Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
121/10.1TBTVD-A.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: INSOLVÊNCIA
CULPA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: -Requerida a insolvência do devedor, por um dos credores, em 14/01/2010, e provando-se que a devedora não está em condições de satisfazer as suas obrigações desde 2006, tendo inclusive cessado a actividade pelo menos em 2008, sendo de 2007 o último exercício relativamente ao qual foram apresentadas contas, presume-se tal insolvência como culposa.
-Não tendo o sócio-gerente requerido a declaração de insolvência nos 30 dias seguintes ao conhecimento da incapacidade de solver as dívidas (desde 2006), não tendo sido apresentadas e fiscalizadas as contas no prazo legal, e passando o mesmo sócio-gerente a viver em parte incerta nunca se disponibilizando para o cumprimento dos seus deveres de apresentação e de colaboração, acham-se reunidos os pressupostos previstos no art. 186º nºs 1 e 3 do CIRE.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juizes, no Tribunal da Relação de Lisboa.


I-Relatório:


W ... Ld.ª, foi declarada insolvente por sentença de 19 de Janeiro de 2010, transitada em julgado.

Foi realizada assembleia de apreciação do relatório.

O sr.º administrador de insolvência veio requerer a qualificação da insolvência como culposa por parte do gerente da insolvente, alegando que a insolvente encontra-se sem actividade há cerca de dois anos, não tendo sido possível qualquer contacto com nenhum dos administradores, o que indicia falta de colaboração, pelo que se verificava o previsto no artigo 186.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa.

Por outro lado, a insolvente não comprovou a elaboração das contas no prazo legal, nem a submissão à devida fiscalização, pelo que se verificava o previsto no artigo 186.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa.

Concluiu, que a insolvência deveria qualificar-se como culposa, devendo atingir o administrador da insolvente, J...

O Ministério Público emitiu parecer de concordância com a qualificação da insolvência como culposa.
 
Regularmente notificada, a insolvente W... Ld.ª, não deduziu oposição.

Citado editalmente, o administrador da insolvente J... não contestou nem constituiu mandatário, tendo sido citada a ilustre defensora oficiosa, nos termos e para os efeitos do artigo 21.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que veio deduzir oposição, alegando, em síntese, que o sr.º administrador de insolvência apesar de invocar falta de contacto com os administradores da insolvente, não fez qualquer referência a tentativa de contactos ou os documenta.

Invocou, ainda, que apesar de o sr.º administrador de insolvência referir a verificação da falta de elaboração e apresentação das contas no prazo legal, a lei exige a demonstração de que a conduta/omissão dos administradores resultou a insolvência da sociedade ou o seu agravamento. No caso dos autos inexistem factos que permitam concluir pelo preenchimento das previsões constantes dos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 186.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa.

Concluiu, pela improcedência do presente incidente e subsequente qualificação como fortuita da insolvência.                                                                                                                
Procedeu-se a julgamento com observância do legal formalismo, e com a documentação dos autos, vindo a ser proferida sentença nos seguintes termos:
Pelo exposto, nos termos do disposto nos artigos 191.º, nº 1, alínea c) e 189.º, nºs 1 e 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o Tribunal qualifica como culposa a insolvência de W..., Ld.ª, pessoa colectiva com o NIPC n.º ..., com sede ..., e em consequência:
a)Declara afectado pela qualificação J...;
b)Declara J... inibido, pelo período de quatro anos, para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
c)Determina a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por J... ;

Foram dados como provados os seguintes factos:

