Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2238/16.0T8SNT.L1-2
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
INAPLICÁVEL
DEVEDORES SINGULARES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/21/2016
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário (art.º 663º nº 7 do CPC)

As normas que regem o Processo Especial de Revitalização devem ser interpretadas restritivamente, no sentido de que esse processo não é aplicável às pessoas singulares que não sejam comerciantes ou empresários, nem exerçam, por si mesmos, qualquer actividade económica autónoma e por conta própria.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I. RELATÓRIO

JORGE …… e ISABEL …… residentes na Rua ……, requereram, em 31.01.2016, na Secção de Comércio da Comarca de Lisboa Oeste, a sua sujeição a processo especial de revitalização.

Alegaram, para tanto, e em síntese, que:
1. Os Requerentes contraíram casamento a 3 de Fevereiro de 2010;
2. O Requerente tem 35 anos de idade e a Requerente tem 41 anos de idade, e têm dois filhos, com 12 e 9 anos de idade.
3. O Requerente encontra-se actualmente desempregado, auferindo a título de subsídio de desemprego o valor mensal médio de €400,00.
4. A Requerente exerce funções como Operadora de Posto, auferindo uma remuneração mensal líquida no valor médio de €600,00.
5. A situação de desemprego em que se encontra o Requerente originou um decréscimo significativo no rendimento do agregado familiar.
6. Os Requerentes, para financiamento de habitação própria, contraíram um mútuo com hipoteca junto do Banco Comercial Português, S.A., encontrando-se actualmente em dívida o montante de €96.994,00, e estando vinculados a uma prestação mensal no valor de €291,00.
7. Para fazer face às despesas correntes do agregado familiar e ao cumprimento de todas as obrigações assumidas, os Requerentes contraíram também alguns créditos pessoais junto dos Bancos e das Instituições de Crédito, o que conduziu o agregado familiar dos Requerentes a uma situação económica difícil.
8. Os Requerentes encontram-se em dificuldades sérias para cumprir pontualmente todas as suas obrigações.
9. Os Requerentes pretendem diminuir o valor das prestações mensais a que se encontram vinculados, com vista a cumprirem todas as suas obrigações.
10. Nesta conformidade, pretendem os Requerentes encetar negociações com os seus credores, conducentes à sua revitalização, por meio da aprovação de um Plano de Recuperação.

O Tribunal a quo proferiu, em 02.02.2016, despacho liminar de rejeição do requerimento, por entender que o processo especial de revitalização não é aplicável a pessoas singulares não titulares de empresas.

Inconformados com o assim decidido, os requerentes interpuseram recurso de apelação, relativamente à aludida decisão.

São as seguintes as CONCLUSÕES dos recorrentes:

i. A Sentença ora recorrida violou as disposições conjugadas dos artigos 17.º-A, n.º 1.º, n.º 2 e 2.º, n.º 1, todos do C.I.R.E.
ii. Sucede que, no presente caso, o Tribunal a quo entendeu não se encontrar justificado o recurso ao Processo Especial de Revitalização, por em causa não estar preenchido o pressuposto subjetivo que se traduz, alegadamente, no facto de o mesmo apenas se poder aplicar a pessoas que exerçam por si atividade económica.
iii. Porém, não podemos anuir com tal decisão.
iv. Desta feita, não podemos deixar de relevar o facto de a própria lei não fazer qualquer distinção entre devedores comerciantes ou empresários, ou exercendo por si mesmos qualquer atividade autónoma e por conta própria, e os devedores pessoas singulares não empresários.

