Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
675/15.6T8MTA.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: INADMISSIBILIDADE DE RECURSO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
MULTA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NÃO ADMISSÃO PARCIAL DO RECURSO E PARCIALMENTE PROCEDENTE NO QUE CONCERNE À CONDENAÇÃO DE UM DOS RÉUS COMO LITIGANTE DE MÁ-FÉ
Sumário: 1.– A apelação é inadmissível, se o inconformismo do recorrente contra a decisão recorrida tem por objeto um quantitativo cujo valor é inferior a metade da alçada da primeira instância.

2.– Litiga com má-fé o demandado em ação atinente a responsabilidade civil automóvel que na sua defesa deturpa, conscientemente, aspetos relevantes acerca da dinâmica do acidente.

3.– O valor da multa decorrente de litigância de má-fé deve ser proporcional, nomeadamente, à condição económica do agente.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


Em 04.11.2015 o Fundo de Garantia Automóvel, representado pela Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, intentou ação declarativa de condenação contra Manuel e P, Unipessoal, Lda.

O A. alegou, em síntese, que em 30.5.2013, na M..., ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes dois veículos ligeiros, um deles conduzido por Oksana e o outro pelo ora 1.º R..

O acidente ocorreu por culpa do 1.º R., que saiu de um local de estacionamento sem tomar as devidas precauções, não atentando no trânsito que se fazia sentir no momento, tendo invadido a faixa de rodagem onde circulava o veículo conduzido pela referida Oksana, cortando a linha de marcha do mesmo. O veículo conduzido pelo 1.º R. pertencia à 2.ª R., e não estava abrangido por seguro de responsabilidade civil automóvel. Do acidente ocorreram danos no veículo conduzido por Oksana, cujo valor global de reparação foi orçamentado em € 11 785,31. À viatura foi atribuído o valor venal de € 10 238,00 e ao salvado o valor de € 1 131,14. O ora A. propôs ao proprietário do veículo que Oksana conduzia, Yaroslav, o pagamento do valor global de € 9 106,86, a título de perda total do mesmo, o que aquele aceitou. O A. tem direito de sub-rogação contra os ora RR., pelo que pagou ao lesado, ou seja, € 9 106,86, acrescido de € 52,89 a título de despesas com a instrução do processo, no total de € 9 159,75. Acrescem juros de mora, contados desde a data da primeira carta de interpelação enviada aos RR., em 11.11.2013, que o A. liquidou em € 692,63.

O A. terminou pedindo que os RR. fossem condenados a pagarem-lhe a quantia de € 9 852,38, acrescida de juros de mora vincendos, à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.

Os RR. contestaram, imputando a responsabilidade pelo acidente à condutora Oksana e questionando a extensão dos danos alegadamente sofridos pelo veículo por ela conduzido, bem assim a reclamação de juros de mora anteriores à data da citação.
Concluíram pela sua absolvição do pedido.

Foi proferido saneador tabelar, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizou-se audiência final e em 04.01.2017 foi proferida sentença em que se julgou a ação procedente e em consequência se condenou os RR. no pagamento ao A. da soma de capital de
€ 9 159,75, acrescida de juros de mora vencidos desde a data de 10.01.2014 e vincendos até integral pagamento, uns e outros calculados à taxa legal. Mais se condenou o 1.º R. como litigante de má-fé, no pagamento da soma global de 15 UC.

