Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | ANA MARISA ARNÊDO | ||
| Descritores: | TERMO DE IDENTIDADE E RESIDÊNCIA ESTRANGEIRO ACUSAÇÃO FALTA DE NOTIFICAÇÃO IRREGULARIDADE SUPRIMENTO COMPETÊNCIA | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 11/20/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
| Sumário: | Sumário (da responsabilidade da Relatora): I. Como tem sido entendido pacificamente na jurisprudência, a notificação do arguido em morada sita no estrangeiro, ainda que indicada no TIR, não é compatível quer com a notificação via postal simples, quer com a notificação por carta registada com aviso de recepção. II. Assente que se mostra a falta da notificação da acusação ao arguido, dir-se-á, em uníssono com a jurisprudência francamente maioritária, que tal invalidade constitui irregularidade e de conhecimento oficioso. III. Verificada a predita irregularidade, subsiste somente a questão de saber se cabe ao Tribunal a quo supri-la ou se tal competência está exclusivamente adstrita ao Ministério Público. IV. Consabidamente, vêm sendo adoptadas na jurisprudência, neste estrito conspecto, duas posições divergentes. Em abreviada síntese: há quem defenda que uma vez transitado o processo para a fase de julgamento competirá ao Tribunal a reparação da irregularidade, enquanto outros propugnam pela inevitabilidade da devolução dos autos à fase de inquérito com vista à reparação da irregularidade pelo Ministério Público. V. Não nos assolam dúvidas quanto à bondade e acerto da segunda perspectiva, isto é, a de que compete ao Ministério Público proceder à reparação da irregularidade. VI. A fase de julgamento não se destina à prática de actos próprios do inquérito, sendo certo que, à míngua das condições legalmente previstas, diferente entendimento legitimará e perpetuará a indevida remessa de inquéritos para a fase de julgamento. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I. RELATÓRIO 1. Nos autos em referência, pela Sra. Juíza do Tribunal a quo foi proferido, em ... de ... de 2024, despacho com o seguinte teor: «Concluso o processo para os fins decorrentes do artigo 311.º, do Código de Processo Penal, cumpre proceder ao seu saneamento, pronunciando-se o tribunal sobre as nulidades, questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa e de que possa desde logo conhecer. * O arguido AA prestou TIR com morada estrangeira (fls. 19 e ss.). Para efeitos de notificação da acusação deduzida pelo Ministério Público foi remetida carta registada para a morada constante do TIR. Consta dos autos pesquisa efetuada no site dos CTT com a informação de “Receção ao local responsável pela entrega” (Cfr. fls. 125). Porém, tal informação não permite concluir que a carta foi efetivamente entregue ao arguido. Nos termos decorrentes do artigo 283.º, n.º 5, 277.º, n.º 3 e 113.º, n.º 10, todos do Código de Processo Penal, o despacho de acusação deve ser notificado ao arguido e defensor, contando-se os prazos para prática de qualquer ato processual desde a notificação efetuada em último momento. Sendo certo que, surgindo ineficazes os procedimentos de notificação o processo pode, ainda assim, prosseguir os seus termos, sendo remetido à distribuição (cfr. artigo 285.º, n.º 5, do Código de Processo Penal), tal pressupõe o esgotamento dos procedimentos de notificação do arguido, revelando-se aqueles ineficazes. No caso em apreço, embora questão inexista quanto à prestação de TIR em morada estrangeira, a notificação do arguido para tal residência exige formalidades diversas, não bastando para a tal a via postal simples ou registada. Efetivamente, ainda que considerado o decorrente do artigo 283.º, n.º 6, do Código de Processo Penal, a verdade é que o distribuidor postal afegão não se encontra sujeito às mesmas obrigações que impendem sobre o português. Ora, não sendo tal circunstância cominada expressamente como nulidade, traduz-se tal inobservância numa irregularidade, atento o princípio da legalidade que rege as nulidades processuais no âmbito do processo penal (cfr. artigo 118.