Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10881/2005-6
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
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ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/31/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: I - A motivação da decisão sobre a matéria de facto constitui uma exigência legal consagrada no nº 2 do citado artigo 653º. Com efeito, impõe-se ao julgador a análise crítica das provas e a especificação dos fundamentos decisivos para a formação da sua convicção quer quanto aos factos provados, quer quanto aos não provados.
II - Não basta a mera indicação dos concretos meios de prova em que se baseou a formação da convicção do julgador, devendo enunciar-se os motivos racionais e objectivos que foram determinantes na formação do processo decisório.
III – Não foi o filme publicitário em si que foi objecto de apreciação negativa por parte do Júri de Ética Publicitária do Instituto Civil da Autodisciplina da Publicidade, ou seja, a sua concepção, produção ou realização, às quais a recorrida era alheia, pois que apenas tinha a obrigação de aconselhamento e consultoria, mas a falta de demonstração das qualidades do produto publicitado traduzidas nas aludidas afirmações.
IV – Não tendo sido postas em causa a concepção e produção dos suportes de comunicação publicitária destinados à emissão televisiva, a censura não recaiu sobre a “selling idea”, mas sobre a falta de demonstração da veracidade das características do produto veiculadas através dela.
V - O venire contra factum proprium, que se traduz no "exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente" constitui uma das vertentes do abuso de direito e, por isso, inadmissível.
VI – A proibição da chamada conduta contraditória exige a conjugação de vários pressupostos reclamados pela tutela da confiança. Esta variante do abuso do direito equivale a dar o dito por não dito, radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, pois pressupõe duas atitudes espaçadas no tempo, sendo a primeira (factum proprium) contraditada pela segunda atitude, o que constitui, atenta a reprobabilidade decorrente da violação dos deveres de lealdade e de correcção, uma manifesta violação dos limites impostos pela boa fé.
VII - O direito à utilização de determinado espaço publicitário pelo prazo de um ano mediante um preço alcançado com a assinatura do contrato não torna acessórias todas as demais obrigações da recorrida emergentes desse mesmo contrato. Razão por que tem de considerar-se que se trata de um contrato de execução continuada, ao qual não tem aplicação o regime estabelecido no citado artigo 781º do Código Civil, uma vez que este preceito pressupõe que uma das partes tenha cumprido a sua prestação, como sucede no caso do contrato de compra e venda a prestações, que é exemplar.
VII - Logo, a falta de cumprimento das recorrentes não gera o vencimento imediato das prestações futuras, no sentido da sua imediata exigibilidade, apenas facultando à recorrida, credora, o direito de exigir o pagamento das prestações vencidas e não pagas.
(F.G.)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório:
P, S.A., intentou, em 19 de Setembro de 2002, no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra N, S.A., M, S.A. e C, S.A., alegando, em síntese, que, no exercício da sua actividade comercial de prestação de serviços na área da publicidade, celebrou um contrato com as Rés, nos termos do qual, mediante o pagamento de determinadas quantias, a Autora se comprometeu a obter junto da RTP espaço publicitário para promoção dos produtos da mesmas Rés, o que cumpriu, não tendo as Rés procedido ao pagamento do preço dos serviços prestados pela Autora, pelo que pediu a condenação das Rés no pagamento da quantia de € 593 569,54, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento.
Pediu ainda que as Rés fossem condenadas a pagar-lhe a indemnização pelos prejuízos decorrentes da revisão do preço na publicidade contratada na RTP, na medida da diferença entre o preço acordado entre a Autora e a RTC, e o preço que vier a resultar de tal revisão. Reclamou ainda a indemnização a liquidar em execução pelos prejuízos que o não cumprimento dos objectivos do contrato fechado entre a Autora e a RTC para emissão da publicidade das Rés na RTP causou na imagem da Autora no mercado e ainda pela previsível diminuição da capacidade negocial da mesma Autora no mercado publicitário de televisão.
As Rés contestaram alegando, em resumo, que nem toda a publicidade emitida a partir de 2 de Abril de 2002 foi executada de acordo com a sua vontade e conforme ao estabelecido no contrato, antes tendo sido imposta por determinação da RTP que, de forma unilateral, se recusou a transmitir a campanha publicitária das Rés nos moldes por estas gizado, pelo que o preço pela transmissão de tal publicidade não pode ser devido pelas Rés, concluindo pela improcedência da acção.
Em reconvenção alegaram, em suma, que foi a Autora que não cumpriu os seus deveres contratuais e, por isso, é responsável pelos prejuízos causados às Rés, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de € 272 046,01, a título de indemnização acrescida da quantia que se liquidar em execução.
Mais pediram a condenação da Autora, como litigante de má-fé, em multa e indemnização.
Na réplica a Autora impugnou a matéria da reconvenção e concluiu pela sua improcedência, bem como do pedido de condenação por litigância de má fé.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, consequentemente, condenou as Rés a pagarem, solidariamente, à Autora a quantia de € 593 569.50, acrescida de juros vencidos desde a data de vencimento das facturas peticionadas e vincendos até integral pagamento, à taxa legal, absolvendo-as dos restantes pedidos. Absolveu a Autora do pedido reconvencional, bem como do pedido de condenação como litigante de má-fé.

Desta sentença apelaram as Rés.
Alegaram e formularam, em resumo, as seguintes conclusões:
1ª Deverá ser conhecida e declarada a nulidade da sentença proferida pelo Tribunal "a quo", por força do disposto nos art°s 659°, n° 3 e 668°, n°1, b) do C.P.C., procedendo, em todo o caso esse Venerando Tribunal ao conhecimento do objecto da apelação, nos termos do disposto no art° 715 do C.P.C. e assim,
2ª Ser concedido provimento ao presente recurso de Apelação, e, consequentemente, revogada a sentença recorrida, e a mesma substituída por Acórdão que proceda, ao abrigo do disposto no art° 712° n°s 1, alíneas a) e b) do CPC, à alteração da decisão do Tribunal sobre a matéria de facto passando a figurar:
i. na resposta ao quesito 1°: "Não provado", sendo, concomitantemente, retirado o Facto n° 20. do elenco dos "Factos" da Sentença sub judice;
ii. na resposta ao quesito 3°: "Provado apenas que este desconto foi concedido à Autora atendendo ao volume de publicidade adquirida", sendo, concomitantemente, alterado em conformidade o Facto n° 22. da epígrafe "Factos" da Sentença sub judice;
iii. na resposta ao quesito 7°: "Provado", devendo, concomitantemente, ser adicionado aos "Factos" da Sentença sub judice novo facto (com o n° 33.) com o seguinte teor: "A Autora comprometeu-se a envidar esforços no sentido das Rés virem a ser compensadas pela atitude da RTP de suspender a emissão do filme publicitário da COPA Z"; e
iv. na resposta ao quesito 15°: "Não Provado", sendo, concomitantemente, retirado o Facto n° 31. do elenco dos "Factos" da Sentença sub judice;
3ª A Autora havia declarado e garantido, expressamente, na cláusula 3ª n° 2 do contrato de fls. 22-28, "que se encontra dotada dos meios logísticas, técnicos e humanos necessários à boa execução do presente contrato, bem como que dispõe de saber fazer e de conhecimentos especializados na área (...) de planeamento estratégico, concepção e produção dos suportes de comunicação adequados à emissão televisiva "
4ª E, em cumprimento das suas obrigações contratuais, a Autora, em documento entregue às Rés e que se encontra junto aos autos a fls...:, apoiou e subscreveu a expressão (designada por "pack shot" ou frase remate) que viria a ser objecto de censura por parte do IC , tendo afirmado: "A «selling idea» fritos menos gordos é muito acertada pois contempla em si dois eixos fundamentais: Assumir os fritos como comportamento tradicional na alimentação das famílias portuguesas (Batatas fritas); Isolar o elemento «gordura» como factor de diferenciação no segmento dos óleos alimentares.
