Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
273/20.2T8AMD-B.L1-6
Relator: ANA DE AZEREDO COELHO
Descritores: INCIDENTE DE DESPEJO IMEDIATO
PROIBIÇÃO DE INDEFESA
MORA DO INQUILINO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I) No incidente de despejo imediato o Requerido tem disponíveis outras opções de defesa para além do pagamento ou depósito dos montantes das rendas vencidas na pendência da causa, sem o que se incorreria em situação de violação do princípio da proibição de indefesa.
II) O incidente de despejo imediato implica que a existência e validade do contrato de arrendamento e da obrigação de pagamento das rendas em causa pelo Requerido não sejam objecto de discussão na acção principal.
II) Todavia, a controvérsia que constitui obstáculo à procedência do incidente tem de ser uma controvérsia séria, susceptível de ser apreciada na acção principal.
III) A permissão de uma defesa que não coloque o requerido numa situação de indefesa vai de par com a necessidade de ponderar os termos desta defesa de modo a não colocar o senhorio, ao invés, numa situação de indefesa.
IV) Entre os valores da “proibição da indefesa” e do contraditório e os princípios da celeridade processual, da segurança e da paz jurídica existe uma relação de equivalência constitucional.
V) A mera invocação de que o Autor deixou de passar recibos, não é idónea a constituir uma controvérsia séria sobre a mora do inquilino quanto ao pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, não constituindo obstáculo à procedência do incidente.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM na 6ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I) RELATÓRIO


S…., autor na acção declarativa de condenação para despejo, com processo comum, a que estão apensos os autos para tramitação do incidente de despejo imediato de que estes foram extraídos, veio pedir o despejo imediato da Ré, T… BAR LIMITADO, do locado.
Alegou que intentou acção de despejo com fundamento, entre o mais, na falta de pagamento de rendas, sendo que a Ré não pagou ou depositou as rendas em falta, nem as que se foram vencendo após a interposição da acção, respeitantes aos meses de Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro e Outubro de 2020, sendo que também não contestou a existência de contrato de arrendamento ou invocou a inexigibilidade das rendas, alegando apenas já ter efectuado o pagamento, embora sem de tal fazer prova.
Em 27 de Outubro de 2020 (ref.ª 127437429), a Ré foi notificada, na pessoa do seu mandatário para, em 10 dias, proceder ao pagamento ou depósito das rendas vencidas na pendência da acção juntando prova aos autos, nos termos do artigo 14.º, nº 4, da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro.
A Ré nada disse na sequência da notificação de 27 de Outubro de 2020.
Em 9 de Dezembro de 2020 (ref.ª 128135035) foi proferida a seguinte decisão:

O Autor veio deduzir incidente de despejo imediato contra a Ré, pedindo que seja decretado o despejo imediato da Ré, invocando para o efeito que a Ré não pagou as rendas que se venceram após a interposição da presente ação, referentes a fevereiro, março, abril, maio, junho, julho, agosto, setembro e outubro de 2020, ao abrigo do disposto no artigo 14.º, n.º 3, 4 e 5 da Lei 6/2006 de 27 de fevereiro.
Notificada a Ré nos termos e para os efeitos previstos no artigo 14.º, n.º 4 do referido diploma, nada disse ou apresentou.
Cumpre apreciar:
Dispõe o artigo 14º, nºs 3, 4 e 5 da Lei 6/2006, de 27 de fevereiro:
“3 – Na pendência da ação de despejo, as rendas que se forem vencendo devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais. 4 - Se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas de levantamento do depósito, que são contadas a final. 5 - Em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o senhorio pode requerer o despejo imediato, aplicando-se, em caso de deferimento do requerimento, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 7 do artigo 15.º e nos artigos 15.º-J, 15.º-K e 15.º-M a 15.º-O.”
Nos presentes autos o Autor pretende que: seja declarada a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre o Autor e a Ré; seja a Ré condenada a proceder à desocupação do locado; e ainda a condenação da Ré no pagamento das rendas vencidas e vincendas até efetiva desocupação do imóvel.
Por sua vez, a Ré não contesta a existência e a validade do mencionado contrato de arrendamento.
À luz do previsto no citado artigo 14.º da Lei 6/2006, é a própria lei que atribui um efeito cominatório imediato em face da omissão do pagamento ou depósito das rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses: a formação de titulo executivo contra o inquilino.
São então pressupostos da emissão do referido título: 1) a pendência de uma ação de despejo e 2) o arrendatário não a pagar ou depositar rendas e, sendo o caso, encargos e despesas, que já estejam vencidos há dois ou mais meses.
Observando o supra disposto, verificamos que estão comprovados os factos constitutivos da pretensão deduzida pelo Autor no presente incidente, considerando: 1) o pedido e a respetiva causa de pedir da ação e ainda a ausência de discussão sobre o contrato de arrendamento celebrado entre as partes; e 2) que até ao momento e apesar de notificada para o efeito, a Ré não logrou demonstrar o pagamento das rendas vencidas na pendência da presente ação.
Nestes termos, determino o despejo imediato da Ré ao abrigo do nº 5 do artigo 14.º do diploma em análise.
Custas do incidente pela Ré, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC.
Após trânsito, conclua os autos.