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). Tal irregularidade, na medida em que é suscetível de colidir com as garantias de defesa do arguido, assume particular relevância, pelo que se impõe o seu conhecimento nos termos do artigo 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. * Em harmonia, e atendendo aos argumentos expendidos, julga-se verificada a questão prévia de omissão da notificação da acusação, determinando a remessa dos autos aos Serviços do Ministério Público para os efeitos tidos por convenientes». 2. Deste despacho, foi interposto recurso pela Ex.ma Magistrada do Ministério Público propugnando pela revogação do decidido. Aparta da motivação as seguintes conclusões: «1.º O arguido foi notificado, por via postal registada, na morada do TIR prestado, da acusação contra si deduzida, o que aliás, acaba por ser reconhecido pelo tribunal de 1ª instância. 2.º Sendo a morada no estrangeiro, consta informação do site dos CTT a receção da notificação e acresce que não foi devolvida a notificação. 3.º O arguido foi, pois, regularmente notificado por via postal registada da acusação na morada que indicou no TIR, que prestou em inquérito, conforme disposto nos artigos 283.º, n.º 5 e 6, e 277.º, n.º 3, do Código de Processo Penal. 4.º Inexiste qualquer nulidade na notificação ao arguido, conforme artigos 119.º e 120.º do Código de Processo Penal, pelo que existindo vício na notificação da acusação ao arguido por aquela via, apenas poderia configurar uma irregularidade. 5.º A existir, o que não se concebe, tal irregularidade apenas poderia ser enquadrada no artigo 123.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pelo que caberia aos serviços que a Meritíssima Juiz superintende repará-la, devendo o Juiz determinar oficiosamente as diligências que entendesse necessárias para a suprir. 6.º O princípio da economia processual, com a inerente proibição de prática de atos inúteis, tendo em vista a máxima da celeridade do processado, impunha que, estando o processo no domínio do juiz, nada ressaltando da lei que o proíba de o fazer, tivesse determinado a imediata reparação do vício, evitando delongas com devoluções, baixas de distribuição, recursos e, consequentemente a prática de atos inúteis sem qualquer vantagem na realização da justiça material. 7.º Face ao exposto, entendemos que o despacho recorrido, devolvendo os autos ao Ministério Público, violou o disposto nos artigos 277.º, n.º 3, 283.º, n.º 5 e 6, e 123.º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal. Nestes termos, e com os fundamentos expostos, deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido e determinando-se a sua substituição por outro que receba a acusação deduzida». 3. O recurso foi admitido, por despacho de ..., a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo. 4. O arguido não respondeu ao recurso interposto. 5. Neste tribunal, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta é de parecer que o recurso deve ser julgado (apenas) parcialmente procedente. Aduz, ademais e em síntese, que: «Em nosso entendimento a notificação da acusação para a morada constante do TIR prestado pelo arguido sita no ..., através de carta registada não possui o valor de notificação. Como se escreve de forma esclarecedora no acórdão de Fixação de jurisprudência 5/2014 de 21 de maio, relativamente a esta questão: “Acontece que a notificação por via postal simples segue o procedimento descrito nos n.ºs 3 e 4 do art. 113.