Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5356/12.0TBVFX-B.L1-7
Relator: LUÍS ESPIRITO SANTO
Descritores: ARRENDAMENTO
TÍTULO EXECUTIVO
FIADOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: O título executivo complexo formado ao abrigo do artigo 14º-A, do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, com o aditamento resultante da Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto (bem como o previsto no antecedente artigo 15º, nº 2 do mesmo diploma legal), abrange o fiador do arrendatário que teve intervenção pessoal no contrato de arrendamento sub judice, subscrevendo-o, e ao qual foi devidamente comunicado o montante da dívida relativamente às rendas vencidas e não pagas pelo arrendatário.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa ( 7ª Secção ).

I – RELATÓRIO.
Apresentaram José e Teresa requerimento executivo, entrado em juízo em 15 de Outubro de 2012, contra José Silva, Mariana e Carlos .
Essencialmente alegaram:
São senhorios do imóvel que identificam, tendo celebrado sobre o mesmo, em 19 de Novembro de 1997, contrato de arrendamento com o executado Carlos Alberto Gonçalves Barbosa.
Os executados José Silva e Mariana constituíram-se fiadores e principais pagadores pelas obrigações decorrentes desse contrato de arrendamento.
O arrendatário deixou de pagar as competentes rendas a que estava obrigado, desde as que se venciam no mês de Julho de 2004.
Perante tal situação de incumprimento, os exequentes notificaram/comunicaram aos executados, em 23 de Abril de 2008, 30 de Abril de 2008 e 10 de Maio de 2008, as rendas em atraso àquela data, nos termos e para os efeitos da conjunção do disposto no nº 3 do artigo 1083º, nº 1 e 3 do artigo 1041, ambos do Código Civil, e nº 7 do artigo 9º da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro.
Os executados não procederam ao pagamento das identificadas rendas, ainda em dívida.
A comunicação junta aos autos é título executivo bastante, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 15º da Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro.
Em 21 de Janeiro de 2014, foi proferido o seguinte despacho:
“Inexistindo fundamento para indeferir liminarmente o requerimento executivo determina-se a citação dos executados para, no prazo de 20 dias, virem pagar ou oporem-se à execução (artigo 812º-E, nº 5 do Código de Processo Civil.” (cfr. fls. 51).
Foi proferido o seguinte despacho, datado de 4 de Novembro de 2015:
“Da análise dos autos resulta estarmos perante acção executiva para pagamento de quantia certa, proposta contra arrendatário e fiadores com base em contrato de arrendamento e notificação judicial avulsa efectuada aos executados, comunicando-lhes o valor das rendas vencidas e não pagas.
Como é sabido, nos termos do artigo 14º-A do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU/2012), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, com a alterações da Lei nº 31/2012, de 14 de agosto, "o contrato de arrendamento, quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é titulo executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargo ou às despesas que corram por conta do arrendatário”.
Antes destas alterações, o NRAU regulava a matéria em causa no artigo 15.°, nº 2, invocado no requerimento executivo, que dispunha o seguinte: “0 contrato de arrendamento é título executivo para a acção de pagamento de renda quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em divida".
Estamos, portanto, à luz de qualquer uma das citadas previsões legais, perante um título executivo complexo cuja possibilidade de formação passou, com NRAU/2012, a ser maior: também constitui título executivo o conjunto formado pelo contrato de arrendamento e pelo comprovativo da comunicação ao arrendatário quando referido a renda, a encargos e a despesas que corram por conta do arrendatário.
Pois bem, a extensão da força executiva dos referidos documentos tem vindo a ser objecto de discussão na doutrina e na jurisprudência, questionando-se se inclui ou não o fiador. Entre os que respondem afirmativamente, discute-se ainda se para haver título contra o fiador é necessário comprovativo da comunicação ao próprio ou basta a comunicação ao arrendatário, havendo partidários de ambas as soluções.
