Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
150/14.6JBLSB-A.L1-9
Relator: CALHEIROS DA GAMA
Descritores: ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA
TRÁFICO DE PESSOAS
PREVENÇÃO CRIMINAL
PRISÃO PREVENTIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/04/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I - O combate de forma integrada ao flagelo do tráfico de seres humanos, enquanto forma de escravatura moderna, quer na referenciação/sinalização, proteção e assistência às vítimas - pessoas especialmente vulneráveis - quer no sancionamento dos traficantes deve ser prioridade de um Estado de Direito democrático, como o nosso.

II - Indicia fortemente a prática dos crimes de associação criminosa e tráfico de seres humanos a manifesta pertença da arguida a um grupo que recrutava pessoas oriundas da Roménia para praticarem furtos em zonas turísticas de Portugal, selecionando os locais onde os indivíduos por eles recrutados iriam cometer os furtos, transportando-os a tais locais, vigiando-os, e providenciando pelo seu alojamento, e quando estes mostravam intenção de não continuarem a delinquir ou os arguidos desconfiavam de que os concidadãos recrutados não lhes estavam entregar a percentagem “devida”, os arguidos infligiam-lhes violentas agressões físicas e ameaças de morte, extensíveis aos respetivos familiares na Roménia, iniciando-se assim um estado de sujeição e de vulnerabilidade por parte daqueles, que os impedia, na prática, de deixar de exercer a atividade por conta dos arguidos.

III - Não é por a arguida ser cidadã estrangeira e ter ligação a outros países europeus, bem como enfrentar a forte possibilidade de vir a ser condenada em pena efetiva de prisão, que se pode retirar, sem mais, o perigo de fuga. Mas já o é quando tais circunstâncias surgem associadas, por um lado, à sua não comprovada atividade e estabilidade laboral em Portugal, e, por outro, ao facto do seu comparsa marido estar desaparecido desde há um mês e terem ter três filhos menores de idade que vivem na Roménia, de onde todos são cidadãos, bem como ter ali o casal um vasto património, que exibe, e para onde, se libertada, a arguida, haverá o necessário apelo a deslocar-se e permanecer, ou, se não o fizer, a ir prosseguir a sua atividade criminosa para outro dos países europeus onde, sazonalmente, também já a esta se dedica.
(sumário elaborado pelo relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1. Nos autos, em fase de inquérito, com o n.º 150/14.6JBLSB, que correm termos no Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa, veio a arguida A..., de nacionalidade romena, titular do Cartão de Identidade n.º X, natural de X, na Roménia, onde nasceu a xx de xx de 1989, filha de Y e Z, casada, empregada de limpeza, residente na Rua W, e atualmente em prisão preventiva no Estabelecimento Prisional de Tires, interpor recurso do despacho proferido, pela Mmª Juíza 2 da 1ª Secção de Instrução Criminal da Instância Central da Comarca de Lisboa, em 30 de setembro de 2015, na sequência do 1º interrogatório, a que alude o art. 141.º do CPP, e pelo qual lhe foi imposta como medida de coação a prisão preventiva.

2. Nas conclusões alega a recorrente que:

"1. O douto despacho recorrido considerou a existência do pressuposto do art.º 160.º n.º 1 alínea a) e b) e 4 do Código Penal (indícios de que a agente actuou como membro de organização criminosa e sendo sua a prática reiterada de crimes
contra o património), quando não tinha elementos de facto suficientes que indiciassem isso mesmo, sendo que as suspeitas das autoridades não podem transformar-se, na ausência de outros elementos mais objetivos, em agravantes qualificativas para a arguida, apenas pelo facto de esta ser cidadã Romena
averbando no seu CRC uma pena de multa.

2. O douto e recorrido despacho violou assim, por mero erro interpretativo, o disposto nos art. 160.º do Código Penal e o disposto no art.º 127.º do CPP.

3. O douto despacho recorrido faz, com o devido respeito, interpretação ou valoração extensiva do art.º 144.° alínea c) do CP, uma vez que não se pondo em causa que o cidadão Romeno V... tenha sido agredido, o certo é que a ora recorrente não participou nessa agressão, como os autos devem dar conta.

4. Tão pouco existe nos autos matéria fáctica que aponte para a existência de fortes indícios da prática, pela recorrente, do crime de ofensa à integridade física qualificada (art.º 144.° do CP).

5. O perigo cominado nas alíneas do mencionado artº 204° do CPP, ("in casu" perigo de fuga ou de continuação da actividade criminosa) não se pode presumir, (atenta, desde logo, a primariedade da recorrente) antes devendo resultar
da condição concreta da arguida ou do eventual posicionamento processual por parte da mesma.

Sem conceder,

6. O douto despacho recorrido violou o disposto no art.º 202.° n.º 1 do CPP o qual não é de aplicação automática. O comando em causa diz que o juiz "pode" impor ao arguido a prisão. Não é obrigado a tal e só a deve ordenar quando se
revelarem inadequadas ou insuficientes quaisquer outras medidas de coacção menos gravosas. O despacho recorrido é inteiramente omisso a esse propósito, apenas valorando a gravidade e a censurabilidade da conduta da arguida e as necessidades de prevenção geral, aliás com recurso a elementos exteriores aos
autos (como esse de a arguida integrar associação criminosa)

7. O douto despacho ora em crise violou, ainda, o comando dos art.º 193.º n.º 2 do CPP, e 28.º n.º 2 da CRP uma vez que a prisão preventiva como medida de coacção reveste natureza residual ou subsidiária, ou seja, apenas a aplicar em "ultima ratio" e, assim, também por imposição constitucional ("maxime" o art.º
28º nº 2 da Lei Fundamental), não devendo nunca ser aplicada por ser de prever que com relação a um simples crime de furto

Violados foram pois os comandos dos art.ºs 193.° n.º 2, 202.° n.º 1 b) e 204 alínea a) e c) do CPP.

Pelo que o despacho ora em crise deverá ser revogado e substituído por outro que, por mais douto e acertado, ordene a restituição à liberdade da recorrente, sujeitando-a a qualquer outra medida cautelar de liberdade provisória (simples ou agravada com regime de apresentações), "maxime" - o que em última instância se
admite, a sujeição à medida mais benévola de prisão domiciliária prevista no art.º 201.° do CPP (OPH/C.V.E), com vigilância electrónica

Assim exercendo Vossas Excelências a melhor e a mais acostumada JUSTIÇA!" (fim de transcrição).

3. Foi proferido despacho judicial admitindo o recurso, como se alcança de fls. 49.

4. Não respondeu o Ministério Público em primeira instância.

5. Subidos os autos, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação apôs o seu visto e emitiu parecer, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso interposto pela arguida A... (cfr. fls. 62/63).