A Ré interpôs o presente recurso da indicada decisão e, alegando, concluiu como segue as suas alegações:

1. O meritíssimo Juiz a quo, errou quando despachou no sentido de considerar despiciendo ou inócuo, as questões subsumidas pelo Requerente e Requerido, nas peças processuais devidas, onde se requer a apreciação do tribunal quanto à validade do contrato de arrendamento.
2. E nestes casos não poderá o incidente proceder, se for controvertida a existência ou validade do contrato de arrendamento, que deverá ser admitida essa forma de defesa do Réu, dado que em rigor, nesses casos não pode haver um “ despejo imediato “, já que este incidente pressupõe a existência de um contrato de arrendamento.
3. Tal facto, não poderia deixar de se levar em conta, para assim se conseguir a justa composição do litígio em apreço.
4. O tribunal a quo, não considerou a defesa da Requerida, na sua contestação, onde esta contesta a inexigibilidade das rendas em atraso, incluindo as vencidas na pendência da acção, bem como a validade do contrato de arrendamento sub judice.
5. E não se encontrando ainda assente a sua exigibilidade, não pode o pedido de despejo imediato proceder.
6. Assim sendo, o tribunal a quo, deveria apreciar e resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe, na audiência final da acção principal, atento a matéria em discussão assente essencialmente na verificação da validade do contrato de arrendamento em apreço.
7. Pelo que a questão deverá ser apreciada no âmbito da presente e modesta fundamentação que aqui se dá por integralmente reproduzida.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E, CONSEQUENTEMENTE, A SENTENÇA REVOGADA, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, FAZENDO-SE ASSIM A ACOSTUMADA JUSTIÇA!

O Recorrido apresentou contra-alegações invocando a omissão de indicação das normas violadas e defendendo o julgado.
O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo, efeito que se mantém por ser o legal.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II) OBJECTO DO RECURSO
Tendo em atenção as conclusões da Recorrente - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC -, e a colocada pelo Recorrido que sempre seria de apreciação oficiosa, cumpre apreciar:
1) Da violação dos pressupostos de impugnação em matéria de direito.
2) Da verificação dos pressupostos de procedência do incidente de despejo imediato relativos à indiscutibilidade da validade do contrato e da obrigação de pagamento de rendas.

III) FUNDAMENTAÇÃO

1. QUESTÃO PRÉVIA
Nas contra-alegações o Recorrido defendeu que não foram indicadas as normas consideradas violadas, uma vez que a Recorrente se refere ao artigo 14.º da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, norma que em nada sufraga o entendimento que funda o recurso.
Nos termos do artigo 639.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a solução jurídica do pleito deve indicar as normas violadas e o sentido em que deveriam ter sido interpretadas sob pena, de, não sanando a deficiência (sem prejuízo da precedência de aperfeiçoamento se verificados os pressupostos), não se conhecer do objecto do recurso na parte afectada.
No caso, entendemos que a indicação cumpre os requisitos legais. A Recorrente indica a norma e o sentido em que a mesma deve ser interpretada: como estabelecendo como requisitos de procedência do incidente de despejo imediato a indiscutibilidade da validade do arrendamento e da obrigação de pagamento de rendas. Sentido que é o da decisão de recorrida, aliás. Entende que a aplicação da norma no caso é errónea porque estão em discussão ambas as matérias.
Saber se tem razão no que alega é questão de procedência do recurso não de afectação da possibilidade de conhecer do seu objecto, pelo que improcede o que em contrário foi defendido pelo Recorrente.

2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos pertinentes para a decisão são os que constam do relatório supra e os seguintes factos que decorrem da tramitação da acção declarativa para a qual se remete:
1 – Em 11 de Fevereiro de 2020, S…o, ora Recorrido, instaurou acção declarativa de despejo com processo comum contra T… Bar, Lda, ora Recorrente, pedindo seja declarada a resolução do arrendamento celebrado entre o A. e a Ré, seja a Ré condenada a proceder à desocupação do imóvel locado, devendo o mesmo ser entregue ao A. livre de pessoas e bens, seja a Ré condenada ao pagamento das vencidas e vincendas até à efectiva desocupação do locado, acrescidas de juros de mora até ao cumprimento efectivo.
2 – Alegou como fundamento do pedido de resolução por falta de pagamento de rendas:
2.ª O A. celebrou contrato de arrendamento com a Ré da loja do R/C esquerdo do referido prédio, em data que não consegue precisar, mas tendo a certeza que há vários anos, e a renda acordada era de € 764,00, cabendo à empresa efectuar a retenção na fonte no valor de € 191,00 (cento e noventa e um euros).
3.ª Os sócios da T... C... eram o Senhor MR, e o Senhor MC, ambos portadores de uma quota de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) cada.
4ª Como as rendas em finais de 2017, começaram a atrasar-se durante alguns meses, o A., através da sua filha, C.., que é quem trata dos assuntos relacionados com o imóvel, interpelou o Senhor M… para o questionar sobre o atraso.
5ª Este pediu desculpa, e justificou-se alegando que o negócio não andava bem mas que iria proceder ao pagamento.
6ª Como, entretanto, o prometido não foi cumprido, a filha do A., senhora. CP, acompanhada pelo seu filho, deslocaram-se à loja pessoalmente, tendo verificado que a mesma se encontrava fechada.
7ª Enquanto tentavam espreitar pela montra da loja, foram interpelados por um sujeito que os questionou, perguntando qual o motivo pelo qual estavam a espreitar, e o que é que pretendiam.
8ª A filha do A. respondeu que era a proprietária da loja, e que ficou surpreendida ao ver a loja encerrada. O referido sujeito que posteriormente se identificou como chamar-se Tiago, informou-a de que era ele que nesse momento estava detentor da loja agora, e que esta não se preocupasse que tudo continuaria na mesma.
(…)
11ª A filha do A. contactou de imediato a arrendatária através do seu sócio senhor MC que a esclarecesse do que se estava a passar e este informou-a de que feito uma cessão de quotas a
(…)
13ª Entretanto as rendas que se encontravam atrasadas foram pagas pela arrendatária na pessoa do senhor M….
14ª Desde Janeiro de 2018 a Ré nunca mais pagou devidamente as rendas.
15ª De Janeiro a Junho de 2018 a Ré não efectuou pagamento de qualquer renda.
16ª A partir de 27 de Junho de 2018 a Ré efectuou alguns pagamentos parciais no valor [mensal] de € 573,00 nomeadamente os seguintes:
(…)
18ª Em Novembro de 2018 e Janeiro de 2019 a filha do A. enviou cartas para a Ré actualizando o valor da renda nos termos legais. Estas cartas foram devolvidas, tendo a Ré ignorado o aumento em questão (cf. doc. 3).
19ª Apesar dos pagamentos parciais, a Ré encontra-se em incumprimento do pagamento do valor total da renda, uma vez que não procede à retenção na fonte nem procedeu ao pagamento do valor correcto desde Janeiro de 2018.

