Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MANUEL ADVÍNCULO SEQUEIRA | ||
Descritores: | ZONA ECONÓMICA EXCLUSIVA DIREITO DO MAR TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE COMPETÊNCIA INTERNACIONAL | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/08/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
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Sumário: | 1.–A Zona Económica Exclusiva não integra o território nacional, tal como tradicionalmente este é entendido. 2.– Na ZEE, os Estados costeiros exercem soberania e jurisdição nos termos previstos na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, especialmente o nº 1 do seu artº 56º, traduzidas no direito a explorar, gerir e conservar os recursos naturais aí existentes, vivos e não vivos, das águas sobrejacentes ao leito do mar, do leito do mar e seu subsolo, incluindo a exploração e aproveitamento dos recursos energéticos renováveis, a partir do vento, das ondas e das correntes marinhas. 3.– Tratam-se pois de jurisdição e soberania limitadas àqueles fins e por assim ser, não correspondem a soberania e jurisdição clássicas, idênticas às exercidas no solo nacional. 4.– Mas, em caso de tráfico de estupefacientes, a lei penal portuguesa é aplicável a factos cometidos fora do território nacional, quando praticados a bordo de navio contra o qual Portugal tenha sido autorizado pelo correspondente Estado de pavilhão a tomar as medidas previstas no artigo 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988, nos termos da alínea b) do artº 49º do Dec.-Lei nº 15/93 de 22.1, diploma que visou justamente adaptar a lei nacional às exigências da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988, de que Portugal é parte, em consonância, de resto, com o que dispõe o nº 2 do artº 5º do Código Penal. 5.– Em conformidade, o nº 1 e a alínea k) do nº 2 do artº 6º do Dec.-Lei nº 43/2002, de 2.3, atribuem à Autoridade Marítima Nacional, dependente de orgão de soberania nacional, competência para a prevenção e repressão do narcotráfico nos espaços marítimos sob jurisdição nacional e no âmbito dos parâmetros permitidos pelo direito internacional, o que conjugado com o artº 4º do mesmo diploma torna clara a pretensão do Estado Português relativamente a tal jurisdição em relação à ZEE. 6.–Assim, em caso de crime de tráfico de estupefacientes cometido na ZEE é aplicável a lei portuguesa e são competentes os tribunais nacionais, a partir do momento em que haja autorização do Estado de bandeira. 7.– A prova em processo penal, particularmente em audiência, tem como objecto factos que à luz da lei substantiva constituam crime ou o excluam. Como assim, escutas, buscas, revistas, apreensões, etc. são apenas meios de obtenção de prova de crimes que não passam a objecto do processo sujeito a prova, mesmo que constem alegadas como factos nas peças processuais a tanto destinadas. 8.– Em casos de importação de grandes volumes de cocaína, o lucro visado cifra-se em fortunas, do que bem cientes estão os envolvidos. Logo o crime em causa é agravado, nos temos da alínea c) do artº 24º do Dec.-Lei nº 15/93 de 22.1, independentemente das concretas compensações de cada um daqueles agentes. 9.– E é nesse crime que participam todos os envolvidos, a começar pelo dono da droga, sendo todos co-autores, não passando a terceiros os não constituídos como arguidos, pois o conceito substantivo de agente do crime não equivale ao conceito processual de arguido. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa. No âmbito deste processo foram os arguidos MA e ZB condenados, respectivamente, nas penas únicas de 14 e 13 anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º 1, e 24.º, al. c) e de um crime de adesão a associação criminosa, previsto e punido pelo artigo 28.º, n.º 2, ambos do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, sendo as penas parcelares de 12 e de 6 anos e 6 meses de prisão para MA e as de 11 e de 6 anos e 6 meses de prisão para ZB, respectivamente por cada um daqueles crimes. Interpuseram os arguidos recurso da antecedente decisão, bem como de três decisões interlocutórias, concluindo: “1º– É ambíguo o que se descreve nos artigos 13º, 14º, 15º e 16º dos factos provados. 2º– É possível interpretar no sentido de que, no dia 21 de junho de 2018, às 8h15m dos Açores, os elementos da PJ já se encontravam a bordo do veleiro 3º– como é viável a leitura de que só após esta hora, quando ocorre a comunicação da autorização das Ilhas Virgens Britânicas, eles entram a bordo do veleiro. 4º– Assumidamente, a sentença procede a alteração dos factos descritos na pronúncia. 5º– Nalguns casos por não se tratar de alteração substancial e noutros por se tratarem de factos que provieram da defesa. 6º– A comunicação da alteração apenas é dispensada quando deriva de factos alegados pela defesa (nº 2 do artigo 358º do CPP). 7º– De resto, era quase inevitável ter de proceder a uma comunicação de alteração de factos, uma vez que a pronúncia referia 7h30m como hora da abordagem, mas sem mencionar que fuso horário estava em causa. 8º– Os factos dados como provados sob os artigos 9º, 12º, 14º, 15º, 30º e 31º não foram objeto de comunicação 9º– sendo incorreto concluir, como se faz na sentença, que os dois primeiros derivam de factos alegados pela defesa. 10º– Portanto, a sentença é nula. 11º– Tal traduz-se, ainda, em violação do artigo 6º da convenção europeia dos direitos humanos. 12º– O nº 2 do artigo 358º do CPP ofende o nº 4 do artigo 20º e os nºs 1 e 5 do artigo 32º da constituição. 13º– O veleiro foi localizado e abordado pelas autoridades portuguesas fora das águas territoriais portuguesas. 14º– O navio não é português. Nenhum dos arguidos é português. Não se dirigia para porto português. 15º– Pelas 8h15m dos Açores de 21 de junho de 2018, já os elementos da Polícia Judiciária se encontravam no veleiro e já tinha sido cumprido o mandado de busca. A autorização emitida pelas entidades das Ilhas Virgens Britânicas foi comunicada verbalmente nesse dia 21 de junho de 2018, às 8h15m dos Açores. Só mais tarde a Polícia Judiciária formalizou o pedido e este foi deferido. 16º– Não é aplicável a lei penal portuguesa nem os tribunais portugueses são competentes. 17º– A sentença dá como inexato o documento de folhas 45. 18º- Trata-se de auto de busca e apreensão, do qual consta que a diligência teve início no dia 21 de junho de 2018, às 7h30m de Lisboa. 19º– Sendo documento autêntico, encontra-se subtraído ao regime da livre apreciação da prova, apenas não podendo considerar-se como provados os factos dele constantes se a veracidade do seu conteúdo for fundadamente posta em causa, sempre seguindo os trâmites previstos no artigo 170º do CPP e conferindo aos arguidos o direito ao contraditório, sob pena de, não o fazendo, incorrer na nulidade resultante de excesso de pronúncia. 20º– Não há nenhum depoimento nem qualquer outro elemento probatório que infirme a veracidade daquele momento: 7h30m de Lisboa do dia 21 de junho de 2018. Pelo contrário, as declarações dos arguidos e os testemunhos apontam exatamente nesse sentido, sendo igualmente clara a certidão de folhas 44 verso. 21º– É inconstitucional a norma constante do artigo 127º do CPP, por contrariar o nº 4 do artigo 20º e os nºs 1 e 5 do artigo 32º da lei fundamental. 22º– Duas questões foram suscitadas pelos arguidos, nas suas contestações: inaplicabilidade da lei penal substantiva e ausência de competência dos tribunais portugueses. 23º– A sentença apenas decide sobre o segundo aspeto, pelo que é nula por omissão de pronúncia. 24º– Afirma-se que os factos ocorreram no território nacional, já que o navio foi abordado na zona económica exclusiva, quando, na realidade, esta não se integra no território nacional. 25º– O território nacional não abarca todas as zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional. 26º– Soberania nacional e jurisdição nacional não são conceitos equivalentes. 27º– A noção de águas territoriais não se equipara à de zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional. 28º– As zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional abrangem cinco zonas distintas: águas interiores, mar territorial, zona contígua, zona económica exclusiva e plataforma continental. 29º– O exercício de poderes do Estado Português varia consoante a natureza da zona marítima. 30º–A decisão instrutória não constitui caso julgado, afigurando-se errónea a afirmação de que “se mantém após a fixação dos factos, a matéria de facto relevante para a decisão em causa”. Com efeito, os factos provados são diversos daqueles que constam da pronúncia. 31º– Da matéria de facto provada não se pode extrair que a atuação policial foi conforme ao artigo 17º da Convenção sobre o tráfico ilícito de estupefacientes. 32º– Por falta de observância das formalidades legais, não é válida a prova relacionada com as apreensões. 33º– Na fase de inquérito, são nulos os despachos proferidos pelo juiz de instrução criminal relativos a atos da competência exclusiva do Ministério Público, pelo que é imprestável a prova relativa a informações contidas em dispositivos eletrónicos, já que a sua obtenção não foi devidamente ordenada, sendo inaceitável a consideração de que existem embriões de investigações. 34º– No elenco de factos provados, consta que “foi intercetado o veleiro em causa no dia 21 de Junho de 2018, em hora não concretamente apurada mas anterior às 8:15 horas dos Açores, […] entrando neste, primeiramente, os fuzileiros e, após, a Polícia Judiciária portuguesa”. 35º– Na fundamentação de Direito, diz-se que “numa primeira linha, os fuzileiros abordaram e entraram no veleiro em causa” e “num segundo momento, as autoridades portuguesas esperaram pela autorização das Ilhas Virgens Britânicas e só depois atuaram”. 36º– Está-se perante contradição insanável da fundamentação. 37º– Por outro lado, para a decisão há insuficiência da matéria de facto provada, já que esta não permite retirar a conclusão de que só após as 8h15m dos Açores “as autoridades portuguesas […] atuaram”. 38º– Há factualidade alegada nas contestações dos arguidos que não foi inserida nos factos provados nem no elenco de factos não provados, pelo que se verifica nulidade da sentença por omissão de pronúncia (Tudo o que sucedeu desde as 7h30m de Lisboa de 21 de junho de 2018 dependeu da vontade das autoridades policiais, da correspondente estratégia e das táticas adotadas. Onde os arguidos e LH se encontrariam nos restantes dias do mês de junho de 2018, caso não tivessem sido interceptados pelas autoridades portuguesas no dia 21, é algo que não se consegue apurar. O navio não é português. Nenhum dos arguidos é português. LH não é português. No momento em que os arguidos e LH foram abordados, não se encontravam em águas territoriais portuguesas: não estavam em Portugal. Ato contínuo, logo nesse instante, todos os arguidos foram algemados e assim permaneceram até à chegada à Horta. Foram objeto de revista de segurança e algemados, permanecendo sentados no convés do tombadilho por ordem dos elementos policiais. Os arguidos tiveram de dormir, beber água, comer e satisfazer necessidades fisiológicas. Numa fase inicial, os arguidos foram algemados com abraçadeiras plásticas e posteriormente com algemas metálicas dotadas de fechadura. Apesar de ser proprietário e comandante do veleiro, o arguido MA deixou de ter a faculdade de optar pela correspondente rota e, assim, a embarcação foi realmente conduzida ao porto comercial da cidade da Horta, na ilha do Faial, nos Açores. O navio entrou em águas territoriais açorianas, portanto portuguesas. Mas tal sucedeu por avaliação e decisão das autoridades policiais portuguesas. O que ocorreu na Ilha do Faial foi presenciado por um cidadão norte-americano pertencente à Drug Enforcement Administration, integrado no departamento de justiça dos E.U.A, que ia transmitindo ensinamentos e diretrizes aos agentes policiais). 39º– Não deveria ser dada como provada, em toda a sua extensão, a factualidade aludida nos artigos 1º a 4º, 7º, 9º, 12º, 14º, 17º, 21º, 22º, 24º a 27º, 30º, 31º e 35º dos factos provados. 40º– Haveria que considerar como provado o seguinte: Na sequência de informações obtidas via MAOC – Maritime Analysis and Operations Centre - Narcotics, as autoridades portuguesas localizaram, pelas 16h15m dos Açores de 20 de junho de 2018 nas coordenadas 36º43′8"N 31º29′6"W e pelas 16h50m dos Açores desse mesmo dia nas coordenadas 36º45′5"N 31º27′2"W o veleiro “Oggi”, os arguidos e LH , no Oceano Atlântico, ao largo dos Açores, que assim vieram intercetar no dia 21 de Junho de 2018 pelas 7h30m de Lisboa, nas coordenadas 037º 31.8"N; 030º 19.6"W. Às 7h30m de Lisboa (6h30m dos Açores) do dia 21 de Junho de 2018, foi cumprido o mandado de busca e apreensão que recaía sobre o veleiro. Foi a embarcação conduzida ao porto comercial da cidade da Horta, na ilha do Faial, Açores, onde chegou no dia 22 de junho de 2018 pelas 8h da manhã dos Açores. Tudo o que sucedeu desde as 7h30m de Lisboa de 21 de junho de 2018 dependeu da vontade das autoridades policiais, da correspondente estratégia e das táticas adotadas. Onde os arguidos e LH se encontrariam nos restantes dias do mês de junho de 2018, caso não tivessem sido interceptados pelas autoridades portuguesas no dia 21, é algo que não se consegue apurar. No momento em que os arguidos e LH foram abordados, não se encontravam em águas territoriais portuguesas: não estavam em Portugal. Apesar de ser proprietário e comandante do veleiro, o arguido MA deixou de ter a faculdade de optar pela correspondente rota e, assim, a embarcação foi realmente conduzida ao porto comercial da cidade da Horta, na ilha do Faial, nos Açores. O navio entrou em águas territoriais açorianas, portanto portuguesas. Mas tal sucedeu por avaliação e decisão das autoridades policiais portuguesas. O navio não é português. Nenhum dos arguidos é português. LH não é português. 41º– A sentença é nula por falta de fundamentação, uma vez que não indica a prova (nem procede ao correspondente exame crítico) referente ao artigo 23º da matéria provada. 42º– Ocorre contradição insanável da fundamentação quando se indicam as declarações dos arguidos como prova para sustentar a inserção de certa factualidade na matéria cuja existência fica demonstrada, respeitante à integração no tipo de adesão a associação criminosa (artigos 1º a 3º, 9º e 24º a 26º), e depois se declara, em desabono de cada um deles, a sua posição relativamente a tal ilícito: “a não interiorização da adesão à organização em causa, que nega”. Não se compatibiliza a confissão de adesão a uma associação com a negação de adesão à mesma. 43º– Há seis elementos inegáveis: a)- O navio não era português. b)- Nenhum dos seus tripulantes era português. c)- Não se dirigia a Portugal. d)- Não se encontrava em águas territoriais portuguesas. e)- Sempre tendo por referência o dia 21 de junho de 2018, a entrada a bordo dos elementos da Polícia Judiciária ocorreu antes das 6h31m segundo o fuso horário dos Açores (momento em que nasceu o sol), tendo o mandado de busca sido cumprido às 6h30m desse mesmo fuso (7h30m de Lisboa). f)- Às 8h15m segundo o fuso horário dos Açores, foi transmitida a autorização conferida pelas autoridades das Ilhas Virgens Britânicas. 44º– A conduta dos arguidos não é suscetível de integração na modalidade agravada de tráfico de estupefacientes. 45º– Os factos provados não consentem a integração no tipo de adesão a associação criminosa, pelo que, em qualquer caso, devem eles ser absolvidos do mesmo. 46º– Por ofensa aos nºs 1 e 2 do artigo 27º e aos nºs 1, 3 e 5 do artigo 29º da lei fundamental, é inconstitucional a regra constante do nº 2 do artigo 28º do regime de combate à droga, aprovado pelo Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro. 47º– A medida da pena está sujeita a dever de fundamentação, com expressa menção às circunstâncias aludidas no nº 2 do artigo 71º do código penal e respetiva qualificação como depondo a favor ou contra os arguidos. 48º– Não tendo tal sucedido, é a sentença nula por falta de fundamentação. 49º– Os factos não permitem que as penas parcelares vão para além dos quatro anos de prisão, no que toca ao tráfico de droga, e cinco anos de prisão, por adesão a associação criminosa, sendo, em ambos os casos, a respetiva execução suspensa. 50º– Outrossim, a pena única teria de ser fixada em cinco anos de prisão, cuja execução deve ser suspensa. 51º– Não poderia ser decretada a perda do veleiro e do dinheiro, já que o nº 4 do artigo 30º e o artigo 62º da constituição opõem-se à aplicação do nº 1 do artigo 35º e do artigo 38º do regime de combate à droga, aprovado pelo Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, assim como dos nºs 1 e 2 do artigo 109º do código penal. 52º– Normas jurídicas violadas: do código de processo penal alínea f) do artigo 1º artigo 20º nº 5 do artigo 97º alínea e) do artigo 119º alínea d) do nº 2 do artigo 120º artigo 125º artigo 126º artigo 127º nº 1 do artigo 129º nº 2 do artigo 134º nº 7 do artigo 147º nº 1 do artigo 167º artigo 170º nº 7 do artigo 177º nº 2 do artigo 178º artigo 190º nº 1 do artigo 262º nº 1 do artigo 263º nº 2 do artigo 310º nº 4 do artigo 339º artigo 358º nºs 2, 3 e 4 do artigo 359º nº 2 do artigo 374º nº 1 do artigo 375º alíneas a), b) e c) do nº 1 do artigo 379º alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 410º do regime aprovado pelo decreto-lei nº 15/93, de 22 de janeiro nº 1 do artigo 21º alínea c) do artigo 24º nºs 1 e 2 do artigo 28º nº 1 do artigo 35º artigo 38º artigo 49º do código penal alínea b) do artigo 4º artigo 5º artigo 6º artigo 26º artigo 40º artigo 50º nºs 2 e 3 do artigo 71º artigo 77º do código civil nº 2 do artigo 363º da convenção contra o tráfico ilícito de estupefacientes artigo 17º da Lei nº 109/2009, de 15 de setembro nºs 1 e 4 do artigo 15º artigo 16º da Lei n.º 34/2006, de 28 de Julho artigo 2º artigo 6º artigo 13º da convenção europeia dos direitos humanos artigo 6º da constituição artigo 5º artigo 14º nº 4 do artigo 20º nºs 1 e 2 do artigo 27º nºs 1, 3 e 5 do artigo 29º nº 4 do artigo 30º nºs 1, 3, 4 e 5 do artigo 32º artigo 62º. 53º–Erradamente, o tribunal interpretou o artigo 5º da constituição como estabelecendo que a zona económica exclusiva está integrada no território nacional, quando deveria ter interpretado o preceito no sentido de que a mesma se encontra fora do território nacional. 54º– O tribunal entendeu ser aplicável a alínea d) do nº 2 do artigo 120º do CPP a propósito das apreensões e da obtenção de informações contidas em dispositivos eletrónicos, quando deveria ter aplicado o artigo 125º e o nº 2 do artigo 178º desse compêndio normativo assim como os nºs 1 e 4 do artigo 15º e o artigo 16º da Lei nº 109/2009, de 15 de setembro. 55º– O tribunal aplicou a alínea c) do artigo 24º e os nºs 1 e 2 do artigo 28º do regime aprovado pelo decreto-lei nº 15/93, de 22 de janeiro, quando, segundo os factos provados, a conduta dos arguidos se subsume apenas ao seu nº 1 do artigo 21º. 56º– O tribunal limitou-se a fazer aplicação do artigo 17º da convenção contra o tráfico ilícito de estupefacientes quando deveria ter aplicado a alínea b) do artigo 4º e os artigos 5º e 6º do código penal, o artigo 20º do CPP e os artigos 2º, 6º e 13º da Lei n.º 34/2006, de 28 de Julho. 57º– Termos em que deve a sentença recorrida ser declarada nula ou, caso assim não se entenda, ser a mesma revogada.” * * * Quanto aos recursos interlocutórios, concluem pela seguinte forma: “1º-Tendo sido admitido que o arguido fosse questionado quanto à data de elaboração de documento apreendido, a ele pertencente, e, perante a correspondente resposta, ter sido insinuado pelo Ministério Público que a resposta seria falsa, não se deve recusar a perícia que consinta a descoberta da verdade. 2º- O tribunal deveria ter aplicado o nº 1 do artigo 340º, do CPP que se mostra, assim, violado. 3º- Ao invés, fez aplicação, que os arguidos entendem ser incorreta, da alínea b) do nº 4 do artigo 340º do CPP, norma aliás desconforme com a constituição, por contrariar os nºs 1 e 5 do artigo 32º e o nº 4 do artigo 20º da mesma. 4º- Tempestivamente, os arguidos invocaram a nulidade decorrente alínea d) do nº 2 do artigo 120º do CPP. 5º- Termos em que deve ser revogado o douto despacho recorrido, sendo ordenada a realização da requerida perícia.” * * * “1º–Tendo havido depoimentos testemunhais no sentido de que a testemunha AMA viajara a bordo da aeronave que localizou o iate (mas também no sentido inverso) e de que as testemunhas AMA e MRV entraram a bordo antes da aurora, impõe-se a produção de prova para que se apure se a primeira integrava realmente a lista de passageiros do avião e o momento em que ocorreu o nascer do sol. 2º–Considerar como suficiente a prova já produzida equivale a antecipadamente tomar como apreciada a prova, o que viola o nº 2 do artigo 361º, o artigo 365º, o artigo 368º e o nº 2 do artigo 374º do CPP. 3º–Não consta do processo a matéria sobre a qual a prova requerida diz respeito. 4º–A decisão é nula, porque não foi tomada mediante deliberação tomada pelo tribunal coletivo, o que resulta do artigo 14º, da alínea e) do artigo 119º e do nº 1 do artigo 121º do CPP, normas que a decisão recorrida não observa. 5º–O tribunal deveria ter aplicado o nº 1 do artigo 340º, do CPP que se mostra, assim, violado. 6º–Ao invés, fez aplicação, que os arguidos entendem ser incorreta, da alínea b) do nº 4 do artigo 340º do CPP, norma aliás desconforme com a constituição, por contrariar os nºs 1 e 5 do artigo 32º e o nº 4 do artigo 20º da mesma. 7º–Tempestivamente, os arguidos invocaram a nulidade decorrente alínea d) do nº 2 do artigo 120º do CPP. 8º–Termos em que deve ser revogado o douto despacho recorrido, sendo ordenada a realização das requeridas diligências probatórias.” * * * “1º- Do processo não consta a intervenção da NCA na abordagem e busca. 2º- Assim como, antes da produção de prova testemunhal, não figurava a negação de que agentes policiais estrangeiros tivessem intervindo na abordagem e busca. 3º- O local da abordagem é inquestionável, como se diz na decisão recorrida, mas a prova documental oferecida pelos arguidos não se destina a reforçá-lo nem a ilidi-lo, tendo sim como finalidade colocar em causa os depoimentos testemunhais e demonstrar que os elementos da NCA intervieram na abordagem e busca. 4º- Tal assume relevância, importando decidir, naturalmente em sede de sentença, se o fizeram em desconformidade com a ordem jurídica vigente em Portugal, visto que a entrada a bordo dos agentes policiais portugueses foi anterior à concessão de autorização pelas autoridades das Ilhas Virgens Britânicas. 5º- O tribunal deveria ter aplicado o nº 1 do artigo 340º, do CPP que se mostra, assim, violado. 6º- Ao invés, fez aplicação, que os arguidos entendem ser incorreta, da alínea b) do nº 4 do artigo 340º do CPP, norma aliás desconforme com a constituição, por contrariar os nºs 1 e 5 do artigo 32º e o nº 4 do artigo 20º da mesma. 7º- Tempestivamente, os arguidos invocaram a nulidade decorrente alínea d) do nº 2 do artigo 120º do CPP. 8º.- Termos em que deve ser revogado o douto despacho recorrido, sendo ordenada a junção dos documentos oferecidos pelos arguidos.” * * * O Digno Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância pugnou fosse negado provimento aos recursos e mantida a decisão recorrida, concluindo: “A prova feita em Tribunal foi devidamente ponderada pelo Tribunal recorrido, que aplicou corretamente ao caso a lei aplicável, e encontrou o sancionamento devido, termos em que nenhuma censura merece o douto acórdão. E por esse motivo, não padece de falta de fundamentação ou de erro de julgamento. Salvo o devido respeito por opinião diversa, os recorrentes, carecem inteiramente de razão. Na verdade, da análise atenta e cuidadosa não só do texto do douto Acórdão, mas também de toda a prova produzida, não vemos, salvo melhor opinião que se verifiquem alguma ou algumas das hipóteses previstas no artigo 410.º do Código de Processo Penal. Desde já deve-se ter presente o recurso não pode ter como objetivo um novo julgamento do objeto do processo, como se a decisão da 1.ª instância não existisse, mas sim, apenas remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, expressamente indicado pelo recorrente, neste sentido, que é jurisprudência uniforme, entre outros, decidiu o acórdão do STJ de 17.05.2007. Entendemos, portanto, que os factos se devem ter por corretamente fixados. Quanto à medida das penas em causa e a ter-se como correta a subsunção jurídica efetuada -conforme se defende- importa salientar que a mesma se mostra justa e adequada em nada excessiva atentos os circunstancialismos apontados no douto Acórdão, a gravidade dos ilícitos da culpa e as necessidades de prevenção geral e especial. Por fim sempre se dirá que, no caso “sub judice”, a simples censura do facto e a ameaça da prisão, subjacentes à suspensão de execução da pena, não atinge, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição. Como consequência o douto acórdão não viola os preceitos legais invocados pelo recorrente.” * * * No que respeita aos demais recursos, respondeu igualmente o Digno Magistrado, concluindo: “Ao contrário do expendido pelos recorrentes, a realização da perícia à tinta que consta do documento de fls. 152 para saber e que data foi redigido não relevava em termos de decisão do tribunal, é irrelevante não é essencial para a descoberta da verdade, consequentemente, não constitui nulidade relativa, cfr. artigo 120.º n.º 1 al. d) do Código do Processo Penal. Quanto a diligências de prova relativamente à qual os recorrentes pretendem fazer prova e que deu origem ao recurso com a referência eletrónica n.º 37235880, é matéria que sempre constou do processo, já constava nos autos (como é óbvio) desde o seu início, isto é, consta desde o inicio do inquérito a participação de autoridades estrangeiras e sempre foi argumento dos recorrentes não ter sido abordados em águas portuguesas pelo que, se a sua defesa assentava nessa circunstancia, deveria ter sido invocada, assim como requeridos os meios de prova ora em crise, na contestação. Ademais, junção em causa seria até inadequada para demonstrar que a abordagem ocorreu em águas que não são portuguesas, pois não é das fotografias em causa ou do post junto, que se pode concluir o concreto local onde a mesma se processou. Pelo que a omissão das referidas diligências de produção de prova, não é essencial para a descoberta da verdade, consequentemente, não constitui nulidade relativa, cfr. artigo 120.º n.º 1 al. d) do Código do Processo Penal. O presidente do Tribunal coletivo tem as suas competências para atos próprios definidas na lei, nomeadamente, nos artigos 311.º (profere despacho de saneamento do processo), 312.º e 313.º (profere despacho a marcar a audiência de julgamento), 314.º, nº 3 (pode ordenar que o processo vá com vista aos juízes adjuntos), 319.º, n.º 1 (pode ordenar a tomada de declarações no domicílio), 320º (pode ordenar a realização de atos probatórios urgentes), 321.º, n.º 1 (pode ordenar a exclusão ou restrição de publicidade da audiência), 322.º (poderes de disciplina da audiência e a direção dos trabalhos, elencados no artigo 323.