v. Desde logo, porque o próprio artigo 17.º-A do C.I.R.E se refere ao "devedor" em sentido lato, pelo que, no seguimento de diversa Doutrina e Jurisprudência defendemos que não tendo o legislador procedido a tal distinção, não deverá por sua vez o aplicador da lei fazê-lo.
vi. Veja-se a este propósito o disposto no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, datado de 09/07/2015, proferido no âmbito do processo n.º 1518/14.3T8STR.E1 (Relator Conceição Ferreira): "O regime do PER aplica-se a qualquer devedor seja ele, pessoa singular, pessoa colectiva, património autónomo, titular de empresa ou não, dado o silêncio da lei quanto a qualquer dos requisitos - cfr. artºs 1º, n.º 2, 2º, n.º 1 e artº 17º- A, n.º 1, do CIRE."
vii. No mesmo sentido, é pertinente citar o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 16/06/2015, proferido no âmbito do Processo n.º 811/15.2T8FNC-A.L1-7 (Relator Graça Amaral), quando refere que "As condições de acesso por parte de alguém que queira socorrer-se do PER, resultam do que dispõe o artigo 17.º-A, n.ºs 1 e 2, do CIRE, ou seja, todo o devedor que se encontre comprovadamente em situação económica difícil, ou em situação de insolvência iminente."
viii. De realçar ainda a este propósito as regras relativas à interpretação da lei, previstas no artigo 9.º do Código Civil, que nos levam a concluir que o legislador não pretendeu impedir o acesso ao PER por parte das pessoas singulares não comerciantes, dada a importância que as mesmas assumem na atual realidade económica do país.
ix. Pese embora seja dada uma especial atenção ao problema dos "desaparecimento" dos devedores empresários, entendemos que não deve por isso ser descurada a importância do consumidor no giro comercial, bem como o binómio vendas/consumo.
x. Reportando-nos à Proposta de Lei n.º 39/XII, que está na origem do Processo de Especial de Revitalização, constatamos que a mesma realça a importância deste mecanismo no combate ao desaparecimento de agentes económicos, a qual acarreta custos apreciáveis para a economia, dando ideia que não se refere apenas e exclusivamente aos devedores empresários.
xi. Segundo o Tribunal a quo, existem no CIRE outros mecanismos legais a que os devedores pessoas singulares não empresários podem recorrer, nomeadamente a apresentação à insolvência com Plano de Pagamentos aos Credores, prevista nos artigos 249.º e seguintes do mesmo diploma legal.
xii. No entanto, não podemos concordar com tal solução, uma vez que no presente caso, como já foi referido, os Devedores são ainda suscetíveis de recuperação, sem que haja uma declaração da sua insolvência e só mediante o recurso ao Processo Especial de Revitalização tal se torna possível.
xiii. A ser assim, o devedor pessoa singular não comerciante teria que aguardar até se encontrar efetivamente numa situação de insolvência para poder beneficiar do Plano de Pagamentos aos credores ínsito no artigo 251.º do C.I.R.E.
xiv. O que teria inevitavelmente como consequência a declaração de insolvência dos Devedores.
xv. No mesmo sentido do que temos vindo defender, segundo LUÍS M. MARTINS, "Atendendo à forma como a lei foi redigida, e não obstante o processo especial de revitalização inserido no CIRE, ter sido anunciado como um meio de recuperação das empresas, o objectivo de fundo do memorando no que respeita à matéria em causa, era "facilitar o resgate efectivo das empresas viáveis e apoiar reabilitação de indivíduos financeiramente responsáveis (....) pretendendo, de raiz, abranger as empresas e as pessoas singulares." (Cf. LUÍS M. MARTINS, Recuperação de Pessoas Singulares, vol. II, edição 14-15) .
xvi. Veja-se igualmente MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, quando refere que:
"O PER é aplicável a qualquer devedor, pessoa singular ou colectiva, e ainda aos patrimónios autónomos, independentemente da titularidade de uma empresa (é aplicado na sua plenitude o disposto no artigo 2.º n.º 1 do CIRE." (Cf. MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO, O processo Especial de Revitalização, 2015, pgs. 15-16).
xvii. Pelo que, somos do entendimento que a tese sufragada pelo Tribunal a quo não vai de encontro à letra e ao espírito da lei, podendo acarretar consequências irreversíveis para a esfera jurídica dos Devedores, designadamente a sua declaração de insolvência.

Pedem, por isso, os apelantes, que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que admita liminarmente o processo especial de revitalização apresentado pelos devedores.

Não foram apresentadas contra alegações.

Colhidos os vistos legais, e atento o vencimento do relator, cumpre apreciar e decidir.
II. ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO

Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto no artigo 635º, nº 4 do Novo Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação dos recorrentes que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Assim, e face ao teor das conclusões formuladas, a solução a alcançar pressupõe tão-somente a análise:

Û DO ÂMBITO DE APLICAÇÃO DO PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
Por forma a apurar se o mesmo se aplica a devedores, pessoas singulares não titulares de empresas.

III . FUNDAMENTAÇÃO

A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Com relevância para a decisão a proferir, importa ter em consideração a alegação factual referida no relatório deste acórdão, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Insurgem-se os apelantes contra a decisão recorrida que indeferiu liminarmente a abertura de processo especial de revitalização, por estes requerida, por ter entendido que tal processo especial apenas se aplica a uma empresa ou pessoa singular que seja titular de empresa.