Ora, na nossa opinião, e salvo o devido respeito por entendimento contrário, a razão está do lado dos defensores da inexistência de título executivo contra o fiador, ainda que seja comprovada a comunicação ao mesmo do montante em dívida, como sucede, aliás, no caso vertente.
Neste sentido se pronunciaram, na doutrina, Rui Pinto Duarte (Manual da Execução e Despejo, Coimbra Editora, 2013, pp. 1164 e 1165) Fernando de Gravato Morais (Cadernos de Direito Privado, n.º 27, p. 57 e segs; Falta de Pagamento da Renda no Arrendamento Urbano, p. 76 e segs.) e Miguel Teixeira de Sousa (Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, Almedina, 2014, p. 406), e, na jurisprudência, entre outros, os Acs. da RP de 24 de Abril de 2014, proc. 869/l3.9YYPRT.PI, com um voto de vencido, e da RL de 18 de Setembro de 2014. proc. 6126/12.0TCLRS.L1-2, www.dgsi.pt.
Rui Pinto Duarte apresenta os seguintes argumentos: a norma (atual artigo 14.0-A do NRAU/2012) não prevê a formação de título executivo contra o fiador e por força do princípio da taxatividade dos títulos executivos e da natureza restritiva das normas que os preveem não é possível fazer interpretações extensivas do preceito; a alteração do RAU pela Lei n° 31/2012 deixou intocado o texto quando a questão já se discutia, num sinal de que o legislador não pretendeu tornar claro que o fiador também pode ser executado; o Decreto-Lei n° 1/2013, de 7 de Janeiro, denuncia essa intenção legislativa ao consagrar expressamente que só o arrendatário pode ser objecto do procedimento especial de despejo quando nele está compreendido a execução das rendas em dívida.
Fernando de Gravato de Morais, por seu turno, defende que não se forma título executivo contra o fiador com o fundamento essencial de que não sendo a norma clara no sentido de incluir o fiador e havendo elementos literais que indiciam que o quis excluir, uma vez que o fiador se encontra numa posição mais débil, não lhe deve corresponder um regime mais agravado do ponto de vista processual, como sucede se inclusivamente se prescindir da notificação.
Segundo Miguel Teixeira de Sousa, o preceito (artigo 14.o-A do NRAU/201~) apenas admite que a comunicação seja realizada ao arrendatário, certamente porque emente esta parte está em condições de controlar a veracidade do seu conteúdo e de deduzir alguma eventual oposição. Por isso, o título executivo só se pode formar contra o próprio arrendatário, o que significa que o mesmo não se estende ao fiador que seja responsável pelo pagamento das rendas em dívida.
Assi, tendo presente estes ensinamentos, que julgamos corresponderem à melhor interpretação do conjunto de dados normativos do nosso sistema jurídico, impõe-se concluir que os artigos 15º, nº 2 e 14º-A supra citados, não prevêem a possibilidade de formação de título executivo contra o fiador do arrendatário.
Vale isto dizer que, no nosso caso, não existe título executivo contra os executados Florentino José da Silva Mendes Delfino e Mariana Henriques Nogueira Delfino, o que conduz à rejeição, quanto aos mesmos, da presente execução, com a sua consequente extinção, nos termos do artigo 734.° do CPC.
De salientar que o despacho liminar anteriormente proferido nos autos, que considerou inexistir fundamento de indeferimento liminar do requerimento executivo, não obsta à extinção da execução nos termos referidos, uma vez que não faz caso julgado formal, tratando-se de despacho meramente tabelar ou tarifado – artigo 595º, nº 3, a contrario, do CPC, aplicável analogicamente.

Decisão: pelo exposto, rejeita-se a execução e, em consequência, declara-se a sua extinção, no que concerne aos executados Florentino José Silva Mendes Delfina e Mariana Henriques Nogueira Delfino”.

Apresentaram os exequentes recurso desta decisão, o qual foi admitido como de apelação (cfr. fls. 363).
