Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
685/2005-5
Relator: MARQUES LEITÃO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
PRISÃO EFECTIVA
CONDENAÇÃO
MEDIDAS DE COACÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/01/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I – O arguido, que veio a ser condenado, em cúmulo jurídico, na pena de 7 anos de prisão pela prática de crimes de abuso sexual de criança, esteve, até ao julgamento e respectiva sentença, sujeito à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica.

II – Não tendo ainda transitado em julgado a sentença condenatória, é de revogar a decisão que altera aquela medida de coacção para a de prisão preventiva.

III – Não se verificou incumprimento das obrigações resultantes da sujeição à medida de coacção de obrigação de permanência na habitação e não se referindo como fundamento da medida de coacção aplicada até ao julgamento o perigo de fuga, não há também fundamento para se concluir que da condenação, ainda não transitada, resulta um aumento do perigo de fuga.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.a Secção (criminal) do tribunal da Relação de Lisboa:

No Processo Comum-Colectivo n.° 483/03.7JDLSB da 2.a Vara de Competência Mista da comarca de Sintra, foi, por acórdão de 15 de Novembro de 2004, decidido condenar o arguido (J), melhor id.° nos autos, na pena de 7 (sete) anos de prisão, pena esta resultante do cúmulo jurídico das seguintes penas parcelares aplicadas nesse mesmo acórdão:

- 6 (seis) anos de prisão pela prática, em autoria material, de "um crime de abuso sexual de criança, na forma continuada, p. e p. pelo artigo 172.0, n.° 2 do Código Penal";
- E 3 (três) anos de prisão pela prática de "um crime de abuso sexual de criança, na forma continuada, p. e p. pelo are 172.° n° 1, com referência ao art.° 30° 2, ambos do Cód. Penal".

Tendo ainda,
Nesse mesmo acórdão, e após as referida decisão, sido decidido aplicar, em substituição da medida de coacção a que o referido arguido se encontrava sujeito, a medida de coacção prisão preventiva em estabelecimento prisional.

Inconformado com o decidido, interpôs o aludido arguido recurso do acórdão condenatório e, ao mesmo tempo, impugnou, no recurso interposto, a decisão de aplicação daquela medida de coacção, visando a revogação dessa decisão, tendo, na parte atinente à aplicação de tal medida, formulado na motivação do recurso, as seguintes conclusões:

-Na decisão de que ora se recorre foi violado o disposto no n.° 2, do artigo 193°, do C.P.P., isto é, foram violados os princípios da adequação e proporcionalidade com a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva, no caso concreto, visto que as exigências cautelares do caso poderão ser satisfeitas, tal como o foram até ao presente, com a aplicação da medida prevista no art.° 200° do C.P.P., conjugada com a aplicação da medida de coacção prevista na alínea d) do n.° 1 do art. 200° do C.P.P., até porque no período que antecedeu a douta decisão que ora se recorre, esteve o Arguido sujeito às medidas de coacção que ora se propõe, revelando-se cumpridor das obrigações que lhe foram impostas.
- Mais ainda, até à data não houve qualquer alteração da situação de facto que justificou a aplicação da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação sujeita a vigilância electrónica, conjugada com a obrigação de não estabelecer contacto com menores até aos 14 anos de idade, que justifique a aplicação agora da prisão preventiva, nem ocorreu qualquer facto que configure uma situação de acréscimo do perigo de fuga que se verificava, em concreto, existindo, por esse motivo, uma interpretação errónea por parte do Tribunal "a quo" do disposto na alínea a) do artigo 204°, do C.P.P. e, em consequência, violação do disposto na alínea b), do n.° 1, do artigo 212° do C.P.P.
- Na decisão recorrida foi violado o disposto no artigo 32°, n° 2 da Constituição, que consagra o princípio da inocência do Arguido até ao trânsito em julgado da sentença condenatória, porque ao pretender a antecipação da pena em que o Arguido foi condenado, com a aplicação ao Arguido da medida de coacção de prisão preventiva, sendo certo que esta poderá ser alterada ou revogada até ao trânsito em julgado da douta decisão recorrida, está-se a preterir um direito fundamental do Arguido.


Respondeu o M.° P° sustentando que deve ser mantida a decisão que aplicou aquela medida de coacção.


Cumprido o disposto no artigo 416.° do Código de Processo Penal, a Exm.° Procuradora-Geral Adjunta, apôs, sem que tenha suscitado qualquer questão prévia e sem que se tenha pronunciado sobre o mérito do recurso, Visto.