6. Foi cumprido o preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), não tendo havido resposta.

7. Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso.

8. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respetivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403° e 412°, n° 1, do CPP).

As questões suscitadas pelo recorrente, que deverão ser apreciadas por este Tribunal Superior são, em síntese, as seguintes:

- Inexistem nos autos indícios de que a ora recorrente atuou como membro de organização criminosa e de que prática reiteradamente crimes
contra o património;

- Não se pode presumir da existência dos perigos de fuga ou de continuação da atividade criminosa;

- A sujeição da recorrente a medida de coação não detentiva ou à de Obrigação de Permanência na Habitação com sujeição a Vigilância Eletrónica, prevista no art. 201.° do CPP, mostra-se justa, suficiente e adequada;

- Foram violados os princípios consagrados no art. 193.° do CPP e 28.º, n.º 2, da C.R.P., tendo sido a prisão preventiva aplicada, não como "Ultima Ratio", mas sim como primeira e única, ainda que os indícios não sejam conclusivos a qualquer nível.

2. Passemos, pois, ao conhecimento das questões alegadas. Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida, que é do seguinte teor (transcrição):

"Julgo válida a detenção dos arguidos, na sequência de mandados de detenção emitidos por entidade competente para o acto, os quais foram presentes em Tribunal no prazo das 48 horas- cfr- art. 141º, n.º1 e 257º , 258º, todos do Código de Processo Penal e art.º 28º da CRP.

Do teor de declarações prestadas nos autos a fls.15 e ss, 199 e ss, 202, e ss, dos reconhecimentos pessoais de fls.226- 228 e de fls.236-238; das fotografias de fls.26-35; dos documentos clínicos de fls.36-37 e 205-206; do documento de fls. 45-46; e 54-56; do RDE de fls.61; do relatório de análise de fls.138-152; do documento de fls. 166; da cópia auto de notícia de fls.211, dos documentos de fls.216-217; fls.269 e ss; da diligência externa de fls.208; e dos documentos de fls.271 e ss, do teor das declarações dos arguidos, que não merecerem a credibilidade do tribunal, julgam-se fortemente indiciados os seguintes factos:

Em data não concretamente determinada anterior a Novembro de 2014, os arguidos A..., N..., B…, G… juntamente com outros indivíduos, cuja identidade ainda importa apurar, fizeram parte de um grupo que recrutava pessoas oriundas da Roménia para praticarem furtos em zonas turísticas de Portugal, Espanha ou Itália, com o objectivo de obter proventos económicos do exercício de tal actividade.

Os arguidos deslocavam-se frequentemente a vários países da União Europeia, aproveitando as facilidades aplicáveis à entrada, circulação e permanência de cidadãos no Espaço Schengen, fazendo igualmente circular os cidadãos por si recrutados pelo espaço europeu, escolhendo os respectivos destinos de acordo com a época alta de turismo de cada um desse países.

Por vezes, os cidadãos recrutados anuíam num primeiro momento em praticar ilícitos contra o património e dividir os lucros com o grupo formado pelos arguidos, de acordo com a percentagem estipulada por aqueles.

No entanto, caso viessem a mostrar a intenção de largar o grupo, ou os arguidos desconfiassem de que os cidadãos recrutados não estavam entregar a percentagem “devida”, os arguidos infligiam-lhes violentas agressões físicas e ameaças de morte, extensíveis aos respectivos familiares na Roménia, iniciando-se assim um estado de sujeição e de vulnerabilidade por parte daqueles, que os impedia, na prática, de deixar de exercer a actividade por conta dos arguidos .

Os arguidos seleccionavam os locais onde os indivíduos por eles recrutados iriam cometer os furtos, transportando-os a tais locais, vigiando-os, e providenciando pelo seu alojamento.

Era assim comum os arguidos e os restantes suspeitos frequentarem as zonas onde eram praticados os furtos, até porque ali vigiavam a actuação dos indivíduos recrutados. Era também frequente revistarem os carteiristas que actuavam por conta da organização, a fim de garantir que todas as somas “devidas” lhes eram entregues.

Por este motivo foi possível à PSP identificá-los em inúmeras ocasiões (cfr. fls.139-152), junto de locais onde se verificaram suspeitas furtos (tentados ou consumados).

Relativamente à actividade delituosa contra o património exercida em Portugal, mormente em Lisboa, os arguidos definiram zonas territoriais onde só eles podiam “operar”, tais como a Avenida da Liberdade, o Bairro Alto e a Rua Costa do Castelo, “punindo” com severidade e violência, quem achassem que havia desrespeitado tal regra.

- Do recrutamento de E...:

Chegou a Portugal em Julho/Agosto de 2014, após ter conhecido A... na Roménia. Ao saber que E... ultrapassava sérias dificuldades económicas, pois que havia recorrido a empréstimos junto dos arguidos, para fazer face às suas dificuldades, a arguida A... propôs-lhe que viesse para o nosso país, a fim de que aqui praticasse furtos por conta da organização, tendo aquela aceitado.

A sua viagem foi paga pela arguida, tendo ficado alojada na Pensão X, situada na Avenida X, em Lisboa, onde se encontravam cerca de 30 homens e mulheres romenas que como ela, trabalhavam como carteiristas por conta da organização formada pelos arguidos.

Sob as indicações de A... e B…, (marido desta última), começou praticar furtos em várias zonas turísticas de Lisboa.

Tais zonas eram-lhes designadas por A..., que fazia passagens regulares nesses locais, para garantir que não havia problemas, e recolhia o dinheiro e valores provenientes dos furtos.

A determinada altura, E... quis desvincular-se do compromisso havido com os arguidos, deixando de lhe dar o dinheiro proveniente dos furtos.

Passou assim a ser por eles perseguida, e que cada vez que a viam nas ruas de Lisboa batiam- lhe, retirando-lhe todo o dinheiro que tinha consigo.

No dia 02 de Novembro de 2014, cerca das 18h50m, quando se encontrava na zona das esplanadas da Avenida da Liberdade em Lisboa, foi abordada pela arguida A... e B…, que estavam acompanhados por outro individuo de nacionalidade romena, que lhe exigiram a quantia de € 15.000 (quinze mil euros) pelo facto de ter manifestado vontade em abandonar o grupo de carteiristas onde estava integrada.

Uma vez que esta afirmou não possuir tal quantia, todos os indivíduos começaram a agredi-la, desferindo-lhe socos e pontapés por todo o corpo (factos que deram origem ao NUIPC 1096/14.3 PFLSB).

Na sequência de tais agressões, E... recebeu tratamento hospitalar, no Centro Hospitalar de Lisboa Central E.P.E., apresentando equimoses na zona da grelha costal (fls. 36 e 37).

