Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1584/2008-6
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: PREFERÊNCIA
PRÉDIO RÚSTICO
PRÉDIO CONFINANTE
UNIDADE DE CULTURA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/03/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: 1 – Quem pretenda que lhe seja judicialmente reconhecido um direito real de preferência, na qualidade de proprietário confinante, terá que alegar e provar, de acordo com as regras sobre a repartição do ónus da prova, os pressupostos ou factos constitutivos do seu direito indicados no n.º 1 do artigo 1380 CC, ou seja, (a) existirem dois prédios confinantes, que pertençam a proprietários diferentes, sejam ambos aptos para cultura e tenham cada um de per si, área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País; (b) fazer qualquer dos proprietários, ou propor-se fazer, a venda ou dação em cumprimento do seu terreno a um terceiro que não seja proprietário confinante.
2 – O artigo 18 do DL 384/88, de 25/10, amplia esse direito aos titulares de prédios confinantes mesmo que a sua área exceda a unidade de cultura, bastando que um deles – o confinante ou o vendido – tenha área inferior.
3 – Esta reciprocidade no gozo do direito de preferência significa que tanto pode exercer a preferência o proprietário de terreno confinante de área igual ou superior à unidade de cultura sobre a alienação de terreno de área inferior à unidade de cultura como pode o proprietário de terreno confinante de área inferior à unidade de cultura exercer a preferência sobre a alienação de terreno igual ou superior à unidade de cultura. Já não se verifica quando ambos os prédios tem área superior à unidade de cultura.
4 – Não existe o direito de preferência quando o prédio alienado se destine a algum fim que não seja a cultura, constituindo tal facto uma excepção peremptória inominada.
5 – Para afastar o direito de preferência que um proprietário se arrogue na alienação de um terreno de cultura, não basta que o adquirente prove a intenção de o afectar a um fim diferente. Terá ainda de provar que nada se opõe a que a sua intenção se concretize e que, portanto, a mudança de destino é legalmente possível.
G.F.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação:
            1.
[J] e [M] propuseram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo sumário, contra [R] e W - Turismo de Habitação, Sociedade Unipessoal, L. da, pedindo que (i) se reconheça aos Autores o direito de haverem para si o prédio rústico vendido, inscrito na matriz de Olho Marinho, descrito na Conservatória do Registo Predial de Óbidos, em virtude de serem proprietários do prédio confinante e gozarem do direito de preferência na aquisição do prédio vendido e por via, disso, transmitir-se a propriedade do prédio para os Autores; (ii) se ordene o cancelamento do registo de aquisição do prédio referido no artigo 6º da petição inicial a favor da 2ª Ré e (iii) se condene a 1ª Ré vendedora no pagamento de custas e procuradoria condigna.

Fundamentando a sua pretensão, alegaram, em síntese, que são proprietários de um prédio rústico inscrito (...), com a área de 8.800 m2 que confina com o prédio rústico com a área de 2.280 m2, (...), o qual foi vendido pela 1ª Ré à segunda, em 6/02/2001, sem que os Autores tenham sido informados do projecto de venda e cláusulas do contrato, acabando por tomar conhecimento dessa venda em Maio de 2001.
Ambos os prédios se inserem em zona de reserva agrícola nacional e têm sido exclusivamente usados para agricultura de couves, cenouras, alhos, batatas e cebolas.
A 2ª Ré não é proprietária de qualquer prédio confinante com esse prédio.

As Rés contestaram conjuntamente por impugnação e excepção. Referem, em síntese, que a 1ª Ré deu conhecimento pessoal e directo ao 1º Autor da oferta que tinha sido recebida e da disposição que tinha em aceitar a mesma, e este, com conhecimento das condições de venda, afirmou que não estaria interessado em adquirir o prédio naquelas condições, designadamente de preço.
Em 6/02/2001, a 2ª Ré, sociedade comercial que tem por objecto actividades de Turismo Rural de Habitação, adquiriu um prédio confinante do lado norte com o prédio objecto dos autos.
Para o exercício as actividades que constituem o seu objecto, a única sócia da 2ª Ré, adquiriu, em 1998, o prédio misto denominado Quinta da Azenha, sito a nascente dos prédios referidos, sendo intenção dos proprietários, desde a aquisição deste prédio, a sua reconstrução e qualificação no sentido de ali implantar um empreendimento turístico enquadrado nas regras de Turismo Espaço Rural.
Foi com esse objectivo que a 2ª Ré diligenciou na aquisição dos prédios adjacentes, nunca tendo outra intenção que não fosse integrar o terreno em causa no projecto de exploração da Quinta da Azenha, como empreendimento de Turismo no Espaço Rural, equipando-o de parque de estacionamento, estruturas de actividade desportiva de ténis e equitação, razão por que apresentou um requerimento para aprovação do projecto de licenciamento na Câmara Municipal de Óbidos e na Direcção Geral de Turismo, em fase final de aprovação.

Os Autores responderam às excepções peremptórias deduzidas e, pugnando pela improcedência das excepções deduzidas, concluíram como na petição inicial.

Proferido despacho saneador, organizou-se a matéria assente e elaborou-se a base instrutória, que sofreu reclamação, parcialmente procedente.

Realizada a audiência de discussão e julgamento e decidida a matéria de facto, foi proferida a sentença, julgando-se a acção procedente, porque provada e, consequentemente, decidiu-se:
a) - Condenar as Rés a reconheceram o direito de preferência dos Autores na aquisição do prédio rústico denominado Tufeiras, composto de cultura arvense de regadio, figueiras e cultura arvense, com a área de 2.280 m2, este a confrontar a norte anteriormente com [Beatriz], actualmente com os Autores, sul com [Mário], nascente com estrada, poente com regueira, inscrito na matriz sob o artigo 144, secção F da freguesia de Olho Marinho e descrito na Conservatória do Registo Predial de Óbidos sob o n.º 01954.
b) – Determinar que os Autores substituam a Ré na aquisição do aludido prédio, efectuada através de escritura de compra e venda de 6 de Abril de 2001 e seja transferida para os Autores a titularidade do direito de propriedade sobre o mesmo imóvel, mediante o pagamento à Ré do montante depositado à ordem deste processo, o que se autoriza.
c) - Ordenar-se o cancelamento do registo de aquisição do prédio referido no artigo 6º da petição inicial a favor da 2ª Ré.

Inconformada com a decisão, recorreu a 2ª Ré, formulando as seguintes conclusões:
1ª – A Apelante adquirente é proprietária de prédio confinante.
2ª – São pressupostos para o exercício do direito de preferência, atribuídos pelo artigo 1380º do Código Civil que:
3ª – Tenha sido vendido ou dado em cumprimento um prédio com área inferior à unidade de cultura;
4ª – O preferente seja dono de prédio confinante com o prédio alienado;
5ª – O prédio que se apresenta a preferir tenha área inferior à unidade de cultura;
6ª – O adquirente não seja proprietário de prédio confinante.
7ª – Ora, sendo os pressupostos enunciados cumulativos, a não verificação de um deles afasta, de imediato, o exercício do direito de preferência.
8ª – A Apelante invocou e provou que pretendia afectar tal prédio (alínea C) a fim que não o de cultura, mas a um empreendimento de Turismo Rural, no qual se destinava à instalação de um parque de estacionamento do empreendimento situado imediatamente à frente, a zona de passeio e lazer, incluindo, numa zona imediatamente a seguir, a instalação de estruturas destinadas à prática de actividades desportivas, complementares e conexas como o ténis e a equitação, sendo que a estrutura destinada à prática de ténis ainda não está implementada.
9ª – Na sua fundamentação de direito, a M. ma Juiz a quo considerou que tais factos constituem uma excepção peremptória inominada prevista na alínea a) do artigo 1381º CC, segundo o qual não gozam de direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes: “quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a agricultura”.
10ª – E, a concluir, acrescenta: “Nos autos há prova inequívoca da intenção da segunda ré e até da prática de actos no terreno com vista a afectação pretendida.
11ª – Porém, não é suficiente para que se exclua o direito de preferência”. A M. ma Juiz “a quo”, ao ter este entendimento, faz uma incorrecta interpretação da matéria de facto, que conduziu a um erro de julgamento.
12ª – Na verdade, as alterações relativamente ao fim do prédio preferido não carecem de autorização das autoridades administrativas.
13ª – À data do julgamento da matéria de facto ainda não estava concluído o processo de aprovação e licenciamento do empreendimento, o que veio a acontecer, bastante mais tarde, já durante os anos de 2005 e 2006, como se alcança dos documentos 1 a 5, ora juntos.
14ª – A sentença, decidindo como decidiu, violou as disposições dos artigos 1380º, 1381º, ambos do CC, 668º, n.º 1, alínea c) do CPC.

Os Autores contra – alegaram, defendendo a bondade da decisão recorrida.
2.
Na 1ª instância consideraram-se provados os seguintes factos:
1º - O prédio rústico denominado Tufeiras, composto de cultura arvense de regadio, figueiras e casa rural, com a área de 8.800 m2, inscrito na matriz predial rústico da freguesia de Olho Marinho sob os artigos 111 e 145, ambos da secção F, pendentes de unificação resultante da anexação dos prédios n. os 140/121285 e 01527/290992, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Óbidos sob o n.º 02900 a favor dos Autores (alínea A).
2º - O prédio correspondente ao artigo 111 foi adquirido pelos Autores a [Henrique] e mulher [Ilda], por escritura outorgada a 12/05/1992, no segundo Cartório Notarial de Caldas da Rainha da freguesia de Olho Marinho, anteriormente descrito na Conservatória de Registo Predial de Óbidos sob o n.º 140, foi adquirido pelos Autores a [Beatriz] por escritura notarial outorgada a 10 de Janeiro de 2001, no Cartório Notarial de Bombarral (alínea B).
3 - O prédio identificado na alínea A) confronta a sul com um prédio rústico denominado Tufeiras, composto de cultura arvense de regadio, figueiras e cultura arvense, com a área de 2.280 m2, este a confrontar a norte anteriormente com [Beatriz], actualmente com os Autores, sul com [Mário], nascente com estrada, poente com regueira, inscrito na matriz da freguesia de Olho Marinho e descrito na Conservatória do Registo Predial de Óbidos (alínea C).
4º - Por escritura pública de 6/02/2001, lavrada no segundo Cartório Notarial de Caldas da Rainha, inscrita no livro 107-D, fls. 19, a 1ª Ré declarou vender à 2ª Ré, que declarou comprar, o prédio identificado na alínea C), pelo preço de 1.000.000$00 (alínea D).
5º - O prédio identificado na alínea C) encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Óbidos a favor da 2ª Ré (alínea E).
6º - Os Autores sempre cultivaram couves, cenouras, alhos, batatas e cebolas no prédio referido na alínea A) (alínea F).
7º - Actividades que eram anteriormente exercidas pela 1ª Ré no prédio descrito na alínea C), sendo que ambos têm sido usados exclusivamente para a agricultura (alínea G).
8º - Por escritura pública, outorgada em 6/02/2001, no segundo Cartório Notarial de Caldas da Rainha, a 2ª Ré declarou comprar a [Mário], que declarou vender-lhe, o prédio rústico localizado no sítio denominado Terras da freguesia de Olho Marinho, concelho de Óbidos, inscrito na matriz predial sob o artigo 143, Secção F e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o artigo 01082/1341190 (alínea H).
9º - O prédio referido na alínea H) confina do lado norte, em toda a sua extensão, com o prédio referido na alínea C), inscrito no artigo 144 (alínea I).
10º - O qual confina igualmente do lado norte com os prédio dos Autores inscritos na matriz sob os artigos 111 e 145 (alínea J).
11º - A 2ª Ré é uma sociedade comercial unipessoal de responsabilidade limitada que se encontra matriculada na Conservatória de Registo Comercial de Óbidos sob o n.º 00360, e registada com o seguinte objecto: “turismo rural de habitação, actividades de campo, serra e praia, actividades agrícola - hortícola e vitícola, componente de actividades com madeiras e marcenaria, desportos náuticos (barco, mota de água) motores (todo o terreno e moto quatro) e passeios a cavalo” (alínea L).
12º - O prédio urbano com a área de 5.736 m2, situado na Rua da Tufeiras, Olho Marinho, Óbidos, omisso na respectiva matriz predial, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Óbidos a favor de [Isabel], única sócia da 2ª Ré (alínea M).
13º - O prédio denominando Quinta da Azenha, que resulta da anexação dos prédios 00431/041287 e 02409/040398 e cujas aquisições, foram, respectivamente, registadas em 1998 e 2000, a favor da única sócia da 2º Ré, foi adquirido para o exercício das actividades que constituem o objecto desta (quesito 1º).
14º - O prédio referido na alínea M) situa-se a nascente dos prédios descritos nas alíneas C) e H) os quais confinando a nascente com a Rua das Tufeiras, localizam-se imediatamente em frente à entrada principal da Quinta da Azenha (quesito 2º).
15º - Por forma a poder estabelecer um conjunto de equipamentos complementares para a viabilização do empreendimento turístico, a 2ª Ré diligenciou na aquisição dos prédios adjacentes (quesito 3º).
16º - A 2ª Ré, ao adquirir o prédio identificado na alínea C), teve intenção de integrá-lo no projecto de exploração da quinta da Azenha como empreendimento no Espaço Rural (quesito 4º).
17º - Destinando o prédio referido na alínea C) à instalação de um parque de estacionamento do empreendimento situado imediatamente à frente, a zona de passeio e lazer, incluindo, numa zona imediatamente a seguir, a instalação de estruturas destinadas à prática de actividades desportivas, complementares e conexas como o ténis e a equitação, sendo que a estrutura destinada à prática de ténis ainda não está implementada (quesito 5º).
18º - Em 11/04/2001, 2ª Ré apresentou no Ministério da Economia - Direcção Geral do Turismo uma planta constante de fls.99.
3.
A recorrente questiona a sentença recorrida, fundamentando a sua pretensão no facto dos Autores não haverem demonstrado todos os pressupostos ou factos constitutivos do direito que invocam, pois que a adquirente do prédio é proprietária confinante. Mas ainda que os Autores houvessem alegado e provado todos os pressupostos ou factos constitutivos do direito por si invocado, a sua pretensão não poderia igualmente proceder, pois a Ré alegou e provou um facto impeditivo de tal direito, qual seja o de que pretendia afectar o prédio adquirido a um destino diferente da agricultura, acrescentando que as alterações relativamente ao fim do prédio preferido não carecem de autorização das autoridades administrativas.

Duas portanto as questões a decidir que consistem em saber, por um lado, se os autores provaram a existência de todos os pressupostos ou factos constitutivos do direito que invocam e se, por outro lado, em caso afirmativo, a ré alegou e provou a existência de um facto impeditivo desse direito.
A sentença de que a recorrente discorda foi proferida numa acção de preferência baseada no n.º 1 do artigo 1380º do Código Civil, preceito que atribui aos proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, o direito de reciprocamente preferirem na venda ou dação em cumprimento de qualquer desses terrenos a quem não seja proprietário confinante.

Para se averiguar se aos autores assiste o direito de preferência que se arrogam, importa tomar em linha de conta, não só o que dispõe o n.º 1 do artigo 1380º, como ficou referido, mas também o que se dispõe no artigo 1381º CC.

Com efeito, ao preceito genérico que é o n.º 1 do artigo 1380º, vem o artigo 1381º introduzir duas excepções, assim formuladas: “Não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes:
a) – Quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura;
b) – Quando a alienação abranja um conjunto de prédios que, embora dispersos, formem uma exploração agrícola de tipo familiar.

Estas excepções funcionam como factos impeditivos do direito de preferência.
Quem pretenda, portanto, que lhe seja judicialmente reconhecido um direito real de preferência, na qualidade de proprietário confinante, terá que alegar e provar, de acordo com as regras sobre a repartição do ónus da prova, os pressupostos ou factos constitutivos do seu direito indicados no n.º 1 do artigo 1380º.

Os réus poderão, por sua vez, obviar à procedência do pedido, mediante a prova de alguma das excepções (factos impeditivos) indicados no artigo 1381º.
Os pressupostos do direito real de preferência atribuído pela aludida norma são os seguintes:
a) - Existirem dois prédios confinantes, que pertençam a proprietários diferentes, sejam ambos aptos para cultura, e tenham ambos, cada um de per si, área inferior a determinada superfície mínima, correspondente à unidade de cultura fixada para cada zona do País;
b) – Fazer qualquer dos proprietários, ou propor-se fazer, a venda ou dação em cumprimento do seu terreno a um terceiro que não seja proprietário confinante[1].

Ou, noutra versão[2]: a) – que tenha sido vendido ou dado em cumprimento um prédio com área inferior à unidade de cultura; b) – que o preferente seja dono de prédio confinante com o prédio alienado; c) – que o prédio do proprietário que se apresenta a preferir tenha área inferior à unidade de cultura; d) – que o adquirente do prédio não seja proprietário de prédio confinante.

Foi, porém, introduzida uma alteração na disciplina desse preceito, pelo artigo 18º, do DL 384/88, de 25/10, que estabelece que “os proprietários de terreno confinantes gozam do direito de preferência previsto no artigo 1380º, do Código Civil, ainda que a área daqueles seja superior à unidade de cultura”.
Segundo o regime que vigorou entre nós, durante a vigência da Lei n.º 2116, de 14/08/1962, os proprietários de terrenos confinantes com um prédio rústico alienado gozavam do direito de preferência, desde que esse prédio tivesse área inferior a unidade de cultura.