5ª Não pode, pois, a Autora - sob pena de incorrer em abuso de direito, na modalidade de "venire contra factum proprio " - assumir postura de absoluto distanciamento e indiferença relativamente a um facto - anúncio publicitário - para o qual contribuiu e para o qual estava contratualmente obrigada a prestar consultoria.
6ª Nos termos do n.° 2 da cláusula 2ª do contrato sub judice - norma contratual, esta, que a Mmª Juíza "a quo" desprezou em absoluto - as partes outorgantes convencionaram que "as Segundas Outorgantes [aqui Recorrentes] não serão responsáveis, seja a que título for, perante a P ou perante a RTP, caso no ano de 2002 o volume de publicidade televisiva previsto no número anterior não venha a ser concretizado por causa imputável, directa ou indïrectamente, por acção ou por omissão, à P e/ou à RTP, bem como por causa de força maior devidamente comprovada. ";
7ª Assim, perante a conduta da RTP - de suspensão unilateral da emissão do filme publicitário - às Rés cabia, desde logo o direito (nos termos daquele n° 2 da cláusula 2ª) de não cumprir o volume de publicidade televisiva previsto no contrato;
8ª A decisão da RTP constitui, nos termos da cláusula 2ª, n° 2, do contrato, "causa imputável, directa ou indirectamente, por acção ou por omissão, à P e/ou à RTP" justificativa do não cumprimento do volume de publicidade contratado
9ª Este direito das Rés/recorrentes não fica afastado, nem de qualquer forma precludido ou extinto, pelo facto de estas terem tentado, num primeiro momento - surpreendidas pela conduta ilícita da RTP - "salvar" o contrato mediante a alteração do filme, procedendo à mera "substituição da expressão «FRITOS MENOS GORDOS, MAIS SECOS, MAIS SAÚDE» pelas seguinte «NÃO SEJA GORDUROSA, FRITE COM MIMO, SEJA FELIZ»" (Facto 24.)
10ª Ao efectuar pedido de "suspensão da inserção de filmes da campanha" "enquanto a C e a P não chegassem a acordo sobre investimentos/inserções/GRP’s - "pedido que foi de imediato executado pela P" (facto n° 11) — a Ré/recorrente C promoveu uma efectiva suspensão temporária de todos os efeitos do contrato, que foi aceite pela Autora/recorrida, pelo que a suspensão, pelas Rés, do cumprimento da sua contraprestação - de pagamento do preço dos serviços da Autora/recorrida - terá de ser considerada legítima.
11ª As Rés/recorrentes nunca manifestaram à Autora qualquer vontade de resolver o contrato (o que lhes era permitido ao abrigo do n° 2 da cláusula 2ª), apenas se tendo limitado a promover a suspensão temporária da execução do mesmo, tendo fixado como termo de tal suspensão a obtenção de acordo acerca dos "investimentos/inserções/GRP's" – o que foi aceite pela Autora/recorrida.
12ª A suspensão acordada entre as partes, ocorreu devido ao facto de, conforme a Mma Juíza "a quo" bem refere, após a alteração imposta pela conduta da RTP – de suspender a emissão do filme do óleo MIMO - as Rés se terem visto "confrontadas com uma situação em que estavam a despender montantes consideravelmente elevados sem obter o resultado que era suposto obter com o anúncio publicitário - uma reacção favorável do público que iria repercutir-se nas vendas do óleo «MIMO» ";
13ª Encontrando-se a execução do contrato suspensa - a pedido das Rés/recorridas, e com a pronta aceitação da Autora - até que fosse alcançado acordo acerca dos "investimentos/inserções/ GRP's, era absolutamente ilegítimo que a Autora continuasse a emitir e remeter àquelas, para pagamento, facturas devidas pelos serviços que não se encontrava a prestar;
14ª Nos termos do estipulado na cláusula 6ª do contrato, a contraprestação das Rés (pagamento do preço) reporta-se exclusivamente aos "serviços prestados em execução do presente contrato (…)", pelo que só os serviços efectivamente prestados deverão ser objecto de retribuição, o que, aliás, mais não é senão a transposição para o contrato das normas legais, nomeadamente do disposto no art° 1158°, n° 2 do Código Civil.
15ª Termos em que, ao não ter efectuado o pagamento das facturas, durante o período em que a execução do contrato se encontrava, temporariamente, suspensa por acordo das partes, as Rés não incorreram em qualquer incumprimento das suas obrigações contratuais, pelo que a resolução do contrato levada a cabo pela Autora carece de fundamento, sendo consequentemente ilegítima.
16ª Muito embora corresponda à verdade que na data em que as Rés pediram a suspensão da execução do contrato, os montantes pagos por estas era inferior aos GRP’s já utilizados (sem prejuízo de grande parte destes deverem ser considerados invalidamente utilizados), não tem qualquer razão a Mmª Juíza "a quo" quando afirma que "só o pagamento das facturas reclamadas repõe efectivamente o equilíbrio entre o valor dos serviços prestados pela Autora e a contrapartida a cargo das Rés, nos termos acordados."
17ª Efectivamente, as partes estavam a negociar a questão dos "investimentos/ inserções/GRP's", o que significava que entendiam que haveriam de ser efectuados acertos/compensações a favor das Rés, pelo que a diferença de cerca de 12% entre o já consumido e o prestado, poderia resultar absolutamente despicienda, porquanto o Administrador da Autora através da mensagem de correio electrónico junta aos autos a fis. 219-220 já havia proposto atribuir às Rés "beneficio adicional" no montante de € 113.587,00, valor que corresponderia a 11,38 % do valor total do contrato;
18ª Em todo o caso, mesmo que se desprezasse a supra referida negociação, para que a diferença (de € 125.923,64) entre os GRP's consumidos e os montantes pagos pelas Rés fosse liquidada – no sentido do "equilíbrio entre o valor dos serviços prestados pela Autora e a contrapartida a cargo das Rés" – a quantia global de € 296.784,75 titulada pelas "facturas n°s 491, 492, 625, 626, 733 e 734" seria, sempre, manifestamente excessiva;
19ª Igualmente no que respeita à questão de saber "se a Autora poderá exigir das Rés o pagamento dos valores que se venceriam até ao final do contrato, apesar da suspensão dos serviços", a Mmª Juíza "a quo" efectua errada aplicação do direito aos factos;
20ª A Mma Juíza "a quo" efectua errada interpretação e aplicação da norma do art° 781° do Código Civil, porquanto a forma de pagamento (em tranches) estabelecida entre as partes, e o seu eventual incumprimento, não tem o efeito que lhe é atribuído na douta sentença.
21ª As partes estabeleceram contrato de prestação de serviços, cadenciando os pagamentos em termos mensais, mas tendo por base que o cumprimento do contrato por parte da Autora iria acompanhar a cadência dos pagamentos, tendo, também, convencionado expressamente na cláusula 6ª que o preço acordado respeitaria à "contrapartida dos serviços prestados em execução do presente contrato (a)" pelo que, quer nos termos desta norma contratual, quer nos teimas do disposto no art° 1158°, n° 2 do Código Civil, à Autora só lhe cabia receber o que efectivamente prestasse.