º), alterar a ordem de produção de prova (art. 348.º) e outras intervenções que se compreendem no âmbito da direção da audiência. Quanto às restantes situações não existindo qualquer norma ou preceito legal que imponha que as decisões colocadas fora da audiência de julgamento, tenham de ser tomadas pelo coletivo, estando tais requerimentos sujeitos apenas à regra geral de que os mesmos são deferidos ou indeferidos pelo titular do processo, o que aliás sucede com o recebimento da acusação, o recebimento da contestação e todos os despachos que são proferidos no processo fora da audiência de julgamento. Se assim é, como bem refere o Tribunal a quo “inexiste qualquer nulidade”. Por fim a junção aos autos dois documentos compostos por fotografia e post do facebook, destinando-se a junção em causa a demonstrar a intervenção de autoridades estrangeiras e que a abordagem ocorreu em águas não portuguesas que deu origem ao recurso com a a referência eletrónica n.º 37341263, entende o Ministério Público que a sua junção já era pertinente no momento da apresentação das contestações por parte dos arguidos, consequentemente a sua junção apenas em audiência de julgamento deve pois de ser indeferida nos termos do disposto no artigo 340.º, n.º 4, al. a) primeira parte, do Código do Processo Penal, como ocorreu.” * * * Neste Tribunal da Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto deu o seu parecer na audiência, no sentido da improcedência dos recursos. * * * Realizada a audiência, foram os autos à conferência. -- // -- // -- Fundamentação. * * * O acórdão recorrido estabeleceu os seguintes factos provados: 1.–“Os arguidos MA e ZB, conjuntamente com LH, tomaram parte, com outros indivíduos cuja identidade não se logrou apurar, de um grupo organizado que se dedica à importação e transporte para a Europa, de cocaína em pó, com vista à sua venda a terceiros e tendo por objectivo o lucro resultante dessa actividade. 2.–No seio do grupo mencionado em 1., foi concebido um plano tendente a permitir-lhes introduzir na Europa, em Junho de 2018, por via marítima, 1.208.610,521 gramas líquidas de cocaína cloridrato, com 84% de pureza, correspondente a 5.077372 doses. 3.–Em execução deste plano, previamente delineado pelos arguidos e demais indivíduos com quem actuavam concertadamente, estes decidiram proceder ao transporte, por via marítima, da cocaína mencionada em 2. 4.–Para o efeito, seria utilizado o veleiro tipo Sailing Vessel, com um mastro, denominado “OGGI”, com pavilhão Ilhas Virgens Britânicas, com o número de registo 745425, com cerca de 49,25 pés de comprimento e 15,0 pés de largura, com o comprimento de cerca de 15 metros. 5.– Tal veleiro é propriedade do arguido MA desde 9 de Maio de 2013. 6.– E foi comandado pelo arguido MA . 7.–Em execução do mencionado plano, foi decidido reconfigurar, através de obras, como foi reconfigurado, algumas partes que ficam por debaixo do soalho do veleiro, por forma a aí ser acondicionada, dissimuladamente, como foi feito, a cocaína mencionada em 2. 8.–A bordo do veleiro em causa, os arguidos saíram de Granada, nas caraíbas, no dia 17/05/2018. 9.–Cerca de 15 dias depois, os demais membros do grupo referido em 1., em alto mar, procederam ao transporte e acondicionamento, através de 4 a 5 pessoas, da cocaína mencionada em 2. no veleiro em causa, ocultando-a nos compartimentos secretos que tinham sido criados para o efeito por debaixo do soalho. 10.–Os arguidos, conjuntamente com LH, após o momento referido em 8., agindo de comum acordo e concertadamente, tripularam o veleiro em causa, com destino à Europa, guardando e transportando, após o momento referido em 9., a cocaína referida em 2. 11.– Entre os dias 27/05/2018 e 2/06/2018, os arguidos, a bordo do veleiro em causa, navegaram pelo norte da República Cooperativa da Guiana, Suriname, Guiana Francesa e nordeste do Brasil, tendo por destino de navegação a Europa. 12.–Os pontos de navegação em causa eram desconhecidos dos arguidos à partida de Caraíbas, e foram-lhes sendo transmitidos, via rádio, ao longo da viagem, por um indivíduo cuja identidade não se logrou apurar, conhecido por J. pelo arguido MA . 13.–Na sequência de informações obtidas via MAOC – Maritime Analysis and Operations Centre - Narcotics, as autoridades portuguesas localizaram o veleiro “Oggi” e os arguidos nas coordenadas 037º 31.8 N, 030º 19.6 W, no Oceano Atlântico, ao largo dos Açores. 14.–Tendo, em consequência, interceptado o veleiro em causa no dia 21 de Junho de 2018, em hora não concretamente apurada mas anterior às 8:15 horas dos Açores, naquelas mesmas coordenadas 037° 31.8”N; 030° 19.6”W, entrando neste, primeiramente, os fuzileiros e, após, a Polícia Judiciária portuguesa. 15.–No dia 21/06/2018, pelas 8:15 horas dos Açores, foi, verbalmente, pelas Ilhas Virgens Britânicas, transmitida a autorização para que a marinha portuguesa e a polícia portuguesa actuassem no veleiro em causa. 16.–Pelas condições do estado do mar, que não permitia a realização de buscas, em segurança no veleiro Oggi, foi, por determinação da polícia judiciária, a embarcação conduzida pelo arguido MA ao porto comercial da cidade da Horta, na ilha do Faial, Açores, onde chegou no dia 22/06/ 2018 pelas 8:00 horas da manhã. 17.–As buscas foram iniciadas no dia 22/06/2018 pelas 12:00 horas e terminadas no dia 24/06/2018, pelas 15:00 horas. 18.–No dia 23/06/2018, entre as 15:00 horas e as 21:00 horas, no interior do veleiro “Oggi” e na posse dos arguidos, foram encontradas e apreendidas 1.200 embalagens de cocaína, com o peso referido em 2. 19.–Tais embalagens estavam ocultadas da seguinte forma: 19.1. - 1.174 - embalagens encontravam-se dissimuladas numa estrutura cavernosa construída entre o soalho e o casco do veleiro, debaixo da cama/sofá situado a meia nau, e debaixo da qual deveria estar um depósito de combustível; 19.2. as restantes 26 embalagens estavam escondidas por baixo de uma robusta caixa feita em fibra, que se encontrava cravada no soalho e de difícil remoção, cuja função seria alojar quatro baterias de grandes dimensões. 20.–Os arguidos conheciam a natureza estupefaciente e roibida da cocaína cloridrato que detiveram, guardaram e transportaram. 21.–Foi em conjugação de esforços e em execução de plano previamente delineado, que agiram do modo descrito. 22.–A totalidade do produto estupefaciente é destinado a venda a terceiros, visando obter, por essa via, pelo menos € 38.608.336,69. 23.–Os arguidos ao actuarem conforme descrito contribuíram, na parte que lhes competia, para a prática do crime em causa, agindo sempre com a consciência da sua integração num grupo e de que o cumprimento das respectivas tarefas era indispensável à prossecução dos objectivos do grupo, a que aderiram, fazendo-os seus. 24.