º do CPP, procedimento esse que, embora agilizado, relativamente a outras modalidades de notificação como a pessoal, garante, se cumprido nos seus precisos termos (e só nessas circunstâncias), a fiabilidade da transmissão ao arguido da comunicação do tribunal. Esse procedimento consiste no seguinte: o distribuidor do serviço postal tem o dever de, após depositar a carta na caixa do correio do notificando, exarar uma declaração indicando a data e confirmando o local exato do depósito, que depois envia ao tribunal remetente. O distribuidor postal funciona, pois, como um «agente judiciário», recaindo sobre ele o dever funcional, juridicamente fundado, de prestar aquela declaração, declaração essa que certifica a entrega da carta na caixa de correio do arguido. É essa declaração que fiabiliza a via postal como meio de comunicação ao arguido do ato ou da convocação do tribunal. Esse dever jurídico imposto aos distribuidores dos serviços postais nacionais não é evidentemente extensível aos serviços postais estrangeiros, pelo que a remessa por via postal simples da comunicação de qualquer ato ou convocação do tribunal ao arguido residente no estrangeiro para a sua morada não cumpriria os requisitos do art. 113.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, não valendo, pois, como notificação. Nem poderia «substituir-se» a notificação simples pela carta registada, prevista igualmente como meio de notificação na al. b) do n.º 1 do art. 113.º do CPP. Na verdade, não é por acaso que o legislador estabeleceu a via postal simples para a notificação do arguido sujeito a TIR. É que a notificação por via postal simples para a morada indicada pelo arguido, ao impor a elaboração pelo carteiro da declaração de depósito, e ao responsabilizar simultaneamente o arguido pela recolha da correspondência recebida nessa morada, assegura a entrega da correspondência no domicílio do destino, o domicílio indicado pelo arguido. É essa declaração que o legislador entendeu ser a prova mais fiável, ou melhor a única fiável, da efetivação da notificação ao arguido, por sua vez responsabilizado pela receção de qualquer comunicação do tribunal naquele endereço, que ele escolheu para esse fim.” E este fundamento do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, mostra-se verdadeiramente relevante no caso que nos ocupa. Ou seja, a acusação não foi validamente notificada ao arguido. Como referido no recurso, esta falta constitui uma irregularidade prevista nos temos do disposto 123º n.º 2 do CPP, a qual, pela sua relevância, nomeadamente ao nível da defesa dos direitos do arguido, deve ser conhecida oficiosamente com vista à sua sanação. O conhecimento oficioso pressupõe que seja a autoridade judiciária que a detetar a tomar a iniciativa de a reparar. Como se escreve no acórdão proferido no processo 10/20.1GABNV.E1 de 11-07-2024 do Tribunal de relação de Évora: I - Existindo dúvidas sobre a notificação da acusação ao arguido (feita por via postal simples com prova de depósito), e mesmo que se considere que o ato praticado o foi à revelia do disposto no artigo 283º, nº 6, do C. P. Penal, tal não configura a existência de qualquer nulidade, constituindo, isso sim, uma irregularidade (artigo 123º, nº 2, do C. P. Penal). II - Uma vez que essa situação afeta o espaço de garantia de direitos fundamentais do arguido (a possibilidade de o arguido reagir à acusação deduzida), o Juiz deve intervir oficiosamente, ordenando a reparação da apontada irregularidade. III - O Juiz não tem o poder de determinar que o Ministério Público repare a irregularidade em causa, devendo, isso sim, o Tribunal, oficiosamente, proceder à sua correção, porquanto assim o reclamam os princípios da economia e celeridade processuais. IV - Estando os autos na esfera de apreciação do Juiz, para designar data para julgamento, e sendo este competente para apreciar a irregularidade da notificação da acusação ao arguido, é também da competência do Juiz a ordem para o seu suprimento, a qual apenas poderá ser cumprida pelos serviços administrativos que lhe devem obediência. Entendemos, assim, dever ser determinada a sanação da irregularidade detectada, pelo Tribunal que a detectou». 6. Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º, n.º 2 do C.P.P. 7. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir. II. FUNDAMENTAÇÃO 1. O objecto do recurso, tal como demarcado pelo teor das conclusões da respectiva motivação, reporta ao exame das questões de saber se a Sra. Juíza do Tribunal a quo incorreu em erro de jure ao não receber a acusação deduzida, por julgar verificada a irregularidade da falta de notificação da mesma ao arguido, e se, mesmo a ter-se por verificada a predita irregularidade, caberia à Sra. Juíza ordenar a reparação, ao invés de ter determinado a devolução dos autos aos Serviços do Ministério Público. 2. Em aditivo ao consignado no relatório, com relevo para a resolução do dissenso, do compulso dos autos resulta também que: i. Foi prestado termo de identidade e residência pelo arguido, em ..., com a seguinte morada: ...; ii. Deduzida a acusação em ... de ... de 2023, foi expedida carta registada com A/R para notificação do arguido para a morada constante do TIR; iii. A Exma. Magistrada do Ministério Público, por despacho de ... de ... de 2024, determinou a remessa dos autos para julgamento; iv. Em ... de ... de 2024, a carta registada com A/R, expedida com vista à notificação do arguido da acusação deduzida, foi devolvida com a menção insufficient adress. 3. Do recurso 3.1. Da falta de notificação da acusação ao arguido Nos termos do art. 113.°, n.º 10 do C.P.P. «As notificações do arguido, do assistente e das partes civis podem ser feitas ao respectivo defensor ou advogado. Ressalvam-se as notificações respeitantes à acusação, à decisão instrutória, à designação de dia para julgamento e à sentença, bem como as relativas à aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial e à dedução do pedido de indemnização civil, as quais, porém, devem igualmente ser notificadas ao advogado ou defensor nomeado; neste caso, o prazo para a prática de acto processual subsequente conta-se a partir da data da notificação efectuada em último lugar». In casu, o Ministério Público aduz que, ao invés do sustentado no despacho recorrido, o arguido mostra-se regularmente notificado da acusação, via postal registada, na morada que indicou no TIR. Todavia, do descritivo processual acima inserto, constata-se desde logo, por um lado, que a morada indicada no TIR é uma morada estrangeira - ... - e, por outro, que a carta remetida foi afinal devolvida com a menção de endereço insuficiente1. Vale por dizer que, ante a manifesta insuficiência do endereço e a devolução da carta, inolvidavelmente, ao invés do propugnado pelo recorrente, a notificação não foi regularmente efectuada. Acresce que, como tem sido entendido pacificamente na jurisprudência, a notificação do arguido em morada sita no estrangeiro, ainda que indicada no TIR, não é compatível quer com a notificação via postal simples, quer com a notificação por carta registada com aviso de recepção. Como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 3 de Março de 2014, processo n.º 23/12.7TAVCT.G1, in www.dgsi.pt.: «I. Não é viável a notificação do arguido por via postal simples em morada situada no estrangeiro, ainda que constante do TIR, porque tal forma de notificação implica que se observem os procedimentos previstos no nº 3 do art. 113 do CPP, nomeadamente que o distribuidor do serviço postal lavre uma declaração indicando a data e confirmando o local exato do depósito, enviando-a de imediato ao serviço ou ao tribunal remetente. II. Igualmente não é bastante o envio de uma vulgar carta registada com aviso de receção, pois o aviso tem de indicar os procedimentos que os serviços postais deverão observar no caso do destinatário se recusar a assinar, se recusar a receber a carta, ou não ser encontrado2». Assente que se mostra, na situação em crise, a falta da notificação da acusação ao arguido, dir-se-á, em uníssono com a jurisprudência francamente maioritária, que tal invalidade constitui irregularidade e de conhecimento oficioso. Na verdade, «Neste ponto a jurisprudência maioritária vai no sentido de qualificar a dita invalidade como uma irregularidade, afastando a tese da nulidade insanável. (…) por mera decorrência da aplicação do princípio da legalidade das invalidades processuais (artigo 118º, n. 1 do Código de Processo Penal), (…), não ocorrendo no caso inexistência de