Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7918/19.5T8LSB-A.L1-8
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: HOSPITAL
INTERVENÇÃO CIRÚRGICA
RESPONSABILIDADE CIVIL
PRESCRIÇÃO
PRAZO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: A responsabilidade de seguradora, para a mesma transferida por estabelecimento hospitalar, acha-se submetida ao regime da responsabilidade contratual, pelo que lhe será aplicável, não o prazo prescricional (3 anos) previsto no art. 498º, mas o prazo geral (20 anos), estabelecido no art. 309º do C.Civil
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa :

1. D…. propôs, contra Hospital … e J..., acção com processo comum, distribuída à comarca de Lisboa - Juízo Central, pedindo a condenação dos RR. a pagar ao A. a quantia de € 57.972,96, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, por si sofridos, em consequência de intervenção cirúrgica a que foi submetido no Hospital da 1ª R. e executada pelo 2º R.
Admitida a intervenção principal de ... Companhia de Seguros, SA, apresentou esta contestação, excepcionando a prescrição do direito invocado.
No despacho saneador, foi proferida decisão, na qual se julgou procedente a alegada prescrição, absolvendo-se do pedido aquela interveniente.
Inconformado, veio o A. interpor o presente recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões :
- O presente recurso recai sobre a decisão judicial que, na sequência do requerimento apresentado pela seguradora … , veio julgar procedente a excepção de prescrição invocada por esta interveniente quanto a si própria, absolvendo-a do pedido.
- Afigura-se ao recorrente que tal decisão de absolvição da interveniente ... enferma de manifesta contradição com o exarado no despacho saneador anteriormente proferido, radicando em erro na determinação da norma e regime jurídico aplicáveis.
- O A., ora recorrente, na presente acção, funda a causa de pedir no cumprimento defeituoso da obrigação - mais concretamente na execução da 3ª cirurgia a que foi submetido à coluna, em 20/4/2016, no Hospital ..., da qual resultou uma lesão irreversível do membro inferior direito daquele - parestesia, vulgo, pé pendente - lesão essa que veio a ser confirmada numa 4ª cirurgia realizada logo dois dias depois, em 22/4/2016, pelo mesmo médico e no mesmo hospital.
- O regime da responsabilidade civil contratual é, assim, expressamente invocado e devidamente fundamentado pelo A. nos arts. 56º a 78º da petição inicial, configurando a factualidade nela descrita um problema da relevância da lesão de direitos absolutos no decurso do cumprimento de uma  prestação de serviços médicos - identificado pelo acórdão do STJ de 1/10/2015, a que faz referência e adere o acórdão do STJ, de 28/1/2016, para além de outros enunciados na citada peça processual.
- Mediante despacho saneador, a Mma Juiz a quo decidiu - e bem - no sentido da improcedência total das excepções deduzidas (ilegitimidade e prescrição), daí constando expressa, no segmento da apreciação da legitimidade substantiva da 1ª R. (Hospital ...) e do 2º R. (médico) a referência ao regime da responsabilidade civil contratual - configurando-se então a responsabilidade extracontratual como outra das hipóteses possíveis de ser aplicada ao caso dos presentes autos, a apurar em sede de produção e apreciação da prova.
- Não foram apresentadas reclamações ao teor do referido despacho saneador, salvo por parte da interveniente ... que arguiu a omissão de pronúncia quanto à excepção de prescrição por si alegada, sendo precisamente quanto ao despacho que supriu essa omissão e decidiu pela procedência da excepção, relativamente à interveniente …, que o ora recorrente se não conforma.
- Se é certo que a responsabilidade da seguradora perante o segurado tem natureza contratual e que tal não tem relevância no âmbito da questão decidenda, também não subsistem dúvidas de que a responsabilidade civil do Hospital ... para com o A. - a apurar e a ser objecto de prova, conforme a Mma Juiz a quo bem determinou e fundamentou no despacho saneador - porque fundada no cumpri- mento defeituoso de uma obrigação emergente de um contrato de prestação de serviços médico-cirúrgicos, tem também natureza contratual.
- A interveniente ... foi chamada a intervir pela 1ª R. (Hospital), por ter celebrado contrato de seguro mediante o qual transferiu a sua responsabilidade para aquela seguradora, regendo-se pelas condições nele previstas e livremente estabelecidas pelas partes, sendo um contrato autónomo.
- Não se compreende, pois, como pode a Mma Juiz a quo, na decisão de que ora se recorre, ter considerado ser aplicável à referida interveniente (seguradora) o prazo prescricional de três anos relativo à responsabilidade civil extracontratual, quando não o fez anteriormente relativamente à entidade segurada - a 1ª R. (Hospital ...) - acrescendo o facto de, no despacho saneador, resultar expresso ser a prestação de serviços médico-cirúrgicos susceptível de gerar responsabilidade contratual.