A lei permitia o exercício do direito de preferência aos proprietários confinantes qualquer que fosse a área dos seus prédios no caso de alienação de terrenos com área inferior à unidade de cultura.

Na senda da anterior legislação sobre o emparcelamento (Base VI da Lei 2116), o Código Civil no seu artigo 1380º limitou o exercício do direito de preferência aos proprietários de terrenos confinantes de área inferior à unidade de cultura, na venda ou dação em cumprimento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante.

O objectivo previsto nos artigos 1380º e 1381º é o de fomentar o emparcelamento (cfr. 1382º) de terrenos minifundiários, criando objectivamente as condições, que, sob o ponto de vista económico, se considerem imprescindíveis à constituição de explorações rendíveis.

O tempo veio, porém, a demonstrar que objectivo de emparcelamento muitas vezes não era conseguido, porque o preferente confinante era proprietário de terreno com área igual ou superior à unidade de cultura.

Hoje o referido artigo 18º do DL 384/88 amplia esse direito aos titulares de prédios confinantes mesmo que a sua área exceda a unidade de cultura, bastando agora que um deles - o confinante ou o vendido - tenha área inferior[3].
Esta reciprocidade no gozo do direito de preferência significa que tanto pode exercer a preferência o proprietário de terreno confinante de área igual ou superior à unidade de cultura sobre a alienação de terreno de área inferior a unidade de cultura como pode o proprietário de terreno confinante de área inferior à unidade de cultura exercer a preferência sobre a alienação de terreno igual ou superior á unidade de cultura. Já não se verifica quando ambos os prédios tem área superior à unidade de cultura.

A unidade de cultura, conforme se extrai das normas legais, é a superfície fundiária variável consoante as regiões que se considera oferecer condições técnicas e económicas conducentes a uma produtividade e rentabilidade compensadora. Como referência para verificar se existe direito de preferência, a unidade de cultura encontra-se estabelecida para as várias regiões do país (correspondente a cada distrito) através da Portaria 202/70, de 21 de Abril, que continua em vigor, a título transitório, por força do artigo 53º do DL 103/90, de 22 de Março).

Para o distrito de Leiria, onde se situam os prédios confinantes a que respeitam os presentes autos, determina o diploma que a unidade de cultura será de 2 hectares para os terrenos de sequeiro; de 0,50 hectares para os terrenos de regadio hortícolas e de 2 hectares para os terrenos de regadio arvense.

Pressupostos alegados e provados pelos Autores:

In casu, tal como resultou provado, os Autores são proprietários de um terreno com um área de 8.800 m2 e o terreno com o qual confina e sobre o qual pretendem exercer o direito de preferência tem uma área de 2.280 m2 onde também a 1ª Ré cultivava couves, cenouras, alhos, batatas e cebolas.
Atendendo à natureza da cultura praticada, predominantemente hortícola, a unidade de cultura será de 0,50 hectares.
Logo, os pretensos titulares do direito de preferência são proprietários de um dos prédios confinantes em causa. Embora tal prédio tenha uma área superior à unidade de cultura estabelecida para o tipo de terreno em causa e definida para a região onde o mesmo se situa, o prédio alienado tem uma área inferior á unidade de cultura. Tal é o suficiente para que não haja, por esta razão, óbice ao direito de preferência.

E ter-se-ão verificado os demais pressupostos do direito de preferência, tendo-se demonstrado, nomeadamente, que a adquirente não é proprietária confinante em relação ao terreno alienado?

Foi dado como provado e aceite pela apelante que os autores são proprietários do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial de Óbidos sob o n.º 2900, inscrito na matriz cadastral sob os artigos 111 e 145, ambos da Secção F (cfr. alíneas A e B).

Mais se provou que o prédio objecto de preferência também é rústico, com a área de 2.280 m2, sendo que este confronta do lado norte com o prédio pertencente aos autores e do lado sul com [Mário], encontrando-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Óbidos sob o n.º 1954 e inscrito na matriz cadastral sob o artigo 144 da Secção F (cfr. alínea C).

Ficou ainda provado que a recorrente comprou o prédio objecto de preferência através de escritura outorgada em 6/02/2001 no Segundo Cartório Notarial de Caldas da Rainha e lavrada a fls. 19 a 20 do Livro 107-D deste Cartório (cfr. alínea D).

Este prédio foi comprado pela apelante à primeira ré [R] (cfr. alínea D).