–Os arguidos acrescentaram à estrutura da organização os seus meios individuais, o que fizeram através de laços de disciplina e hierarquia definidos para melhor levarem a cabo os seus intentos. 25.–Quiseram ajudar a levar à prática os factos ilícitos antes mencionados para deles retirarem todos, globalmente, benefícios económicos que se cifrariam, pelo menos, na quantia indicada em 22. 26.–Os arguidos, LH e os demais indivíduos não identificados, com quem actuavam concertadamente, juntaram-se e actuaram sempre, nos moldes descritos, em comunhão de esforços e união de vontades, destinados ao transporte da cocaína em causa, com a finalidade comum de serem obtidos os proventos económicos referidos em 22. 27.–Para tanto, actuavam nos termos descritos de forma conjugada e concertada. 28.–Os arguidos agiram de comum acordo, livre, voluntaria e conscientemente. 29.–Bem sabendo que as descritas condutas eram proibidas e punidas por lei. 30.–Os arguidos, aquando da sua intercepção, detinham € 2.450,00, em numerário, 420,00 libras inglesas, em numerário, e € 470,00, em numerário. 31.–Tais quantias em dinheiro haviam-lhes sido entregues pelo indivíduo mencionado em 12., para fazerem face às despesas da viagem. 32.–Após a intercepção e entrada referida em 14., os arguidos foram algemados. 33.–O arguido MA aceitou fazer o transporte da cocaína em causa a troco de € 40.000,00, que receberia no acto de entrega da mesma. 34.–Fê-lo devido a dificuldades financeiras e dívidas ocorridas em virtude de furacão que afectou St. Maarten em 2017. 35.–Por esse motivo, além do valor acordado, recebeu, de imediato, valor não concretamente apurado para pagamento de dívidas. 36.–O arguido ZB aceitou fazer o transporte da cocaína em causa a troco de € 20.000,00, que receberia após a entrega da mesma. 37–Fê-lo devido a dificuldades financeiras e incapacidade de pagar a sua casa, ocorrido em virtude de inflação galopante. 38–Devia, à data, cerca de e € 110.000,00 à banca. 39.–Precisando de € 10.000,00 a € 15.000,00 para propor acção em tribunal contestando o valor referido em 38. 40.–O arguido MA nasceu na Croácia, em Rijeka. 41.–Teve um adequado processo de desenvolvimento e um contexto familiar de suporte. 42.–Mantém, ainda actualmente, um contacto muito próximo com os progenitores e o irmão. 43.–É o mais velho da fratria. 44.–Frequentou a escola, concluindo o nível secundário. 45.–Realizou, posteriormente, formação profissional na área da hotelaria. 46.–Trabalhou nessa área a partir dos 20 anos de idade e durante cerca de 17 anos, o que fez na gestão de Cafés, restaurantes e hotéis. 47.–Nessa área, trabalhou durante alguns períodos noutros países da Europa. 48.–A pretexto de mudar de área profissional, com cerca de 37 anos frequentou uma formação superior em escola náutica, na Inglaterra, por forma a obter o grau de capitão de embarcação. 49.–Passou a desempenhar tal actividade, quer na Croácia, quer noutros países da Europa e na zona das Caraíbas, actividade que exercia à data da reclusão. 50.–Tem uma filha, de 9 anos de idade. 51.–Tinha, até ao momento referido em 34., uma situação económica estável, que lhe permitia garantir a satisfação das suas necessidades básicas e contribuir para o sustento da filha. 52.–Estabeleceu duas relações conjugais, ambas terminadas em divórcio, a última das quais há cerca de 7 anos. 53.–Nesse contexto, tem a filha referida em 50., que se encontra aos cuidados da respectiva progenitora, em Amesterdão, e com quem mantém contacto telefónico regular. 54.–Compreende a acusação e a intervenção judicial no âmbito do presente processo. 55.–Em contexto prisional, tem apresentado boa adaptação, sem infracções disciplinares e sem dificuldades relacionais. 56.–No primeiro período de prisão preventiva à ordem dos presentes autos participou e organizou actividades desportivas para outros reclusos. 57.–No segundo período de prisão preventiva, não lhe foi atribuída qualquer actividade. 58.–Tem boa relação com a mãe da sua filha. 59.–Já foi visitado em Portugal quer pelos pais, quer pela sua filha e pela mãe desta. 60.–Tem ambos os pais com 74 anos e debilitados por doença. 61. Projecta, quando em meio livre, refazer a sua relação com a filha, ajudar os pais e dedicar-se à hotelaria. 62.–Conta com o apoio dos pais, da filha e de amigos quando estiver em meio livre. 63.–O arguido ZB nasceu na Croácia, em Rijeka. 64.–É oriundo de uma família estruturada e cresceu num contexto familiar harmonioso. 65.–É o mais velho de dois irmãos. 66.–A mãe é doméstica. 67.–O pai trabalhava como engenheiro civil. 68.–Beneficiou de apoio familiar sem especiais dificuldades na satisfação das necessidades básicas. 69.–Sempre residiu com a família de origem. 70.–Teve vários relacionamentos afectivos de curta duração. 71.–À data de reclusão, residia com a mãe. 72.–O pai faleceu em 2016. 73.–Concluiu o nível secundário, tendo o 12.º ano de escolaridade. 74.–Frequentou, posteriormente, um curso profissional na área da electrotecnia. 75.–Com cerca de 20 anos, começou a trabalhar. 76.–Desenvolveu trabalhos na área da electrotecnia e reparações eléctricas, actividades que mantinha de acordo com as solicitações de trabalho. 77.–Com o início da guerra da Jugoslávia, em 1991, a instabilidade e dificuldades determinadas em termos sociais pelo conflito, implicaram maiores dificuldades de inserção laboral, tendo, por isso, alguns períodos de desemprego e procedendo à realização de tarefas indiferenciadas. 78.–Não participou em actividades como combatente, mas interveio no apoio a refugiados. 79.–Com cerca de 35 anos, após o período de guerra, constituiu empresa própria e passou a trabalhar como carpinteiro, retomando, ainda, alguns trabalhos de electrotecnia. 80.–Mais tarde, fez curso suplementar de hotelaria e ingressou no ramo da hotelaria, como empregado de bar e, posteriormente, como gerente de bar, actividade que manteve até à ocorrência do presente processo. 81.–Tinha um salário equivalente ao salário mínimo nacional. 82.–Teve um percurso pessoal integrado, sem ocorrência de comportamentos desviantes ou dificuldades de inserção. 83.–Os seus tempos livres eram ocupados com actividades desportivas, participando, por vezes, como treinador de fitness num ginásio. 84.–Em contexto prisional tem apresentado um percurso adequado sem dificuldades comportamentais. 85.–No primeiro período de prisão preventiva à ordem destes autos foi enquadrado em actividades de faxina e manutenção. 86.–No actual período de prisão preventiva não lhe foi atribuída qualquer actividade. 87.–Mantém ligação com a progenitora, que se encontra doente e com quem fala todos os dias. 88.–Mostra preocupação quanto à falta de suporte à mãe e problemáticas de saúde desta. 89.–Sempre acompanhou e ajudou a mãe bem como o seu progenitor enquanto este foi vivo. 90.