notificação – ela existe mas é irregular – estamos face a uma irregularidade. Mas como o vício processual detectado não só tem importantes reflexos processuais e substantivos como, em si, não cumpriu a função comunicacional que lhe é própria pois que, destinando-se a dar conhecimento de factos e normas, não se pode assumir no processo que o arguido teve conhecimento desses factos e normas. Ou seja, o acto não tem o valor que justifica a sua existência, não cumpriu a sua função processual (comunicacional), cabendo com todo o acerto no n. 2 do artigo 123º do Código de Processo Penal, pelo que o conhecimento da irregularidade é oficioso. (…) O que se discute é que o Ministério Público não notificou o conteúdo da acusação ao arguido. Tão só. E para isso também serve o artigo 311º do Código de Processo Penal na sua vertente de saneamento do processo. Porque o artigo não limita o seu papel ao possível controlo dos defeitos manifestos da acusação em termos substanciais, nem ao conhecimento de uma precisa questão processual - a al. b) do n. 2 – também, e com prioridade, a conhecer das nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa e que possa desde logo conhecer. E a inexistência de notificação da acusação é uma questão prévia que obsta a conhecer de mérito e que o juiz está legitimado a conhecer no momento do artigo 311º do Código de Processo Penal. (…) E, vendo o juiz que a notificação da acusação não existe, tem que constatar um vício processual de grande relevo, na medida em que essa notificação é uma exigência processual com bastos aspectos substantivos. Esse vício processual tem importantes reflexos substantivos – não é uma mera questão processual – já que briga com o direito a conhecer os factos de que se é acusado, a saber qual o objecto do processo e o âmbito do julgamento a que poderá ser submetido»3. E assim sendo, constatando-se na situação em crise a existência de uma irregularidade de conhecimento oficioso – em concreto, a falta de notificação da acusação ao arguido – improcede necessariamente este segmento recursivo. 3.2. Do suprimento da falta de notificação da acusação ao arguido Verificada a predita irregularidade, subsiste somente a questão de saber se cabe ao Tribunal a quo supri-la ou se tal competência está exclusivamente adstrita ao Ministério Público. Consabidamente, vêm sendo adoptadas na jurisprudência, neste estrito conspecto, duas posições divergentes. Em abreviada síntese: há quem defenda que uma vez transitado o processo para a fase de julgamento competirá ao Tribunal a reparação da irregularidade4 enquanto outros propugnam pela inevitabilidade da devolução dos autos à fase de inquérito com vista à reparação da irregularidade pelo Ministério Público5. E tomando posição, dir-se-á, desde já, que não nos assolam dúvidas quanto à bondade e acerto da segunda perspectiva, isto é, a de que, tal qual sustentado no despacho revidendo, compete ao Ministério Público proceder à reparação da irregularidade. Com efeito, «(…) a acusação é peça essencial do processo correspondente ao final da fase de inquérito e antes da remessa a tribunal. Na sua vertente orgânica porque da competência do Ministério Público a dedução da acusação. Daí que o Código de Processo Penal preveja para o final do inquérito, seja qual for a decisão do Ministério Público, que este deva notificá-la. Seja o arquivamento (artigo 277º, n. 3), seja pela dedução da acusação (arts. 283º, n. 5), seja pela existência de assistente (artigo 284º) seja pela necessidade de existência de acusação particular (artigo 285º). E não faz sentido que se defenda que a notificação da acusação seja da competência de um juiz. A não ser que haja quem defenda que a competência de notificação da sentença seja do Ministério Público. E aqui entrámos (mas sairemos de imediato) da fase surrealista da argumentação. Por isso que a “obrigação” de notificar a acusação seja do Ministério Público como magistratura autónoma e dominus da fase processual em causa. Esta será asserção que nem a magistrada