22ª Acresce, ainda, que encontrando-se a execução do contrato suspensa por acordo das partes, nunca seria legítimo à Autora – ainda que se verificassem os demais pressupostos, que não se verificam - suscitar o vencimento de todas as prestações em face da falta de realização de uma delas, que também não se concede se tenha verificado;
23ª Ao invés do referido pela Mmª Juíza "a quo”, as obrigações principais da Autora, emergentes do contrato em apreço, são, claramente, a prestação de serviços de negociação e aquisição de espaços publicitários [cláusulas 1a, n° 1 e 2a, n° 1, alínea a)], a emissão de publicidade "num número mínimo de mil e oitenta inserções de quinze segundos cada, correspondendo a um mínimo de quatro mil seiscentos e sessenta e sete "Gross Rating Points", entre os dias 1 de Janeiro e 31 de Dezembro de 2002" [cláusula 2ª, n° 1, alínea b)]
24ª As supra referidas obrigações principais, ou fundamentais, da Autora não podem - ao invés do pretendido pela Mma Juíza "a quo" - ser classificadas como prestações de execução instantânea, sendo antes, claramente, de execução continuada, devendo ser cumpridas no decorrer de toda a vida do contrato, isto é: até que estivessem cumpridas emissões publicitárias, no Canal 1 da RTP, "num número mínimo de mil e oitenta inserções de quinze segundos cada, correspondendo a um mínimo de quatro mil seiscentos e sessenta e sete "Gross Rating Points", entre os dias 1 de Janeiro e 31 de Dezembro de 2002".
25ª Ao considerar que a "prestação fundamental da P" era não uma obrigação, mas antes uma declaração da Autora, mediante a qual assegurava que tinha condições para cumprir as suas obrigações, a Mmª Juíza "a quo" para além de efectuar incorrecta qualificação jurídica dos factos, efectua errada aplicação do direito ao pretender, daquela forma, justificar a aplicabilidade da norma do art° 781° do Código Civil, a qual não tem, cristalinamente, aplicação no caso em apreço.
26ª O contrato celebrado entre Autora/recorrida e Rés/recorrentes é, conforme bem classificou a Mmª Juiza "a quo ", um contrato de prestação de serviços, pelo que é absolutamente errado e contraditório considerar que "com a assinatura do contrato” as Rés "obtiveram, de forma imediata, o direito a utilizar o espaço publicitário, por um período de um ano, pelo qual as Rés acordaram pagar um determinado preço" – configurar o contrato desta forma (errada) teria de ter por necessária consequência qualificá-lo como um contrato de compra e venda de espaço publicitário e não como um contrato de prestação de serviços, como tão bem a Mmª Juíza o classificou.
27ª A obrigação principal, ou fundamental, da Autora, emergente do contrato em apreço, é uma obrigação de resultado: só com a efectiva emissão dos anúncios publicitários das Rés (com o consequente "consumo" da totalidade dos contratados) a Autora cumprirá a sua prestação;
28ª Com a assinatura do contrato as Rés ficaram com o direito (e correspondente expectativa) de beneficiar dos serviços a serem-lhes prestados pela Autora, de forma continuada e sucessiva, durante o período de vigência do contrato, e, nessa conformidade, poderem vir a beneficiar da utilização de espaço publicitário, nos termos e pelo preço convencionados no contrato.
29ª Não se verifica, no caso em apreço, fundamento que justifique a aplicabilidade do art° 781° do Código Civil, nem se verifica qualquer outro fundamento jurídico que imponha às Rés "o pagamento das quantias correspondentes às prestações vincendas" até final do contrato.
30ª Todavia, ainda que assim não se entenda (o que só academicamente se configura), sempre teriam de ser considerados como não devidos os serviços que a Autora não chegou a prestar às Rés, porquanto nos termos do disposto nos art°s 1170° e 1172° do Código Civil (aplicáveis ex vi art° 1156° do mesmo Código) o contrato em apreço (de prestação de serviços) era livremente revogável por qualquer das partes, ficando a parte que revogar o contrato obrigada a "indemnizar a outra do prejuízo que esta sofrer".
31ª Nos termos dos art°s 1170º e 1172° do Código Civil, conjugados, nomeadamente com os art°s 562° e seguintes do mesmo Código, o montante da indemnização que a Autora teria a receber (caso tivesse ocorrido incumprimento contratual por parte das Rés, o que não se concede) destinar-se-ia a ressarci-1a do eventual "prejuízo" concreto, que a mesma tivesse sofrido, e na sua estrita medida e extensão.
32ª Não tendo a Autora alegado - não tendo, consequentemente, provado - que tivesse sofrido qualquer prejuízo, não lhe pode ser arbitrada qualquer quantia indemnizatória, inexistindo portanto, fundamento para a Mma Juíza "a quo" lançar mão do art° 564° do Código Civil, por forma a avaliar a "medida do prejuízo".
33ª Cabia à Autora alegar e concretizar a dimensão do seu eventual prejuízo, alegando e demonstrando não só as quantias que havia deixado de receber, mas também as quantias que deixou de suportar, pelo que, não o tendo feito, não poderia, nunca, a Autora beneficiar de qualquer indemnização, ainda que tivesse fundamento para tanto (o que, repete-se, não se concede que exista).
34ª Termos em que, mesmo que se entendesse verificar-se incumprimento contratual por parte das Rés - o que não se concede e só academicamente se configura - a Autora teria direito a receber, apenas e exclusivamente, o remanescente da retribuição dos serviços que efectivamente prestou às Rés, que estas receberam, e que ainda não se encontre paga (Factos 29. e 32.)
35ª Conforme referido foi a Autora que incumpriu o contrato celebrado com as Rés, porquanto aquela estava contratualmente vinculada a facultar a estas a utilização de espaço publicitário no canal 1 da RTP, da forma que lhes aprouvesse – sem prejuízo do cumprimento da Lei – de tal modo que pudessem executar os respectivos Planos de Marketing, sendo certo que a partir da data em que a RTP procedeu à suspensão unilateral do filme das Rés, a Autora não mais cumpriu as suas obrigações contratuais tal qual estavam fixadas.
36ª Às Rés deixou de ser facultado que pudessem levar a cabo a execução do seu Plano de Marketing e Publicidade, tal qual estava definido e delineado, bem assim como a Autora não cumpriu a prestação dos seus serviços de acordo com as instruções das Rés/recorrentes, não tendo, nomeadamente, apresentado junto da RTP as provas científicas que estas lhe entregaram e que comprovavam a falta de fundamento da decisão do ICAP, nem logrou, de qualquer forma, opor-se à iniciativa ilícita da RTP.
37ª A conduta da Autora, posterior à suspensão do filme das Rés por parte da RTP, configura incumprimento do contrato, que impõe e fundamenta a sua obrigação de indemnizar as Rés pelos prejuízos sofridos em virtude do incumprimento.
38ª Considerando que todas as emissões do filme alterado (conforme assente no Facto 7.), não foram efectuadas nos termos acordados no contrato em apreço nos presentes autos, os mesmos não deverão ser tomados em consideração no cômputo dos GRP's validamente utilizados pelas Rés, pelo que, para além da indemnização pelo incumprimento contratual por parte da Autora – cuja fixação deverá ser remetida para execução de sentença – as Rés terão sempre de ser ressarcidas, por aquela, de todos os montantes pagos pelos GRP's despendidos a partir da modificação do seu filme publicitário, imposta pela posição adoptada pela RTP.
39ª Em conformidade com o exposto, ao decidir conforme decidiu na sentença sub judice, a Mmª Juíza “a quo” violou, entre outras, as normas dos artºs 376º, 406º nº 1 , 562º, 564º, 781º, 1158º, 1161º e 1172º do Código Civil (as três últimas ex vi do artº 1156º do mesmo código) e dos artºs 659º nº 3 e 668º nº 1 al. b) do Código de Processo Civil.
Termos em que deverão as Rés ser absolvidas dos pedidos formulados pela Autora, e a Autora condenada no pedido reconvencional deduzido.

A Autora contra alegou, pugnando pela confirmação do julgado.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2. Fundamentos:
2.1. De facto:
Na 1ª instância julgaram-se provados os seguintes factos:
a) Em Novembro de 2001, Autora e Rés celebraram o contrato com as cláusulas constantes do documento de fls.22-28, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, das quais se destacam as seguintes(1):
1. Pelo presente contrato, a P obriga-se a prestar à N SGPS serviços de apoio técnico, não jurídico, à negociação e aquisição de espaços publicitários na Rádio TelevisãoPortuguesa (de ora em diante designada apenas como RTP), para o ano de 2002.