–Está preocupado com as consequências do presente processo. 91.–Atribui ao mesmo um impacto emocional acentuado, pela distância em relação à família e às dificuldades por não dominar a língua portuguesa. 92.–Tem boa relação com a irmã, residente em Itália, apoiando-se mutuamente. 93.–Projecta, quando em meio livre, regressar para a família, na Croácia, e exercer a mesma profissão que exercia. 94.–Conta com o apoio da mãe e da irmã quando estiver em meio livre. 95.–O arguido MA não tem quaisquer antecedentes criminais. 96.–O arguido ZB não tem quaisquer antecedentes criminais.” * * * E os seguintes factos não provados: a)-“A mais do dado como provado em 1. e 2., que o produto estupefaciente em causa tivesse entrada através de Portugal. b)-As obras referidas em 7. foram decididas e levadas a cabo pelos arguidos. c)-O acondicionamento referido em 7. e 9. foi levado a cabo pelos arguidos. d)-A mais do dado como provado em 10., que o destino de navegação fosse o arquipélago dos Açores. e)-a mais do dado como provado em 12., que outros indivíduos tivessem feito a transmissão de pontos de navegação em causa. f)-Em local não apurado, antes de 17/05/2018 os ora arguidos, executando o plano em causa, colocaram, no interior do veleiro “Oggi”, 1200 embalagens contendo a cocaína referida em 2. g)-A intercepção referida em 14. ocorreu, concretamente, pelas 7h30 horas. h)-A mais do dado como provado em 22., que, concretamente, se visasse obter quantia não inferior a € 215.889.857,00. i)-Os arguidos já se dedicavam a actividade semelhante desde data não apurada. j)-A mais do dado como provado em 32., que o arguido MA tenha sido vendado com a t-shirt que envergava. k)-Um elemento policial convenceu os arguidos a prestarem declarações sob pena do cão do arguido MA ser lançado borda fora. l)-No momento referido em 14., o mar estava calmo, com aspecto espelhado, sem ondulação, registando vento de velocidade inferior a 1 nó, situado em 0 na escala de Beaufort, subindo os vapores na vertical e encontrando-se o céu limpo.” E como motivação do assim decidido, pronunciou-se o acórdão: “Quanto aos factos dados como provados nos n.ºs 1, 2, 3, 7, 20, 21, 24, 25, 26, 27, 28 e 29 e não provados constantes das alíneas b), c) e f), a convicção do tribunal fundou-se na admissão da realização da viagem em causa por parte de ambos os arguidos, conhecimento das transformações feitas no barco em que velejavam (o que foi levado a cabo por terceiros, como reportado pelo arguido MA ) e produto transportado e forma como foram cooptados para a actividade em causa, declarações que, nesta parte, foram coerentes, não foram infirmadas e, por isso, mereceram credibilidade. Tais declarações foram devidamente conjugadas com o teor, natureza e quantidade do produto estupefaciente que lhes foi aprendido (cfr. o exame pericial de fls. 993, devida e cabalmente explicitado em julgamento pela especialista superior da PJ JS ) e com as mais elementares regras da normalidade ou experiência comum, das quais resulta, indubitavelmente, o conhecimento da natureza ilícita do produto e do respectivo transporte e a integração destes, com o fim de transporte, numa organização que era e bem perceberam ser organizada para o efeito (e submetendo-se os arguidos à vontade e desígnios desta e acrescentando a sua importante contribuição no transporte da cocaína), não só porque dela fazia parte quem os cooptou (o indivíduo de nome J. , mencionado pelos arguidos), quem previamente fez as transformações no veleiro e quem, mais tarde, em alto mar (como estes reportaram), aí introduziu o produto estupefaciente, mas também por tal ser evidente pela forma como foi determinado que os mesmos actuassem, sem saber para onde iam em concreto, com uma navegação orientada por terceiro à distância (de 2 em 2 ou de 3 em 3 dias, como referiu o arguido MA ) e pela quantidade de produto que transportavam (e seu elevadíssimo grau de pureza), tudo próprio da actuação de uma perceptível organização, vulgarmente designada por “cartel”, sólida, organizada, com elevada capacidade económica e especialmente vocacionada para a introdução de estupefaciente na Europa e que nunca confiaria o transporte em causa a alguém que não controlasse (e não fosse fiel) e totalmente externo à organização, com o perigo, inclusive, da perda de tão valiosa carga (com um valor de, pelo menos, € 38.608.336,69) através de uma intervenção policial ou do roubo da mesma por um “cartel” rival. Quanto aos factos dados como provados nos n.ºs 4, 5, e 6, a convicção do tribunal fundou-se na admissão da factualidade em causa por ambos os arguidos, especialmente, no que tange à propriedade e características do veleiro, nas declarações confessórias do arguido MA , as quais, nesta parte, sendo coerentes e não se mostrando infirmadas por qualquer elemento existente nos autos ou por qualquer regra da normalidade ou experiência comum, se tiveram por credíveis. Quanto aos factos dados como provados nos n.ºs 8, 9, 10, 11 e 12 e ao facto não provado constante da alínea e), a convicção do tribunal fundou-se na admissão da factualidade em causa por ambos os arguidos (esclarecendo o arguido MA que a pessoa que lhe transmitia os pontos de navegação era o indivíduo que conhecia por J. ), as quais, nesta parte, sendo coerentes, corroboradas pelo teor do exame aos aparelhos de navegação de fls. 872-874 e pelas declarações da testemunha José Onofre (militar que analisou os aparelhos em causa), e não se mostrando infirmadas por qualquer elemento existente nos autos ou por qualquer regra da normalidade ou experiência comum, se tiveram por credíveis. Quanto aos factos dados como provados nos n.ºs 13, 14, 15, 16 e 32 e não provados constantes das alíneas g), j), k) e l), a convicção do tribunal fundou-se no teor da informação da MAOC constante de fls. 5 (confirmada pelo teor do depoimento testemunha BC , que elaborou a mesma), devidamente conjugada com o teor globalmente consonante das declarações de AI (inspector da PJ que acompanhou a operação após a embarcação chegar à Horta), AM (inspector da PJ que acompanhou toda a operação desde a abordagem), MRV (inspectora da PJ que acompanhou toda a operação desde a abordagem), VA (coordenador da PJ que coordenou a operação em causa) e MM (chefe da brigada da PJ que levou a cabo a operação em causa), todos congruentes e credíveis no sentido sinalização via MAOC e da localização pela força aérea e abordagem pelos fuzileiros da embarcação no local em causa (local especificado na informação de fls. 13 e que se situa na ZEE de Portugal, conforme informação de fls. 11411142, corroborada pelas declarações da testemunha ND , ao afirmar que o ponto em causa é a 95 milhas do Faial), embarcação à qual acederam, posteriormente dois elementos da polícia judiciária (que determinaram a desalgemagem dos