3 – A Ré contestou alegando:
É certo que a R tem um contrato de arrendamento com o A, mas tal não foi celebrado quando eram sócios da mesma os Sr.s M….
(…) O contrato de arrendamento data de 14 de novembro de 1996 e foi celebrado quando eram sócios as senhoras C…, posteriormente, havido cessão de quotas para os senhores supra identificados, conforme consta do contrato de arrendamento que se junta como doc 1.
4 – Mais alegou na contestação, quanto ao pedido de resolução por falta de pagamento de rendas, que as rendas foram pagas, aduzindo as razões que a levam a assim concluir, sendo devidas apenas pelo montante de € 573,00 e não pelo indicado pelo Autor.
5 – Na contestação consta ainda, a respeito do pagamento das rendas após Janeiro de 2019:
20. Acontece que o A deixou de passar recibos de renda desde inícios do ano de 2019.
(…)
49. [A Ré apresentou uma queixa crime contra a filha do Autor] onde inclusivamente alega que a referida senhora não tem passado recibos de renda.

3. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1. O Autor não indica a data de celebração do arrendamento, indicando a Ré data de 1996.
Considerando essa data, que o Autor não colocou em causa ao deduzir o incidente, o contrato foi celebrado no domínio do regime do Decreto-Lei 321-B/90, de 15 de Outubro (RAU), importando indicar qual a lei aplicável de entre as que se sucederam no tempo. O NRAU estabelece no seu artigo 26.º, n.º 1, que os contratos celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades dos números seguintes, entre as quais nenhuma se aplica ao caso vertente.
É assim aplicável o regime da Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, na redacção vigente à data dos factos em análise, a decorrente da entrada em vigor da Lei 31/2012, de 14 de Agosto (artigo 12.º, n.º 2, II.ª parte do Código Civil).
2. Nos termos do artigo 14.º, do NRAU, na pendência da ação de despejo, as rendas que se forem vencendo devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais, dispondo o n.º 4 que se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos e o n.º 5 que, em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o senhorio pode requerer o despejo imediato.
Estas normas dispõem sobre o incidente de despejo imediato, enxertado em acção de despejo pendente, mediante o qual é facultada ao senhorio a possibilidade de pedir o despejo quando o arrendatário incumpra a obrigação de pagar as rendas vencidas na pendência da acção.
Pretende o legislador obstar à manutenção de uma situação de ocupação do locado sem pagamento de rendas cujo prolongamento decorra da duração do processo de despejo[1].
Esta faculdade foi prevista em diversos regimes que se sucederam no tempo, embora com alterações, sempre obedecendo à mesma razão justificativa.
3. Da literalidade do artigo 14.º, n.º 4, da Lei 6/2006, pareceria resultar que ao Requerido do incidente apenas era admissível defender-se do despejo imediato pagando ou depositando as rendas e comprovando-o nos autos.
Na longa história do incidente no nosso sistema jurídico já se entendeu, aliás, que essa era a única alternativa e que a prova aceitável era meramente documental[2].
Não é essa a interpretação da norma no conjunto do sistema jurídico encimado pela Constituição da República Portuguesa, como já o não era no regime do artigo 58.º do RAU e mesmo do artigo 979.º do Código de Processo Civil, segundo o entendimento maioritário da jurisprudência.
Aliás, o próprio n.º 3 do artigo 14.º, do NRAU, quando conjugado como o n.º 4, impõe se considere o regime geral de pagamento de rendas, excluindo qualquer cominatório autónomo decorrente da notificação que o n.º 4 prevê[3].
No regime do RAU (quanto a tal similar ao actual), foi aliás tirado o acórdão 673/2005, do Tribunal Constitucional[4],  no qual se decidiu que na apreciação da questão o parâmetro constitucional mais pertinente se centra no princípio da proibição da indefesa, que decorre, em primeira linha, do princípio do contraditório, a que se deve subordinar todo o processo, uma vez iniciado, para concluir que pela inconstitucionalidade, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 58.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, na interpretação segundo a qual, mesmo que na acção de despejo persista controvérsia quer quanto à identidade do arrendatário, quer quanto à existência de acordo, diverso do arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida.
Já na vigência do NRAU (na redacção da Lei 31/2012, de 14 de agosto) o Tribunal Constitucional voltou a pronunciar-se sobre questão similar no acórdão 327/2018[5], em idêntico sentido, indicando aliás o sentido interpretativo da norma a seguir no processo, nos termos do disposto no artigo 80.º, n.º 3, da LTC.