Vejamos se assim se deverá entender,

Como decorre do disposto no artigo 1º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas:
1 – O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.
2 – Estando em situação económica difícil, ou em situação de insolvência meramente iminente, o devedor pode requerer ao tribunal a instauração de processo especial de revitalização, de acordo com o previsto nos artigos 17º-A a 17º-I.

Por outro lado, a finalidade do processo especial de revitalização, criado pela Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, mostra-se definida no nº 1 do artigo 17º-A, que estatui: O processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordos conducente à sua revitalização.

A questão concernente ao âmbito de aplicação do Processo Especial de Revitalização não tem sido convergente, quer na doutrina, quer na jurisprudência.

De acordo com um primeiro entendimento, maioritário na doutrina, com expresso apoio num argumentário literal, com base no preceituado nos artigos 1º, nº 2 e 17º-A e segts do CIRE, poderá recorrer ao PER, o devedor, assim designado sem um significado preciso, defendendo-se, por isso - dado o silêncio da lei e o princípio de que “onde a lei não distingue não deve ser o seu aplicador a fazer tal distinção” - que o regime do PER é aplicável a qualquer devedor, logo, a pessoa colectiva, património autónomo, titular de empresa ou pessoas singulares, mesmo que não sejam agentes económicos – v. neste sentido, na doutrina, CATARINA SERRA, O regime português da insolvência, 5.ª edição, 2012, Almedina, 176; LUÍS M. MARTINS, Recuperação de pessoas singulares”, vol. I, 2.ª ed., 2013, Almedina, 14 e 15; MENEZES LEITÃO, Direito da insolvência, 6.ª ed. 2015, Almedina, 295 e 296; ALEXANDRE DE SOVERAL MARTINS, Um curso de direito da insolvência, 2.ª ed., 2016, Almedina, 511, nota 5; ROSÁRIO EPIFÂNIO, O processo especial de revitalização, Almedina, 2016, 15; ISABEL ALEXANDRE, Efeitos processuais da abertura do processo de revitalização, II Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2014, 235 e 236; FILIPA GONÇALVES, O processo especial de insolvência, “Estudos de Direito de Insolvência”, coordenação de Maria do Rosário Epifânio, 2015, Almedina, 55. E, na jurisprudência, cfr. a título meramente exemplificativo, Ac. R.P. de 16.12.2015 (Pº 2112/15.7T8STS.P1); Acs. R.E. de 09.07.2015 (Pº 1518/14.3T8STR.E1), de 10.09.2015 (Pº 1234/15.9T8STR.E1), de 05.11.2015 (Pº 371/15.4T8STR.E1) e de 21.01.2016 (Pº 1279/15.9T8STR.E1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.

Para um segundo entendimento, o regime do PER apenas se dirige a empresas ou devedores empresários, e só a estes faz sentido, visto que a ideia de recuperabilidade do devedor tem sido sempre ligada pela lei à existência de uma empresa no seu património e neste sentido, à sua qualidade de empresário, sendo que a principal motivação da criação do processo de revitalização assenta no tecido empresarial, confessada na Exposição de Motivos da Proposta de Lei 39/XII, de 30.12.2011, que esteve na origem da Lei nº 16/2012, de 20.04, o que justifica uma restrição ao significado literal do texto da lei – cfr. em defesa desta tese, LUÍS CARVALHO FERNANDES E JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª ed., 143, PAULO OLAVO CUNHA, Os deveres dos gestores e dos sócios no contexto da revitalização das sociedades”, II Congresso de Direito da Insolvência, Almedina, 2014, 220 e 221; NUNO SALAZAR CASANOVA E DAVID SEQUEIRA DINIS, PER – O processo especial de revitalização, Coimbra Editora, 2014, 13 e 14, E, na jurisprudência das Relações, cfr. mais recentemente e a título exemplificativo Ac. R.L. de 24.11.2015 (Pº22219/15.0T8SNT-1); Acs. R.P. de 23.02.2015 (Pº 3700/13.1TBGDM.P1), de 23.06.2015 (Pº 1243/15.8T8STS.P1) e de 12.10.2015 (Pº 1304/15.3T8STS.P1); Ac. R.E. de 24.07.2015 (Pº 718/15.3TBSTR.E1) e de 10.9.2015 (Pº 979/15.8TBSTR.E1 e Pº 531/15.8T8STR.E1), todos acessíveis em www.dgsi.pt.