2. A publicidade a realizar na RTP pelas M e C integrar-se-à nos serviços a prestar, -nos termos do número anterior, tendo em vista a sua uniformização no âmbito dos serviços de marketing e publicidade do "Grupo N".
(…).
1. Para efeitos do integral preenchimento do objecto do presente contrato e para sua boa execução, estabelecem as Outorgantes que:
a) A negociação e aquisição de espaços publicitários por parte da P será exclusivamente realizada para emissão no canal Um da RTP;
b) A emissão da publicidade objecto do presente contrato, será realizada num número mínimo de mil e oitenta inserções de quinze segundos cada, correspondendo a um mínimo de quatro mil seiscentos e sessenta e sete "Gross Rating Points", entre os dias 1 de Janeiro e 31 de Dezembro de 2002;
(…)
e) A P declara e garante que já obteve junto da RTP para as Segundas Outorgantes o espaço publicitário referido nas alíneas anteriores com um desconto médio de 74%, (setenta e quatro por cento) relativamente à tabela de preços da RTP para o ano 2001, bem como a que a eventual alteração de tal tabela de preços no ano de 2002 não motive qualquer alteração nas condições acordadas nos termos do presente contrato;
f) A P assegurará às Segundas Outorgantes, no ano de 2002, a efectivação de emissões publicitárias na RTP que, com aplicação do desconto médio estipulado na alínea anterior, correspondam a 997.596 euros (…), o que declara e garante assegurar a efectiva obtenção do desconto referido na alínea anterior;
g) Todos e quaisquer pagamentos devidos à RTP, em contrapartida da aquisição de espaço publicitário no âmbito da execução do presente contrato, serão da exclusiva conta da P, pelo que os únicos pagamentos a que as Segundas Outorgantes se obrigam neste contrato são os que resultam do disposto na cláusula sexta.
2. As Outorgantes expressamente estabelecem que as Segundas Outorgantes não serão responsáveis, seja a que título for, perante a P ou perante a RTP, caso no ano de 2002 o volume de publicidade televisiva previsto no número anterior não venha a ser concretizado por causa imputável, directa ou indirectamente, por acção ou por omissão, à P e/ou à RTP, bem como por causa de força maior devidamente comprovada.
1. Sem prejuízo do disposto noutras cláusulas do presente contrato, constituem obrigações da P:
a) Prestar serviços de aconselhamento para planeamento estratégico, no que se refere à realização de publicidade na RTP;
b) Prestar serviços de planeamento e produção dos suportes de comunicação publicitária destinados a emissão na RTP;
(…)
1. No âmbito da execução, sem prejuízo da consultoria a prestar por parte da Primeira Outorgante, compete exclusivamente às Segundas Outorgantes:
a) Elaborar e aprovar os seus planos de marketing, publicidade e comunicação;
b) Contratar com terceiros a concepção e produção dos suportes de comunicação publicitária destinados a emissão na RTP;
(…)
1. Em contrapartida dos serviços prestados em execução do presente contrato, a P terá exclusivamente direito ao pagamento do preço anual de Esc. 200.000.000$00 (duzentos milhões de escudos ou 997.595,79 euros, novecentos e noventa e sete mil quinhentos e noventa e cinco euros e setenta e nove cêntimos).
2 O preço convencionado nos termos do número anterior será pago pelas Segundas Outorgantes em onze prestações mensais e sucessivas de 16.666.666$00 (dezasseis milhões seiscentos e sessenta e seis mil seiscentos e sessenta e seis escudos ou 83.132,98 euros, oitenta e três mil cento e trinta e dois euros e noventa e oito cêntimos) com início no mês de Dezembro de 2001, e sendo a décima segunda e última prestação de 16.666.674$00 (dezasseis milhões seiscentos e sessenta e seis mil seiscentos e setenta e quatro escudos ou 83 133,02 euros, oitenta e três mil cento e trinta e três euros e dois cêntimos.
3...Aos valores indicados nos números anteriores acresce IVA, à taxa legal aplicável.
4. A facturação será realizada mensalmente pela P, com prazo para pagamento até ao último dias desse mês.
(…)”
b) Em execução do referido contrato, a Autora contratou com a RTC Radiotelevisão Comercial, Lda. a empresa participada da RTP que procede à comercialização do espaço publicitário desta - a transmissão dos filmes da campanha publicitária de um produto da COPAZ - óleo alimentar MIMO.
c) Foi com base no volume global de transmissões previsto que a P obteve o desconto contratualmente garantido, de.74% relativamente ao preço de tabela, conforme cláusula 2.a, n.° 1, alínea e) do contrato.
d) Este desconto foi concedido à Autora atendendo ao volume de publicidade adquirida à RTC.
e) A concepção, produção e realização da campanha publicitária, com forte componente televisiva, do referido produto da C foi contratado por esta, com uma outra empresa, sem qualquer intervenção da Autora.
f) Autora acompanhou a execução do contrato de transmissão publicitária e aconselhou frequentemente a C, por telefone, por correio electrónico, por fax e em reuniões com administradores e quadros da C, sobre o planeamento da utilização do espaço publicitário em televisão.
g) O Sr. Dr. P, administrador delegado da Autora, e Sra. Dra. S, funcionária daquela, estiveram presentes na apresentação do "story board".
h) Depois sucede que, por deliberação de Março de 2002, o Júri de Ética Publicitária do Instituto Civil da Autodisciplina da Publicidade decidiu a cessação imediata da transmissão de um filme publicitário da marca "MIMO", por entender que ele violava algumas normas do Código da Publicidade e do Código de Conduta do ICAP.
i) E, perante tal decisão, a RTP suspendeu, a partir de 29 de Março de 2002, a transmissão do filme publicitário em causa.
j) A C decidiu, então, providenciar pela alteração do filme referido, de modo a conformá-lo com a deliberação do Júri de Ética Publicitária do Instituto Civil da Autodisciplina da Publicidade, o que fez com a empresa que contratara para a sua concepção, produção e realização iniciais.
k) Notificada da decisão do Júri de Ética Publicitária, a Ré C recorreu para o Pleno do mesmo Júri de Ética Publicitária do Instituto Civil da Autodisciplina da Publicidade, que manteve a decisão da secção, por deliberação de 30 de Abril de 2002.
l) Entretanto, deixaram de ser transmitidas catorze emissões do mesmo filme, nos dias 29, 30 e 31 de Março e 1 de Abril de 2002.
m) As emissões foram retomadas em 2 de Abril de 2002, com o filme alterado.
n) No dia 27 de Agosto de 2002, a COPAZ pediu a suspensão da inserção de filmes da campanha nos dias 29 de Agosto a 1 de Setembro de 2002, pedido que foi de imediato executado pela P.
o) O pedido de suspensão referido seria para vigorar enquanto a C e a P não chegassem a acordo sobre investimentos/ inserções/GRP’s.
p) No dia 29 de Agosto de 2002, a C devolveu as facturas emitidas pela Autora, relativas aos meses de Julho e Agosto n.°s 491, 492, 625 e 626 que constituem os documentos 4, 5, 6,7 e 8, juntos com a petição inicial.
q) No dia 17 de Setembro de 2002, a C devolveu as facturas emitidas pela Autora, relativamente ao mês de Setembro, a saber: a) n.°733 de 11 de Setembro de 2002, com vencimento a 30 de Setembro de 2002 emitida em nome da Ré C, no valor de € 71722,98 (incluindo € 11 451,57 de IVA); b) n.°734 de 11 de Setembro de 2002, com vencimento a 30 de Setembro de 2002 emitida em nome da M, no valor de € 27 205,27 ( incluindo € 4 343,70 de IVA).
r) As Rés não pagaram as referidas facturas, nem na data do seu vencimento, nem posteriormente.