recorrente negará. A outra hipótese é conseguir construir e manter a tese de imposição legal de correcção da irregularidade por apelo à literalidade do número dois do artigo 123º do Código de Processo Penal, a expressão “ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade”, de forma a ser sempre o tribunal que se segue (de instrução ou julgamento) a cumprir o que ao Ministério Público competia. Tal expressão tem, no entanto, um pressuposto de aplicação que supõe que apenas ao juiz é possível salvar a irregularidade e não se destina a funcionar como norma geral de substituição de competências ou de alijamento de responsabilidades de quem deveria ter cumprido e ainda pode cumprir. Porque aqui impõe-se não olvidar ou menosprezar outros artigos, como os arts. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 32º da Constituição da República Portuguesa e outros, muitos outros do Código de Processo Penal e os princípios da economia e celeridade processuais. Desde logo que o Código de Processo Penal muito claramente determina que o processo só prosseguirá para a fase seguinte – de julgamento – se “os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes” – artigo 283º, n. 5, segunda parte, do Código de Processo Penal. E isto tem ligação com o regulado nos artigos 332º, n. 1, 335º e 336º, n. 3 do Código de Processo Penal. E a previsão do n. 3 do artigo 336º do Código de Processo Penal é excepcional, no que implica de um retrocesso à fase anterior do processo, plenamente justificada pelas dificuldades de notificação. O que se não pode é erigir o excepcional em normal, considerando que o processo deve prosseguir para a fase seguinte quando (em termos gerais e abstractos) proceder à notificação – face à profusão de casos de que se dá conta - é um “incómodo”, uma questão estatística, de “personalidade” ou outra. Dir-se-á que tal direito a requerer a instrução sempre poderá ser reclamado adiante. Mas não é isso o pretendido, nem é isso o desejável em termos de eficácia do sistema. E existe uma diferença de posição do arguido quando recebe a notificação da acusação logo após a dedução da acusação, de uma outra situação em que o arguido só dela sabe quando o julgamento está marcado. Não é indiferente a fase do processo em que o arguido é notificado da acusação. É certo que em qualquer fase ele pode requerer a realização da instrução, mas isso é uma abstracção. Pode concretizar-se com facilidade para o arguido que sabe ou tem facilidade de contratar quem saiba. Não para o comum cidadão que não sabe e/ou não tem facilidade de contratar quem saiba em tempo útil. E que tenderá a considerar que a marcação do julgamento é uma realidade inultrapassável. Outra alternativa será determinar que o juiz que cumpre o artigo 311º abra uma “fase” nova no processo para notificar o arguido da acusação do Ministério Público. Note-se, aliás, que sabendo o juiz que cumpre o artigo 311º do Código de Processo Penal que inexiste válida notificação da acusação, mas não podendo fazer notar essa existência, não devendo marcar julgamento, deve ordenar aos “seus serviços” que cumpram o que não foi cumprido pelos serviços do Ministério Público. Mas aqui também não é indiferente o arguido ser notificado pelo Ministério Público que o acusa ou pelo juiz de um tribunal que o vai julgar. O cidadão/ã que recebe a notificação não será uma abstracção sabedora, será um cidadão normal com dificuldade em perceber a notificação e seus efeitos. (…) Por isso que, inexistindo notificação da acusação e sendo vício de conhecimento oficioso porque foi afectada a validade do acto – o dar a conhecer os factos de que o arguido foi acusado – este Tribunal entenda que cabe ao Ministério Público (…) cumprir a sua função, que é notificar a sua própria acusação ao arguido (…)»6 Na verdade, e no que ao argumentário especificamente esgrimido pelo recorrente concerne - a invocada celeridade processual - afigura-se que, no descrito arquétipo legal, carece de justificativa. Derradeiramente, a fase de julgamento não se destina à prática de actos próprios do inquérito, sendo certo que, à míngua das condições legalmente previstas, diferente entendimento legitimará e perpetuará a indevida7 remessa de inquéritos para a fase de julgamento. «Aceitar como “normal”, no sentido de normalizar, a remessa para a fase de julgamento de inquéritos onde foi proferida acusação e onde os arguidos não se mostram notificados da acusação fora dos casos previstos no art.