Lê-se no aresto:

23. Em concreto, e no que importa para os presentes autos, justificar-se-á proferir uma decisão interpretativa ao abrigo do artigo 80.º, n.º 3 da LTC, nomeadamente «nas situações em que, não obstante se conclua pela inconstitucionalidade do sentido normativo relevante para a decisão da situação sub judice, se verifique que o preceito legal em causa comporta ainda uma outra interpretação (conforme à Constituição), em razão do elemento teleológico da norma em causa e que encontre na sua formulação um mínimo de correspondência verbal (sendo, assim, verdadeira interpretação e não a criação de uma norma para o caso)» (cfr. Acórdão n.º 401/2017).
(…)
25. Pelo exposto, o artigo 14.º, n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, alterado pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, deve, em consonância com o n.º 5 do mesmo artigo, ser interpretado em conformidade com princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição, no sentido de que o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da ação nele previsto não é automático, sendo o seu requerimento livremente apreciado pelo juiz, pelo que, nos casos em que na ação de despejo persista controvérsia quanto a outras questões, que não digam exclusivamente respeito à falta de pagamento de rendas, o réu não está impedido de exercer o contraditório mediante a utilização de outros meios de defesa.

E no dispositivo:

III – Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Interpretar o artigo 14.º, n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, alterado pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, em consonância com o n.º 5 do mesmo artigo, em conformidade com princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4 da Constituição, no sentido de que o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da ação nele previsto não é automático, sendo o seu requerimento livremente apreciado pelo juiz, pelo que, nos casos em que na ação de despejo persista controvérsia quanto à existência ou exigibilidade do próprio dever de pagamento de renda, o réu não deve ser impedido de exercer o contraditório mediante a utilização dos correspondentes meios de defesa.
b) E, em consequência, julgar procedente o presente recurso, ordenando a reforma da decisão recorrida de modo a aplicar o artigo 14.º, n.º 4 da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, com o sentido interpretativo fixado em a).

Não tendo força obrigatória geral, é padrão de decisão, nomeadamente acompanhado pela generalidade da jurisprudência dos tribunais judiciais superiores[6].
Em suma, impõe-se considerar que no presente incidente ao Requerido se devem manter disponíveis outras opções de defesa para além do pagamento ou depósito dos montantes das rendas vencidas na pendência da causa, sem o que se incorreria em situação de violação do princípio da proibição de indefesa.
O incidente implica que a existência e validade do contrato de arrendamento e da obrigação de pagamento das rendas em causa pelo Requerido não sejam objecto de discussão na acção principal.
Temos assim como requisitos de procedência do incidente:
1)não pagamento ou depósito das rendas na sequência da notificação a que alude o artigo 14.º, n.º 4, da Lei 6/2006.
2)pendência de acção de despejo.
3)não pagamento de rendas vencidas na pendência da acção.
4)inexistência de controvérsia, entre os intervenientes processuais na acção principal, quanto à existência e validade do arrendamento.
5)inexistência de controvérsia, entre os intervenientes processuais na acção principal, quanto à obrigação de pagamento das rendas e à mora do devedor.
No caso, o recurso funda-se exactamente na existência de controvérsia, o que cumpre, então apreciar.