No dia 04 de Novembro de 2014, cerca das 15h00, E… encontrava-se junto ao Castelo de São Jorge em Lisboa, quando foi abordada por B…, A... e um indivíduo de nacionalidade romena, de nome G…..

De imediato A..., puxou-a pelos cabelos e projectou-a contra uma parede, fazendo-a bater com a cabeça.

No seguimento destes acontecimentos, E… fugiu de Lisboa, destruiu o seu cartão de telemóvel para não ser contactada pelos arguidos, e refugiou-se na cidade do Porto, tendo entretanto viajado para Roménia, por medo do que lhe pudesse vir a acontecer.

- Da situação de V...:

V... é um cidadão de nacionalidade romena, que se encontra a residir em Portugal.

Sabendo que o mesmo teria por hábito dedicar-se à prática de furtos e objectos de valor a turistas em zonas movimentadas da cidade de Lisboa, os suspeitos B...e G..., acompanhados pelo arguido N..., contactaram-no há cerca de um mês, exigindo-lhe que parte do produto dos furtos por ele praticados lhes fosse entregue, passando assim V... a trabalhar para a organização.

Uma vez que o mesmo recusou tal hipótese, o arguido N... e o suspeitos supra mencionados, decidiram empregar a violência física como retaliação de tal recusa .

Assim, no dia 27 de Setembro de 2015, cerca das 21h30m N..., B...e G... (conhecido por R…) e outros dois cidadãos romenos cuja identidade não foi possível apurar, abordaram V... que circulava na Avenida da Liberdade, em Lisboa.

Subitamente, agarraram V..., atingindo-o a soco e a pontapé no tronco e na face, tendo-o igualmente atingido com uma mochila/ saco que continha pedras ou pesos.

De seguida, um dos indivíduos partiu uma garrafa que trazia na mão, e desferiu-lhe dois golpes na zona do pulso direito, com enorme violência.

Tal conduta causou uma dor atroz e hemorragia abundante a V..., que caiu no solo, semi-inconsciente, tendo continuado a ser atingido fisicamente pelos cinco indivíduos.

Na sequência destas agressões, o ofendido necessitou de receber tratamento hospitalar.

Como consequência directa das agressões resultaram-lhe “ferida supraciliar, escoriações e edema da hemiface direita”.

Dos cortes infligidos no pulso da vítima, que atingiram o tendão, resultou “secção total dos extensores de DIII e parcial de DII e DV em zona 9”(cfr. nota de Alta do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental de fls. 205 e 206), tendo sido verbalmente adiantado que a probabilidade de voltar ter mobilidade na mão direita seria de menos de 20% .

Os arguidos decidiram fazer parte de um grupo organizado e estável no tempo, cujo objecto era o de obter lucros económicos, mediante a prática de ilícitos contra o património por parte de outros indivíduos recrutados pelos primeiros.

Os arguidos conheciam as actividades desenvolvidas pela organização, considerando como suas as acções levadas a cabo por cada um dos seus membros.

Os arguidos igualmente tinham perfeito conhecimento e aceitavam a utilização da força física contra aqueles que recrutavam para efectuar furtos, bem como aceitavam a sua atemorização e intimidação para assim os impedir de fugir e para os obrigar a obedecer a todas as suas instruções, ou a desenvolver as actividades delituosas que pretendiam, mantendo-as numa situação submissão.

No dia de ontem, deram entrada nos serviços do Ministério Público duas declarações assinadas, alegadamente, por E... e V..., manifestando a “livre” vontade de “desistir” das “queixas” (documentos de fls.271 e ss, que se dão por integralmente reproduzidos).

A arguida A... bem sabia que as somas monetárias exigidas a E... não eram devidas, tendo participado das agressões que lhe foram infligidas no sentido de obter tais quantias.

O arguido N... agiu com a intenção concretizada de causar lesões permanentes na integridade física de V..., sabendo que os meios utilizados causariam, como causaram, dor insuportável e atroz.

Ambos os arguidos agiram livre e conscientemente, bem sabendo que a sua actuação lhes era vedada e reprovável por lei.

                                             ***

Tais factos, resultam da análise critica e conjunta daquilo que os arguidos sobre si próprios declararam quanto ao seu modo de vida, conjugado com os elementos que já constavam dos autos.

Com efeito, a arguida A… afirmou viver em Portugal há cinco anos. Ter recentemente emprego estável como empregada doméstica em domicílios cuja morada não é capaz de reproduzir. Nestes cinco anos, teve três filhos que vivem na Roménia, com a mãe da arguida. O seu marido B…, alegadamente ausente, desde há um mês, não tem qualquer outra actividade de angariação de sustento conhecida, que não aquela que lhe foi descrita pelo arguido N..., isto é, carteirista.

Por seu turno, o arguido N…, declarou-se carteirista em Portugal desde Março de 2015. Com esta actividade, sustentando os filhos na Roménia, a actual companheira em Portugal, que se dedica à venda de flores desde há quinze dias, e a mãe que tem um negócio de importação de lençóis de Itália.

Ora, como certo, porque confessado, temos que os arguidos apresentados em juízo e os seus familiares directos (no que concerne à arguida A...), se dedicam apenas à actividade criminosa em território português.

Resulta dos autos, e compagina-se, aliás, com a descrição feita pela arguida, mobilidade que lhe é reconhecida pelas autoridades policiais, em vários países europeus e em particular com a frequência com que se desloca à Roménia, o que é pouco compatível com a disponibilidade económica de alguém que vive em território português, no limiar da sobrevivência, fazendo trabalhos de empregada domestica e auferindo dos rendimentos que porventura o seu marido obtém, alegadamente, como carteirista.

Assim, tudo aponta que os arguidos estão num patamar superior da actividade criminosa, não sendo os meros delinquentes de furtos, mas sim aqueles que auferem o grosso dos rendimentos dessa actividade criminosa.

 Este enquadramento de fundo impede que os actos criminosos que deram origem aos presentes autos, sejam meramente qualificados como ofensas à integridade física, simples ou qualificadas.

Com efeito, as agressões aqui sob investigação, não são agressões motivadas por ciúmes passionais ou pelo desejo de proteger alguém que provem da mesma terra. Tem manifestamente um objectivo muito concreto, que é, o de coagir terceiros a manterem actividades criminosas de modo a que os arguidos possam auferir dos proventos nelas conseguidos.

Sempre se adianta que, não existe nos autos a mais pálida sustentação das versões trazidas aos autos nestes interrogatórios judiciais pelos arguidos. Nem se alegue que estamos perante meras versões contraditórias dos factos, pois, para além das versões resultantes das declarações de quem apresentou queixa, existem também declarações de terceiros e registos clínicos dos ofendidos que permitem concluir pela veracidade ou não das versões que cada um dos intervenientes processuais foi trazendo à investigação.