Os RR. apelaram da sentença, tendo apresentado alegações em que formularam as seguintes conclusões:
1.– A sentença recorrida condenou solidariamente os RR. a pagar ao A. FGA a quantia de € 9.159,75, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos contados desde a data de 10.JAN.2014, e o R. Manuel como litigante de má-fé e a pagar uma multa no valor de 15 UC;
2.– O capital pedido corresponde à quantia paga pelo FGA a Yaroslav, testemunha no processo e proprietário do outro veículo interveniente e considerado não culpado no acidente – € 9.106,86 – e aos encargos com a instrução do processo – € 52,89;
3.– Os Recorrentes admitem a responsabilidade pelo acidente, a inexistência de seguro válido e o pagamento dos encargos de instrução do processo;
4.– A quantia paga pelo FGA ao lesado – € 9.106,86 – foi superior e não corresponde ao valor da reparação dos danos efectivamente sofridos pela viatura – não superior a € 8.000,00;
5.– A responsabilidade dos RR., ora Recorrentes, deve cingir-se ao valor real da reparação da viatura, e não ao valor que o FGA pagou;
6.– O recurso tem como objecto a sentença nas partes em que (1) deu como assente que os danos causados pelo acidente foram no valor de € 9.106,86, pago ao proprietário do veículo no pressuposto da sua perda total, desprezando o apuramento do valor real desses danos, equivalente ao custo da sua reparação, que é o que é devido (2) condenou ao pagamento de juros de mora desde 10.JAN.2014, e não desde a data da citação, e (3) condenou o R. Manuel como litigante de má-fé;
7.– Em relação à questão dos danos, o âmbito do presente recurso abrange não só a matéria de direito, mas também a impugnação de parte da matéria de facto dada como provada e como não provada, sustentada na reapreciação da prova documental e da prova testemunhal gravada em audiência de julgamento e na correcta apreciação e ponderação dos factos provados e não provados;
8.– O que está em causa é que a quantia pedida não corresponde ao valor da reparação dos danos efectivamente sofridos pela viatura – que, de acordo com a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, não terá sido superior a € 8.000,00 – e da sua colocação no estado em que se encontrava no momento imediatamente anterior ao do acidente;
9.– Do princípio geral estruturante da obrigação de indemnização e do regime emergente dos arts. 562º e 566º, nºs 1, 2 e 3, do Código Civil, resulta que o lesado é titular do direito à reparação dos danos sofridos, primeiro, por via da reconstituição da situação pré-existente e, não sendo esta possível, por via da indemnização em dinheiro em montante correspondente ao valor exacto dos danos, de modo a repor a viatura no estado em que ela se encontrava no momento imediatamente anterior ao do acidente;
10.– Este princípio e regime geral manifesta-se igualmente no âmbito de intervenção do FGA, regulada nos arts. 47º e seguintes do Dec.-Lei nº 291/2007, de 21AGO;
11.– À semelhança do regime geral, o regime do Dec.-Lei nº 291/2007, nomeadamente os seus arts. 47º, nº 1, 49º, nº 1, al. b), e 54º, nº 1, consigna que a responsabilidade do FGA para com o lesado e do responsável pelo acidente para com o FGA, é o valor exacto dos danos materiais que o lesado efectivamente sofreu, medido pelo valor da reparação integral da viatura e recolocação no estado em que se encontrava antes do acidente;
12.– Os RR. apenas são responsáveis perante o A. FGA pelo reembolso do valor exacto da reparação da viatura, sendo este, e não qualquer outro, o valor da sub-rogação acautelado na lei;
13.– A diferença entre o valor da indemnização paga pelo FGA ao lesado Yaroslav e o valor da reparação da viatura acidentada não é abrangida pela sub-rogação a favor do FGA, sob pena de isso representar para os RR. uma oneração e uma responsabilização superior à que a própria lei preconiza;
14.– Ao condenar os RR. a pagar ao A. FGA, por via da sub-rogação, uma indemnização de valor superior ao do dano infligido ao lesado proprietário do veículo não culpado, e não o prejuízo efectivo por este sofrido, expresso no preço da reparação da viatura e na sua colocação nas condições de circulação que detinha antes de sofrer o acidente, o Mmo. Juiz a quo subverteu o princípio geral da obrigação de indemnização e incorreu num erro de julgamento em matéria de direito, por errada interpretação e aplicação dos arts. 562º, 566º, nºs 1, 2 e 3, do Código Civil, 47º, nº 1, 49º, nº 1, al. b), e 54º, nº 1, do Dec.-Lei nº 291/2007, de 21AGO, pelo que a sentença deve ser revogada com tal fundamento;
15.– Face ao regime jurídico aplicável, a decisão sobre a matéria de facto contida na sentença é merecedora de censura, por ter julgado incorrectamente os pontos de facto a que aludem as als. N) e E) dos Factos Assentes, no sentido de que o Mmo. Juiz a quo extraiu deles, sem razão, que a reparação da viatura importava em € 11.785,31 e que os danos nesta causados foram os elencados no “Relatório de Perda Total”, junto como Doc. 3 à PI, dando-se cumprimento ao ónus fixado no art. 640º, nº 1, al. a), do CPC;
16.– O Mmo Juiz a quo não atendeu à falta de credibilidade do documento e à prova testemunhal produzida na audiência de julgamento, concretamente, ao depoimento do próprio lesado Yaroslav (que declarou que a reparação importou em cerca de € 8.000,00, e que ainda ficou com dinheiro da indemnização que lhe foi paga pelo FGA), ignorando em absoluto toda a matéria que os RR. alegaram com vista à necessidade de determinação real da extensão dos danos e da consequente adequação do montante da indemnização devida à reparação dos danos real e efectivamente causados;
17.– Não é crível que a reparação dos danos reportados na perícia ascendesse a € 11.785,31, quando o dono da viatura despendeu na sua reparação completa uma quantia não superior a € 8.000,00;
18.– O “Relatório de Perda Total”, junto como Doc. 3 à PI, pela falta de credibilidade decorrente dos erros grosseiros na identificação das zonas acidentadas e na indicação de peças a substituir, que não careciam de ser substituídas, atendendo à dinâmica do acidente e ao facto de no veículo não seguir mais ninguém para além da sua condutora, e as declarações das testemunhas Oksana e Yaroslav, respectivamente condutora e dono da viatura acidentada, respectivamente, a serem devidamente ponderados, impunham necessariamente decisão diversa sobre os referidos pontos da matéria de facto, identificando-se estes meios de prova para efeitos do cumprimento dos ónus prescritos no art. 640º, nºs 1, al. b), e 2, al. a), do CPC;
19.– Em relação às zonas acidentadas, as fls. 1 e 2 do documento em causa contêm uma imagem, igual, destinada a assinalar essas zonas, sendo que na primeira consta como acidentada toda a frente da viatura e como não acidentada a parte lateral esquerda, ao passo que na segunda, a frente direita se apresenta incólume e a parte lateral dianteira esquerda, até à porta do condutor, afectada, ficando por determinar qual das duas versões é a correcta;
20.– No que respeita às peças e à mão-de-obra indicadas, suscita desde logo dúvidas a necessidade de substituição do cinto de segurança e dos prétensores do lugar dianteiro direito, componentes que não foram utilizados nem postos à prova, na medida em que a condutora, a testemunha Oksana, era a única ocupante do veículo, facto confirmado Maria por ela e pela testemunha Yaroslav, seu marido, nas declarações que prestaram na audiência de julgamento (cfr. segmentos de 00:01:35 a 00:01:50 do depoimento da primeira e de 00:19:55 a 00:20:10 do depoimento do segundo, prestados na sessão da audiência de julgamento realizada em 18.OUT.2016 e gravados no sistema de gravação digital disponível na aplicação informática do Tribunal, conforme consta da respectiva acta);