- Salienta-se que o A. estribou o pedido de condenação solidária dos RR. pugnando pela existência de concurso de responsabilidade civil contratual (da 1ª R.) e extracontratual (do 2º R.), face à alegada violação dos deveres de informação), tendo expressamente invocado o regime da responsabilidade civil contratual aplicável à 1ª - o Hospital ... - sustentada em enunciada jurisprudência do STJ.
-  Invocou a interveniente ... a excepção de prescrição do direito do A. quanto a si, tendo a decisão recorrida decidido pela respectiva procedência com fundamento na aplicação do regime da responsabilidade civil extracontratual e não com base em qualquer outra circunstância que pudesse colocar em causa a validade ou eficácia do contrato de seguro (como sucederia, por exemplo, caso estivesse em causa o período de cobertura).
-  Não lhe assiste razão, porquanto decorre claro da petição inicial e do articulado de resposta às excepções que o A. se posicionou no âmbito da responsabilidade civil contratual - cfr. alegação vertida nos arts. 56º a 78º da P.I. e 2º a 5º da resposta - sem prejuízo de referências pontuais ao regime do art. 483º do C.Civil quanto à conduta do 2º R. (médico).
- O que se compreende se ponderarmos que há aspectos de regulação comuns aos dois regimes e que nos casos de responsabilidade por acto médico o facto gerador do dano é susceptível de consubstanciar, em simultâneo, a violação de uma obrigação contratual e a violação de um´ direito absoluto, como o direito à vida e à integridade física - nesse sentido, acórdão da Relação de Lisboa, de 9/5/2017, disponível em www.dgsi.pt.
- Atento o prazo geral de prescrição aplicável e previsto no art. 309º do C.Civil, deveria a excepção suscitada pela interveniente ... ter sido julgada improcedente.
- Sem conceder, dir-se-á ainda que qualquer prazo pessoal de prescrição do direito do A. contra a seguradora do Hospital ... apenas se iniciou com a notificação ao A. da contestação e do pedido de intervenção provocada, na exacta medida em que apenas então aquele tomou conhecimento da existência da apólice e, por conseguinte, do seu direito de demandar aquela - art. 306º, nº1, do C.Civil.
- Sendo certo que a seguradora só responderá na medida e nos termos da responsabilidade que vier a ser atribuída à sua segurada, a quem é imputada responsabilidade a título contratual, cujo prazo prescricional é o ordinário, ou seja, de 20 anos.
- Uma correcta - e coerente - apreciação do enquadramento jurídico da materialidade subjacente aos presentes autos, impunha decisão diversa da ora recorrida relativamente à matéria de excepção aduzida pela interveniente ..., ou seja, no sentido de considerar improcedente a excepção de prescrição quanto à mesma, pelo que deverá a decisão sub judice ser revogada.
Em contra-alegações, pronunciou-se a apelada pela confirmação do julgado.
 Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2. Nos termos dos arts. 635º, nº4, e 639º, nº1, do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente. 
A questão a decidir centra-se, pois, na apreciação da declarada prescrição.
Tem vindo a ser entendido na jurisprudência que, recaindo a mesma sobre estabelecimento hospitalar ou ocorrendo situação de concurso de responsabilidade contratual e extracontratual, à responsabilidade civil por acto médico é aplicável o regime da responsabilidade contratual. 
“Nas situações em que o médico se apresenta como um auxiliar do devedor da assistência médica - como é o caso de o doente celebrar um contrato com a clínica/hospital onde o médico exerce a sua atividade - a responsabilidade do médico será extracontratual e da clínica/hospital será contratual” - ac. STJ,  de 12/1/2022.
“Em sede de responsabilidade civil por actos médicos ocorre frequentemente uma situação de concurso de responsabilidade civil contratual e extracontratual, sendo orientação reiterada da jurisprudência do STJ a opção pelo regime da responsabilidade contratual tanto por ser mais conforme ao princípio geral da autonomia privada, como por ser, em regra, mais favorável à tutela efectiva do lesado” - ac STJ, de 22/3/2018.
No caso, trata-se de apreciar a responsabilidade de seguradora, para a mesma transferida por estabelecimento hospitalar.
Ao invés do decidido, dever-se-à, assim, concluir que, submetida aquela ao regime da responsabilidade contratual, será aqui aplicável, não o prazo prescricional (3 anos) previsto no art. 498º, mas o prazo geral (20 anos), estabelecido no art. 309º do C.Civil - o qual, obviamente, se não acha decorrido.
3.. Pelo acima exposto, se acorda em, concedendo provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida, julgando-se improcedente a excepção invocada.
Custas pela apelada.

28.4.2022
Ferreira de Almeida
Teresa Pais
Rui Vouga