigilâncias, durante as quais ele foi visto, por mais de uma vez, a entrar nessa casa, e pelas declarações da co-arguida.
Por tudo isto, não se pode deixar de considerar que existem nos autos fortes indícios de que o recorrente, juntamente com o co-arguido S., e servindo-se ambos da colaboração da C. e do P., vendiam a terceiros heroína e cocaína.
Tal comportamento encontra-se previsto no artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência às Tabelas I-A e I-B anexas, e no terceiro segmento do artigo 26º do Código Penal, sendo punível, em abstracto, com prisão de 4 a 12 anos.

Comprovação da existência de algum dos perigos incluídos no artigo 204º do Código de Processo Penal
8 – Vejamos agora se os autos revelam a existência de algum dos perigos mencionados no artigo 204º do Código de Processo Penal, nomeadamente os perigos de fuga e o perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas referidos no despacho.
Comecemos pelo perigo de fuga.
O arguido tem nacionalidade estrangeira sendo natural que, se se vier a ausentar para o seu país de origem, não possa dele ser extraditado. Na data dos factos estava desempregado, situação que, segundo as suas próprias declarações, já se verificava há 3 meses. Vivia com uma companheira também desempregada. Poderá vir a ser condenado numa pena de prisão de, pelo menos, 4 anos de duração.
Em face destes factos, não se pode deixar de reconhecer que existe perigo de fuga (alínea a) do artigo 204º).
A srª juíza entende que, para além do perigo de fuga, existe perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas, perigo este que considera decorrente da natureza do crime indiciado e da nocividade que o mesmo encerra.
Salvo o devido respeito, não a podemos acompanhar neste segmento da fundamentação uma vez que a interpretação da alínea c) do artigo 204º que está na base dessa consideração conflitua de uma forma clara com a presunção de inocência do arguido constitucionalmente consagrada (artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa)[1] uma vez que atribui às medidas de coacção em geral, e à prisão preventiva em particular, finalidades próprias das penas[2] e não finalidades estritamente processuais[3] como exige o artigo 191º do Código de Processo Penal.
Na verdade, essa interpretação pressupõe que se atribua à medida de coacção um efeito de pacificação social[4] que é um dos que se compreendem no conceito de prevenção geral positiva e se reconhecem ser co-naturais à aplicação das penas, efeito esse que se produz «quando a consciência jurídica geral se tranquiliza, em virtude da sanção, depois da violação da lei e considera solucionado o conflito com o agente[5]».
Ora, esse efeito não pode ser obtido à custa da imposição de um sofrimento a uma pessoa que, apesar da existência dos fortes indícios da prática de um crime[6], pode ser inocente[7].
No nosso modo de ver, para que a limitação da liberdade resultante do perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas a que se refere a mencionada alínea c) do artigo 204º seja uma exigência processual de natureza cautelar (artigo 191º) esse perigo tem necessariamente de se reportar a um comportamento futuro do arguido e não ao seu comportamento pretérito e à reacção que a sua prática pode gerar na comunidade.
Tendo por base este entendimento, e porque não vislumbramos qualquer motivo para, em concreto, temer que o arguido possa vir a pôr em causa a ordem e a tranquilidade públicas, não consideramos verificado o assinalado perigo.
Outro tanto não sucede com o perigo de continuação da actividade criminosa.
Tendo em conta o prolongamento no tempo da conduta do arguido, os proventos que ela consabidamente gera, a sua situação de desemprego prolongado e o meio propício em que a actividade se desenrolava, no qual o arguido estava profundamente inserido, não se pode, fundadamente, deixar de temer que ele prossiga a sua actividade.
Por isso, para além do perigo de fuga, existe também, em concreto, perigo de continuação da actividade criminosa.