É de enorme importância as declarações de desistência de queixa prontamente apresentadas pelos lesionados logo após a detenção dos arguidos, sendo particularmente impressionante que alguém que fica, sabendo disso, com um grau de probabilidade de imobilização de uma mão na ordem dos 80% por lhe terem seccionado os tendões deste membro, esteja pronto, três dias depois, a desistir de qualquer queixa contra especificas pessoas que identifica.

Se outros indícios não existissem da coacção exercida sobre as vítimas, seria difícil não atentar neste fortíssimo indício. Contudo, não é apenas dele que se retira a perigosidade da actuação dos arguidos e a sua elevada danosidade social.

Não pode também deixar o tribunal de atentar que, o perigo de continuação da actividade criminosa que é manifesto, não se circunscreve a ameaçar carteiristas “importados da Roménia”, e a extorquir-lhes os proventos dos furtos ou obrigá-los a manter tal actividade, pois, mesmo que os arguidos estivessem porventura a dizer a verdade (e fossem estes os carteiristas), mantê-los em convivência com a restante população da cidade de Lisboa, seria o mesmo que sancionar a continuação da sua actividade, criminosa, confessadamente de carteiristas, como meio habitual de vida, crime igualmente previsto no art. 204º , n.º1, al. h) do Código Penal.

Deste modo, entende o tribunal que os arguidos A... e N..., se encontram indiciados, em co-autoria com os suspeitos G..., também conhecido por R…, e B...pela prática de um crime de associação criminosa, p.p. pelo artº 299º, nº 2 , pelo crime de tráfico de pessoas, p. e p. no art 160º nº1 al. a), nº4 al. b) e al. d), em concurso (admite-se que aparente) com o crime de extorsão, p. e p. no art.º 223º nº1 e nº3 al. a) com referência ao art.º 204º nº2 al. g), (em relação a E...), e crime de ofensas à integridade física qualificadas, p. e p. no art.º 144 al. c) e 145º nº1 al. b) e nº 2 com referência ao art. 132º nº2 al. d), (em relação a V... ), e todos do Código Penal.

Relativamente ao perigo de continuação da actividade criminosa, em sede de apreciação de indícios foram já despendidas considerações quanto ao evidente perigo de continuação da actividade criminosa, relativamente às duas vítimas já identificadas e ainda a terceiros, objecto de investigação. Com efeito, não tendo os arguidos outro modo de vida, é de supor que persistam na actividade económica que tem vindo a ser o seu sustento e o dos seus familiares, fazendo através da exploração de outros seus conterrâneos ou até de modo directo.

Não é de pouco relevo o perigo de fuga, pois, os arguidos movem-se com facilidade, têm familiares no seu país de origem e a Portugal não têm ligação que não seja a que emerge daqui se dedicarem à prática de actividade ilícitas, pelo que depois de detectados pelas autoridades policiais e maniatados na sua actividade pelas mesmas, nada os retém neste país.

 Por fim, também é de relevo o perigo de perturbação do inquérito e de preservação da prova, sendo disso como já se disse exemplo, as declarações de desistência de queixa apresentadas.

Deste modo, mostram-se verificados todos os pressupostos do art. 204º do C.P.P., sendo que nem a mera permanência na habitação, sujeita a vigilância electrónica, os impediria de através de terceiros continuarem a exercer pressão sob as vítimas e demais testemunhas

Deste modo, não se mostra possível satisfazer as exigências cautelares que a situação sobre apreciação exige com qualquer outra medida que não seja a mais gravosa do ordenamento processual penal, isto é, a medida de prisão preventiva, medida esta que se mostra ainda proporcional à pena que previsivelmente venha a ser aplicada aos arguidos, salientando-se que, inclusivamente, a arguida A... tem já antecedentes criminais.

Tudo ponderado, entende-se que a única medida ajustada, proporcional e apta a acautelar os aludidos perigos é a medida de coacção de prisão preventiva.

Assim, nos termos das disposições conjugadas dos artºs. 193º, 194º, 196º, 202º, nº 1, als. a) e d) e 204º, als. a), b) e c), todos do C.P.P., determino que os arguidos aguardem os ulteriores termos do processo em prisão preventiva.

Passe mandados de condução ao E.P.

Cumpra-se o disposto no art.º 194 n.º 10 do CPP.

Fixo os honorários ao Sr. Interprete em 2 UC’s.

Notifique.

Oportunamente remeta os autos ao DIAP" (fim de transcrição).

3. Vejamos se assiste razão à recorrente.


3.1. De todo o acabado de transcrever, verificamos que, na forma, o despacho recorrido não contém qualquer irregularidade — encontra-se claro e conciso, devida e amplamente fundamentado, aplicando corretamente os factos à lei, e o raciocínio no mesmo plasmado revela-se perfeitamente cristalino e clarividente para qualquer destinatário normal e médio, que é o suposto ser querido pela ordem jurídica, não merecendo qualquer dúvida de interpretação, não sendo, em consequência, merecedor, nesta parte, de crítica.
Quanto à substância do despacho, diremos que, da prova produzida, resultam indubitavelmente fortes indícios da prática dos factos, acima transcritos e que aqui se dão de novo por reproduzidos, por parte da recorrente A....