4.  O Autor fundou o pedido de despejo imediato (apresentado em 22 de Outubro de 2020) no não pagamento das rendas referentes aos meses de Fevereiro a Outubro de 2020, ambos inclusive. A acção foi instaurada em 11 de Fevereiro de 2020 e contestada em 13 de Março de 2020.
É apodíctico que não foi comprovado o pagamento ou depósito das rendas vencidas a que se refere o requerimento de despejo imediato.
Não oferece dúvida que a acção se encontra pendente, verificando-se assim os dois primeiros requisitos, o que não é controverso nos autos.
5. Fundando-se a acção principal na falta de pagamento de rendas, visto o disposto no artigo 1048.º, n.º 1, do Código Civil, deve entender-se que estão em causa as rendas vencidas após o prazo para a contestação[7], o que exclui as vencidas nos meses de Fevereiro e Março. Mesmo assim sendo, é respeitado o lapso temporal a que alude a norma - período igual ou superior a dois meses – verificando-se o segundo requisito.
6. Nas suas alegações a Recorrente defende que não pode ser considerado assente que as partes concordam quanto à existência e validade do contrato. Adiante-se que não vemos que tenha razão.
Estriba-se a argumentação em estar em causa nos autos a cedência do locado a terceiro mediante cessão de exploração.
Nada tem esse facto a ver com o requisito que se analisa, o qual impõe tão somente que as partes na acção principal concordem em que estão vinculadas entre si por um contrato de arrendamento e que o mesmo se encontra em vigor. O que é o caso dos autos, com a Ré a assumir expressamente na contestação a existência e validade do contrato, como resulta do que supra consta no facto indicado sob 2 e 3.
Não se vê como pode considerar que está impugnada a existência ou validade do arrendamento. Verifica-se também este requisito de procedência.
7. Não foi comprovado o pagamento ou depósito das rendas vencidas, como já dissémos.
No entanto, como resulta do que se expôs antes, é ainda necessário que não exista controvérsia sobre a obrigação de pagamento das rendas ou sobre a mora do arrendatário.
Ao aceitar a existência do contrato, a Ré aceita também a obrigação de pagamento de rendas que decorre do artigo 1038.º, alínea a), do Código Civil.
Mas não basta esta aceitação do dever geral de o inquilino pagar renda, importa saber se é incontroverso que as rendas em que cuja falta de pagamento o incidente se funda eram devidas e se o arrendatário se encontra em mora quanto ao seu pagamento.
Não foi invocado qualquer acordo em sentido contrário ao indicado dever geral, mas a Ré alegou que o Autor deixou de passar recibos desde Janeiro de 2020 (cf. ponto 5 dos factos pertinentes).
Lembremos os exactos termos em que a questão é suscitada na contestação:
20. Acontece que o A deixou de passar recibos de renda desde inícios do ano de 2019. (…) 49. [A Ré apresentou uma queixa crime contra a filha do Autor] onde inclusivamente alega que a referida senhora não tem passado recibos de renda.
Implica esta alegação da contestação da acção principal que a mora do devedor é controversa, por deduzir a Ré a excepção de não cumprimento decorrente de mora do credor?
Nos termos do artigo 787.º, n.º 1, do Código Civil, quem cumpre uma obrigação tem o direito de exigir quitação ao credor, estatuindo o n.º 2 que pode recusar a prestação enquanto a quitação não for dada.
A questão coloca-se então em termos de apreciação da alegação e da sua virtualidade a ser considerada defesa excipiente quanto à mora.
8. Um facto é um acontecimento da vida real necessita desde logo de duas circunstâncias fundamentais para ser narrado/alegado: o tempo e o espaço.
Sendo o facto inexistente sem um outro que o precede, como é o caso, implica ainda a narrativa daqueloutro que é seu pressuposto necessário. Nada disto temos na alegação que se transcreveu, para além da referência ao mês de Janeiro de 2020.
Ou seja, não se encontra alegado o oferecimento da renda e suas circunstâncias de tempo, lugar, modo e quantidade, ou a recusa concreta de emissão de recibo que foi oposta a esse oferecimento.
Ora, apenas a alegação nesses termos era idónea a permitir considerar que se encontrava alegada a legitimidade da recusa da prestação e a inexistência de mora do devedor inquilino, com a consequência de ser esta, a mora, controversa.
Dito de outro modo, a controvérsia que constitui obstáculo à procedência do incidente tem de ser uma controvérsia séria, susceptível de ser apreciada na acção principal.
Reconhecendo-se, como demonstrámos, a enorme relevância de permitir uma defesa quanto ao incidente que não coloque o requerido numa situação de indefesa, impõe-se igualmente reconhecer a necessidade de ponderar os termos desta defesa de modo a não colocar o senhorio, ao invés, numa situação de indefesa. O que o legislador quis justamente salvaguardar com a consagração do instituto do despejo imediato.