º 283º, n.º 5, 2ª parte, do CPP, encerra outro risco, o da banalização do incumprimento dos devidos trâmites legais do processo penal, nos momentos definidos legalmente para o efeito, simplificação de procedimentos que o legislador não previu e não quis. A celeridade processual muitas vezes invocada para justificar a reparação já na fase de julgamento da notificação da acusação inválida ou inexistente e que deveria ter sido praticada validamente em sede de inquérito promove, na outra face da moeda, a banalização do envio para a fase de julgamento de inquéritos acusados fora das circunstâncias previstas legalmente. Permitimo-nos, com muito respeito, citar de novo João Gomes de Sousa, no sentido de que “à jurisprudência cabe também uma função de dissuasão de condutas processuais inadequadas, sob pena de as mesmas se tornarem aceitáveis, apesar de ilegais, e dos prejuízos e/ou inconvenientes que possam acarretar para os sujeitos processuais, mormente para os arguidos”. Nesta conformidade, nenhuma censura se pode fazer ao despacho recorrido quando determinou o reenvio dos autos ao Ministério Público para os fins tidos por convenientes»8. Termos em que, o recurso interposto pelo Ministério Público terá de improceder totalmente. III. DISPOSITIVO Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se: Julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público. Notifique. Lisboa, 20 de Novembro de 2025 Ana Marisa Arnêdo Rosa Maria Cardoso Saraiva Ana Paula Guedes _______________________________________________________ 1. Expectável em face da escassez dos dados. 2. Sublinhado nosso. No mesmo sentido, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/5/2017, processo n.º 857/13.5TACVL.C1, in www.dgsi.pt. 3. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 8/4/2014, proferido no âmbito do processo n.º 650/12.2PBFAR-A.E1, in www.dgsi.pt. 4. Neste sentido, a título exemplificativo, os Acórdãos dos Tribunais da Relação do Porto de 11/4/2018, processo n.º 96/17.6SGPRT.P1; de Guimarães de 6/2/2017, processo n.º 540/14.4GCBRG.G1, de 26/10/2020, processo n.º 754/19.0T9BRG.G1, de 19/11/2024, processo n.º 82/14.8T9VLN.G1, de 28/1/2025, processo n.º 1239/21.0T9GMR-A.G1 e de 11/2/2025, processo n.º 7/23.0GAGMR-A.G1; de Lisboa de 8/9/2020, processo n.º 3276/18.3T9SXL.L1-5 e de 20/2/2025, processo n.º 629/21.3GLSNT.L1-9; da Relação de Coimbra de 19/2/2025, processo n.º 559/23.4GBCNT. C1 e da Relação de Évora de 11/7/2024, processo n.º 10/20.1GABNV.E1, todos in www.dgsi.pt. 5. Sufragando este entendimento, entre outros, os Acórdãos dos Tribunais da Relação de Guimarães de 5/11/2007, CJ, XXXII, 5, p. 287 e de 8/10/2024, processo n.º 324/22.6PBBRG.G1; da Relação de Évora de 8/4/2014, processo n.º 650/12.2PBFAR-A.E1, de 5/5/2015, processo n.º 1140/12.9TDEVR-A.E1, de 7/3/2017, processo n.º 89/15.8T9ABF.E1, de 22/11/2018, processo n.º 20/15.0IDFAR-A.E1, de 13/9/2022, processo 64/20.0PBEVR.E1 e de 26/10/2023, processo n.º 3126/22.6T9FAR.E1 (Decisão Sumária); da Relação de Lisboa de 25/7/2018, processo n.º 123/16.4PGOER.L1-3, de 27/4/2023, processo n.º 1155/21.6PFSXL.L1-9 e declaração de voto de vencida da ora relatora no acórdão de 20/2/2025, processo n.º 183/23.1PAPST.L1-9, da Relação de Coimbra de 5/2/2025, processo n.º 199/23.8GCCNT.C1, todos in www.dgsi.pt. 6. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 8/4/2014, processo n.º 650/12.2PBFAR-A.E1, in www.dgsi.pt. 7. E empiricamente massificada. 8. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 8/10/2024, processo n.º 324/22.6PBBRG.G1, in www.dgsi.pt. |