Com efeito, tudo aponta para que, do "teor de declarações prestadas nos autos a fls.15 e ss, 199 e ss, 202, e ss, dos reconhecimentos pessoais de fls. 226-228 e de fls. 236-238; das fotografias de fls.26-35; dos documentos clínicos de fls. 36-37 e 205-206; do documento de fls. 45-46 e 54-56; do RDE de fls.61; do relatório de análise de fls.138-152; do documento de fls. 166; da cópia auto de notícia de fls.211, dos documentos de fls.216-217; fls.269 e ss; da diligência externa de fls.208; e dos documentos de fls.271 e ss, e do teor das declarações dos arguidos, que não merecerem a credibilidade do tribunal", se pode extrair, inequivocamente e entre outra factualidade, que desde data não concretamente determinada anterior a novembro de 2014 e até
à sua detenção no final de setembro de 2015, a arguida A..., juntamente com seu marido B…, ambos cidadãos romenos, bem como com G... e  P… mulher deste (ambos seus cunhados [G…, também conhecido por R…, será irmão de B…]), N... e outros indivíduos, cuja identidade ainda importa apurar, fez parte de um grupo que recrutava pessoas oriundas da Roménia para praticarem furtos em zonas turísticas de Portugal, Espanha ou Itália, com o objetivo de obter proventos económicos do exercício de tal atividade. Para tanto, A... e os demais elementos do referido grupo deslocavam-se frequentemente a vários países da União Europeia, aproveitando as facilidades aplicáveis à entrada, circulação e permanência de cidadãos no Espaço Schengen, fazendo igualmente circular os cidadãos por si recrutados pelo espaço europeu, escolhendo os respetivos destinos de acordo com a época alta de turismo de cada um desse países. Por vezes, os cidadãos recrutados anuíam num primeiro momento em praticar ilícitos contra o património e dividir os lucros com o dito grupo, de acordo com a percentagem estipulada pelos seus responsáveis. No entanto, caso viessem a mostrar a intenção de largar o grupo, ou os elementos cabecilhas deste, em que se contava a ora recorrente A... (a testemunha I… define-a como líder - vd. inquirição de fls. 17 a 19), desconfiassem de que os cidadãos recrutados não estavam a entregar a percentagem “devida”, aqueles infligiam-lhes violentas agressões físicas e ameaças de morte, extensíveis aos respetivos familiares na Roménia, iniciando-se assim um estado de sujeição e de vulnerabilidade por parte daqueles, que os impedia, na prática, de deixar de exercer a atividade por conta da arguida A... e dos seus comparsas. A arguida, ora recorrente, e os seus mencionados comparsas selecionavam os locais onde os indivíduos por eles recrutados iriam cometer os furtos, transportando-os a tais locais, vigiando-os, e providenciando pelo seu alojamento. Nesse contexto os responsáveis do grupo, em que se contava a arguida A... frequentavam as zonas onde eram praticados os furtos, até para
in loco vigiarem a atuação dos indivíduos recrutados. Era também frequente revistarem os carteiristas que actuavam por conta da organização, a fim de garantir que todas as somas “devidas” lhes eram entregues. A arguida A... igualmente tinha perfeito conhecimento e aceitava a utilização da força física contra aqueles que o grupo recrutava para efetuar furtos, bem como aceitava a sua atemorização e intimidação para assim os impedir de fugir e para os obrigar a obedecer a todas as suas instruções, ou a desenvolver as atividades delituosas que pretendiam, mantendo-os numa situação submissão. Assim sucedeu relativamente a E... e a V... conforme supra descrito de modo detalhado quanto às circunstâncias de tempo, lugar e modo, sendo de referir que a cidadã romena E... explicitou que quando chegou a Portugal em julho/agosto de 2014, recrutada na Roménia pela arguida A... e em viagem até Portugal paga pela ora recorrente, ficou alojada na Pensão X, sita na Avenida X em Lisboa, onde se encontravam cerca de 30 homens e mulheres romenas que como ela, trabalhavam como carteiristas por conta da organização formada e coliderada pela arguida A....

Estão, assim, reunidos nos autos fortes indícios da prática pela ora recorrente A..., na forma consumada e em coautoria material, nomeadamente com o arguido N... e com os suspeitos B...e G.../"R…", seus (da ora recorrente) marido e cunhado, dos acima apontados crimes de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299.º, n.º 2, e  tráfico de pessoas, p. e p. no art 160.º, nºs 1 al. a), e 4, alíneas b) e d), em concurso (porventura aparente) com o crime de extorsão, p. e p. no art. 223.º, nºs 1 e 3, al. a), com referência ao art. 204.º, nº 2, al. g), e com o crime de ofensas à integridade física qualificadas, p. e p. nos art.s 144.º, al. c), e 145.º, n.ºs 1, al. b), e 2, com referência ao art. 132.º, n.º 2, al. d), todos do Código Penal, mostrando-se o despacho recorrido devidamente fundamentado, nele se individualizando a conduta de cada um dos arguidos e suspeitos, em particular, que é isso que ora releva, a conduta da arguida A....

Importa ainda a este respeito lembrar que não regulando a lei, ao invés do que faz para o ato decisório por excelência - a sentença - , os requisitos o que deve obedecer a fundamentação do despacho recorrido, cremos ser suficiente a fórmula adotada na decisão sub judice, através do qual, ponderados os motivos de facto e de direito, se possa concluir que a entidade decisora não atuou discricionariamente.

Atento o teor do despacho recorrido, acima transcrito, afigura-se-nos encontrar-se o mesmo devidamente fundamentado, em obediência ao comando dos art.s 97.º, n.ºs 1, alínea b) e 5, do C.P.P. e 374.º, n.º 2 do mesmo diploma e 205.°, n.º 1, da C.R.P., levando a decisão recorrida em consideração todos os pertinentes factos.

Ora, no caso, como se disse já, temos por seguro que o despacho se mostra devidamente fundamentado, não padecendo de qualquer falta de fundamentação e que conheceu das questões que se lhe impunha conhecer, não padecendo da qualquer insuficiência nem nele se vislumbrando existir qualquer contradição entre os seus fundamentos. O que acontece é que a recorrente A... discorda do decidido. Mas essa é outra questão.

Assim sendo, sem necessidade de quaisquer outros considerandos, improcede o recurso neste seu segmento.

3.2. Foi a arguida, ora recorrente, A... presa preventivamente por se verificar, por um lado, estar incursa na prática dos assinalados crimes, relevando os de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299.º, n.º 2, e o de tráfico de pessoas, p. e p. no art 160.º, nºs 1 al. a), e 4, alíneas b) e d), ambos do CP, e, por outro lado, por, simultaneamente, se verificarem os perigos, mencionados na decisão recorrida, de fuga, de perturbação do inquérito e de continuação da atividade criminosa (art. 204.°, alíneas a), b) e c), do CPP).

Quanto ao perigo de fuga diremos que não é por A... ser cidadã estrangeira, in casu romena, logo comunitária, e por ter ligação a outros países europeus, que se pode, sem mais retirar, tal perigo de fuga.

Mas já o é, por um lado, a sua invocada situação familiar porquanto alega [embora sem o comprovar com as competentes certidões dos respetivos assentos de nascimento, mas tão só com a foto que junta com o recurso como doc. 1 - consta a fls. 9 -, onde se vêm três crianças, com a legenda - na folha de suporte - "OS TRÊS FILHOS MENORES DA ARGUIDA (FOTO TIRADA NA ROMÉNIA")] ter três filhos pequenos que vivem na Roménia, para onde, se libertada, haverá o necessário apelo a deslocar-se e permanecer. Ou, se não o fizer, a ir prosseguir a sua atividade criminosa para outro dos países onde sazonalmente já o faz, caso de Espanha e Itália. E, por outro lado, a sua não comprovada atividade e estabilidade laboral em Portugal enquanto empregada de limpeza. É de facto estranho afirmar ser empregada doméstica em domicílios cuja morada não é capaz de indicar, apenas os situando em Carcavelos e Cascais.

É certo que também não se pode considerar existir perigo de fuga só porque a arguida enfrenta a forte possibilidade de vir a ser condenada em pena efetiva de prisão, assim tentando eximir-se à ação da justiça.

No entanto, quando às supra mencionadas circunstâncias de risco de pena elevada (prisão de um a cinco anos para o crime de associação criminosa e prisão de quatro anos a treze anos e quatro meses para o crime de tráfico de pessoas) se soma a fácil mobilidade transnacional concomitante com ligações a países estrangeiros, que tem utilizado na sua atividade delituosa, e acresce a ausência de trabalho estável em Portugal, onde diz encontrar-se há cinco anos, e o facto pessoal de ser romena, do marido, seu comparsa, estar desaparecido e terem todos os seus três filhos menores, que diz ter dado à luz nos últimos cinco anos, a viver na Roménia, tal perigo de fuga torna-se real e notório. Tanto mais que vive arguida A... alegadamente em território português no limiar da sobrevivência, fazendo trabalhos de empregada de limpeza,  enquanto que, na Roménia, de onde é natural, cidadã e onde se desloca com frequência, ao que parece, terá e exibe "um vasto património, com grandes casas e carros de alta cilindrada" (cfr. fls. 18/19).

Sendo que o perigo de fuga tanto pode ser  entendido em, sentido estrito, como o abandono precipitado de um local, como, em sentido amplo, associado ao incumprimento das obrigações de disponibilidade de comparência que decorrem da sujeição ao TIR e/ou a apresentações à autoridade policial.

O perigo de continuação da atividade criminosa também é patente quer face às concretas condições pessoais da recorrente quer perante à própria natureza dos crimes em causa, que são potenciadores de lucros fáceis e elevados. Isso mesmo se reconheceu na decisão recorrida quando ali, e mui doutamente, se expendeu: "Não pode também deixar o tribunal de atentar que, o perigo de continuação da actividade criminosa que é manifesto, não se circunscreve a ameaçar carteiristas “importados da Roménia”, e a extorquir-lhes os proventos dos furtos ou obrigá-los a manter tal actividade, pois, mesmo que os arguidos estivessem porventura a dizer a verdade (e fossem estes os carteiristas), mantê-los em convivência com a restante população da cidade de Lisboa, seria o mesmo que sancionar a continuação da sua actividade, criminosa, confessadamente de carteiristas, como meio habitual de vida".

A este propósito dos perigos existentes, lembraremos, finalmente, neste tribunal ad quem, que o inquérito não atingiu ainda o seu termo, sendo que a liberdade da arguida A... seguramente pode pôr em causa quer, por um lado, a aquisição de meios de prova quer, por outro, a manutenção dos já carreados para aos autos. Na verdade é de inferir que a arguida abordaria ou tentaria contactar (pelo menos) outras pessoas, ainda que sujeita à correspondente proibição, mormente dos ofendidos, que já anteriormente atemorizava, intimidava e mantinha numa situação submissão, no sentido de conseguir trazer aos autos uma versão que a ilibasse.

A demonstrá-lo está desde já nos autos a circunstância de na véspera do primeiro interrogatório judicial, a que alude o art. 141.º do CPP, a que nos autos foi sujeita a arguida A... em 30 de setembro de 2015, no final do qual foi proferido o despacho ora recorrido que lhe aplicou a medida de coação a prisão preventiva, terem dado entrada nos serviços do Ministério Público duas declarações assinadas, alegadamente, por E... e V..., manifestando a “livre” vontade de “desistir” das “queixas”, o que não faz qualquer sentido perante seus anteriores depoimentos, mormente o prestado pela E... à PJ que consta de fls. 12 a 14 dos presentes autos de recurso e do produzido por V... ao mesmo OPC e que consta de fls. 20 a 22 deste mesmo apenso. Note-se que tal inquirição de V... ocorreu a 28 de setembro de 2015, logo um dia antes de pretensa desistência de queixa. Então porque logo ali não a formalizou ou referiu pretender fazê-lo?

A explicação é dada a nosso ver pelo Ministério Público quando a fls. 29 (fls. 297 do processo principal e lido pela Mmª JIC no início do primeiro interrogatório de A...) se consignou: "o nível de violência física e psicológica exercido pela organização é tal que, menos de 24 horas depois dos arguidos terem sido detidos, deram entrada neste DIAP duas declarações subscritas por duas das vítimas de agressões físicas, manifestando a “livre” vontade de “desistir” das “queixas” (cfr. fls. 271 e ss)."

Tal é também reconhecido na decisão recorrida quando ali, e bem, se expendeu: "É de enorme importância as declarações de desistência de queixa prontamente apresentadas pelos lesionados logo após a detenção dos arguidos, sendo particularmente impressionante que alguém que fica, sabendo disso, com um grau de probabilidade de imobilização de uma mão na ordem dos 80% por lhe terem seccionado os tendões deste membro, esteja pronto, três dias depois, a desistir de qualquer queixa contra específicas pessoas que identifica. Se outros indícios não existissem da coacção exercida sobre as vítimas, seria difícil não atentar neste fortíssimo indício.".

Destarte, igualmente improcede o recurso nestoutro seu segmento.

3.3. No recurso, ora em apreço, a arguida A... questiona também ser excessiva a medida de coação de prisão preventiva, pugnando que a mesma deverá ser substituída por medidas não detentivas ou então, no máximo, pela prevista no art. 201.° do CPP -  Obrigação de Permanência na Habitação sujeito a Vigilância Electrónica -, que entende mostrar-se mais justa, suficiente e adequada in casu

Assim  sendo, apreciemos se é de, alternativamente, lhe ser  aplicada, como defende, algumas das propostas medidas de coação não detentivas ou a medida de obrigação de permanência na habitação, nomeadamente com fiscalização eletrónica, e se se justifica a manutenção da prisão preventiva.
É sabido que a prisão preventiva tem natureza excecional e que não deve ser decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei, como consagra o art. 28.°, n.° 2 da CRP.
E é lógico que se acentue a validade desse mesmo princípio quando está em causa o coartar da liberdade a alguém com todo o rol de consabidos inconvenientes.
Este princípio constitucional tem, de resto, um desdobramento naqueles outros que estão consagrados no CPP, como os da proporcionalidade, da adequação, da subsidiariedade (art. 191.° n.°s 1 e 2) e da necessidade (art. 204.º).
A preservação da liberdade tem de ser articulada "em binómio, com a segurança e a repressão do crime".

Como vimos, existem nos autos fortes indícios da prática pela arguida A..., em coautoria material e na forma consumada, dos crimes de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299.º, n.º 2, e  tráfico de pessoas, p. e p. no art 160.º, nºs 1 al. a), e 4, alíneas b) e d), em concurso (porventura aparente) com crimes de extorsão e de ofensas à integridade física qualificadas, praticados nas circunstâncias nele descritas, aqui se dando o mesmo, nesse segmento, por integralmente de novo reproduzido (vd. transcrição supra).
Dito isto, avancemos.

No caso concreto, já o reconhecemos, existem, nomeadamente, os  perigos de fuga, de continuação da atividade criminosa e de perturbação do inquérito – art. 204.° do CPP –, como consta da decisão que submeteu A... à medida de prisão preventiva e de toda a prova já recolhida no inquérito, o que resulta não só das concretas condições pessoais da recorrente A... e personalidade manifestada mas também da própria natureza dos crimes, os quais são potenciadores de lucros fáceis e elevados.
Refira-se ainda que a gravidade dos factos indiciados interessa, não só no âmbito da aplicação das medidas de coação em geral — que terão necessariamente que obedecer ao princípio constitucional da adequação e proporcionalidade — mas em particular à medida de prisão preventiva, indicada por lei como de carácter excecional ou subsidiário (vd. art. 18.° e 28.° n.° 2, da CRP e 193.° n.° 2 e 196.° e segs. do CPP, bem como "As medidas de Coação  e de Garantia Patrimonial no Novo Código de Processo Penal", José António Barreiros).

Nos termos do art. 27.° da CRP, todos têm direito à liberdade e à segurança, excetuando-se deste princípio, a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar..
A prisão preventiva, por ser a mais gravosa das medidas de coação  constitui a "ultima ratio", dependendo a sua aplicação, da inadequação ou insuficiência, em concreto, das restantes medidas de coação  previstas na lei, sendo necessário que tal aplicação seja feita em função de exigências processuais de natureza cautelar (vd art. 193.° do CPP).
O carácter excecional da prisão preventiva tem consagração constitucional no art. 28.° da CRP. E os princípios que regem a sua aplicação são uma emanação do princípio jurídico-constitucional da presunção de inocência constante no art. 32.°, n.° 2, da CRP.
Assim, se considerar inadequadas ou insuficientes as medidas de coação de liberdade provisória, desde o simples TIR, passando pela caução, obrigação de apresentação periódica, suspensão do exercício de funções, de profissão e de direitos, proibição de permanência, de ausência e de contactos e obrigação de permanência na habitação com ou sem vigilância eletrónica (quando esta for possível) — art.s 196.°, 197.º 198.°, 199.°, 200.º e 201.º do CPP. - o juiz "pode impor" a prisão preventiva (reconhecendo-se assistir razão à recorrente quando alega não ser a prisão preventiva de aplicação automática) desde que:
- existam fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos (art. 202.°, n.° 1, al. a) do CPP, na redação dada pela Lei 48/2007 de 29 de Agosto) [caso do crime de tráfico de pessoas imputado à arguida A...] ou três anos (art. 202.°, n.° 1, alíneas c) a e) do CPP) [caso do crime doloso de ofensa à integridade física qualificada imputado à arguida A..., previsto na alínea d)], ou, independentemente do quantum da pena abstrata, houver fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta ou ainda se se tratar de pessoa que tiver penetrado ou permaneça irregularmente em território nacional, ou contra a qual estiver em curso processo de extradição ou de expulsão (art. 202.°, n.° 1, alíneas b)  e f) do CPP).
- e se verifiquem singular ou cumulativamente os requisitos do art. 204.° do CPP: - fuga ou perigo de fuga; perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da atividade criminosa (art. 204°, alíneas a), b) e c), do CPP). Perigos que, como vimos, se verificam todos relativamente à arguida A....

No que concerne ao primeiro dos enunciados requisitos, a lei exige a verificação de fortes indícios, ao contrário do que acontece em várias outras situações, em que se aplicam preceitos onde se fala de "indícios suficientes". Significando fortes indícios, um conjunto de elementos que relacionados e conjugados persuadem da culpabilidade do agente, fazendo ressaltar a convicção de que o arguido virá a ser condenado pela prática dos ilícitos típicos por que foi indiciado.

Ora, o art. 213.° do CPP, que impõe que durante a execução da prisão preventiva o juiz reexamine os pressupostos em que tal medida se estriba, constitui uma válvula de segurança do sistema pois obriga que periodicamente o juiz analise todos os elementos constantes dos autos que estão na base da privação da liberdade. Devendo sempre e a qualquer momento revogá-la quando se verificar: ter sido aplicada fora das hipóteses ou das condições previstas na lei; ou terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação. E, quando ocorrer uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação dessa medida, caso em que terá de a substituir por outra medida menos gravosa (art. 212.° do CPP).
A prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção, nos termos do art. 127.° do CPP. Este princípio, não pode deixar de ser considerado na formulação de juízos que ao longo do processo alicerçam decisões como a da privação liberdade, em função de exigências de natureza cautelar.
Apesar de a prisão preventiva ser uma medida de coação de aplicação excecional e residual, ela é a única adequada ao presente caso, tendo em conta as elevadas exigências cautelares que ressaltam dos autos (art.s 191.° a 196.º, 202.º, n.° 1, alíneas a) e d), 204.° alíneas a), b) e c) do Código de Processo Penal, e 28.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa).
Os factos imputados à recorrente revestem enorme gravidade tendo em consideração o modus operandi,  a sua duração temporal, o número de lesados por furtos e de imigrantes subjugados e ofendidos na sua liberdade física, capacidade de livre determinação na sua integridade psicológica e corporal  em causa e as consequências nefastas que tal atividade tem para todos aqueles visados, demais membros da comunidade e para o próprio Estado Português, cujo orçamento é em parte significativa alimentado pelas receitas geradas pelo turismo (a rondarem os dez mil milhões de euros/ano), o qual se pretende continue a gozar de boa reputação enquanto destino internacional de excelência, em que, a par das vertentes de oferta hoteleira, paisagística, cultural, gastronómica, de transportes, entretenimento e outras, não é despicienda a ligada à segurança das pessoas e ao seu direito a não serem alvo de furtos quando se encontram em viagem de férias no território nacional, in casu na cidade de Lisboa, que só em 2013 teve mais de dez milhões de dormidas e em 2014 liderou o crescimento turístico a nível nacional e europeu.
Comportamentos como o da arguida, manifestamente violadores de direitos humanos, devem não só ser criminalmente investigados, perseguidos e punidos, como prevenidos e tempestivamente conhecidos, intervindo-se e protegendo-se desde as fases mais precoces evitando-se a sua continuidade e reiteração.
Importa ainda não olvidar que o tráfico de pessoas é "um crime que oculta crimes", nas palavras de Anabela Rodrigues, na sua intervenção em 25/6/2015 no "Seminário Internacional Novos (velhos?) desafios no combate ao Tráfico de Seres Humanos".
Como, doutamente, assinala António Pedro Barbas Homem a propósito do tráfico de pessoas: "Quando olhamos o início do século XXI pelo olhar dos grandes ciclos históricos, podemos contemplar os feitos realizados no plano civilizacional desde o final da segunda guerra mundial com orgulho. A era dos direitos do homem, em marcha desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem e o moderno constitucionalismo, tomaram a sério uma agenda efectiva no plano global e no plano nacional de realização da dignidade humana. O direito a uma «vida verdadeiramente humana» constitui assim uma palavra de ordem no plano da política internacional e no plano das exigências morais e constitucionais de cada Estado. O reconhecimento da dignidade humana não é apenas uma tarefa para cada Estado e ordem jurídica, mas uma exigência em que se torna necessário o esforço conjunto e conjugado de todos no reconhecimento, na protecção e na preservação dos direitos de cada pessoa, enquanto pessoa. O orgulho nos feitos civilizacionais não pode levar ao esquecimento das zonas de penumbra, das sombras que ainda persistem neste processo que em poucas décadas levou ao final da escravatura e dos trabalhos forçados e ao reconhecimento da dignidade das mulheres e das crianças. Contudo, a exploração humana persiste, mais sofisticada, mais subtil, mais organizada e mais perigosa. (…) A prova dos factos constitutivos deste crime, como é sabido, é difícil e complexa. A formação especializada dos magistrados, com a sua sensibilização para a perversidade dos delinquentes e dos esquemas utilizados, constitui uma exigência e simultaneamente um imperativo moral." (in "Tráfico de Seres Humanos Coletânea Selecionada de Instrumentos Jurídicos, Políticos e Jurisprudência em Portugal, na Europa e no Mundo" editado pelo OTSH em dezembro de 2012 ).
Ou seja, o combate de forma integrada ao flagelo do tráfico de seres humanos, enquanto forma de escravatura moderna, quer na referenciação/sinalização, proteção e assistência às vítimas - pessoas especialmente vulneráveis - quer no sancionamento dos traficantes deve ser prioridade de um Estado de Direito democrático, como o nosso.
É nesse sentido que vai a nossa legislação mais recente, mormente a Lei n.º 60/2013, de 23 de agosto, que procedeu à 30.ª alteração ao Código Penal, transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2011/36/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril, relativa à prevenção e luta contra o tráfico de seres humanos e à proteção das vítimas, e que substitui a Decisão Quadro 2002/629/JAI, do Conselho, e na qual se afasta do art. 160.º do CP a relevância do consentimento da vítima, e também o III Plano Nacional de Prevenção e Combate ao Tráfico de Seres Humanos 2014-2017 (III PNPCTSH), aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 101/2013, de 31 de dezembro, que, como se assinala no seu preâmbulo, "enquadra-se nos compromissos assumidos por Portugal nas várias instâncias internacionais, concretamente no âmbito da Organização das Nações Unidas, do Conselho da Europa, da União Europeia e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. A este propósito, importa sublinhar que o III PNPCTSH pretende incorporar as recomendações dirigidas ao Estado português no âmbito do relatório sobre a implementação da Convenção do Conselho da Europa relativa à Luta contra o Tráfico de Seres Humanos, aprovadas em 2013 pelo Comité das Partes. O III PNPCTSH tem designadamente em vista o reforço dos mecanismos de referenciação e de proteção das vítimas, o aprofundamento da articulação e cooperação entre as entidades públicas e as organizações da sociedade civil envolvidas e a adaptação da resposta nacional aos novos desafios, concretamente às novas formas de tráfico e de recrutamento."

Há, ainda, no caso concreto que ter em consideração as molduras penais elevadas dos crimes imputados (só o de tráfico de pessoas é passível de prisão de quatro anos a treze anos e quatro meses), circunstância que, além da gravidade dos factos, permite antever que em sede de julgamento a recorrente venha a ser condenada em pena efetiva de prisão.

Conclui-se, assim, que a aplicação da medida de prisão preventiva é proporcional à gravidade dos crimes indiciados e à sanção que previsivelmente venha a ser aplicada à arguida A..., em razão dos crimes fortemente indiciados.

Perante o exposto, a medida de prisão preventiva aplicada à recorrente cumpre todos os requisitos de aplicação, formais e materiais, sendo adequada, proporcional e a única suficiente tendo em vista as exigências que se procura acautelar, pelo que foi corretamente imposta e deverá ser mantida.

Assim sendo e ponderando a gravidade dos crimes por que se encontra indiciada A..., a elevada ilicitude e as necessidades de natureza cautelar, que se fazem sentir, entende-se, que a única medida que se revela adequada e proporcional é a medida de prisão preventiva prevista no art. 202.° do CPP.

Destarte, repete-se, pese embora, considerar a arguida A... que a medida de obrigação de permanência na habitação, com recurso a mecanismos de vigilância eletrónica (OPHVE), é desejável, e mesmo que estivessem já demonstradas a exequibilidade das condições técnicas e sociais, não se nos afigura por adequada atentos os assinalados perigos de fuga, de perturbação do inquérito e de continuação da atividade criminosa, já acima referidos.
Por tudo isto, a nosso ver, e não é demais sublinhá-lo, apenas a medida de prisão preventiva é capaz de assegurar a satisfação das necessidades cautelares que se fazem sentir relativamente à arguida A....

Com efeito, a aplicação da medida de obrigação de permanência na habitação com recurso a mecanismos de vigilância eletrónica não salvaguardaria o referido perigo de continuação da atividade criminosa com o inerente perigo de perturbação da tranquilidade pública, uma vez que não impediria que a arguida dela (a existir) se viesse a ausentar, encetando fuga para o estrangeiro. Na verdade, o equipamento eletrónico não obsta à fuga apenas sinaliza o incumprimento das restrições  que decorrem da sua aplicação.
Nem muito menos e por maioria de razão seria de submeter o arguido a outra medida de coação, como sejam apresentações periódicas e/ou caução (vd. artigos 196.° a 200.° do CPP).
Em suma: A prisão preventiva é a medida de coação  proporcional, adequada, e suficiente quer à gravidade dos crimes quer às necessidades cautelares, condições pessoais e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas à arguida A....
Termos em que, também neste particular, o recurso não pode lograr procedência.

III – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em negar provimento ao recurso interposto pela arguida A..., confirmando-se integralmente, quanto a si, a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC’s.

Notifique nos termos legais.

(o presente acórdão, integrado por vinte e duas páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal)

Lisboa, 4 de fevereiro de 2016

Calheiros da Gama (relator)

Antero Luís