Finalmente, ficou também provado que, por escritura pública outorgada nesse mesmo dia 6/02/2001 no Segundo Cartório Notarial de Caldas da Rainha e lavrada a fls 21 a 22 do Livro 107-D deste Cartório, a recorrente comprou a [Mário] o prédio rústico localizado no sítio denominado Terras da freguesia de Olho Marinho, concelho de Óbidos, inscrito na matriz predial sob o artigo 143, Secção F e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o artigo 01082/1341190, que confina com o prédio inscrito na matriz predial sob o artigo 144 (cfr. alíneas H e I).

Como realçam os Autores, a mera análise dos documentos faz cair por terra a afirmação da recorrente de que também era proprietária de prédio confinante.

Na verdade, no momento em que celebrou o contrato de compra e venda do prédio objecto de preferência, a recorrente não era proprietária de nenhum prédio com este confinante.

Seguidamente, após ter adquirido o prédio objecto de preferência, a recorrente adquiriu o prédio com aquele confinante, mas a verdade é que com a escritura outorgada de fls. 19 a 20 do Livro – D a recorrente tornou-se proprietária do prédio inscrito na matriz sob o artigo 144 Secção F e, nesse momento, não era proprietária confinante com o prédio objecto de preferência.

Deste modo, carece de qualquer fundamento a afirmação da apelante de que era proprietária de prédio confinante, com a qual pretendia frustrar a pretensão dos autores – apelados de exercerem o direito de preferência.

Na verdade, como os prédios têm natureza rústica, são confinantes, o prédio sobre cuja aquisição os Autores pretendem exercer preferência tem uma área inferior à unidade de cultura, foi transmitido através de uma venda (uma das causas que aquele preceito prevê para permitir que seja exercido o direito de preferência) a quem não era proprietário de prédio confinante do prédio em causa, ter-se-á concluir que se encontram preenchidos todos os pressupostos para o exercício de direito de preferência previsto no artigo 1380º CC.
Facto impeditivo do direito dos autores:
Mas ainda que os autores houvessem alegado e provado todos os pressupostos ou factos constitutivos do direito que invocam, considera a recorrente que a pretensão daqueles não poderia igualmente proceder, já que havia alegado e provado um facto impeditivo de tal direito.

Com efeito, invocou a 2ª Ré que pretendeu afectar tal prédio a um empreendimento de Turismo Rural, equipando-o de parque de estacionamento, estruturas de actividade desportiva de ténis e equitação, ou seja a fim que não o de cultura agrícola.

Efectivamente, na alínea a) do artigo 1381º estatui-se que não existe o direito de preferência de que se ocupa o artigo 1380º quando o prédio alienando se destine a algum fim que não seja a cultura, constituindo tal facto uma excepção peremptória inominada.

Este preceito encontra-se harmonizado com a disposição do artigo 1377º e compreende-se que seja um facto impeditivo do direito de preferência, pois, conforme se referiu, estando na base do direito de preferência promover o emparcelamento rural de forma a tornar mais vantajosas as condições de aproveitamento fundiário de propriedades agrícolas, não se destinando a aquisição a prosseguir na exploração agrária do terreno, não se vê qualquer razão para conceder essa preferência aos proprietários dos prédios confinantes.

Ora, provou-se no processo que a 2ª Ré, ao adquirir o prédio, objecto da preferência, teve intenção de integrá-lo no projecto de exploração da quinta da Azenha como empreendimento no Espaço Rural, destinando-o à instalação de um parque de estacionamento do empreendimento situado imediatamente à frente, a zona de passeio e lazer, incluindo, numa zona imediatamente a seguir, a instalação de estruturas destinadas à prática de actividades desportivas, complementares e conexas como o ténis e a equitação, sendo que a estrutura destinada à prática de ténis ainda não está implementada.
E provou-se ademais que, em 11/04/2001, 2ª Ré apresentou no Ministério da Economia - Direcção Geral do Turismo uma planta constante de fls.99, requerendo a aprovação dos correspondentes projectos de licenciamento.

Porém, segundo o tribunal a quo, o facto da compradora do terreno o haver adquirido com o fim atrás mencionado, havendo prova inequívoca da intenção da segunda Ré e até da prática de actos no terreno com vista a afectação pretendida, não basta para afastar o direito de preferência.

A este propósito escreveu-se na sentença recorrida:

“É que, quando esse destino diverso da cultura implica construção, tem sido entendido que não basta a demonstração dessa intenção, para se verificar aquela excepção, sendo necessário que o adquirente prove que essa afectação é legalmente possível, ou seja, o adquirente tem que alegar e provar a viabilidade legal daquele desiderato, que obedecia aos procedimentos legais estabelecido na zona respectiva.