Colhidos os vistos legais, vieram os autos, pelas razões indicadas pelo relator no despacho preliminar, - ou seja, em síntese, por dever ter subido o recurso, no que tange à predita decisão, imediatamente e em separado à conferência para conhecimento do mesmo relativamente a essa decisão, pelo que cumpre, agora, apreciar e decidir.


*
Compulsados os autos com vista à decisão, ressuma dos mesmos:
-Ao arguido/recorrente foi, por despacho judicial proferido no dia 4 de Novembro de 2003 na sequência do interrogatório a que foi sujeito, aplicada a medida de coacção prisão preventiva por, segundo nesse despacho se indiciar a prática, por ele, de, pelo menos, três crimes de abuso sexual de criança p. e p. pelo artigo 172º, nºs1 e 2 do Código Penal e haver perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e de continuação da actividade criminosa, vindo, porém, na sequência de recurso que interpôs, tal medida a ser, por acórdão da 3.a Secção desta Relação proferido em 11 de Fevereiro de 2004, revogada e substituída pela obrigação do arguido permanecer na habitação, sujeito a fiscalização electrónica, e pela obrigação de não estabelecer contactos com menores até aos 14 anos de idade.
Não mostram os autos que o arguido/recorrente tenha infringido qualquer uma das obrigações que, em termos de medida de coacção se encontrava sujeito nem que tenha faltado ao cumprimento de qualquer dever processual.
-A partir da predita decisão, e até ser proferida decisão recorrida, manteve--se o arguido sujeito à predita medida de coacção, ou seja, obrigação de permanência na habitação, com fiscalização electrónica, e obrigação não estabelecer os referidos contactos, nunca tendo ele infringido qualquer uma dessas obrigações.
-É do seguinte teor o despacho que contém a decisão impugnada:
"Considerando a pena aplicada ao arguido (J), que se encontra sujeito à obrigação de permanência na habitação, bem como a gravidade e natureza dos crimes imputados, nenhuma circunstância justifica agora, perante este tribunal de julgamento, cuja decisão assenta para nós num juízo de certeza e não probabilidade, como até aqui, que o mesmo continue nessa situação, devendo passar a prisão propriamente dita em estabelecimento prisional. É certo que é uma decisão sujeita a recurso e que a mesma poderá ser livremente alterada pelas instâncias superiores, todavia, para nós o veredicto certo e justo foi tomado e como tal, fazendo jus à coerência, justiça relativa e uniformidade de critérios, a partir de agora o arguido deverá cumprir a medida coactiva prisão e não em casa.

A não se entender assim, face ao conceito de prisão preventiva que vigora em Portugal, onde é considerada como tal até ao trânsito em julgado da sentença, acrescido do facto, também sui generis de em Portugal se poderem interpor recursos em concreto de um qualquer processo, para oTribunal Constitucional, poderíamos ter a curiosa situação de um arguido poder cumprir grande parte da pena de prisão em casa, já que a detenção domiciliária conta para esse efeito, quando a generalidade a cumpre na prisão. Tais consequências para além de trazerem uma injustiça relativa, parece-nos serem violadoras princípio constitucional da igualdade de todos os cidadãos perante a lei.(art°13° CEP).
Razão ponderosa a ter em conta é o facto de aumentar agora o perigo de fuga do arguido, tanto mais que terá meios para o fazer e quanto a nós, a "prisão domiciliária" com o famigerado controlo de pulseira electrónica, (que alguns dos poucos países que o adoptaram, já rejeitaram), não constitui um meio eficaz caso do arguido pretender eximir-se ao cumprimento de tal medida, não acautelando por isso, com segurança, as finalidades visadas.
Acresce ainda referir que, a manter-se o arguido em liberdade, sujeito a qualquer outra medida coactiva, aguardando-se pela decisão definitiva transitada em julgado, se poderia eventualmente revelar um procedimento desvirtuador da finalidade da punição, na medida em que talvez entrasse em cumprimento de pena quando deveria estar a sair. Situação que não é benéfica nem para o arguido, nem para as vítimas, nem para a sociedade.

Consequentemente, ao abrigo do disposto nos art °193º, 202° n° 1 al. a) e 204° al.
a) todos do Cód. Proc. penal, determina-se a prisão preventiva imediata do arguido (J) em estabelecimento prisional.