21.– As discrepâncias na identificação das zonas acidentadas da viatura e a grande diferença existente entre o valor orçamentado para a reparação e o valor efectivamente pago, para mais quando a reparação foi feita na mesma oficina, levam a admitir que foram incluídas no relatório peças que não foram danificadas e ou que não careciam de substituição, o que abala decisivamente a sua fidedignidade e credibilidade probatórias para efeitos de determinação dos danos e do custo da reparação, a que se referem as als. N) e E) dos Factos Assentes;
22.– Por outro lado, a testemunha Yaroslav declarou que recebeu do A. FGA a indemnização acordada, ficou com o salvado e mandou arranjar a viatura (cfr. segmento de 00:16:10 a 00:16:58 do respectivo depoimento, gravado no sistema de gravação digital disponível na aplicação informática do Tribunal, de 00:00:00 a 00:41:57);
23.– Mais afirmou que o carro foi reparado na mesma oficina para onde havia sido rebocado e que “não chegou a gastar todo o dinheiro (…) gastou 8.000”, e que ainda tem a viatura que anda perfeitamente (cfr. segmento de 00:17:05 a 00:19:00 do depoimento);
24.– Resulta assim das declarações desta testemunha que os danos causados pelo acidente foram integralmente reparados, e que a reparação ascendeu a cerca de € 8.000,00, permitindo-lhe ainda ficar com parte do dinheiro da indemnização que recebeu do FGA;
25.– As declarações das testemunhas Yaroslav e Oksana e a análise do “Relatório de Perda Total” nos termos referidos permitem infirmar, sem margem para dúvidas, a matéria de facto que o Mmo. Juiz a quo deu como provada nas als. N) e E) dos Factos Assentes, ou seja, que os danos causados pelo acidente no referido veículo foram inferiores aos reportados na perícia e, sobretudo, que o preço global da sua reparação era, como foi, inferior aos € 11.785,31 indicados no respectivo relatório.
26.– O que resulta daquela prova é que o preço que o lesado pagou pela reparação da viatura – cerca de € 8.000,00 – foi algo inferior ao valor da indemnização paga pelo FGA – € 9.106,86 – e manifestamente inferior ao valor apontado no “Relatório de Perda Total” da dita UON como sendo o custo da reparação – € 11.785,31 – tomado como referência;
27.– Não é de aceitar que a reparação dos danos reportados na perícia ascendesse a € 11.785,31, quando o dono da viatura despendeu na sua reparação uma quantia não superior a € 8.000,00;
28.– Por não ter avaliado e ponderado devidamente os meios probatórios evidenciados nesta sede, o Mmo. Juiz a quo julgou incorrectamente a matéria de facto a que se refere a al. N) dos Factos Assentes, cuja decisão correcta passa pela estatuição de que:
- Em resultado do acidente o veículo ...3-...Z-...9 sofreu danos cuja reparação total importou em cerca de € 8.000,00;
29.– A junção aos autos da factura relativa à reparação efectiva da viatura acidentada permitiria apurar o valor exacto da reparação, que se sabe ter rondado os € 8.000,00, e, pelo respectivo descritivo, os trabalhos efectuados, as peças substituídas e o preço unitário de cada uma delas;
30.– Se a testemunha viesse a persistir na omissão, como foi caso, seria (será) sempre possível obter uma segunda via da factura junto do responsável pela reparação, a saber, “Carlos”, com domicílio sito no P... F... (A...), código postal nº...0 – M..., e mesmo a sua inquirição oficiosa como testemunha;
31.– Se o Venerando Tribunal ad quem vier a entender como fundamental para a descoberta da verdade material dos factos, a ampliação da matéria de facto, nos termos do art. 662º do CPC, e em termos de permitir apurar o valor total exacto da reparação e as peças concreta e efectivamente substituídas, existe fundamento para a anulação da sentença recorrida e subsequente baixa do processo para produção desses meios de prova, o que, sem prejuízo de essa decisão ter de ser tomada oficiosamente, à cautela se requer;
32.– Ao decidir que são devidos juros de mora a partir do último dia do prazo imposto pelo A. aos RR. para efectuarem o pagamento, partindo do pressuposto de que o pagamento ao lesado foi realizado em prazo certo e proveio de facto ilícito, e não a partir da data da citação, o Mmo. Juiz a quo incorreu num erro de julgamento, quer por errada interpretação e aplicação dos arts. 54º, nº 1, do Dec.-Lei nº 291/2007 e 805º, nº 2, als. a) e b), do Código Civil, quer por não ter aplicado, como devia, o regime estatuído no nº 3, in fine, da mesma disposição;
33.– O art. 54º, nº 1, do Dec.-Lei nº 291/2007 nada estipula quanto ao momento da constituição em mora, sendo que as als. a) e b) do nº 2 do art. 805º do Código Civil só são aplicáveis nas situações em que a mesma não dependa da prévia intervenção do credor, consubstanciada na interpelação, o que não é o caso dos autos;
34.– Consubstanciando o caso sub judice uma situação de responsabilidade civil por factos ilícitos em que a constituição em mora depende da interpelação do credor, ela só ocorre com a citação do devedor, os ora RR., conforme preceitua o art. 805º, nº 3, in fine, do Código Civil;
35.– A jurisprudência firmada sobre esta questão, em processos em que o FGA surge como credor em situações semelhantes à dos presentes autos, é unânime em considerar que apenas são devidos juros de mora a partir da data da citação;
36.– A sentença ora recorrida deve igualmente ser revogada, na parte em que condenou o R. Manuel como litigante de má-fé, no pagamento da soma global de 15 UC, por o Mmo. Juiz a quo ter entendido que o R. apresentou “um relato dos factos falso, com a nítida intenção de escamotear a verdade e assim tentar alhear a sua responsabilidade pelo acidente que (...) sucedeu por sua exclusiva culpa ;”
37.– O R. não teve qualquer intenção de escamotear a verdade e de tentar endossar a sua responsabilidade, tendo-se limitado a transmitir a sua versão e percepção do acidente;
38.– As dúvidas sobre a sua conduta processual e espontaneidade das suas declarações, podem ser aferidas pela audição integral dessas declarações, prestadas quer em sede de depoimento de parte, quer em sede de acareação, o que se requer (depoimentos prestados na sessão da audiência de julgamento realizada em 18.OUT.2016, gravados no sistema de gravação digital disponível na aplicação informática do Tribunal, a partir das 14.01 horas, de 00:00:00 a 00:28:07 – depoimento de parte –, e das 15:34 horas, de 00:00:00 a 00:49:48 – acareação (a partir dos 00:29:00) – conforme consta da respectiva acta).
39.– Apesar de as declarações prestadas pelo R. Manuel e pelas testemunhas Oksana e Luís Pedro (depoimento prestado na sessão da audiência de julgamento realizada em 11.NOV.2016, gravado no sistema de gravação digital disponível na aplicação informática do Tribunal, entre as 10.30 e as 10.48 horas), serem inconciliáveis entre si e com a documentação constante dos autos, as incongruências e contradições das versões de cada um foram invariavelmente resolvidas em detrimento do R. Manuel e resultaram na sua condenação como litigante de má-fé;
40.– Embora o Mmo. Juiz a quo tenha referido expressamente que a conduta pós-acidente não relevou para a litigância de má-fé, ela reflectiu-se nos factos assentes com relevo para a decisão, no pré-juízo e tom de censura omnipresente na sentença e nas considerações nela produzidas, e no elevado montante da multa aplicada;
41.– Não foi apurado nenhum facto que sustente a convicção do Mmo. Juiz a quo de que o R. sabia que a viatura não tinha seguro e que foi por causa disso que se ausentou antes da chegada da GNR, de modo a evitar a sua apreensão;
42.– Não existe fundamento que sustente a condenação do R. como litigante de má-fé, para além de que o montante da multa aplicada seria sempre absolutamente excessivo e desproporcionado.

Os apelantes terminaram pedindo que o recurso fosse julgado procedente, por provado, com as legais consequências.

Não houve contra-alegações.

O recurso foi admitido, na 1.ª instância, com efeito meramente devolutivo e suspensivo da multa aplicada.

O primitivo relator suscitou a questão da inadmissibilidade do recurso na parte alheia à condenação do 1.º R. como litigante de má-fé, tendo auscultado as partes.

Apenas os apelantes se pronunciaram, pugnando pela admissibilidade integral do recurso.

O relator atual relegou para o acórdão final a apreciação da aludida questão da inadmissibilidade parcelar da apelação.

Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO.

Conforme acima aduzido, as questões que cabe aqui apreciar são as seguintes: inadmissibilidade parcial da apelação; valor dos danos pelos quais os apelantes podem ser responsabilizados; data da mora; litigância de má-fé. Sendo que a apreciação da segunda e terceira questões poderá ser prejudicada pela solução a dar à primeira.

Primeira questão (inadmissibilidade parcial da apelação)
O primitivo relator suscitou a questão ora sob apreciação nos seguintes termos:
Perspetiva-se o julgamento como findo do recurso – excetuada, em vista do disposto no artigo 542°, n.° 3, do Código de Processo Civil, a parte que tem como objeto a proferida condenação do Réu pessoa singular como litigante de má-fé – pelo não conhecimento do seu objeto, na circunstância da sua inadmissibilidade.

Com efeito:
Nos termos do disposto no artigo 629°, n.° 1, do Código de Processo Civil "O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.".
Ora – e certo não estar aqui em causa nenhuma das situações excecionadas da regra, nos n.°s 2 e 3 do mesmo artigo – temos que foi fixado à causa, no despacho saneador, o valor de €9.852,38.
Sendo que a alçada dos tribunais de 1a instância era à data da propositura da ação – como é ainda – de €5.000,00, cfr. artigo 44°, n.° 1, da LOSJ.

Por outro lado, nas suas alegações – e para além da questão da condenação do Réu Manuel (…) como litigante de má-fé – os Recorrentes – que "admitem a responsabilidade pelo acidente, a inexistência de seguro válido e o pagamento dos encargos de instrução do processo" – delimitam como integrantes do objeto do recurso, duas questões, a saber:
- o segmento da sua condenação que, atendendo ao valor pago pelo FGA excede o que sustentam ser "o valor real da reparação da viatura", ou seja, € 9.106, 86 –€ 8.000, 00 = €1.106, 86;
- a sua condenação no pagamento de juros de mora desde 10-01-2014, e não, como sustentam dever ser, desde a data da citação, cfr. conclusões 3 a 6.

Sendo que o montante daqueles peticionados juros de mora desde 10-01-2014, foi liquidado pelo A./recorrido, em € 692,63, à data da propositura da ação.

E sabido sendo que quando, como é o caso, como acessório do pedido principal se pedirem juros já vencidos e os que se vencerem durante a pendência da causa, na fixação do valor atende-se somente aos interesses já vencidos, cfr. artigo 297°, n.° 2, do Código de Processo Civil.

Sendo nessa conformidade que se fixou o valor à causa na 1a instância.

Do que assim se deixa dito decorrendo também que o valor da sucumbência, em matéria de juros, se há-de referir apenas aos valores vencidos à data da propositura da ação.

Neste sentido vejam-se, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-12-2006, - "Os juros de mora vencidos na pendência da acção não relevam para a determinação do valor da causa, nem podem ser tidos em conta para achar o valor da sucumbência com vista a apurar se a decisão é recorrível ou não." — e de 02-03-2010  — "Não se computam para o valor da acção, nem relevam para a determinação do decaimento no pedido, os juros, as rendas, bem como outros rendimentos que se vencerem durante a sua pendência nem os que se hão-de vencer durante a sua pendência.".

Ora, sendo assim o valor da sucumbência dos Recorrentes de €1.106,86 + €692,63 = €1.799,49, ele é inferior a metade do valor da alçada do tribunal de 1a instância, a saber €2.500,00.

Isto posto, notifiquem-se as partes para, querendo se pronunciarem a propósito, em dez dias, cfr. artigo 655°, n.° 1, do Código de Processo Civil.”

Por sua vez os apelantes abordaram a questão suscitada pelo relator, nos seguintes termos:

1.– Preconiza esse Venerando Tribunal que o valor da sucumbência dos Recorrentes é inferior a metade da alçada do tribunal de l a instância, pelo que a sentença não será recorrível na parte referente ao mérito da causa propriamente dito (sem prejuízo da sua recorribilidade na parte relativa à condenação de litigãncia de má-fé);
Nada havendo a dizer relativamente à questão dos juros, porquanto efectivamente não relevam os vencidos na pendência da acção, importa contudo clarificar a questão concernente ao valor do prejuízo ressarcido pela Recorrida;
3.– Conforme resulta dos autos, o valor total ressarcido ao proprietário da viatura, Sr. Yaroslav (…), foi de € 10.238,00, sendo € 9.106,86 em dinheiro (indemnização por perda total) e € 1.131,14 da entrega do salvado (cfr. nomeadamente o Doc. 4 junto à P1);
4.– No entanto, segundo resulta das declarações desta testemunha prestadas na audiência de julgamento, o valor apontado para a reparação da viatura foi de cerca de € 8.000,00;
5.– Como tal facto carecia de confirmação por documento idóneo, entenda-se por uma factura, o Mmo. Juiz a quo, a requerimento dos RR., ora Recorrentes, determinou que a testemunha procede-se à junção desse documento;
6.– Porém, mesmo após ter sido notificado por duas vezes, a testemunha ignorou e desprezou em absoluto a ordem judicial, tendo-se o Mmo. Juiz a quo, inexplicavelmente, conformado com tal conduta;
7.– Note-se que os Recorrentes não assumiram esse valor dos € 8.000,00 como sendo o devido;
8.– O que os Recorrentes assumiram foi que seria por eles devido o valor real e exacto da reparação do veículo, fosse ele qual fosse, desde que devidamente comprovado;
9.– Neste contexto, o que se pretende é que, por via do recurso, seja proferida decisão conducente ao apuramento do valor efectivamente pago pela reparação dos danos na viatura, que não corresponderá de todo ao valor pago pela Recorrida e que deverá certamente ser inferior aos € 8.000,00;
Em face do exposto, e salvo melhor opinião, deverá esse Venerando Tribunal conhecer do objecto do recurso, o que se requer.”

Apreciando.

Conforme foi apontado pelo primitivo relator, resulta do art.º 629.º n.º 1 do CPC que, ressalvadas situações excecionais previstas na lei, a recorribilidade das decisões judiciais depende do valor da sucumbência, balizado pelo valor correspondente a metade da alçada do tribunal a quo. Visa-se concentrar as energias e os meios dos tribunais superiores no que é mais importante e relevante.

Ora, in casu, e conforme decorre das conclusões da alegação dos apelantes, que delimitam o objeto do recurso (art.º 635.º n.º 4 do CPC), os apelantes admitem a sua responsabilidade pelos danos sofridos pelo dono do veículo contra o qual colidiu o automóvel conduzido pelo 1.º R. e pertencente à 2.ª R., e bem assim a faculdade de o A. se sub-rogar ao lesado, reclamando os respetivos direitos perante os RR. Porém, tendo o tribunal computado tais danos em € 9 106,86 (a que acresceu a quantia de € 52,89, a título de despesas do A. com a instrução do processo), os apelantes apenas aceitam que esse valor orce em € 8 000,00, que têm como correspondendo ao custo de reparação do veículo (cfr. conclusões 28 e 29 da alegação de recurso). Ou seja, o objeto do recurso cinge-se, afinal, à apreciação por esta Relação da bondade da condenação dos RR. num valor, tido pelos apelantes como excessivo, de € 1 106,86, a que acresce o quantitativo correspondente aos juros de mora alegadamente vencidos à data da propositura da ação, liquidados pelo A. em € 692,63 (sendo que, conforme aliás os apelantes admitem, os juros vencidos na pendência da causa não contam na liquidação do decaimento – art.º 297.°, n.° 2, do CPC e jurisprudência citada pelo primitivo relator). O total trazido à discussão perante esta Relação representa, pois, o valor de € 1 799,49, valor que fica, como se escreveu no despacho do primitivo relator, aquém de metade da alçada do tribunal recorrido.

Conclui-se, assim, que nesta parte a apelação é inadmissível, o que se declara, rejeitando-se o recurso no que concerne à matéria das conclusões 2 a 5, 6 (quanto aos pontos 1) e 2)), 7 a 35.

Fica prejudicada, assim, a apreciação das questões segunda e terceira (valor dos danos pelos quais os apelantes podem ser responsabilizados; data da mora), restando analisar a questão da litigância de má-fé.

Com relevo para esta matéria, o tribunal a quo deu como provada a seguinte
Matéria de facto:

A)– Pelas 14:00 horas do dia 30/05/2013, Oksana conduzia o veículo ligeiro de passageiros com matrícula ...3-...Z-...9, pertencente a Yaroslav, na Rua M..., no sentido G... R... – M..., dentro da sua faixa de rodagem.
B)– O veículo ligeiro de mercadorias com matrícula ...9-...0-...B é propriedade da Ré P – Unipessoal Ld.ª e na hora e local referidos em -A)- era conduzido pelo Réu Manuel em cumprimento da sua atividade profissional para a Ré.
C)– A circulação do veículo ...9-...0-...B na hora e dia indicados em -A)- ocorria sem que existisse seguro válido que garantisse a responsabilidade civil por danos produzidos a terceiros.
D)– Na hora e local referidos em -A)- ocorreu embate entre ambos os veículos.
J)– O veículo ...9-...0-...B imediatamente antes do acidente saiu do logradouro do prédio que melhor se observa pelo documento de fls. 58 (Quinta P...), manobrando para a esquerda de modo a entrar na Rua B... V... (via de terra batida).
K)– Ao realizar a referida manobra, não se apercebeu que na via oposta, sua direita, (para onde pretendia entrar e logo de seguida manobrar à esquerda para aceder referida Rua B... V...), circulava o veículo ...3-...Z-...9 no sentido G...-R... – M..., embatendo no mesmo com a parte da frente direita do -...B- na frente lateral esquerda do –...Z
L)– Na sequência do embate (que produziu grande estrondo), o -...Z- despistou-se atravessou a ciclovia e enfaixou-se num canavial existente no lado da via por onde circulava.
M)– No local do acidente a velocidade máxima permitida é de 70 km/hora.
P)– O condutor do ...9-...0-...B retirou o veículo da posição em que ficou após o embate e estacionou-o na estrada de terra batida – Rua da Bela Vista, referida em K, mas pouco tempo após saiu desse estacionamento e afastou-se do local, conduzindo o -...B-, antes da comparência da GNR.

O tribunal a quo enunciou, com relevância para esta matéria, os seguintes
Factos não provados
– Que a condutora do ...3-...Z-...9 circulasse com velocidade superior a 70km
– Que tivesse sido o -...Z- a embater de raspão no -...B-
– Que o acidente ocorresse por despiste do -...Z- sem intervenção ou influência do-...B-.

O tribunal a quo consignou ainda, para o efeito de apreciação de litigância de má-fé, as seguintes afirmações e factos:
O afirmado pelo Réu que a condutora do -...Z- perdeu o controlo do veículo, colidindo de raspão com a viatura por si conduzida (-...B-).
– O afirmado pelo Réu que a colisão foi de raspão e de tal forma leve. Que nem sequer se apercebeu do toque, tendo deduzido que o despiste da viatura ...3-...Z-...9 no canavial não tinha a ver consigo.
– A declaração prestada pelo Réu (horas após o acidente) no posto da GNR, afirmando que não viu nenhum veículo a circular pela sua esquerda e direita, avançou, tendo reparado numa carrinha que se acidentara nas canas, julgando não ter tido nada com isso.
– O embate produziu grande estrondo, de tal modo que foi ouvido por Luís Pedro (residente a cerca de 50 metros do local do acidente) que no momento do choque se encontrava a entrar na sua garagem.
– [Luís Pedro] Verificou a situação do veículo ...3-...Z-...9 e constatou que a parte da frente encontrava-se bastante amolgada e que a viatura ...9-...0-...B permanecia atravessada na estrada.
– No local (para além dos intervenientes no acidente e de si próprio) não se encontrava qualquer outra pessoa.

O Direito.

Nos termos do disposto no art.º 542.º n.º 2 do Código de Processo Civil, diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

A atual redação do preceito, introduzida no anterior CPC pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12.12, visou, conforme resulta do seu texto e se explicita no preâmbulo daquele diploma, “como reflexo e corolário do princípio da cooperação”, consagrar “expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos”.

O tribunal a quo alicerçou a condenação do 1.º R., como litigante de má-fé, nas seguintes considerações:

No decorrer do processo (veja-se advertência formulada em sede de despacho saneador – pág. 87), as partes foram alertadas para a prova que viesse a ser produzida teria relevância para aferição dos respetivos comportamentos face ao disposto no art.º 542.º do Código de Processo Civil.

Sobre esta específica situação as partes tiveram oportunidade de alegar o que tiveram por conveniente e os Réus, apresentaram articulado onde refutam ter ocorrido litigância de má-fé de qualquer dos demandados, já que exerceram tão só o seu direito em contradizer.

Ora, perante a prova produzida levam-nos a concluir que efetivamente o Réu Manuel (…) litigou de forma evidente de má-fé, sendo a sua conduta nitidamente censurável conforme o conteúdo das afirmações e factos salientados.

É inequívoco o direito dos Réus ao exercício da sua defesa, o que já não é permitido é que o Réu apresente um relato dos factos falso, com a nítida intenção de escamotear a verdade e assim tentar alhear a sua responsabilidade pelo acidente que como se viu sucedeu por sua exclusiva culpa.

Começou por afirmar à GNR que o acidente ocorreu em razão de um despiste, que nada tinha a ver com a sua intervenção “…quando reparo numa carrinha que se acidenta nas canas, julgando não ter tido nada com isso avancei…” – veja-se fls. 12.
Porém, já em plena intervenção processual, aprimorou o seu relato, dizendo que a condutora do -...Z- “perdeu o controlo do veículo, colidindo de raspão com a viatura conduzida pelo Réu…”- veja-se art.º 12.º da contestação; e que “a colisão de raspão é de tal forma leve, que nem sequer se apercebeu do toque” – art.º 13.º da contestação; “tendo deduzido que o despiste do -...Z- em direção ao canavial nada tinha a ver consigo” – art.º 13.º da contestação.

Na motivação já se referiu as circunstâncias em que o acidente ocorreu e o estrondo produzido pelo embate que foi ouvido a 50 metros de distância pela testemunha que presenciou no local a posição relativa de ambos os veículos e as consequências do acidente que levou à perda total do veículo ...3-...Z-...9.

Aliás, embora releve somente para a litigância de má-fé as circunstâncias ora referidas, todo o comportamento do Réu após acidente é censurável.

Afastou-se do local sem que se inteirasse convenientemente da situação em que a condutora do -...Z- ficou (quando muito tendo apenas perguntado se estava bem – versão da testemunha Luís Pedro, embora com hesitação e contraditória com o relato da própria Oksana), retirando o veículo que conduzia da posição em que ficou após acidente e desaparecendo antes da chegada da força policial (GNR) que registou a ocorrência. Procurou com o relato de factos inverídicos iludir a sua responsabilidade, falseando a verdade de forma manifesta com o relato da dinâmica do acidente que sabia não corresponder ao que efetivamente se passou.