O facto elencado sob o n.º 18 não permite concluir pela legalidade da mudança do destino para aquele fim.

Efectivamente, a modificação dos solos até então agrícolas não pode fazer-se sem que a administração publica seja previamente solicitada a pronunciar-se a autorizar a mudança do destino agrícola do prédio.
Assim, em concreto, as Rés tinham de provar que a Câmara Municipal de Óbidos concedera a licença de construção das referidas estruturas.
Nos autos teria de haver prova de que a finalidade que a 2ª Ré deu ao terreno rústico é licita e viável e tal não aconteceu sendo que nessa matéria a prova produzida é manifestamente insuficiente.

Não obstante terem feito uma alegação conclusiva que tal afectação é legalmente possível, certo é que nem em articulado normal ou superveniente concretizaram factualmente que tal mudança tinha sido aprovada pela administração publica, (artigo 151º do Código de Processo Civil) nem tal facto que seria essencial para a procedência da excepção, resultou da instrução e discussão da causa (cfr. artigo 514º , 665º e 264, n.º 2 do Código de Processo Civil).

Por falta de prova, a excepção deduzida pelas Rés que denominaram de “ilegitimidade do pedido” terá necessariamente que soçobrar”.

Como se verifica da transcrição da douta sentença, perfilham-se nela, como fundamento da decisão proferida, os dois pontos seguintes:
a) - Para afastar o direito de preferência que um proprietário confinante se arrogue na alienação de um terreno de cultura, não basta que o adquirente prove a intenção de o afectar a um fim diferente;
b) – Para além desta intenção, é necessário que à data do negócio, o terreno se encontre já afectado designadamente em consequência de um acto da Administração Pública, a um fim diferente da cultura.

As partes aceitam e bem o primeiro dos fundamentos da sentença, ou seja, que a simples intenção de afectar um terreno de cultura a fim diferente, não pode, só por si, bastar para precludir o direito de preferência de um proprietário confinante. “De outro modo, fácil se tornaria defraudar o preceito, de interesse e ordem pública (artigo 1380º, n.º 1), que atribui reciprocamente aos proprietários de terrenos agrícolas confinantes o direito de opção na alienação de qualquer deles[4]”.

A recorrente discorda, porém, da segunda afirmação, considerando que o Tribunal a quo fez uma incorrecta interpretação da matéria de facto que conduziu a um erro de julgamento.

Ora bem. São muito frequentes, no tráfico imobiliário, negócios como aquele em que se traduz o caso sub judice, isto é, negócios em que o proprietário de um terreno afectado a cultura agrícola o vende para outros fins.
“Se se perfilhasse o entendimento de que os proprietários confinantes só não têm o direito de preferir, desde que a afectação do terreno a um fim diferente da cultura seja já uma realidade ao tempo do negócio, a aquisição de terrenos de cultura para outros fins dependeria sempre da boa vontade dos proprietários confinantes.
Não é esta, porém, a solução aconselhável.

A possibilidade de afectar um terreno de cultura a finalidade diferente deve depender , não do critério egoísta dos proprietários vizinhos, mas antes e apenas de uma decisão administrativa, tomada em função dos interesses gerais da colectividade, de acordo com os planos de ordenamento do território.

Ora o normal, em casos como aquele de que nos ocupamos, é que a autorização administrativa (licença) para construir só se requer e obtém após a alienação. E isto pela razão simples de que o alienante não tem, em regra, qualquer interesse em requerer a licença de construção e o adquirente só possui legitimidade para o fazer depois de se tornar proprietário do terreno.
Para afastar, portanto, o direito de preferência dos proprietários confinantes ao abrigo da parte final da alínea a) do artigo 1381º, não deve considerar-se necessário que, à data da alienação, o terreno a alienar se encontre já afectado, em consequência de obras nele feitas, ou da afectação decorrente de um critério legal ou decidida pela Administração Pública, ou ainda da outorga de uma licença a um fim diferente da cultura”[5].
Assim, “o fim que releva, para efeitos de aplicação do disposto na alínea a), não é aquele a que o terreno esteja afectado à data da alienação, mas antes o que o adquirente pretenda dar-lhe (...). Este fim não tem que constar necessariamente da escritura da alienação, podendo provar-se por outros meios (...)[6]”.