É que importa não esquecer o que a respeito foi dito pelo Tribunal Constitucional no acordão 20/2010:
(…) da estrutura complexa que detém o princípio do processo equitativo, consagrado no artigo 20.º da CRP, decorrem, para o legislador ordinário, várias obrigações, para além daquela que se cifra em não lesar o princípio da “proibição da indefesa”. A lei de processo, nos termos da Constituição, não está só obrigada a garantir “um correcto funcionamento das regras do contraditório”, de modo a que “cada uma das partes [possa] deduzir as suas razões (…), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras”. Para além disso, deve o legislador ordinário conformar o processo de modo tal que através dele se possa efectivamente exercer o direito a uma solução jurídica dos conflitos, obtida em tempo razoável e com as todas as garantias de imparcialidade e independência.
Assim, entre os valores da “proibição da indefesa” e do contraditório e os princípios da celeridade processual, da segurança e da paz jurídica existe à partida, e como se disse no Acórdão n.º 508/2002, uma relação de equivalência constitucional: todos estes valores detêm igual relevância e todos eles são constitucionalmente protegidos. Ora, quando vinculado por vários valores constitucionais, díspares entre si pelo conteúdo mas iguais entre si pela relevância, deve o legislador optar por soluções de concordância prática, de tal modo que das suas escolhas não resulte o sacrifício unilateral de nenhum dos valores em conflito, em benefício exclusivo de outro ou de outros.
  
Concordância prática que nos coloca na perspectiva de ponderação recíproca dos direitos não prevalecentes de modo a que cada um deles obtenha o maior nível possível de satisfação.
Exigir a possibilidade de ampla dedução de defesa no incidente tem de ir a par com a exigência de que essa defesa assente numa controvérsia séria que possa ser atendida na acção principal.
Tal não pode sequer considerar-se uma restrição ao direito de defesa do Requerido por cedência ao interesse do Requerente em não ver prolongar-se uma ocupação do locado sem contrapartida. Pelo contrário, tal exigência é a expressão da seriedade da ponderação da defesa e da necessidade de não permitir ao Réu o afastamento do regime do despejo imediato mediante uma vaga impugnação do direito em que o Autor o funda. Vaga impugnação que, aliás, a lei processual civil lhe veda - artigo 574.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.  
Em conclusão, a mera invocação de que o Autor deixou de passar recibos não é idónea a constituir uma controvérsia séria sobre a mora do inquilino quanto ao pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, por não caracterizar facticamente uma situação de mora do devedor passível de ser apreciada na acção principal.
Tal alegação não constituiu obstáculo à procedência do incidente de despejo imediato, improcedendo o recurso, por se encontrar verificado o último requisito que se enunciou.

IV) DECISÃO

Pelo exposto, ACORDAM em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente, com o mínimo de taxa de justiça – artigo 527.º, n.º 2, do CPC.
*

Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC): acima transcrito


Data constante das assinaturas electrónicas 
(Ana de Azeredo Coelho)
(Eduardo Petersen Silva)
(Cristina Neves)


[1] António Pais de Sousa in Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano, Rei dos Livros, 5.ª edição, anotação 1 ao artigo 58.º, que mantém actualidade.
[2] Cf. Miguel Teixeira de Sousa in A acção de despejo, Lex, 1991, p. 64.
[3] É também o que defende Maria Olinda Garcia in Arrendamento Urbano Anotado – regime substantivo e processual (alterações introduzidas pela Lei 31/2012, Coimbra Editora, 3.ª edição, 2014, p. 194.
[4] Que delimita do seguinte modo a questão de constitucionalidade que aprecia: a questão que constitui objecto do presente recurso consiste, assim, na consti­tucionalidade da interpretação do artigo 58.º do RAU segundo a qual, mesmo que na acção de despejo persista controvérsia quer quanto à identidade do arrendatário, quer quanto à existên­cia de acordo, diverso do arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interve­niente processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida.
[5] Que assim delimitou a questão sujeita: o objeto do presente recurso encontra-se circunscrito à interpretação do número 4 do artigo 14.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, segundo a qual se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da ação, o único meio de defesa do réu é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida.
[6] Por todos, o acórdão de 13 de Julho de 2017, proferido no processo 783/16.6T8ALM-A.L1.S1 (Maria da Graça Trigo).
[7] Veja-se sobre a questão Fernando de Gravato Morais in Falta de pagamento da renda no Arrendamento Urbano, Almedina 2010, p. 226.