Juntas as competentes alegações, a fls. 324 a 336, formularam os apelantes as seguintes conclusões:
i) Questão Prévia: A execução, na qual se recorre, não foi inicialmente rejeitada, tendo sido somente rejeitada decorrido que foram já diligências de penhora, o que não deixa de ser uma grande contradição e incoerência e, eventualmente, contrária à lei, face ao trânsito julgado formal e, assim, violadora do disposto nos artigos 580º e 628º, ambos do CPC.
ii) No caso dos autos, a exequente intentou uma execução comum para pagamento de quantia certa, ou seja, executa o montante de rendas vencidas e não pagas e, para o efeito, demanda o arrendatário e fiadores deste, conjuntamente, aludindo ao n.º2 do art.º 15.º do NRAU.
iii) Os Exequentes, aqui Apelantes, notificaram o Arrendatário e os fiadores, em 23.04.2008, 30.04.2008 e 10.05.2008, respectivamente, conforme nos termos e para os efeitos do previsto e exigido na conjugação do disposto nº nº 3 do artigo1083º, nºs 1 e 3 do artigo 1041, ambos do CPC e nº 7 do artigo 9º da NRAU, conforme melhor resulta das notificações juntas aos autos
iv) A fiança que é o vínculo jurídico pelo qual um terceiro (o fiador) se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito deste sobre o devedor. O fiador garante, assim, a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor, cfr. art.º 627.º n.º 1 do C.Civil, tendo inclusive sido interpelado os fiadores
v) O Tribunal a quo, ao que rejeitar a execução, por entender que os artigos 15º, nº 2 e 14-A do Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU/2012) aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27-02, com as alterações da lei 31/2012, de 14-08, não prevêem a possibilidade de formação de título executivo contra o fiador do arrendamento, violou as disposições legais acima mencionadas (os artigos 15º, nº 2 e 14-A do Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU/2012) aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27-02, com as alterações da lei 31/2012, de 14-08) e o art.º 627.º n.º 1 do C.Civil
Termos em que, deve dar-se provimento ao presente recurso de apelação, e consequentemente, revogar a decisão proferida de rejeição da execução, seguindo-se os ulteriores termos da execução.
Contra-alegaram os executados pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida.

II – FACTOS PROVADOS.
Os indicados no RELATÓRIO supra.

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS.
São as seguintes as questões jurídicas que importa dilucidar:
1 – Alegado trânsito em julgado da decisão liminar onde se considerou não existir fundamento para indeferir o requerimento executivo, ordenando-se a citação dos executados.
2 – Alcance do título executivo complexo formado nos termos do artigo 14º-A do NRAU (correspondente ao anterior artigo 15º, nº 2). Prossecução da execução contra os fiadores.
Passemos à sua análise :
1 – Alegado trânsito em julgado da decisão liminar onde se considerou não existir fundamento para indeferir o requerimento executivo, ordenando-se a citação dos executados.
Não assiste razão aos apelantes neste tocante.
A circunstância de o juiz não se haver apercebido, aquando do despacho liminar proferido, da ausência de título executivo que serve de base à execução relativamente a um dos executados, não obsta, evidentemente, à sua ulterior e obrigatória apreciação durante a pendência dos autos.
Trata-se de matéria essencial para o prosseguimento da execução que não é susceptível de poder considerar-se suprida pela ultrapassagem, meramente formal, do crivo do indeferimento liminar.
Não se formou, portanto, caso julgado nesta matéria, impeditiva do respectivo conhecimento.
Improcede a apelação neste ponto.
2 – Alcance do título executivo complexo formado nos termos do artigo 14º-A do NRAU (correspondente ao anterior artigo 15º, nº 2). Prossecução da execução contra os fiadores.
A decisão da presente apelação prende-se basicamente com a interpretação a conferir ao artigo 14º-A, do Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, com o aditamento resultante da Lei nº 31/2012, de 14 de Agosto, que corresponde ao anterior artigo 15º, nº 2, do mesmo diploma legal.
Refere a disposição legal: “O contrato de arrendamento quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas, aos encargos ou às despesas que corram por conta do arrendatário”.
Discute-se se o título executivo complexo assim formado abrange, ou não, o fiador do arrendatário que teve intervenção pessoal no contrato de arrendamento sub judice, subscrevendo-o.
A descrita questão jurídica já foi objecto de intensa análise doutrinária e jurisprudencial, verificando-se acentuada dissidência.
Em termos doutrinários, para além das referências que constam da decisão recorrida, importa salientar-se o argumentário expendido por Fernando Gravato de Morais, in “Falta de pagamento de renda no arrendamento urbano”, pags. 77 a 81; Cadernos de Direito Privado, nº 27, pags. 57 a 63, e in “A jurisprudência no triénio posterior à entrada em vigor do NRAU”, publicado na revista “Direito e Justiça – Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes”, pags. 512 a 513.
Sustenta este autor, revelando contudo dúvidas quanto à interpretação do preceito, que do texto do artigo 15º, nº 2 do NRAU (antes da alteração introduzida pelo actual artigo 14º-A), apenas se pode afirmar uma tendência no sentido da não aplicabilidade ao fiador, dado ter sido pensado apenas para o arrendatário.
Argumenta, neste sentido, o risco da fiança; o eventual desconhecimento pelo fiador da situação de mora; a especial fragilidade da posição do garante e a possibilidade de multiplicação de acções noutros casos previstos no NRAU.
Entende o autor que o nº 2 do artigo 15º do NRAU insere-se num normativo destinado, essencialmente, a proteger os interesses do senhorio perante o arrendatário, sendo esse o contexto da lei, expresso no amplo leque de casos do nº 1.
Salienta que a não multiplicação de acções judiciais não pode ser feita à custa (apenas) do fiador e que o regime do NRAU compreende muitos casos de multiplicação de acções – sendo este apenas mais um.
Alude a que o fiador, se o senhorio actuar logo, e observados todos os prazos, pode ser confrontado com a acção executiva, na melhor das hipóteses, treze a catorze meses após o incumprimento do afiançado.
No mesmo sentido, Rui Pinto, in “Manual de Execução de Despejo”, a páginas 1164 a 1165, exclui o fiador do âmbito e alcance do artigo 14ºA do NRAU, afirmando a natureza restritiva das normas que prevêem categorias de títulos executivos, limitados em relação a uma interpretação não literal.
No plano jurisprudencial, manifestando-se no sentido da não formação de título executivo contra o fiador do arrendatário, vide acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de Novembro de 2007 (relator José Eduardo Sapateiro); acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18 de Setembro de 2014 (relator Ezaguy Martins); acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31 de Março de 2009 (relatora Ana Resende); acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24 de Abril de 2014 (relator Aristides de Almeida), todos publicados in www.dgsi.pt.
Em sentido oposto, vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Novembro de 2014 (relator Granja da Fonseca); decisão singular do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de Dezembro de 2008 (relator Tomé Gomes); acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de Março de 2013 (relatora Anabela Dias da Silva); acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Junho de 2009 (relator Cândido Lemos); acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de Março de 2009 (relatora Catarina Arêlo Manso), acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16 de Maio de 2011 (relator Rui Moura); acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6 de Outubro de 2009 (relator Henrique Antunes); acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de Junho de 2010 (relatora Fátima Galante); acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21 de Abril de 2009 (relatora Sílvia Pires); acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4 de Maio de 2010 (Rodrigues Pires); acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12 de Maio de 2009 (relator Guerra Banha); acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18 de Outubro de 2011 (relatora Cecília Agante) todos publicados in www.dgsi.pt; acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21 de Março de 2013 (relator Bernardo Domingos), publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXXVIII, Tomo II, pags. 251 a 254; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 1 de Março de 2012 (relator Ilídio Sacarrão Martins) – sumário – publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXXVII, Tomo II, página 301; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22 de Outubro de 2015 (relator Rui da Ponte Gomes); acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 29 de Maio de 2012 (relatora Maria da Purificação Carvalho), ambos publicitados in www.jusnet.pt.; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de Maio de 2016 (relatora Maria do Rosário Morgado) e acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6 de Maio de 2014 (relatora Rosa Ribeiro Coelho), ambos ainda não publicados.