s) A partir de 29 de Agosto de 2002, a Autora suspendeu a prestação dos seus serviços, deixando de dar à RTP as ordens de transmissão das inserções publicitárias previstas.
t) Da suspensão das transmissões resultará uma diminuição do volume global das transmissões previstas para o ano de 2002 no âmbito do contrato celebrado.
u) As inserções publicitária deveriam recomeçar, de acordo com o planeamento feito, a partir do dia 26 de Setembro de 2002.
v) Face à informação de que a RTP iria suspender a emissão dos filmes publicitários do óleo "MIMO", o administrador da Autora disse às Rés que iria interceder junto da RTP no sentido de tentar dissuadir aquele canal público de televisão de levar por diante a decisão de suspender a emissão do anúncio da C.
w) Tendo vindo a comunicar, mais tarde, nesse mesmo dia 28 de Março, que não tinha tido êxito nas diligências efectuadas e que, consequentemente, a RTP iria efectivamente suspender a emissão daquela campanha publicitária.
x) A Autora comprometeu-se a envidar esforços no sentidos de as Rés virem a ser compensadas pela atitude da RTP de suspender a emissão do filme publicitário da C(2)
y) O Sr. Dr. P, administrador delegado da Autora, e Sr." Dr.ª S, no momento da apresentação do "story board", foram consultados sobre o mesmo.
z) A modificação do filme publicitário consistiu na substituição da expressão " fritos menos gordos, mais secos, mais saúde", pela seguinte " não seja gordurosa, frite com MIMO, seja feliz".
aa) O impacto do novo anúncio publicitário sobre o mercado foi muito inferior ao primeiro.
ab) As Rés obtiveram informações técnicas segundo as quais os consumidores alvo do anúncio mostravam-se indiferentes relativamente ao mesmo.
ac) A indiferença constitui o pior dos resultados que pode ser atribuído a um anúncio e/ou campanha publicitária.
ad) Em termos publicitários, é preferível que o público reaja negativamente a determinada campanha porque, ainda assim, a marca "passa", torna-se conhecida, é comentada.
ae) As Rés efectuaram o pagamento de € 498 767,64.
af) A Autora suspendeu a prestação dos seus serviços face ao não pagamento das facturas, referidas nos pontos 12 e 13 dos factos assentes.
ag) Até 19 de Setembro de 2002 foram realizadas 817 inserções correspondendo a 2 922,6 GRP's.
Para além destes e com relevo para a decisão de mérito, decorre do documento junto a fls. 165-172 que não foi impugnado, estoutro facto, a considerar nos termos do disposto nos artigos 659º nº 3 do Código de Processo Civil:
ai) Da deliberação do Júri de Ética Publicitária do Instituto Civil da Autodisciplina da Publicidade, de Março de 2002, que decidiu a cessação imediata da transmissão de um filme publicitário da marca "MIMO", consta, além do mais, o seguinte:
O princípio da veracidade está consagrado no art.° 14º do C C.1CAP (e não no art.º 4°, como a Requerente, certamente por lapso, indica) e no art.° 10° do C.Pub. e tem por objectivo contribuir para uma escolha consciente e racional do consumidor entre bens e serviços concorrentes. O art. 11° do C.Pub. define publicidade enganosa. O que caracteriza a publicidade enganosa, para além dos casos de pura e simples mentira, é que a mensagem publicitária seja produzida em termos de tal modo ambíguos que o destinatário "médio, eventual ou desprevenido possa ser induzido em erro. Por outro lado, o n° 5 do art.° 11° do C.Pub. estabelece uma presunção de inexactidão relativa às afirmações contidas em mensagens publicitárias, no caso de as provas exigidas não serem apresentadas ou serem insuficientes. As afirmações formuladas pela C e contestadas pela Requerente, consubstanciadas nas expressões "FRITOS MENOS GORDOS", 'MAIS SECOS”, “MAIS SAUDE" representam uma promessa objectiva e concreta e não podem ser confundidas com o mero uso da hipérbole inconsequente (dolos bonus), tão costumeira na prática publicitada Devem, por isso, ser provadas pelo anunciante, neste caso, a C, sob pena de se presumirem inexactas. Ora sucede que a C não fez prova, nestes autos, como obriga o n° 2 do art 10º do Regulamento deste Júri, da exactidão daquelas afirmações. Nem se diga que releva o argumento aduzido pela C de que as referidas afirmações respeitam ao resultado da utilização do óleo "Mimo”, a saber, as características dos alimentos fritos com o mesmo, e não às propriedades intrínsecas do produto. Para além do evidente sofisma tal distinção infirma, não resiste ao estatuído no n° 2, a) do art.° 11° do C.Pub., no qual expressamente se consagra que os "resultados que podem ser esperados da sua utilização "constituem um dos critérios por que se há de avaliar a natureza enganosa ou não de qualquer mensagem publicitária em suporte de qualquer produto. Em qualquer caso, como já ficou dito, teria a C de ter feita prova do que afirma, o que não fez”.

2.2. De direito:
2.2.1. Sendo o objecto do recurso traçado pelas conclusões da alegação da recorrente (artigos 684º º 3 e 690º do Código de Processo Civil), delas emerge como primeira questão a conhecer a invocada nulidade da sentença.
Sustentam as recorrentes que a sentença sob recurso é nula, nos termos do disposto nos artigos 668º nº 1 al. b) e 659º nº 3 do Código de Processo Civil, porque na fixação da matéria de facto provada se limitou a dar “por integralmente reproduzido” o teor do documento que consubstancia o contrato celebrado pelas partes, em vez de especificar os factos que resultam do mesmo, e não tomou em consideração esses factos, admitidos por acordo, respeitantes ao teor das cláusulas contratuais.
É ponto assente que a remissão genérica para o conteúdo de documentos na fixação dos factos com relevo para a decisão de mérito constitui técnica incorrecta, devendo o juiz seleccionar dos documentos os pontos relevantes e consagrá-los no elenco dos factos a considerar tendo em vista as várias soluções plausíveis da questão de direito.
Essa prática, embora censurável, posto que, como refere a recorrente, os documentos não são factos, não conduz necessariamente à nulidade da sentença, uma vez que não está vedado, antes constitui uma exigência, considerar na fundamentação da sentença os factos resultantes de documentos juntos aos autos e aceites pelas partes, como decorre do disposto no artigo 659º nº 3 do Código de Processo Civil.
E ao longo da sentença recorrida foram destacados e analisados pontos concretos do clausulado naquele documento considerados relevantes para a decisão de mérito, explicitando-se o seu conteúdo, pelo que se deu dessa forma cumprimento ao estatuído no citado artigo 659º nº 3.

Segundo as recorrentes, a sentença é também nula por falta de fundamentação dos factos não provados, nos termos do disposto nos artigos 668º nº 1 al. b) e 653º nº 2 do Código de Processo Civil.
A motivação da decisão sobre a matéria de facto constitui uma exigência legal consagrada no nº 2 do citado artigo 653º. Com efeito, impõe-se ao julgador a análise crítica das provas e a especificação dos fundamentos decisivos para a formação da sua convicção quer quanto aos factos provados, quer quanto aos não provados.
Não basta a mera indicação dos concretos meios de prova em que se baseou a formação da convicção do julgador, devendo enunciar-se os motivos racionais e objectivos que foram determinantes na formação do processo decisório.
No caso vertente, a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto no tocante aos factos não provados limitou-se à afirmação de que a resposta negativa ficou a dever-se “ao facto de não ter sido produzida prova suficiente para convencer o Tribunal”, o que fica muito aquém do que é actualmente exigido ao julgador em matéria de motivação da decisão em causa, mesmo no que tange às respostas negativas.
Sucede que, tal como se escreveu nos Acs. da RL de 19.12.1975 e 23.01.1979(3), o artigo 668º do Código de Processo Civil respeita, exclusivamente, às causa de nulidade da sentença, de entre as quais figura a falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, não se aplicando à decisão sobre a matéria de facto.
Quanto a esta, podem as partes reclamar, nos termos do disposto no artigo 653º nº 4 do mesmo código, contra a deficiência, obscuridade ou contradição da decisão ou contra a falta da sua motivação.
Pode ainda, ao abrigo do que estabelece o artigo 712º nº 5 do citado código, a Relação determinar, a requerimento da parte, que o tribunal de 1ª instância fundamente a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa se não estiver devidamente fundamentada, situação que claramente se não configura nos autos.
Termos em que se concluiu que se não se verifica qualquer das invocadas causas de nulidade da sentença recorrida.

2.2.2. No tocante à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, importa ter presente que vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre (artigo 655º do Código de Processo Civil), segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada. Segundo este princípio, que se opõe ao princípio da prova legal, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, nem preocupação do julgador quanto à natureza de qualquer delas.(4)
Além deste princípio, que só cede perante situações de prova legal - prova por confissão, por documentos autênticos, por certos documentos particulares e por presunções legais(5) -, vigoram ainda os princípios da imediação, da oralidade e da concentração, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão de 1ª instância sobre a matéria de facto, ampliados pela reforma processual operada pelo DL nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo DL nº 180/96, de 25 de Setembro, deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.(6)
À luz do disposto no artigo 712º nº 1 do Código de Processo Civil a decisão sobre a matéria de facto, por princípio inalterável pela Relação, pode ser modificada em sede de recurso se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690º-A, a decisão com base neles proferida (al. a)), se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas (al. b)) ou ainda se o recorrente apresentar documento novo superveniente, que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a resposta assentou.
In casu, defendem as recorrentes que foi incorrectamente julgada a matéria a que respeitam as respostas dadas aos artigos 1º, 3º, 7º e 15º da base instrutória por ter havido uma deficiente apreciação da prova testemunhal e não terem sido devidamente considerados os demais meios de prova produzidos, nomeadamente documentos juntos aos autos.
É manifesto que o processo não contém elementos que imponham decisão diversa insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas, nem a recorrente apresentou documento novo superveniente, pelo que cumpre analisar os meios de prova produzidos.

(…)
Da conjugação desta prova, documental e testemunhal, resulta a demonstração do facto em causa, pelo que o mesmo deverá ser julgado provado como pretendem as recorrentes e, consequentemente, ser aditado ao elenco dos factos provados.

Questionam ainda as recorrentes a resposta afirmativa dada ao artigo 15º da base instrutória, alegando que é contraditória com o especificado na alínea L) dos factos assentes.
Esta alínea L) tem a seguinte redacção:
No dia 27 de Agosto de 2002, a C pediu a suspensão da inserção de filmes da campanha nos dias 29 de Agosto a 1 de Setembro de 2002, pedido que foi de imediato executado pela Publinter
Por sua vez, perguntava-se naquele artigo 15º, que obteve resposta positiva, o seguinte:
A Autora suspendeu a prestação dos seus serviços face ao não pagamento das facturas referidas em M) e N)?
Estes factos só aparentemente são contraditórios.
Na verdade, deles se extrai que a suspensão da inserção de filmes, que começou por radicar exclusivamente no pedido formulado pela recorrente C, passou, a partir do momento em que devolveu sem pagamento facturas emitidas pela recorrida P, a derivar também da decisão que esta tomou de suspender a prestação dos seus serviços com base naquela falta de pagamento.
Acresce que a suspensão da emissão de filmes publicitários e a suspensão da prestação de serviços contratados à P não são realidades totalmente coincidentes, sendo esta última mais abrangente, apesar de tal prestação de serviços visar a transmissão televisiva de filmes publicitários a produtos das recorrentes.
Deve, pois, manter-se como provado o facto em causa.

2.2.3. Assente, em definitivo, a matéria de facto provada, importa qualificar juridicamente o contrato celebrado entre as partes e que integra a causa de pedir nesta acção.
Considerou-se na sentença recorrida, sem qualquer objecção das partes, que se trata de um contrato de prestação de serviço, nos termos do disposto no artigo 1154º do Código Civil.
E tal qualificação não suscita qualquer reparo, uma vez que decorre dos factos apurados que a P, ora recorrida, se obrigou a prestar à recorrente N serviços de apoio técnico, não jurídico, à negociação e aquisição de espaços publicitários na Rádio Televisão Portuguesa para o ano de 2002 mediante retribuição.
Em execução deste contrato a P contratou com a RTC - Radiotelevisão Comercial, Lda, empresa participada da RTP que procede à comercialização do espaço publicitário desta, a transmissão do filme da campanha publicitária de um produto da C - óleo alimentar MIMO -.
Essa transmissão concretizou-se até que a RTP a suspendeu a partir de 29 de Março de 2002 devido à deliberação do Júri de Ética Publicitária do Instituto Civil da Autodisciplina da Publicidade (ICAP), entidade que, em Março de 2002, decidiu a cessação imediata da transmissão do filme publicitário da marca "MIMO" por entender que ele violava algumas normas do Código da Publicidade e do Código de Conduta do ICAP.
Perante tal suspensão da transmissão televisiva do filme da campanha publicitária do seu produto, a C decidiu providenciar pela sua alteração de modo a conformá-lo com a deliberação do referido Júri de Ética Publicitária do ICAP, o que fez com a empresa que contratara para a sua concepção, produção e realização iniciais, sendo que, entretanto, deixaram de ser transmitidas catorze emissões do mesmo filme, nos dias 29, 30 e 31 de Março e 1 de Abril de 2002, as quais foram retomadas em 2 de Abril de 2002, com o filme alterado.
Considerou-se na sentença recorrida não ser imputável à P a suspensão da transmissão do filme publicitário pela RTP, nem a decisão do Júri de Ética Publicitária do ICAP, nem o efeito negativo que o segundo filme publicitário teve no público.
Deste entendimento discordaram as recorrentes, argumentando estar contratualmente prevista a obrigação de a recorrida “Prestar serviços de aconselhamento para planeamento estratégico, no que se refere à realização de publicidade na RTP; Prestar serviços de planeamento e produção dos suportes de comunicação publicitária destinados a emissão na RTP” (cláusula 3ª nº 1 als. a) e b)) e prestar “consultoria” no âmbito da “concepção e produção dos suportes de comunicação publicitária destinados a emissão na RTP” (cláusula 4ª nº 1 al. a)).
Daqui decorrendo não poder a recorrida P assumir uma postura de absoluto distanciamento relativamente a um facto - anúncio publicitário - para o qual contribuiu e para o qual estava contratualmente obrigada a prestar serviços de consultoria e aconselhamento, sob pena de se configurar abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprio.
Salvo o devido respeito, não pode concordar-se com as recorrentes.
É certo que à recorrida P cabia prestar serviços de consultoria e aconselhamento e que um seu administrador, bem como uma funcionária sua estiveram presentes na apresentação do “story board”, tendo sido consultados sobre o mesmo, o que evidencia algum comprometimento com o mesmo. Contudo, a intervenção da recorrida neste particular ficou-se por aqui, uma vez que é ponto assente, como contratualmente previsto, que a concepção, produção e realização da campanha publicitária, com forte componente televisiva, do referido produto da recorrente C foi entregue por esta a uma outra empresa, alheia à P e sem qualquer intervenção desta.
Acresce que a deliberação do Júri de Ética Publicitária do ICAP que conduziu à suspensão da emissão televisiva do filme publicitário em causa resultou da necessidade de ser feita prova pela recorrente C da exactidão das afirmações consubstanciadas nas expressões “FRITOS MENOS GORDOS”, “MAIS SECOS”, “MAIS SAÚDE” insertas no anúncio publicitário do óleo “MIMO” por respeitarem às propriedades intrínsecas do produto publicitado.
Sem essa prova, que à recorrente C competia, actuou a presunção de inexactidão das afirmações contidas na mensagem publicitária prevista no artigo 11º nº 5 do Código da Publicidade, como se exarou na aludida deliberação.
Quer isto significar que não foi o filme publicitário em si que foi objecto de apreciação negativa por parte daquela entidade, ou seja, a sua concepção, produção ou realização, às quais a recorrida era, aliás, alheia, pois que apenas tinha a obrigação de aconselhamento e consultoria, mas a falta de demonstração das qualidades do produto publicitado traduzidas nas aludidas afirmações. Não foram, assim, postas em causa a concepção e produção dos suportes de comunicação publicitária destinados à emissão televisiva na RTP, a censura não recaiu sobre a “selling idea”, mas sobre a falta de demonstração da veracidade das características do produto veiculadas através dela, ou seja, das três expressões referidas utilizadas no filme.
E não era exigível à recorrida P, atenta a factualidade provada, que averiguasse se as recorrentes dispunham ou não da comprovação das qualidades do produto que as expressões utilizadas no filme consubstanciavam e que veio a revelar-se necessária para poderem figurar nele.
Às recorrentes competia alegar e provar, por se tratar de matéria constitutiva do incumprimento que imputaram à recorrida, que a obrigação de aconselhamento e consultoria prevista no contrato lhe impunha que procedesse a tal averiguação junto das recorrentes, ónus que não cumpriram (artigos 264º nº 1 do Código de Processo Civil e 342º do Código Civil). Com efeito, os autos não dispõem de elementos que permitam concluir no sentido de que, de acordo com as regras do comércio publicitário, as empresas na posição contratual da recorrida devam assumir tal obrigação, nem tal constitui facto notório de que o Tribunal deva ter conhecimento, e o recurso às regras de interpretação da declaração negocial estabelecidas nos artigos 236º e seguintes do Código Civil não permitem surpreender esse sentido interpretativo face aos termos do contrato.
Assim, só as recorrentes, em particular a C, poderiam e deveriam munir-se da análise comparativa do seu produto - óleo MIMO - na vertente da possível demonstração das propriedades que do mesmo pretendiam evidenciar através das expressões utilizadas no filme publicitário.
Não pode neste contexto assacar-se à recorrida qualquer responsabilidade pela suspensão pela RTP da emissão televisiva do filme publicitário em questão, nem pelos prejuízos eventualmente daí advenientes, nomeadamente pelo impacto negativo que o filme publicitário em questão teve no público depois de alterado pela mesma empresa que o concebeu e realizou por escolha das recorrentes.
Em face do exposto, tem de concluir-se que a situação em análise não cai na previsão do nº 2 da cláusula 2ª do contrato firmado, na qual as partes estipularam não serem as ora recorrentes “…responsáveis, seja a que título for, perante a P ou perante a RTP, caso no ano de 2002 o volume de publicidade televisiva previsto no número anterior não venha a ser concretizado por causa imputável, directa ou indirectamente, por acção ou por omissão, à P e/ou à RTP, bem como por causa de força maior devidamente comprovada”.
Isto porque, por um lado, não existiu causa de força maior, nem foi sequer invocada, e, por outro, a não concretização do volume de publicidade previsto no ano de 2002 não ficou a dever-se, como se viu, a causa, directa ou indirectamente, imputável à recorrida Publinter ou à RTP e só a culpa de uma destas ou de ambas libertaria as recorrentes do pagamento convencionado.

2.2.4. E a conduta da recorrida não integra abuso de direito.
O abuso de direito verifica-se quando no exercício de um direito o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito (artigo 334° do Código Civil).
Esta figura jurídica, que tem na sua estrutura a natureza de “válvula de escape” face à rigidez do direito legislado, pressupõe a existência do respectivo direito na esfera de titularidade de quem o exerce e o excesso manifesto do seu uso, considerando-se na jurisprudência que tal excesso se verifica nas situações em que a atitude do titular do direito se manifeste em comportamento ofensivo do nosso sistema ético-jurídico, clamorosamente oposto aos ditames da lealdade e da correcção imperantes na ordem jurídica e nas relações entre os contraentes(7).
O venire contra factum proprium, que se traduz no "exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente"(8) constitui uma das vertentes do abuso de direito e, por isso, inadmissível.
"A proibição da chamada conduta contraditória exige a conjugação de vários pressupostos reclamados pela tutela da confiança. Esta variante do abuso do direito equivale a dar o dito por não dito, radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, pois pressupõe duas atitudes espaçadas no tempo, sendo a primeira (factum proprium) contraditada pela segunda atitude, o que constitui, atenta a reprobabilidade decorrente da violação dos deveres de lealdade e de correcção, uma manifesta violação dos limites impostos pela boa fé. A proibição de comportamentos contraditórios é de aceitar quando o venire contra factum proprium atinja proporções juridicamente intoleráveis, traduzido em chocante contradição com o comportamento anteriormente adoptado pelo titular do direito"(9).
Assim, para a concretização do abuso e determinação dos limites da boa fé, haverá "que atender de modo especial às condenações ético-jurídicas dominantes na colectividade. Para que haja abuso é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o direito e o interesse ou interesses a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito"(10).
Os factos não revelam, contudo, qualquer comportamento da recorrida P subsumível à figura do abuso de direito, em particular na vertente do venire contra factum proprium. Os autos não mostram que aquela se tivesse desviado das exigências de um comportamento leal e correcto. O seu apoio à “selling idea”do filme publicitário não é contraditório com a exigência de pagamento porque, repete-se, o que motivou a suspensão da sua emissão pela RTP está para além da concepção e produção do mesmo, situando-se ao nível da exactidão das características intrínsecas do produto publicitado - veracidade da mensagem publicitária - que, perante o quadro factual alegado e provado, só às recorrentes caberia, como se disse, demonstrar.
Não houve da parte da recorrida comportamentos contraditórios que criassem nas recorridas expectativas legítimas que posteriormente viessem a gorar-se devido a postura violadora dos princípios da boa fé. Aliás, os factos provados e a correspondência trocada entre as partes junta aos autos, invocada pelas recorrentes ao longo da sua alegação de recurso, revelam uma postura colaborante da recorrida no sentido de dissuadir a RTP de prosseguir com a decisão de suspender a emissão do anúncio publicitário da C, embora sem êxito, e minorar os efeitos nefastos para as recorrentes dessa suspensão.

2.2.5. Decorrendo dos factos provados que nenhum incumprimento contratual pode imputar-se à recorrida P, tem de soçobrar o pedido reconvencional deduzido pelas recorrentes, impondo-se averiguar se a suspensão da inserção de filmes da campanha a pedido da recorrente C no período compreendido entre 29 de Agosto e 1 de Setembro de 2002, enquanto não chegassem a acordo sobre investimentos/inserções/GRP’s, pedido que foi aceite pela recorrida, se repercutiu na obrigação de pagamento das facturas nºs 491, 492, 625, 733 e 734.
Ao contrário do que as recorrentes pretendem, a suspensão das transmissões do filme publicitário por iniciativa das recorrentes no quadro factual em que ocorreu não as dispensava do pagamento das facturas apresentadas e vencidas, respeitantes a inserções publicitárias efectuadas. Tendo a recorrida realizado a sua prestação, providenciando pelas inserções publicitárias, nomeadamente do filme já alterado pela C de modo a conformá-lo com a deliberação do Júri de Ética Publicitária do Instituto Civil da Autodisciplina da Publicidade (ICAP), assiste-lhe o direito à contraprestação das recorrentes.
E não há dúvida de que estas reconheceram expressamente na respectiva alegação de recurso (fls. 794) que “na data em que solicitaram a suspensão da execução do contrato (…) já haviam consumido 62,622% do total dos GRP’s contratados, tendo pago apenas 49,997% do preço total do contrato”.
No que toca ao apuramento do crédito da recorrida sobre as recorrentes, escreveu-se na sentença recorrida:
“Conforme se provou, as Rés efectuaram o pagamento de € 498 767,64 (…). E até 19 de Setembro de 2002, foram realizadas 817 inserções correspondendo a 2 922,6 GRP's. Da análise perfunctória destes dois factos ressalta, desde logo, que as Rés procederam ao pagamento de cerca de metade do valor global previsto no contrato, tendo beneficiado de um volume de inserções bastante superior a metade das previstas no contrato. Com efeito, na Cláusula 2ª b) do contrato, prevê-se que a emissão da publicidade seria realizada num número mínimo de 1080 inserções de 15 segundos cada, correspondendo a um mínimo de 4 667 " Gross Rating Points" (GRP's). Torna-se assim evidente que, há serviços prestados pela Autora que se encontram em dívida.
Na verdade, até 19 de Setembro de 2002 foram realizadas 817 inserções publicitárias, o que corresponde a 75,65% das inserções previstas no contrato. As Rés pagaram apenas 50% do preço global acordado. O valor das facturas em dívida é de € 296 784,75 que somado ao valor já pago (€ 498 767,64) atinge € 795 582,64, ou seja 79% do preço global. Conclui-se, assim, que o valor das facturas é claramente devido, em face dos serviços já prestados pela Autora, sendo para este efeito irrelevante a discrepância de 3.35%. O que releva é que só o pagamento das facturas reclamadas repõe efectivamente o equilíbrio entre o valor dos serviços prestados pela Autora e a contrapartida a cargo das Rés, nos termos acordados. Na verdade, tal discrepância resulta do facto de os valores serem facturados mensalmente em valores constantes, como acordado e as inserções publicitárias poderem variar em função do plano estratégico de marketing, como resulta óbvio em termos de experiência comum”.
Seguindo este entendimento, que se acolhe, tem de concluir-se que são devidos à recorrida P os valores constantes das facturas nºs 491, 492, 625, 626, 733 e 734 porque correspondentes a serviços prestados (artigos 1154º, 1156º e 1167º al. b) do Código Civil), estando as recorrentes vinculadas ao seu pagamento.

2.2.6. Relativamente às consequências deste incumprimento, considerou-se na sentença recorrida, seguindo a tese defendida pela recorrida P, que se está perante um contrato de execução instantânea, no qual se destaca como obrigação fundamental aquela através da qual declarou e garantiu ter já obtido junto da RTP, para as recorrentes, o espaço publicitário referido com um desconto médio de 74% (cláusula 2ª nº 1 al. e)), constituindo a retribuição estipulada uma obrigação de prestação fraccionada, pelo que, por aplicação do disposto no artigo 781º do Código Civil, a não realização de uma prestação importou o vencimento de todas.
Afigura-se, porém, que à luz do convencionado no contrato a prestação da recorrida é mais complexa, não se esgotando na obrigação de obter, de imediato, para as recorrentes o direito a utilizar um espaço publicitário pelo prazo de um ano mediante uma contrapartida.
Com efeito, a recorrida obrigou-se, não só a conseguir o espaço publicitário com o desconto previsto no contrato, mas também a acompanhar a execução do mesmo através da prestação de serviços de aconselhamento para planeamento estratégico, no que se refere à realização de publicidade na RTP, e serviços de planeamento e produção dos suportes de comunicação publicitária destinados a emissão na RTP, bem como ao envio semanal à N SGPS de relatório discriminativo de todas as actividades realizadas no âmbito da execução do contrato, com indicação precisa da data e hora de cada inserção publicitária na RTP e dos “Gross Rating Points” obtidos com essas inserções, relatório esse que incluiria igualmente uma previsão das actividades a realizar no período semanal imediatamente subsequente.
Este acompanhamento, tendo em vista a emissão da publicidade objecto do presente contrato, a realizar num número mínimo de mil e oitenta inserções de quinze segundos cada, correspondendo a um mínimo de quatro mil seiscentos e sessenta e sete "Gross Rating Points", entre os dias 1 de Janeiro e 31 de Dezembro de 2002, evidencia que decorriam do contrato outras obrigações, também essenciais, para a recorrida P a prestar ao longo da sua execução, além dos serviços de aquisição e negociação de espaços publicitários.
A componente instantânea do contrato não sobreleva sobre a sua vertente de execução continuada, sendo compatíveis. O direito à utilização de determinado espaço publicitário pelo prazo de um ano mediante um preço alcançado com a assinatura do contrato, que a sentença recorrida elegeu como obrigação fundamental, não torna acessórias todas as demais obrigações da recorrida emergentes desse mesmo contrato.
Razão por que tem de considerar-se que se trata de um contrato de execução continuada, ao qual não tem aplicação o regime estabelecido no citado artigo 781º do Código Civil, uma vez que este preceito pressupõe que uma das partes tenha cumprido a sua prestação, como sucede no caso do contrato de compra e venda a prestações, que é exemplar.
Logo, a falta de cumprimento das recorrentes não gera o vencimento imediato das prestações futuras, no sentido da sua imediata exigibilidade, apenas facultando à recorrida, credora, o direito de exigir o pagamento das prestações vencidas e não pagas, ou seja, dos valores constantes das facturas nºs 491, 492, 625, 626, 733 e 734, num total de € 296 784,75.
A estes acrescem, a título de indemnização, juros moratórios à taxa legal desde a data do vencimento de cada uma das facturas até pagamento porque se trata de obrigações pecuniárias com prazo certo (artigos 798º, 799º, 804º, 805º nº 2 al. a) e 559º do Código Civil.
Se outros prejuízos houve em consequência do não cumprimento das recorrentes, a recorrida P não os alegou nem provou, como era seu ónus (artigos 264º nº 1 do Código de Processo Civil e 342º nº 1 do Código Civil), pelo que, ainda que indemnizáveis de acordo com o disposto nos artigos 798º e 564º do Código Civil, não poderiam ser atendidos.

Procedem, assim, parcialmente as conclusões da alegação das recorrentes.

3. Termos em que se acorda no Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, altera-se a sentença recorrida, condenando-se as rés/recorrentes, solidariamente, no pagamento à autora/recorrida da quantia de € 296 784,75, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data do vencimento de cada uma das factura acima identificadas até pagamento e absolvendo-se as mesmas do mais que lhe era pedido a título de prestações vincendas.
No restante, mantém-se a sentença recorrida.
Custas, nas duas instâncias, pelas recorrentes e pela recorrida, na proporção do respectivo decaimento.
31 de Maio de 2007
(Fernanda Isabel Pereira)
(Maria Manuela Gomes)
(Olindo dos Santos Geraldes)
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1 Tendo-se procedido na selecção da matéria de facto à remissão para o teor do documento que consubstancia o contrato, técnica que não merece aplauso, transcrevem-se as cláusulas do mesmo com relevância para a decisão de mérito.
2 Facto resultante da decisão infra que, apreciando a impugnação da matéria de facto, julga provado o artigo 7º da base instrutória.
3 In BMJ 254º-237 e CJ 1979, Tomo I, pág. 109, citados por A: Neto, in Código de Processo Civil Anotado, 16ª ed., págs. 835 e 836.
4 A. Varela, M. Bezerra, S. e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 471.
5 A. Varela, M. Bezerra, S. e Nora, loc. cit., e Ac. RE de 20.09.90, BMJ 399/603.
6 Cfr. Ac. RP, de 19.9.2000, CJ Ano XV, Tomo IV, pág. 186 a 189.
7 Cf. Acs. do STJ de 2.7.96 e de 5.2.98, in BMJ 459/519 e 474/431, respectivamente)
8 Vide cit. Ac. STJ de 5.2.98.
9 Ac. STJ de 21/01/2003, no Proc. 2970/02 da 1ª secção.
10 Ac. STJ de 04/06/2002, no Proc. 1442/01 da 1ª secção.