1)W... Ld., pessoa colectiva nº ..., com sede na ..., matriculado na Conservatória do Registo Predial/Comercial de ..., sob o mesmo número, foi declarado insolvente por sentença de 12 de Julho de 2011, transitada em julgado, conforme teor de fls. 272 a 278 (processo em papel) dos autos principais, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
2)Tem por objecto social a comercialização de aparelhos auditivos, ajudas técnicas para a audição e testes auditivos, importação e exportação dos mesmos artigos.
3)Tem um capital social de € 5.736,17.
4)Este capital é dividido em três quotas, uma no montante de € 2.992,79, titulada por J..., outra no montante de € 1.371,69, titulada por F... e outra no valor de € 1.371,69, titulada por M...
5)A declaração de insolvência foi requerida, em 14 de Janeiro de 2010, por W... Ld.ª, nos termos e com os fundamentos constantes de fls. 3 a 9 dos autos principais.
6)A insolvência foi decretada com fundamento na falta de cumprimento de obrigações vencidas para com a sociedade W... Ld.ª, no valor de € 125.372,29, se encontrar encerrado havia mais de um ano o seu estabelecimento, sinais reveladores da impossibilidade de satisfação pontual da generalidade das suas obrigações, nos termos do artigo 20.º, n.º 1, alíneas b) e c), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa.                                                                                               7)O gerente da requerida é o sócio J..., residente ...
8)Da certidão de matrícula da insolvente de fls. 303 a 307 dos autos principais, acedida em 18 de Julho de 2011, consta o registo do depósito de prestação de contas referente ao exercício de 2007, depositados em 20 de Abril de 2009.
9)O gerente da requerida é o sócio J..., o qual foi citado editalmente nos termos e para os efeitos do artigo 188.º, n.º 6, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, tendo posteriormente sido dado cumprimento ao disposto no artigo 21.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
10)A cessação da actividade da insolvente foi participada, em sede de IVA, em 31 de Maio de 2008.
11)A insolvente encontra-se sem actividade há mais de dois anos.

Inconformado recorre J..., concluindo que:

-Deve ser revogada, a sentença que qualifica como culposa a insolvência de W... Ld.ª, pessoa colectiva com o NIPC n.º ..., com sede ..., e as suas consequências, que:
a)Declara afectado pela qualificação J...;
b)Declara J... inibido, pelo período de quatro anos, para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
c)Determina a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por J...;
A crise
o incumprimento contratual da W...
Não pode ser premiado em detrimento da dignidade humana.
Julgando-se Assim será feita a costumada JUSTIÇA, devolvendo ao alegante a dignidade Art.º 1.º da Constituição da República Portuguesa.

Cumpre apreciar.

No presente recurso e tanto quanto é possível perceber o recorrente vem alegar que a requerente da insolvência, W..., é que é a responsável da situação a que chegou a empresa de que o recorrente era sócio-gerente, devido ao seu incumprimento contratual. Por outro lado, alega que não se provou a existência de culpa grave da sua parte.

Como se sublinha na decisão recorrida, a matéria de facto dada como provada assentou na confissão da insolvente, por falta de dedução de oposição, e ainda na circunstância de a oposição do sócio-gerente J... não pôr em causa a factualidade aventada pelo Administrador da Insolvência.

O ora recorrente não impugna a decisão factual, nem dá cumprimento ao disposto no art. 640º nºs 1 e 2 do CPC.

Por outro lado, na oposição deduzida a fls. 97 e seguintes não se faz qualquer referência a tal incumprimento contratual da W... nem ao estado de saúde do sócio gerente J....

São questões novas e, como é sabido, os recursos não podem servir para apreciar questões que não foram colocadas ao tribunal recorrido quando devido e sobre as quais o mesmo não se pôde pronunciar.

Por outro lado, trata-se de factos que não estão provados, directa ou mesmo indiciariamente.

Quanto à questão da culpa grave.

Nos termos do art. 186º nº 2 i) do CIRE a insolvência será culposa quando os administradores de pessoa colectiva que figura como devedor, tenham “incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº 2 do artigo 188º”.

Tal parecer  é o elaborado pelo Administrador da Insolvência propondo a qualificação da mesma como fortuita ou culposa e, neste último caso, designando as pessoas que deverão ser afectadas por tal qualificação.

O art. 83º do CIRE prevê que o devedor insolvente fica obrigado a “fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência “ e igualmente “a prestar a colaboração que lhe seja requerida pelo administrador da insolvência para efeitos do desempenho das suas funções”.

Sucede que o sócio-gerente da insolvente, o ora recorrente J... foi citado editalmente e só em 13/01/2016 foi indicada nos autos a sua morada, ou seja, muito após o parecer do Administrador da Insolvência.

A fls. 105 vem o Mº Pº sublinhar que a própria citação edital “comprova que os sócios e corpos gerentes desapareceram e, portanto, não colaboraram na prestação de informações que constitui um dever”.