Assente que a afectação do terreno a um fim diferente da cultura não tem de preceder o acto de alienação, o único problema que, a respeito da segunda parte da alínea a) do artigo 1381º, pode suscitar-se é o de saber que prova deverá o adquirente produzir para afastar o direito de preferência que um proprietário confinante se arrogue.

Pelo que especificamente respeita à segunda parte da alínea a) do artigo 1381º, o adquirente só poderá beneficiar do que nela se dispõe se provar que o terreno por si adquirido se destina a algum fim que não seja a cultura.

Constituindo o prédio rústico preferido um terreno de cultura, mas susceptível de ser afectado a um fim diferente, o recorrente, para afastar o direito de preferência dos autores, terá de provar, como provou, que a sua intenção (o fim do negócio) foi dar ao terreno uma outra afectação ou destino. E terá de provar, ainda, que nada se opõe a que a sua intenção se concretize e que, portanto, a mudança de destino é legalmente possível.

Reportando-nos ao caso sub judice, consta dos autos que o prédio rústico denominado Tufeiras, o prédio objecto da preferência, é composto de cultura arvense de regadio, figueiras e cultura arvense, tendo sido comprado à 1ª Ré pela segunda, por escritura pública de 6/02/2001, encontrando-se descrito na Conservatória do Registo Predial a favor da 2ª Ré.
Esta é uma sociedade comercial que tem como objecto: “turismo rural de habitação, actividades de campo, serra e praia, actividades agrícola - hortícola e vitícola, componente de actividades com madeiras e marcenaria, desportos náuticos (barco, mota de água) motores (todo o terreno e moto quatro) e passeios a cavalo”.

O prédio denominando Quinta da Azenha foi adquirido para o exercício das actividades que constituem o objecto da 2ª Ré.
Por forma a poder estabelecer um conjunto de equipamentos complementares para a viabilização do empreendimento turístico, a 2ª Ré diligenciou na aquisição dos prédios adjacentes.
A 2ª Ré, ao adquirir o prédio, ora objecto de preferência, teve intenção de integrá-lo no projecto de exploração da quinta da Azenha como empreendimento no Espaço Rural, destinando-o à instalação de um parque de estacionamento do empreendimento situado imediatamente à frente, a zona de passeio e lazer, incluindo, numa zona imediatamente a seguir, a instalação de estruturas destinadas à prática de actividades desportivas, complementares e conexas como o ténis e a equitação, sendo que a estrutura destinada à prática de ténis ainda não está implementada.

Temos, assim, que a 2ª Ré adquiriu o terreno em causa com o fim de o integrar na Quinta da Azenha, destinando-o à instalação de um parque de estacionamento do empreendimento situado imediatamente à frente bem como a zona de passeio e lazer (...).
Tal afectação é possível, pois o prédio objecto de preferência destina-se a ser integrado na Quinta da Azenha, projecto principal, esse sim carecido de licenciamento e aprovação, que à data da aquisição havia sido requerida (e ora concedida).
Portanto, a parcela objecto de preferência não tem qualquer tipo de construção que careça de qualquer específica prova de viabilidade legal, tanto mais que, como se refere na fundamentação de direito, não se fez prova da referida parcela estar integrada em zona de reserva agrícola, e, só nesse caso, seria necessário que a administração pública fosse previamente consultada, nomeadamente, a autorização do destino para aquele fim.

Deve entender-se, por conseguinte, que se verifica a hipótese indicada na última parte da alínea a) do artigo 1381º, não assistindo aos autores, proprietários do terreno confinante, direito de preferência na alienação.
4.
Pelo exposto, na procedência da apelação, revoga-se a sentença recorrida, absolvendo, em consequência, as rés do pedido.
Custas pelos apelados.
Lisboa, 3 de Abril de 2008
Manuel F. Granja da Fonseca
Fernando Pereira Rodrigues
Maria Manuela Santos Gomes
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[1] Galvão Telles, em o Direito, 106º-119º, 1974/1987, página 352.
[2] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2ª edição, 270.
[3] Henrique Mesquita, Direito de Preferência, Alienação de Prédios Minifundiários, Parecer, CJ, XVI, 2º, 35 e seguintes.
Ac. STJ de 13/10/93, CJASTJ, 3º, 64, com anotação de Antunes Varela, RLJ, 127º, 294 e 326º, 364.
Ac. STJ de 20/05/2003, www.dgsi.pt
[4] Henrique Mesquita, Direito de Preferência, Parecer, CJ XI, 5º, 52.
[5] Henrique Mesquita, Parecer citado, 52.
[6] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2ª edição, 276.