Apreciando:
Não obstante as inevitáveis dúvidas que uma questão tão fracturante sempre suscita, afigura-se-nos ser de perfilhar este último entendimento, pela seguinte ordem de razões:
1ª – A norma em análise – o artigo 14º-A do NRAU (bem como o antecedente artigo 15º, nº 2, do mesmo diploma legal) – não identifica concretamente o sujeito contra o qual se formou o título executivo, não aludindo à pessoa do arrendatário ou à do fiador.
Refere, apenas que “o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da notificação ao arrendatário do montante em dívida, é título executivo para a execução para pagamento de quantia certa correspondente às rendas (…)”.
Trata-se de um documento a que, por disposição especial, é atribuída força executiva, nos termos da alínea d) do nº 1, do artigo 703º do Código de Processo Civil.
É, portanto, neste quadro de especialidade e excepcionalidade que terá que ser entendida e enquadrada a formação do título executivo em referência.
O artigo 10º, nºs 4 e 5, do Código de Processo Civil, estabelecendo que o título executivo constitui a base que determina o fim e os limites da acção executiva, legitima o exequente a obter, nessa sede, a realização de uma obrigação que lhe é devida, sem necessidade de prévia instauração de acção declarativa.
Consistindo o título executivo no contrato de arrendamento celebrado, complementado com a comunicação ao arrendatário (e ao fiador) do montante em dívida, é absolutamente compreensível e expectável que a obtenção da realização da obrigação devida ao senhorio – o pagamento das rendas vencidas – possa advir, nesta sede, do conjunto dos responsáveis pelo incumprimento e que se assumiram, enquanto tais, no próprio título exequendo: o arrendatário e o seu garante, que nessa mesma específica qualidade aceitou e subscreveu o documento agora dado à execução.
Concordantemente, lei não refere nem sugere, em momento algum, em termos restritivos, que este título especial só deva ter eficácia executiva contra o arrendatário.
Na situação sub judice, tendo existido comunicação válida aos fiadores, é indiscutível que os mesmos figuram, enquanto verdadeiros e próprios obrigados, no título complexo que serve de base à execução para pagamento de quantia certa (as rendas vencidas e não pagas).
Não cremos, portanto, que existam razões sérias e bastantes para os excluir do processo executivo, no qual poderão, naturalmente, exercer os mais amplos direitos de defesa – tal como sucederia na acção declarativa, a intentar com o mesmo objecto essencial e prosseguindo idêntico finalidade mediata.
2ª – O conteúdo da responsabilidade do fiador, sendo própria e autónoma, molda-se sobre o da pessoa afiançada, nos termos gerais dos artigos 627º, nº 1 e 634º do Código Civil.
Trata-se de uma posição pessoal de garante, a título acessório, do cumprimento da obrigação assumida pelo devedor principal.
Conforme salienta Luís Menezes Leitão, in “Garantia das Obrigações”, a página 108, “a fiança resulta sempre ou de um contrato entre o fiador e o credor, ou de um contrato entre o fiador e o devedor que, nesse caso, revestirá a natureza de contrato a favor de terceiro (…) Apesar de a fiança ser normalmente originada num contrato entre duas partes, ela é sempre elemento de uma relação triangular entre o fiador, o credor e o devedor”.
As características e o regime jurídico da fiança (mormente o preceituado nos artigos 627º, nº 2, 631º, 632º e 637º do Código Civil) não prejudicam, de modo algum, a possibilidade de criação, quanto ao fiador, de um título a que a lei especialmente confira força executiva, conforme é precisamente o caso do citado artigo 14º-A do NRAU, relativamente ao não pagamento das rendas vencidas no contrato de arrendamento.
Não se trata, nesta situação, da constituição de um título executivo (contra os garantes) por mera notificação extrajudicial, atendendo a que o contrato de arrendamento, enquanto mero documento particular, não revestiria, por si, a qualidade de título executivo (questão abordada no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de Novembro de 2007 -relator José Eduardo Sapateiro).
Diferentemente, neste particular, o legislador quis consagrar um título a que, em especial, atribuiu força executiva (cfr. artigo 703º, nº 1, alínea d) do Código de Processo Civil), conferindo-lhe uma específica e inconfundível natureza e alcance.
Como se referiu, esse mesmo título, de natureza complexa, é composto pelo contrato de arrendamento e pela notificação ao arrendatário (e ao fiador) quanto aos montantes em dívida.
A situação do fiador, enquanto executado, é neste contexto precisamente similar à do próprio arrendatário: ambos figuram no contrato de arrendamento; ambos são responsáveis pelo pagamento das rendas vencidas; de ambos pode o credor senhorio exigir tal pagamento.
Logo, o título executivo criado ex novo, com foros de especialidade, protegendo primordialmente o interesse do senhorio, deve valer contra ambos.
A tal não se opõe o regime substantivo da fiança que, nos termos do artigo 634º do Código Civil, prevê que a responsabilidade do fiador cubra as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor, indiciando a própria desnecessidade da sua interpelação (sobre este ponto, vide, entre outros, a decisão singular do Tribunal da Relação de Lisboa de 12 de Dezembro de 2008 – relator Tomé Gomes).
Na situação sub judice, como se disse, os executados fiadores tiveram intervenção pessoal e directa no contrato de arrendamento que constitui um dos documentos base que serve de suporte à presente execução.
São, portanto, directamente responsáveis pelas consequências patrimoniais associadas ao incumprimento pelo arrendatário quanto à sua obrigação básica do pagamento pontual da renda estabelecida, tendo-lhes sido comunicado previamente, através de notificação judicial avulsa, o montante em dívida a este título.
Não se vislumbra, portanto, tomando em consideração o regime substantivo correspondente à figura da fiança, qualquer motivo suficientemente forte e relevante para não devam ser abrangidos pela previsão do artigo 14º-A do NRAU (e do artigo 15º, nº 2 do regime antecedente).
3ª – Afigura-se-nos absolutamente inócuo, para estes efeitos, que a anterior disposição legal aplicável previsse, no respectivo artigo 15.°, nº 2: “0 contrato de arrendamento é título executivo para a acção de pagamento de renda quando acompanhado do comprovativo de comunicação ao arrendatário do montante em divida".
A alteração introduzida pelo actual artigo 14º-A limitou-se a acrescentar, no âmbito da abrangência da norma, “os encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário”, sem bulir com o essencial da sua previsão: a possibilidade do senhorio, após haver notificado o devedor ou devedores, partir de imediato para a acção executiva, sem as delongas associadas à instauração prévia da acção declarativa com vista ao reconhecimento do seu crédito.
Não é pelo facto da norma se ter tornado mais abrangente, reforçando a tutela dos direitos do locador face ao incumprimento do locatário, que daí vem a resultar qualquer tipo de exclusão de responsabilidade, em sede executiva, do fiador do inquilino.
4ª – A ausência de referência formal – preto no branco – à figura do fiador na letra do artigo 14º-A do NRAU, não é, só por si, susceptível de desarmar o senhorio relativamente à possibilidade de investida executiva contra o garante pelo cumprimento das obrigações do arrendatário.
É a própria norma a conferir a natureza de título executivo ao contrato de arrendamento, conjugado com a subsequente comunicação pessoal da dívida, o que levará razoavelmente a entender, coerente e logicamente – perscrutando, deste modo, a intenção legislativa -, a responsabilização, directa e pessoal, de todos e cada um dos sujeitos obrigados nesse mesmo título: quer o arrendatário, quer o fiador que aí figure.
5ª – A referenciada circunstância de o artigo 14º-A não haver alterado substancialmente o que anteriormente dispunha o antecedente 15º, nº 2, quando o assunto já teria sido objecto de discussão e entendimentos divergentes, constitui um argumento manifestamente débil e inconsistente.
Com efeito, a intervenção legislativa não tem de pautar-se necessariamente pela função pedagógica, clarificadora ou uniformizadora do sentido das normas cuja interpretação gere controvérsia. Não é isso que se pede ou que se espera do legislador. Se norma antecedente já revelava o sentido e alcance que ora se propugna, era totalmente dispensável e inapropriada a interpretação autêntica realizada, enviesadamente, por esta via omissiva ou inerte.
6ª – É perfeitamente normal que o Decreto-lei nº 1/2013, de 7 de Janeiro, no seu artigo 7º, obrigue a que o pedido de pagamento de rendas, encargos ou despesas em atraso só possa ser deduzido contra o arrendatário e não contra o fiador.
Note-se que o objectivo fundamental desse diploma de natureza especial é a cessação do arrendamento e a desocupação célere do locado, em termos particularmente simples e eficazes, procurando-se obstar a invocação de qualquer matéria que, tornando mais complexa a lide, inviabilize ou dificulte esse concreto desiderato.
Já o título executivo que serve de base a execução com vista ao pagamento de quantia certa envolve outro tipo de objectivos: a eficaz obtenção pelo credor dos montantes pecuniários – expressos no título complexo (arrendamento e comunicação) - que lhe são devidos, em relação àqueles que se constituíram como seus devedores através da subscrição desses documentos.
Pelo não é legítimo retirar dessa circunstância, respeitante ao citado artigo 7º do Decreto-lei nº 1/2013, de 7 de Janeiro, qualquer outro tipo de ilação para a discussão que nos ocupa, uma vez que um dos diplomas não contende nem interfere com o alcance e propósitos do outro.
7ª – Não se compreende que a pretensa debilidade/fragilidade do fiador ou o seu maior risco – relativamente ao afiançado – aconselhe (interpretativamente) a deixá-lo de fora do título executivo assim formado.
O fiador é responsável directo e pessoal, enquanto garante, pelas obrigações incumpridas pelo afiançado no que se refere ao não pagamento pontual das rendas vencidas. Terá ao seu dispor os meios de defesa que assistem ao afiançado.
Ao assumir-se, livre e voluntariamente, como fiador, e havendo subscrito o contrato nessa qualidade particular, não pode invocar, em termos razoáveis, que não esperasse ou antevisse a eventualidade/probabilidade de ser chamado a responder pela obrigação típica do arrendatário que fora incumprida.
É normal e compreensível que o faça na própria sede executiva, ao lado daquele em cujo interesse se atravessou, assumindo a sua própria e autónoma responsabilidade, embora decalcada na daquele.
A circunstância de a vinculação do fiador ficar inteiramente dependente da vontade e do cumprimento do afiançado, neste caso o inquilino, constitui uma característica absolutamente natural na lógica do regime jurídico inerente ao funcionamento da figura da fiança.
De resto, é precisamente isso o que significa ser garante do cumprimento da obrigação de outrem.
O artigo 637º, nºs 1 e 2 do Código Civil, confere ao fiador a possibilidade de invocação de todos os meios de defesa, os próprios e que os competiriam ao afiançado, salvo se forem incompatíveis com a obrigação do fiador.
Este recorte essencial do regime da fiança – responsabilidade até ao limite do conteúdo da obrigação principal (artigo 631º, nº 1 do Código Civil) e abrangência quanto às consequências contratuais da mora (artigo 634º do Código Civil) – nada tem a ver com os meios que a lei entenda disponibilizar ao senhorio, enquanto credor do direito às rendas vencidas.
A pretensa fragilidade da posição jurídica do fiador não obriga, por si só, à opção por um regime menos agravado (a acção declarativa em vez da executiva) do ponto de vista processual.
De resto, a própria constituição da fiança constitui, na maior parte das situações, a melhor e mais sólida garantia concedida ao senhorio no sentido da salvaguarda da efectivação do direito básico neste relacionamento negocial: o recebimento pontual da renda.
Fará sentido obrigá-lo a desdobrar os procedimentos processuais – ao jeito de via sacra - para obter a prestação que, no mesmo circunstancialismo de facto, lhe foi expressamente assegurada, por ambos os intervenientes contratuais?
8ª – No mesmo sentido, não pode aceitar-se o argumentário de que “só o arrendatário está em condições de controlar a veracidade do conteúdo da comunicação e deduzir oposição”.
É evidente que o fiador, tendo querido assumir - e assumido de facto - a obrigação pessoal de garante, terá que diligenciar pela sua própria defesa, sem se escudar nos conhecimentos privados do seu afiançado, a que poderá ter, ou não, acesso.
É um problema exclusivo do fiador com o qual o senhorio, credor da importância exequenda, nada tem a ver.
Sempre se dirá que, normalmente, a constituição de fiança tem na base numa relação muito próxima (familiar, de amizade, ou outra) que facilmente permite, na maior parte das situações, reunir os elementos necessários para sindicar a veracidade da comunicação e congregar todos os meios de defesa.
Acrescente-se, ainda, que este tipo de conhecimento - eventualmente distanciado – refere-se a um facto de natureza objectiva e de comprovação relativamente simples: o pagamento, ou não, pontual da renda exigível.
9ª – Não colhe a argumentação de que o regime do NRAU já consagra casos de multiplicidade de acções, como sucede relativamente ao pedido de rendas, cumulado com a indemnização prevista à luz do artigo 1045º, nº 2 do Código Civil.
Com efeito, se há casos em que se compreende que não seja possível dispensar a discussão e reconhecimento do direito subjectivo na acção declarativa própria, inviabilizando a possibilidade de recurso imediato à acção executiva, tal não constitui razão suficientemente forte para restringir o âmbito da execução nas situações – como o presente – em que a formalização da obrigação devida ao senhorio, permitindo responsabilizar o arrendatário, deve logicamente produzir tal efeito relativamente ao seu garante e co-responsável, sem prejuízo do exercício dos direitos de defesa em sede de oposição à execução.
A exclusão do fiador do âmbito do título executivo obrigará, quanto a uma matéria normalmente linear – pagou ou não pagou a renda vencida – a uma inconveniente e indesejável duplicação de meios processuais, com todos os riscos inerentes, sacrificando-se o credor, em termos de custos e tempo, quando os tão proclamados valores da economia e agilização de actos e ritos, bem como da eficiência e do prestígio do funcionamento da instituição judiciária, imporiam, obviamente, a resolução conjunta, célere e global, desta questão jurídica, sem mais desdobramentos ou compassos de espera inúteis, injustificados e inconsequentes.
De resto, o entendimento oposto ao que se perfilha conduz a colocar em crise o próprio alcance prático da fiança – que existe fundamentalmente para servir o interesse do credor, que vê nela a sua garantia mais real e eficaz -, uma vez que o senhorio seria sistematicamente levado a accionar executivamente, em primeiro lugar, apenas o inquilino.
A eventual execução contra fiador, após a demorada demanda declarativa (com os custos associados), só aconteceria muito mais tarde, desfasadamente, num momento em que o crédito já se encontraria satisfeito ou em que se teria entretanto consolidado negativamente – quiçá de forma irrecuperável – o arrastado e ininterrupto prejuízo económico para o (virtual) beneficiário da fiança.
Procede, portanto, a presente apelação.

IV - DECISÃO :
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e determinando o prosseguimento da presente execução contra os fiadores do arrendatário.
Custas pelos apelados.

Lisboa, 7 de Junho de 2016.


( Luís Espírito Santo ).


( Gouveia Barros ).


( Conceição Saavedra ).