Contudo o nº 3 do art. 83º do CIRE dispõe que “a recusa de prestação de informações ou de colaboração é livremente apreciada pelo juiz (...)”.

No caso, não se pode falar de recusa de prestação de informações ou do dever de colaboração, pois o sócio-gerente não chegou a ser notificado pessoalmente.

Uma coisa é não se ter apresentado e disponibilizado para oferecer a colaboração solicitada e prestar as informações necessárias, outra é o recusar-se – por qualquer modo – a fazê-lo, depois de contactado para o efeito.

Ora, só por si, o facto de o ora recorrente não se ter espontaneamente apresentado, indicando a morada e prontificando-se a oferecer a colaboração que seja considerada necessária, apesar de revelar alguma negligência, não nos parece suficiente para qualificar a insolvência como culposa. Seria no fundo presumir que o administrador ou sócio-gerente mudou de domicílio para não poder ser notificado - ou ser notificado editalmente, como foi o caso - o que não se nos afigura aceitável, dada a inexistência de quaisquer elementos que indiciem tal intenção.

Apesar disso, a atitude do recorrente, sabendo que decorria o processo de insolvência da sua própria empresa e mesmo assim optando por manter-se incontactável – sem invocar razões que justifiquem tal atitude - deixa transparecer pelo menos uma inexplicável indiferença e afastamento relativamente a uma situação em que é legalmente exigida a sua apresentação e colaboração.

Por outro lado, desde 2008 que a insolvente não elaborou as respectivas contas no prazo legal, nem as submeteu à devida fiscalização.

Também terá de ser ponderado o facto de desde 2006 a insolvente ter deixado de solver as suas obrigações, como resulta das próprias alegações de recurso, quando se refere que a ligação contratual entre a insolvente e a W... começou em 2001, sendo que “aquilo que aconteceu de pontualidade e cumprimento nos primeiros cinco anos, deixou de se poder cumprir, visto o alegante já não poder vender (...)”.

Tendo cessado a sua actividade pelo menos em Maio de 2008.

Ora, nos termos do art. 18º nº 1 do CIRE, “o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência (...)”.

Por seu turno, o art. 186º nº 3 a) do CIRE dispõe que “presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor (...) tenham incumprido:
a)O dever de requerer a declaração de insolvência;
b)a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial”.

Desde 2006 que o sócio-gerente não podia ignorar a total incapacidade de solver as suas dívidas, o que de resto e como vimos, resulta das próprias alegações de recurso. Estava obrigado a requerer a declaração de insolvência e não o fez, acabando por ser a credora W... a requerê-la em 14/01/2010, quando as dívidas da insolvente ascendiam já a € 125.372,29.

A falta de cumprimento dos deveres a que alude o art. 186º nº 3 do CIRE gera a presunção de existência de culpa grave. Presunção que o ora recorrente não ilidiu.

Acresce que se desde 2006 a empresa W... deixou de poder cumprir as suas obrigações, como o próprio recorrente admite no recurso, tendo cessado a actividade pelo menos em 2008, é evidente que tal empresa se encontrava já, de facto, insolvente, ou seja, incapaz de cumprir as suas obrigações. O decurso do tempo agrava sempre tais condições, quanto mais não seja pelo vencimento de juros de mora.

Entendemos assim que estão preenchidos os requisitos para qualificar a insolvência como culposa.

Concluindo-se que:

-Requerida a insolvência do devedor, por um dos credores, em 14/01/2010, e provando-se que a devedora não está em condições de satisfazer as suas obrigações desde 2006, tendo inclusive cessado a actividade pelo menos em 2008, sendo de 2007 o último exercício relativamente ao qual foram apresentadas contas, presume-se tal insolvência como culposa.
-Não tendo o sócio-gerente requerido a declaração de insolvência nos 30 dias seguintes ao conhecimento da incapacidade de solver as dívidas (desde 2006), não tendo sido apresentadas e fiscalizadas as contas no prazo legal, e passando o mesmo sócio-gerente a viver em parte incerta nunca se disponibilizando para o cumprimento dos seus deveres de apresentação e de colaboração, acham-se reunidos os pressupostos previstos no art. 186º nºs 1 e 3 do CIRE.

Assim e pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela insolvente.


LISBOA,06/10/2016


António Valente
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Decisão Texto Integral: