Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9711/12.7TCLRS.L1-2
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: OMISSÃO DE PRONÚNCIA
OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA
DIREITO DE REGRESSO
CONTRATO DE MÚTUO
ALTERAÇÃO DO CONTRATO
FORMA ESCRITA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: SUMÁRIO:

I. A omissão de pronúncia existe quando o tribunal se abstém, por completo, de se pronunciar sobre qualquer questão apresentada pelas partes.
II. Referindo-se que certa questão não releva para a decisão da causa, há pronúncia, nomeadamente no sentido de tal questão não poder influenciar a decisão da causa.
III. Os terceiros, ao vincularam-se solidariamente, nos mesmos termos do mutuário, pelo cumprimento integral do contrato de mútuo, assumiram uma obrigação solidária para com o credor.
IV. Face à existência da obrigação causal, tendo por fonte o contrato de mútuo, são completamente irrelevantes as considerações retiradas a partir do aval dado na livrança entregue ao credor, no momento da celebração do contrato de mútuo.
V. O devedor que pagou ao credor, por incumprimento do mutuário, tem o direito de regresso sobre os demais condevedores, nos termos do disposto no art. 524.º do Código Civil.
VI. Resultando a obrigação solidária de um contrato escrito de mútuo, a sua modificação superveniente tem de ser formalizada por escrito, porquanto a exigência dessa forma também se justifica, na modificação em causa do contrato, designadamente pelos efeitos jurídicos que produz entre as partes (art. 221.º, n.º 2, do Código Civil).

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:


I – RELATÓRIO

        Alberto e mulher, Maria da Conceição, instauraram, em 28 de novembro de 2012, na então 2.ª Vara Mista da Comarca de Loures (Instância Central de Loures, Secção Cível, Comarca de Lisboa Norte), contra Jeremias e mulher, Amélia, ação declarativa, sob a forma de processo ordinário, pedindo que os Réus fossem condenados a pagar-lhes a quantia de € 54 438,75, acrescida dos juros de mora, à taxa legal.
Para tanto, alegaram em síntese, que tanto os RR. como os AA. foram garantes de um empréstimo, celebrado em 16 de dezembro de 2008, entre Álvaro e o BANCO  – Banco Internacional do Funchal, no valor de € 125 000,00; como Álvaro … não honrou as responsabilidades, os AA. foram interpelados, para liquidar a dívida, entregando ao BANCO  a quantia de € 136 096,88; têm direito de regresso quanto aos RR. em relação a dois quintos da quantia satisfeita.
Contestaram os RR., por exceção e impugnação, concluindo pela improcedência da ação e a sua absolvição do pedido.
Replicaram os AA., concluindo como na petição inicial.
Depois da realização de uma audiência prévia, foi proferido, em 23 de outubro de 2014, despacho saneador-sentença, que, julgando a ação procedente, condenou os Réus a pagar aos Autores a quantia de € 54 438,75, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Inconformados com essa decisão, recorreram os Réus e, tendo alegado, formularam essencialmente as seguintes conclusões:

a) O aval é uma garantia que se reporta à dívida cambiária, nos termos do art. 30.º da LULL, não pretendendo o avalista vincular-se ao pagamento como obrigado principal.
b) Do n.º 9 da cláusula 1.ª do contrato não decorre que os AA. e RR. percam a sua qualidade de garantes e assumam a qualidade de devedores.
c) Em razão da autonomia do aval face à obrigação avalizada, os Recorrentes continuam a responder apenas em função da obrigação assumida no título cambiário e apenas em função dessa garantia podem ser demandados.
d) Não existe pluralidade de devedores mas apenas pluralidade de garantes.
e) A instância devia ter prosseguido, para se apreciar se, tal como invocado pelos RR., houve algum acordo no sentido de se afastar o direito de regresso.
f) A decisão recorrida é contraditória nos seus próprios termos, pois considera irrelevante uma questão cuja relevância decorre de uma anterior decisão do próprio tribunal.
g) A decisão violou o disposto nos artigos 524.º, do Código Civil, e 615.º, n.º 1, alíneas c) e d), do Código de Processo Civil.

Pretendem, com o provimento do recurso, a revogação da decisão recorrida.

Contra-alegaram os Autores, no sentido de ser mantida a decisão recorrida.

O Tribunal a quo limitou-se a admitir o recurso.

Corridos os vistos legais, cumpre então apreciar e decidir.

Neste recurso, para além da nulidade da sentença, está em causa o direito de regresso, de quem pagou a dívida, contra os outros devedores solidários, ao abrigo do disposto no art. 524.º do Código Civil.

II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. Foram dados como provados os seguintes factos:

1. Em 16 de dezembro de 2008, Álvaro (2.º outorgante) celebrou com o Banco Internacional, S.A. (1.º outorgante) um “contrato de empréstimo” da quantia de € 125 000,00, pelo prazo de doze anos, com vista à “liquidação de conta gestão de tesouraria”.
2. Os AA., RR. e Ana Rita assinaram esse contrato, na qualidade de “terceiros outorgantes e/ou garantes”.
3. Para garantia das obrigações assumidas por Álvaro... foram constituídas as seguintes garantias, nos termos da cláusula 1.ª, n.º 9: “9.1. Penhor de obrigações estrangeiras, constituído por contrato, nesta data, conforme documentos que aqui se anexa e passa a fazer parte integrante do presente contrato. 9.2. Penhor do direito de resgate de unidades de participação em fundos, constituído por contrato, nesta data, conforme documentos que aqui se anexa e passa a fazer parte integrante do presente contrato. 9.3. Aval dos garantes Ana Rita …, Jeremias, Amélia …, à livrança subscrita pelo segundo outorgante nos termos e condições acordados no presente contrato. Os garantes aceitam ainda, expressamente, todos os termos e condições do presente contrato, assumindo solidariamente com o segundo outorgante o cumprimento integral de todas as obrigações pecuniárias dele decorrentes, autorizando desde já o Banco a compensar total, ou parcialmente, os valores dos seus créditos, emergentes deste contrato, vencidos e não pagos, com os saldos credores ou valores de quaisquer contas de que sejam titulares no Banco.
4. Nos termos da cláusula 9.ª, n.º2, ficou a constar: “É nesta data entregue ao Banco uma livrança em branco emitida e subscrita pelo segundo outorgante à ordem do Banco, autorizando desde já o Banco, nos casos de incumprimento deste contrato, e/ou das suas eventuais prorrogações, alterações, aditamentos, e/ou substituições, conforme aqui preceituado, a preencher pelo valor que lhe for devido, a fixar-lhe as datas de emissão e de vencimento, bem como a designar o local de pagamento, autorizando ainda o Banco  a debitar o valor do imposto do selo que se mostre devido, em quaisquer contas de depósitos à ordem de que nele sejam titulares”.
5. Porque Álvaro... não satisfez o acordado com o BANCO, os AA. entregaram ao BANCO  a quantia de € 136 096,88.
6. Entre os AA. e o BANCO foi celebrado, em 16.12.2008, o contrato de penhor de obrigações estrangeiras, pelo qual os AA. deram de penhor € 65 000,00, em obrigações Euro Invest … 13.ABR2012, com o valor nominal de    € 1 000,00 cada, com vencimento em 13.4.2012, afetas à conta n.º 36/407472.
7. Entre os AA. e o BANCO  foi celebrado, em 16.12.2008, o “contrato de penhor do direito de resgate de unidades de participação em fundos, pelo qual os AA. deram de penhor ao BANCO  o “direito ao resgate, e das quantias dele emergentes, de 8.478 unidades de participação do Fundo BANCO  …, Fundo de Investimento (…)”.
8. Álvaro ... é filho dos RR. e Ana Rita é filha dos AA.
9. Álvaro ... casou com Ana Rita em 11.11.1995, tendo sido decretada a separação judicial de pessoas e bens do casal, por decisão de 30.4.2003, e o casamento dissolvido por divórcio, cuja decisão foi proferida em 9.6.2009.

***

2.2. Delimitada a matéria de facto, importa então conhecer do objeto do recurso, definido pelas conclusões, e cujas questões jurídicas emergentes foram anteriormente especificadas.
Tendo a sentença recorrida sido proferida depois de 1 de setembro de 2013, ao recurso, é aplicável o regime previsto no Código de Processo Civil (CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho (art. 7.º, n.º 1).

Os Apelantes arguiram a nulidade da decisão recorrida, nomeadamente ao abrigo do disposto no art. 615.º, n.º 1, alíneas c) e d), do CPC.
Analisando os termos da sentença recorrida, verifica-se que, entre os fundamentos de facto e de direito, por um lado, e a decisão, por outro, não existe qualquer contradição na sentença, havendo coerência lógica entre tais elementos. A decisão corresponde ao corolário lógico dos seus fundamentos.
A eventual contradição na fundamentação de direito poderá originar um erro material de julgamento, mas não afeta o aspeto formal da sentença, nomeadamente quanto ao vício previsto na alínea c) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.

Por outro lado, a sentença recorrida também não padece da omissão de pronúncia, em particular quanto à questão, suscitada na contestação, do acordo no sentido do afastamento do direito de regresso.
Com efeito, a sentença recorrida aludiu a essa questão, como reconhecem os Apelantes, consignando expressamente que não tinha interesse, dada a “responsabilidade solidária que para os RR. resultou da cláusula 1.ª, n.º 9.3 do contrato de empréstimo que subscreveram (…), nem permitem concluir, ao invés do que pretendem os RR., pela existência de algum acordo no sentido do afastamento do direito de regresso dos AA.”
Deste modo, houve pronúncia expressa sobre a questão suscitada pelos Apelantes, nomeadamente no sentido da sua irrelevância em face da cláusula do “contrato de empréstimo”, também subscrito pelos Apelantes, e no qual aceitaram, “expressamente, todos os termos e condições do contrato, assumindo solidariamente com o segundo outorgante mutuário o cumprimento integral de todas as obrigações pecuniárias dele decorrentes.”
Assim, podia ter havido, eventualmente, erro material de julgamento, mas não houve a omissão de pronúncia prevista na alínea d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.
A omissão de pronúncia existe quando o tribunal se abstém, por completo, de se pronunciar sobre qualquer questão apresentada pelas partes. Todavia, referindo-se na sentença que certa questão não releva para a decisão da causa, há pronúncia, nomeadamente no sentido da questão não poder influenciar a decisão da causa.
Assim, improcede a arguição da nulidade da sentença.

2.3. Os Apelantes, discordando da decisão recorrida, entendem ser inaplicável o disposto no art. 524.º do Código Civil (CC), em virtude de não existir uma pluralidade de devedores, mas uma pluralidade de garantes.
Na verdade, em 16 de dezembro de 2008, entre Álvaro e o BANCO , foi celebrado um contrato de mútuo, em que o último emprestou ao primeiro a quantia de € 125 000,00, nomeadamente nos termos constantes de fls. 129 a 136.
Os Apelados, os Apelantes e ainda um terceiro subscreveram também esse contrato de mútuo, declarando que “aceitam ainda, expressamente, todos os termos e condições do presente contrato, assumindo solidariamente com o segundo outorgante o cumprimento integral de todas as obrigações pecuniárias dele decorrentes, autorizando desde já o Banco  a compensar total, ou parcialmente, os valores dos seus créditos, emergentes deste contrato, vencidos e não pagos, com os saldos credores ou valores de quaisquer contas de que sejam titulares no Banco”.
Com semelhante declaração negocial, independentemente das garantias especiais oferecidas, os Apelantes assumiram, solidariamente, as obrigações emergentes do contrato juntamente com o mutuário. Desse modo, vincularam-se solidariamente, nos mesmos termos do mutuário, o devedor principal, pelo cumprimento integral do contrato de mútuo. Trata-se, com efeito, de uma obrigação solidária, porquanto cada um dos devedores responde perante o credor pela prestação integral e esta a todos libera, sendo certo que a solidariedade pode resultar, para além da lei, da vontade das partes (arts. 512.º e 513.º do CC).
Evidentemente que a declaração de solidariedade não é inútil, ao contrário do defendido pelos Apelantes, porquanto formaliza, no âmbito do mútuo, a vontade expressa das partes quanto à sua responsabilidade no cumprimento da obrigação assumida pelo mutuário.
A livrança subscrita pelo mutuário, entregue ao credor, na qual os Apelantes são avalistas, serve apenas como uma dação pro solvendo(art. 840.º, n.º 1, do CC)com o único objetivo de facilitar a satisfação do direito do credor, ficando este com dois créditos dirigidos ao mesmo fim: o crédito causal ou originário e o crédito cambiário (VAZ SERRA, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 113.º, pág. 125).
Por isso, face à existência da obrigação causal, tendo por fonte o contrato de mútuo, são completamente irrelevantes as considerações retiradas a partir do aval dado na livrança entregue ao credor, no momento da celebração do contrato de mútuo, não tendo qualquer repercussão quanto ao direito de regresso exercido na ação.

Por força da solidariedade da obrigação, o cumprimento desta pode ser exigido a qualquer um dos obrigados, ficando o devedor que satisfizer o direito do credor além da parte que lhe competir com o direito de regresso contra cada um dos condevedores, na parte que a estes compete, como decorre do disposto no art. 524.º do CC.
O dever de regresso destina-se a nivelar as situações dos vários devedores, parecendo que, por corresponder ao quod plerumque accidit ou pela impossibilidade de firmar outra presunção, as quotas dos condevedores devem ser iguais, salvo se coisa diversa se tiver determinado (VAZ SERRA, Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 103.º, pág. 108, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, I, 2.ª edição, 1979, 468).
No caso vertente, os Apelados tendo pago ao credor, por incumprimento do mutuário, têm o direito de regresso sobre os demais condevedores, designadamente sobre os Apelantes, por efeito do disposto no art. 524.º do CC.
O direito de regresso, ao contrário do alegado, não foi afastado por qualquer convenção posterior.
Na verdade, os Apelantes não alegaram qualquer acordo expresso de vontades, nesse sentido, limitando-se a enumerar alguns factos que, por si só, não permitem concluir que os Apelados e os Apelantes tivessem querido afastar o direito de regresso resultante da obrigação solidária assumida no contrato de mútuo. Daí decorre que tal alegação é, claramente, insuficiente para consubstanciar a alteração superveniente do contrato de mútuo, quanto à solidariedade da obrigação, sendo naturalmente inútil o prosseguimento dos autos.
Aliás, resultando a obrigação solidária de um contrato escrito de mútuo, a sua modificação superveniente teria de ser formalizada também por escrito, porquanto a exigência dessa forma também se justifica, na modificação em causa do contrato, designadamente pelos efeitos jurídicos que iria produzir entre as partes, atento o disposto no art. 221.º, n.º 2, do CC.
Neste contexto, não pode deixar de ser reconhecido o direito de regresso a favor dos Apelados, como aliás foi decidido no despacho saneador-sentença, do qual se recorreu.

Assim, improcede o recurso e confirma-se a decisão recorrida, a qual não violou qualquer disposição legal, designadamente as enumeradas pelos Apelantes.
  
2.4. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

I. A omissão de pronúncia existe quando o tribunal se abstém, por completo, de se pronunciar sobre qualquer questão apresentada pelas partes.
II. Referindo-se que certa questão não releva para a decisão da causa, há pronúncia, nomeadamente no sentido de tal questão não poder influenciar a decisão da causa.
III. Os terceiros, ao vincularam-se solidariamente, nos mesmos termos do mutuário, pelo cumprimento integral do contrato de mútuo, assumiram uma obrigação solidária para com o credor.
IV. Face à existência da obrigação causal, tendo por fonte o contrato de mútuo, são completamente irrelevantes as considerações retiradas a partir do aval dado na livrança entregue ao credor, no momento da celebração do contrato de mútuo.
V. O devedor que pagou ao credor, por incumprimento do mutuário, tem o direito de regresso sobre os demais condevedores, nos termos do disposto no art. 524.º do Código Civil.
VI. Resultando a obrigação solidária de um contrato escrito de mútuo, a sua modificação superveniente tem de ser formalizada por escrito, porquanto a exigência dessa forma também se justifica, na modificação em causa do contrato, designadamente pelos efeitos jurídicos que produz entre as partes (art. 221.º, n.º 2, do Código Civil).

2.5. Os Apelantes, ao ficarem vencidos por decaimento, são responsáveis pelo pagamento das custas, em conformidade com a consagrada regra da causalidade – art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

1) Negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
2) Condenar os Apelantes (Réus) no pagamento das custas.


Lisboa, 5 de março de 2015

(Olindo dos Santos Geraldes)

(Lúcia Sousa)

(Magda Geraldes)