Vejamos, então, perante o factualismo descrito, qual o merecimento do recurso no que tange à parte em questão.
Preceitua-se no n.° 4 ao artigo 375.° do Código de Processo Penal, n.° esse introduzido pela Lei 59/98, de 25 de Agosto: "Sempre que necessário, o tribunal procede ao reexame da situação do arguido, sujeitando-o às medidas de coacção admissíveis e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer.".

Esse reexame e subsequente alteração, para mais ou menos gravosa, da medida de coacção não pode, como é evidente, ser feita livre e arbitrariamente mas sim com obediência aos princípios e regras gerais das medidas de coacção.
A agravação da medida de coacção só é consentida se se verificar incumprimento pelo arguido das obrigações resultantes da sujeição a essa medida ou o incumprimento dos deveres processuais que a aplicação de tal medida visa acautelar - ou, no mínimo, o perigo e/ou eminência da sua violação - ou alteração das circunstâncias.
No acórdão que contém a decisão recorrida em apreciação, nenhuma situação de incumprimento das obrigações a que se encontrava sujeito o arguido/recorrente foi mencionada, como não foi mencionado incumprimento de qualquer dever processual por parte do mesmo arguido, sendo tão-só, como desse despacho resulta, a condenação referida supra a razão da aplicação daquela medida de coacção prisão preventiva em estabelecimento prisional, referindo-se aí "aumentar agora o perigo de fuga do arguido". Mas,
Não há qualquer facto concreto que permita concluir pelo receio de fuga do arguido, não bastando, salvo melhor opinião, a condenação em sete anos de prisão, para, sem mais, se poder concluir por tal receio. Se assim fosse, então o legislador não deixaria, pensamos, de dizer, v. g., que a partir da aplicação de uma certa medida de pena de prisão haveria sempre lugar à aplicação da medida cautelar prisão preventiva até ao trânsito em julgado da decisão condenatória.
Aliás, o perigo de fuga nem sequer foi fundamento da aplicação da medida de coacção a que o arguido/recorrente se encontrava sujeito antes de ser proferida a decisão em apreciação, ficando, por conseguinte, sem razão de ser invocar-se em tal acórdão, como se invocou, aumento (o sublinhado é nosso) do perigo de fuga.
Por outro lado, compulsados os autos, não nos revelam os mesmos que, para além da dita condenação, tenha surgido, após a decisão impondo ao arguido/recorrente a predita medida de coacção, ou seja, obrigação de permanência na habitação com sujeição a fiscalização electrónica e obrigação de não estabelecer contactos com menores até aos 14 anos, qualquer facto novo eventualmente susceptível de interferir com a situação processual em termos de medidas de coacção do dito arguido.
A decisão condenatória não pode abstractamente, por si só, portanto desacompanhada de qualquer outro facto novo relevante, servir de fundamento ara alterar medida de coacção que até ao momento dessa decisão vigore, continuando o arguido a presumir-se, até ao trânsito em julgado de tal decisão, tão inocente como no início do procedimento criminal, pois que, constitucionalmente, a inocência não admite graduação.


In casu, tendo em conta que, como acima se disse, os autos não revelam qualquer incumprimento, por parte do arguido/recorrente das obrigações a que se encontrava, em termos de medida de coacção, sujeito, ou incumprimento de qualquer dever processual, e que, como acima se anotou, a condenação não potencia, por si só, perigo de fuga, ou mesmo, diga-se, o agravamento de qualquer um dos dois outros perigos que fundamentaram a aplicação da medida de coacção a que anteriormente tal arguido se encontrava sujeito, há que concluir, como concluímos, que foi, com a decisão recorrida em apreciação, violado o princípio da subsidiariedade insíto no n.° 2 do artigo 193.° do Código de Processo Penal, razão por que essa decisão não pode subsistir.

DECISÃO:
Por tudo o exposto, e sem necessidade de mais, acorda-se em, concedendo provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida, ficando, por consequência o arguido/recorrente sujeito, até que a 1.a instância profira nova decisão atinente à sua situação processual, ou, no máximo, até acórdão final transitado em julgado, a aguardar os ulteriores termos do processo na situação em que se encontrava antes da leitura da decisão recorrida acabada de apreciar, ou seja, sujeito à obrigação de permanecer na habitação, com sujeição a fiscalização electrónica, e à obrigação de não estabelecer contactos com menores até aos 14 (catorze) anos.
Não há lugar a tributação.

Passem-se mandados para libertação imediata do arguido/recorrente, remetendo-se, via fax, ao respectivo Estabelecimento Prisional.

Lisboa, 1 de Fevereiro 2005

Marques Leitão

Santos Rita

Filomena Clemente lima