Os critérios da adequação, proporcionalidade, subsidiariedade e excepcionalidade da prisão preventiva
9 – O princípio da adequação, consagrado na primeira parte do nº 1 do artigo 193º do Código de Processo Penal, relaciona o perigo que justifica a imposição da medida de coacção com a apetência desta para lhe fazer face[8]. Nesta perspectiva, não se pode deixar de considerar que a prisão preventiva é um meio idóneo para responder ao perigo de fuga e ao perigo de continuação da actividade criminosa que considerámos verificados em concreto.
Tendo em conta a medida abstracta da pena cominada para o crime indiciado, os factores que se antevêem relevantes para a sua graduação e a prognose que é possível fazer sobre a sua concreta medida, não se afigura que a prisão preventiva constitua, no caso, um excesso.
De entre o leque das medidas legalmente tipificadas, não se encontra qualquer outra medida que, no caso concreto, possa responder de forma suficientemente eficaz aos assinalados perigos, sendo a obrigação de permanência na habitação, mesmo que sujeita a vigilância electrónica, incapaz de conter um perigo de fuga com a magnitude do que, no caso, existe.
Por tudo isso, e apesar do seu carácter excepcional, não se pode deixar de acompanhar a srª juíza de instrução na conclusão de que, para fazer face aos assinalados perigos, apenas a prisão preventiva pode, no caso, ser aplicada.
Não pode, por isso, deixar de improceder o recurso interposto.

Responsabilidade quanto a custas
10 – Uma vez que o arguido decaiu no recurso que interpôs é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua actividade deu lugar (artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal).
De acordo com o disposto na alínea b) do nº 1 e no nº 3 do artigo 87º do Código das Custas Judiciais a taxa de justiça varia entre ½ e 15 UCs.
Tendo em conta a situação económica do arguido e a complexidade do processo, julga-se adequado fixar essa taxa em 4 UCs.

III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação em:
a) julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido M..
b) condenar o recorrente no pagamento de taxa de justiça, que se fixa em 4 (quatro) UCs.
²

Lisboa, 2 de Julho de 2003


(Carlos Rodrigues de Almeida)

(João Cotrim Mendes)

(António Rodrigues Simão)
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[1] V., neste sentido, quanto ao ordenamento jurídico italiano, CONSO, Giovanni e GREVI, Vittorio in «Compendio di procedura penale», CEDAM, Padova, 2001, p. 353.
[2] Ainda no domínio do antigo Código de Processo Penal italiano, Pisapia escrevia no seu compêndio de processo penal que «o facto de a prisão preventiva se traduzir, praticamente, numa antecipação da pena constitui um dos inimigos mais perturbadores do processo penal e da justiça humana em geral. Avisava com razão Santo Agostinho que “os homens torturam para saber se se deve torturar”» (PISAPIA, Gian Domenico in «Compendio di procedura penale», 5ª edizione, CEDAM, Padova, 1988, p. 264).
[3] Pisapia referia que a prisão preventiva «não tem, no plano racional, uma clara justificação teórica, excepção feita àquelas limitações da liberdade pessoal estreitamente inerentes aos fins próprios do processo e nos limites impostos por essa função instrumental» (ob. cit. p. 263).
[4] O efeito de pacificação é um dos que, segundo Roxin, estão abrangidos no conceito de prevenção geral positiva e que ele designa como prevenção de integração (v. ROXIN, Claus in «Derecho Penal – Parte General – Tomo I», tradução castelhana da 2ª edição alemã, Civitas, Madrid, 1997, p. 92).
[5] Roxin, ob. loc. cit.
[6] Assim se transformando os pressupostos específicos de cada uma das medidas de coacção, que visam limitar a sua aplicação, no seu fundamento.
[7] Constatação que, no fundo, está na origem do próprio princípio (v., neste sentido, HASSEMER, Winfried in «Fundamentos del Derecho Penal», Bosch, Barcelona, 1984, p. 199.
[8] V., neste sentido, DÁLIA, Andrea António e FERRAIOLI, Márcia in «Manuale di diritto processuale penale», 4ª edizione, CEDAM, Padova, p. 301.