Assim ocorre comportamento de má-fé por parte da Réu (que se insere no disposto do art.º 542.º n.º 2 alíneas a) e b) do CPC) e tenha de ser considerado com a abrangência e relevância que o seu depoimento teria, caso tivesse tomado a opção de relatar os factos conforme efetivamente ocorreram, o que exigirá obviamente a atribuição de uma sanção condizente com tal gravidade.”

O apelante, por sua vez, considera que a sua condenação por litigância de má-fé é injusta, negando perentoriamente ter tido a intenção de escamotear a verdade e tentado endossar a sua responsabilidade pelo acidente. O apelante apresenta-se como “uma pessoa simples, de parcos recursos, com pouca instrução e com as dificuldades de expressão próprias desse facto, sendo incapaz, até por força dessas suas características, de faltar a verdade ao Tribunal, pelo menos de forma consciente e com o objectivo de entorpecer ou dificultar a acção da justiça e a descoberta da verdade material dos factos” (pág. 18 da alegação de recurso). Acresce, diz o apelante, que o depoimento das testemunhas Oksana e Luis Pedro também são contraditórias entre si e, no entanto, o tribunal acabou por concluir que o R. é que mentira. O apelante convida, mesmo, o tribunal ad quem a ouvir os depoimentos do 1.º R., a fim de que o tribunal aquilate da imputada intenção de entorpecimento da justiça que lhe é atribuída. Mais censura o apelante a circunstância de o tribunal a quo, embora sem o admitir, ter dado relevo, nesta matéria, à alegada conduta do 1.º R. após o acidente.

Vejamos.

Conforme bem defende o apelante e é admitido na sentença, a conduta que o art.º 542.º do CPC pretende prevenir, reprimir e punir é a indevida atuação do litigante em juízo, ou seja, a atuação processual ilícita e censurável (vide Paula Costa e Silva, A Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, 2008, p. 20). Daí que sejam irrelevantes e até prejudiciais, por poderem contaminar a perceção da realidade que ora nos ocupa, as considerações contidas na sentença, no contexto da litigância de má-fé, acerca de comportamentos alegadamente adotados pelo 1.º R. após o acidente e de declarações que possa ter efetuado antes da instauração da ação.

Importa, assim, avaliar apenas as opções do R. que se concretizaram no processo.

Na petição inicial o A. descreveu assim o acidente:
3.º No dia 30-05-2013, pelas 14h00, Oksana conduzia o veículo ligeiro de passageiros matrícula ...3-...Z-...9 (…), na M..., no sentido G... R.../M..., na respetiva faixa de rodagem.
4.º O veículo ligeiro de mercadorias matrícula ...9-...0-...B, propriedade da Ré P, Unipessoal, Lda e conduzido pelo Réu Manuel, encontrava-se estacionado junto à Casa P....
5.º No momento em que o veículo matrícula ...3-...Z-...9 vai a passar em frente da Casa P..., o ora Réu Manuel, condutor do veículo matrícula ...9-...0-...B, propriedade da Ré P, Unipessoal, Lda, saiu do local de estacionamento,
6.º Invadiu a faixa de rodagem onde circulava o veículo matrícula ...3-...Z-...9,
7.º O qual, apesar de ainda ter tentado uma manobra de recurso, tentando desviar-se para a sua direita,
8.º Não conseguiu evitar ser embatido na sua frente lateral esquerda pela frente direita do veículo matrícula ...9-...0-...B.
A este respeito os RR. articularam o seguinte, na sua contestação:
8.º Em relação às circunstâncias em que o acidente ocorreu, o 1º R. ia a sair da propriedade denominada “Casa P...” para logo entrar na Rua B... V..., tendo acedido à Rua M..., na faixa de rodagem no sentido G...-M..., apenas por breves momentos.
9.º Sendo que a viatura com a matrícula ...3-...Z-...9, conduzida por Oksana, circulava na mesma faixa e sentido de marcha.
10.º Neste sentido de marcha, o local do acidente é imediatamente antecedido de uma curva à esquerda com pouca visibilidade para o seu interior, dada a presença de vegetação densa, sendo o limite de velocidade de 70 km/hora.
11.º O 1.º R., imediatamente antes de iniciar a marcha e entrar na Rua dos Marítimos, olhou para ambos os sentidos da via e, por em nenhuma delas circular qualquer veículo, iniciou a marcha e realizou a manobra, já com a direcção totalmente virada para a sua esquerda;
12.º Terá sido nesse momento que a viatura ...3-...Z-...9 saiu da curva à esquerda imediatamente anterior, tendo a sua condutora, por circular a uma velocidade manifestamente excessiva para o local, perdido o controlo da mesma, colidido de raspão com a viatura conduzida pelo 1.º R., saído da estrada e atravessado a ciclovia, até se imobilizar numa zona de canavial, cerca de 15 metros mais à frente.
13.º A colisão foi de raspão e de tal forma leve, que o 1.º R. nem sequer se apercebeu do toque, tendo deduzido que o despiste da viatura ...3-...Z-...9 em direcção ao canavial nada tinha a ver consigo.
14.º Aliás, os vestígios na viatura da 2.ª R., conduzida pelo 1.º R., não passam de um mero raspão no lado direito do para-choques dianteiro.
15.º Perante as circunstâncias descritas, o acidente deveu-se ao facto de a condutora da viatura ...3-...Z-...9 circular a uma velocidade manifestamente excessiva, num local com pouca visibilidade, de se ter atrapalhado com a presença da viatura conduzida pelo 1.º R e, por via disso, perdido o controlo da sua e embatido naquela.

No depoimento de parte o 1.º R. afirmou o seguinte:
Estava na quinta a trabalhar. Acabei e vou para me ir embora. Saio, olho para um lado, para o outro. Meto-me à estrada, não vejo ninguém, ninguém, conforme viro para ir para a outra estrada batida, que é logo a seguir à quinta, ouvi “pec”, ouvi “pec”, fiz assim, virei o carro para a estrada. Cheguei à frente e fui ver onde é que me bateram. Volto para trás e vejo então a senhora, mais o pai do Ricardo [Ricardo é o sócio-gerente da 2.ª R] a perguntar à senhora se precisava de alguma coisa. O pai do Ricardo disse-me para me ir embora, que tinha coisas para fazer. A senhora tinha um arranhão no braço. Só vi o farol da carrinha [veículo da 2.ª R.] batido mais à frente. Estava o farolim da carrinha batido. O outro carro estava lá atrás uns 20 metros, nas canas. Só vi o carro lá nas canas.”

Oksana descreveu que circulava a velocidade moderada e, após ter passado uma ligeira curva que a estrada fazia para a sua direita, viu o veículo da R. a sair de um portão, do lado esquerdo atento o sentido de marcha da testemunha, sem parar, embatendo no veículo da depoente, na parte da frente e na lateral esquerda, junto ao condutor. O seu carro foi empurrado para a direita, indo parar às canas. Não teve hipótese de evitar a colisão.

Luís Pedro, morador nas proximidades do local do acidente, disse que ouviu uma travagem brusca e um embate. Viu uma camioneta atravessada na estrada, com a parte traseira na faixa de rodagem e a parte dianteira já fora da estrada. O carro da senhora, com a parte da frente metida nos canaviais. Lembra-se de o senhor da camioneta dizer, para quem o quisesse ouvir, que tinha olhado num sentido e no outro e que não tinha visto carro nenhum. Foi uma travagem brusca e um estrondo bastante forte. A camioneta não tinha nada de especial, tinha o guarda-lamas um bocadinho amachucado. O carro da senhora é que tinha a parte da frente um bocado danificada. Tendo sido perguntado pelo Sr. juiz se o carro da senhora tinha apanhado de frente e de lado ou se foi só da frente, respondeu: “apanhou assim de raspão, de raspão…”

Mais ninguém, com conhecimento pessoal do acidente, prestou depoimento, sendo certo que a testemunha Nuno, agente da GNR que tomou conta da ocorrência, tendo elaborado a participação junta ao processo, só se recordava muito vagamente do caso.

Ficou provado, e os apelantes nessa parte não impugnaram a sentença, o constante nas alíneas supra transcritas. Ou seja, deu-se como provada a versão do acidente descrita pelo A.. Significa isto que o 1.º R. litigou de má-fé? Vejamos. A sua versão do acidente é própria de quem, atuando distraído e de forma imprudente, não sabe descrever exatamente o que sucedeu. Mas há uma parte da sua defesa em que o R. manifestamente faltou à verdade: no trecho em que afirma que a colisão foi tão ligeira que até teve a impressão de que o despiste do outro veículo não tinha tido nada a ver com ele. Face ao que se provou e ao que foi declarado pela única testemunha presencial, colocada em posição que lhe permitia ser totalmente isenta, Luís Pedro, o ruído e a violência do embate não permitiam que tal alheamento fosse verdadeiro.

Assim, nesta parte o R. deturpou conscientemente a realidade dos factos. E, não fora a circunstância de o Sr. juiz ter decidido, oficiosamente, intimar a depor a aludida testemunha Luís Pedro, talvez tivessem permanecido dúvidas insanáveis acerca dos termos do acidente.

O 1.º R. litigou, assim, de má-fé, por ter deturpado conscientemente aspetos relevantes acerca da dinâmica do acidente.

Mas cremos que, ainda assim, a punição aplicada, correspondente a € 1 530,00 (€ 102,00 x 15), é desproporcionada, atendendo a que o 1.º R. é, conforme resultou do seu depoimento e ainda do de Ricardo, gerente da R., um trabalhador indiferenciado, que efetua biscates como trabalhador agrícola. Com efeito, dispõe o n.º 4 do art.º 27.º do RCP, o montante da multa “é sempre fixado pelo juiz, tendo em consideração os reflexos da violação da lei na regular tramitação do processo e na correcta decisão da causa, a situação económica do agente e a repercussão da condenação no património deste.”

Afigura-se-nos, pois, sendo certo que nos casos de condenação por litigância de má-fé a multa será fixada entre 2 UC e 100 UC (n.º 3 do art.º 27.º do RCP), mais adequada a multa de 7 UC.

DECISÃO.

Pelo exposto:
1.º– Não se admite a apelação no que concerne à impugnação da condenação dos RR. no pagamento da quantia peticionada pelo A.;
2.º– Julga-se a apelação parcialmente procedente no que concerne à condenação do R. Manuel como litigante de má-fé, e consequentemente altera-se o valor da multa em que este foi condenado, a qual se fixa em 7 UC.
Pela não admissão parcial do recurso condena-se os RR. no respetivo incidente, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça (art.ºs 7.º, n.ºs 4 e 8 do RCP e tabela II).
Pelo parcial decaimento na impugnação da sua condenação em multa, condena-se o 1.º R. nas custas da apelação, na proporção do seu decaimento, proporção que se fixa em 1/8 do valor tributário atribuído pelos apelantes à apelação (art.º 527.º n.º 1 e 2 do CPC) – sendo certo que o apelado beneficia de isenção de custas (art.º 4.º n.º 1, al. o) do RCP).



Lisboa, 20.12.2017


Jorge Leal
Ondina Carmo Alves
Pedro Martins