Sufraga-se este segundo entendimento defendido, aliás, pela jurisprudência da 6ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça (secção agora especializada para decidir sobre matérias de natureza comercial – artigo 42º, nº 2 da LOFTJ) – cfr. Ac. de 10.12.2015 (Pº 1430/15.9T8STR. E1.S1), acessível em www.dgsi.pt, bem como os Acórdãos desta mesma secção do STJ de 05.04.2016 (Pº 979/15.8T8STR.E1.S1) e de 12.04.2016 (Pº 53/15.8T8T8STR.E1.S1), estes últimos em vias de publicação no citado sítio da Internet.

É que, nos termos do nº 1 do artigo 9º do Código Civil a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo.

É igualmente consabido que a interpretação normativa assente na letra da lei, terá sempre de ser conjugada com os demais elementos lógicos de interpretação:
a. elemento sistemático que tem em conta a unidade do sistema jurídico;
b. elemento histórico, constituído designadamente por precedentes normativos e trabalhos preparatórios;
c. elemento racional ou teleológico, i.e., a justificação social da lei.

Ora, da Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 39/XII, de 30 de Dezembro de 2011, que esteve na origem da Lei nº 16/2012, de 20.04 (www.dgpj.mj.pt/sections/noticias/codigo-da-insolvencia-/downloadFile/file/PPL_39_XII_6Alteracao_CIRE.pdf.), decorre que a principal motivação da criação do processo de revitalização, inserida na revisão do CIRE, foi a promoção da recuperação, «privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial», referindo-se mais adiante que «a presente situação económica obriga, com efeito, a gizar soluções que sejam, em si mesmas, eficazes e eficientes no combate ao desaparecimento de agentes económicos, visto que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas».

Por outro lado, contempla a lei um procedimento especialmente vocacionado para devedores que não sejam titulares de empresas, previsto e regulado nos artigos 249º e segs do CIRE, permitindo que estes sejam poupados a toda a tramitação do processo de insolvência, já que neste caso a insolvência que venha a ser decretada, após a homologação do Plano, tem um alcance limitado, não estando sequer sujeita a registo e publicidade, evitando-se prejuízos para o seu bom nome ou reputação e se subtraiam às consequências associadas à qualificação da insolvência como culposa (v. Preâmbulo do Decreto-Lei nº 53/2004, de 18/3), sendo perfeitamente injustificável a duplicação de recursos que tal implicaria.

Assim, atento o fim visado pelo legislador e as circunstâncias políticas e económicas que motivaram a criação do processo especial de revitalização considera-se, tal como bem consta da decisão recorrida, que haverá que proceder a uma interpretação restritiva do artigo 17º-A do CIRE, por forma a considerar que o PER não se destina aos devedores pessoas singulares que não sejam comerciantes ou empresários, nem exerçam, por si mesmos, qualquer actividade autónoma e por conta própria, sufragando-se, por conseguinte, o entendimento jurisprudencial expendido pelo Supremo Tribunal de Justiça nos supra mencionados acórdãos.

Nestes termos, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se, nos seus precisos termos, a decisão recorrida.

Os apelantes serão responsáveis pelas custas respectivas nos termos do artigo 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.


IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Condenam-se os apelantes no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 21 de Abril de 2016
Ondina Carmo Alves – Relatora por vencimento
Lúcia Sousa
Jorge Leal (vencido conforme declaração em anexo)

Vencido, pelas razões expostas no projeto apresentado às exmas adjuntas em 16.3.2016, enquanto relator, que aqui se transcreve parcialmente:
“Traçado este panorama do regime legal do PER e dos seus antecedentes, põe-se então a questão da fixação do seu âmbito subjetivo, ou seja, da determinação das entidades que poderão recorrer ao processo especial de revitalização.
A este respeito a lei limita-se a dizer que “o processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização” (n.º 1 do art.º 17.º-A) e a explicitar que “para efeitos do presente Código, encontra-se em situação económica difícil o devedor que enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito” (art.º 17.º-B).
Assim, atendendo a que nada mais se encontra nas disposições reguladoras do PER que apontem num ou noutro sentido, dir-se-ia que o universo de entidades abarcáveis por este procedimento coincidiria com o descrito no art.º 2.º do CIRE, desde que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação. Ou seja, incluiria, nomeadamente, pessoas singulares não empresárias.
Porém, têm surgido vozes, tanto na doutrina como na jurisprudência, que defendem que deve dar-se à lei uma interpretação restritiva. Assim, o PER não seria aplicável a pessoas singulares que não exercessem uma atividade empresarial. As razões invocadas para sustentar esta tese são o teor dos textos que antecederam o texto legal, máxime a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 39/XII, dos quais resultaria que o legislador, ao gizar o PER, teria tido como “principal motivação” a promoção da recuperação do “tecido empresarial” (…). Esta categoria de devedores (pessoas singulares não empresárias) já disporiam de um instrumento processual adequado à satisfação dos interesses que presidem ao PER, ou seja, a possibilidade de apresentação de um plano de pagamentos, nos termos e com os efeitos previstos no art.º 251.º e seguintes do CIRE, que permite ao devedor regularizar a sua situação junto dos credores sem entregar o seu património à liquidação e sem que a sua situação de insolvência seja publicitada, havendo, pois, que evitar a atribuição de uma duplicidade de meios, com os encargos que daí advêm (…).
Vejamos.
É certo que “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” (n.º 1 do art.º 9.º do Código Civil). Porém, “não pode (…) ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (n.º 2 do art.º 9.º. Por último, “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (n.º 3 do art.º 9.º).
Ora, impressiona que no local que realmente importa, que é o corpo normativo de direito positivo, não exista um sinal, um indício da aludida intenção restritiva. O sistema adotado pelo legislador, no CIRE, é o da aplicabilidade em geral do mesmo regime a todas as espécies de devedores, enunciando-se expressamente, quando é o caso, regras especiais aplicáveis a algum ou a alguns deles, ou excluindo-se regras relativamente a algum ou alguns deles. Assim, quanto às pessoas singulares não titulares de uma empresa, são excetuadas do dever de apresentação à insolvência, nos termos do n.º 2 do art.º 18.º do CIRE. E é-lhes dedicado todo o Capítulo II do Título XII do CIRE. E aí, no art.º 250.º, é estipulado que não lhes será aplicável o regime do plano de insolvência (Título IX) e o da administração pelo devedor (Título X). É, pois, por demais estranho que, não pretendendo o legislador aplicar o PER aos devedores pessoas singulares não titulares de uma empresa, não o tenha dito.
Quanto ao teor dos trabalhos preparatórios e do preâmbulo dos diplomas, é verdade que encaram o regime insolvencial e pré-insolvencial preferencialmente na perspetiva da empresa. Basta ler o preâmbulo do Dec.-Lei n.º 53/2004, de 18.3, que aprovou o CIRE, para verificar que para o legislador o protagonista central do regime é a empresa, enquanto realidade fulcral da atividade económica. Mas tal não obsta a que o CIRE seja aplicável às pessoas singulares, ainda que sem atividade empresarial. Os cidadãos, mesmo que trabalhadores por conta de outrem, são agentes económicos, são destinatários fundamentais da atividade das empresas. A sustentabilidade económica dos consumidores é um fator relevantíssimo da sustentabilidade das empresas, da manutenção do “giro comercial.” Por outro lado o PER tem um campo de aplicação que não se confunde com o plano de pagamentos, pois este processa-se quando o devedor já se encontra em estado de insolvência, ou em insolvência iminente. O PER permite uma intervenção mais precoce, dando ao devedor uma maior margem de manobra na defesa dos seus interesses e possibilitando também aos credores colaborarem no reequilíbrio da situação económica do devedor com mitigação das suas perdas. E é, claramente, bem distinto da exoneração do passivo restante, que é acompanhada da liquidação do património do devedor e, em regra, de elevadas perdas por parte dos credores (artigos 235.º, 239.º e 245.º do CIRE).
Que o PER tem espaço de utilidade junto dos devedores pessoas singulares não titulares de empresas di-lo a realidade do dia-a-dia, face à relativa frequência com que é por eles utilizado, sem dificuldades de maior (vide, como exemplo de situações em que o PER foi usado sem levantamento de dúvidas quanto à legitimidade do devedor, pessoa singular não empresária, os casos constantes no acórdão da Relação de Coimbra, de 01.4.2014, processo 3330/13.8TBLRA-A.C1 e da Relação do Porto, de 23.02.2015, processo 3700-13.1TBGDM.P1, todos consultáveis in www.dgsi.pt).
Daí que boa parte da doutrina e bem assim parte da jurisprudência admita a aplicabilidade do PER aos devedores pessoas singulares não titulares de empresas [conforme doutrina e jurisprudência citadas no acórdão que fez vencimento] (…).
Não tendo o legislador vertido na lei o propósito de subtrair aos devedores pessoas singulares não titulares de empresas o meio de proteção e recuperação económica que o CIRE prevê na forma do processo especial de revitalização, não cabe ao julgador fazê-lo.
Afigura-se-nos, assim, que a apelação merece provimento.”

Lisboa, 21.4.2016

Jorge Leal