arguidos, previamente algemados pelos fuzileiros por motivos de segurança), os quais, após obtenção de autorização para actuação por parte das Ilhas Virgens Britânicas (pelas 8:15 horas dos Açores, conforme referido pela testemunha JA, autoridade policial das Ilhas Virgens Britânicas que interveio no pedido em causa, explicando os emails de fls. 36-37), fizeram uma primeira busca sumária (conforme referiram os inspectores AM e MRV e resulta do auto de busca e apreensão de fls. 45, claramente inexacto no que tange ao dia e hora, e que, por isso, não se pôde ter em conta quanto aos mesmos, pois é pacífico, de todos os depoimentos, incluindo dos arguidos, que só a 22 a embarcação chegou à Horta, quando a diligência em causa tem uma data de início e fim a 21 e mencionando já estarem em Porto, tudo indicando o natural erro de preenchimento do formulário em causa quanto às circunstâncias de tempo da diligência em causa), e, atendendo ao estado do mar, que não permitia a realização de busca no mar (conforme disseram os inspectores AM e MRV, presentes no local, e é corroborado pelo teor da informação do IPMA de fls. 1899), determinaram ao arguido MA que a conduzisse ao porto da Horta, local em terra mais próximo daquele onde se encontravam, a fim de aí realizarem buscas e verificarem se, efectivamente, se confirmava a suspeita de transporte de estupefacientes na embarcação em causa. Não resultou, contudo, de tais elementos, a concreta hora em que se processou a abordagem em causa, estando, dada a forma como foram questionados e número de intervenções que levam a cabo, naturalmente confusos os elementos policiais e divergindo entre estes no exacto momento temporal, confluindo, no entanto, no sentido de que, após a abordagem, esperaram pela autorização das Ilhas Virgens Britânicas para actuarem (devidamente explicitada e documentada como referido), pelo que se pôde concluir que a abordagem pelos fuzileiros ocorreu em momento anterior a tal autorização. Irrelevaram, aqui, dado o desinteresse e consonância dos supra mencionados elementos probatórios, as declarações dos arguidos, claramente no sentido de assumirem as evidências do transporte que levaram a cabo, mas sempre procurando repercutir na actuação policial comportamentos (como a vendagem, a condução da embarcação sob algemagem, a ameaça de fazer mal ao cão do arguido MA ou o estado do mar no momento em causa) que bem sabem não corresponder à realidade, tanto que foram congruente, pronta e peremptoriamente refutados pelos mencionados elementos policiais (que pelo desinteresse e seriedade com que depuseram mereceram credibilidade), e, no caso do estado do mar, foram afastados até pelo inquestionável teor da informação do IPMA de fls. 1899. Quanto aos factos dados como provados nos n.ºs 17, 18, 19, 19.1 e 19.2., a convicção do tribunal fundou-se no teor consonante das declarações de AI (inspector da PJ que acompanhou a operação após a embarcação chegar à Horta), AM (inspector da PJ que acompanhou toda a operação desde a abordagem), MRV (inspectora da PJ que acompanhou toda a operação desde a abordagem), e MM (chefe da brigada da PJ que levou a cabo a operação em causa), todos congruentes e credíveis no sentido da forma como se revelaram difíceis e se foram desenrolando as buscas, em terra, ao veleiro em causa (só no segundo e terceiro dias sendo encontrado o produto estupefaciente) e período em que as mesmas ocorreram, depoimentos devidamente conjugados e corroborados pelo teor dos autos de busca e apreensão de fls. 82-84, 161-162 e 218-219, no que tange à realização das mesmas e produtos encontrados. Quanto ao facto dado como provado no n.º 22 e ao facto não provado constante da alínea h), a convicção do tribunal fundou-se no teor do valor mínimo constante do parecer da unidade de perícia financeira e contabilística da PJ de fls. 1153-1155, do qual, em termos aproximados, resulta o valor mínimo em causa, inexistindo quaisquer elementos seguros nos autos que permitam concluir por um valor superior. Quanto aos factos dados como provados nos n.ºs 30 e 31, a convicção do tribunal fundou-se no teor da admissão, pelo arguido MA, da factualidade em causa, credível por não infirmada, e devidamente complementada pelo teor dos autos de apreensão de fls. 170 e 209, quanto aos valores apreendidos. Quanto aos factos dados como provados nos n.ºs 33, 34 e 35, a convicção do tribunal fundou-se no teor das declarações do arguido MA, credíveis e não infirmadas, no sentido de esclarecer quanto iria receber pelo transporte em causa, do recebimento imediato de valor para pagar dívidas e do motivo pelo qual aceitou levar a cabo o mesmo, circunstância até corroborada pelas testemunhas TN (mãe do arguido) e SV (amiga do arguido), quanto aos reportados estragos provocados pela existência de furacão. Quanto aos factos dados como provados nos n.ºs 36, 37, 38 e 39, a convicção do tribunal fundou-se no teor das declarações do arguido ZB, credíveis e não infirmadas, no sentido de esclarecer quanto iria receber pelo transporte em causa e do motivo pelo qual aceitou levar a cabo o mesmo, circunstância até corroborada pelas testemunhas Rd (mãe do arguido) e Dn (irmã do arguido), quanto às reportadas dificuldades financeiras e sua origem. Quanto à condição social, pessoal, económica e profissional do Arguido MA , constante dos n.ºs 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61 e 62, a convicção do tribunal fundou-se no teor do relatório social do arguido em causa constante da RE 50352374, o qual não se mostra infirmado por qualquer elemento existente nos autos e foi, inclusive, corroborado e complementado pelo teor das declarações do arguido MA , quanto às suas circunstâncias pessoais, e pelo teor do depoimento das testemunhas MN (pai do arguido), TN (mãe do arguido) e SV (amiga do arguido), que mereceram credibilidade, dada a proximidade com o arguido e conhecimento directo do reportado. Quanto à condição social, pessoal, económica e profissional do Arguido ZB , constante dos n.ºs 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93 e 94, a convicção do tribunal fundou-se no teor do relatório social do arguido em causa constante da RE 3862743, o qual não se mostra infirmado por qualquer elemento existente nos autos e foi, inclusive, corroborado e complementado pelo teor das declarações do arguido ZB, quanto às suas circunstâncias pessoais, e pelo teor do depoimento das testemunhas Rd (mãe do arguido) e Dn (irmã do arguido), que mereceram credibilidade, dada a proximidade com o arguido e conhecimento directo do reportado. Quanto à ausência de antecedentes criminais por parte do Arguido MA (cfr. o facto 95 dado como provado), a convicção do Tribunal filiou-se na análise do certificado do registo criminal do arguido junto com a RE 50376443, do qual não consta qualquer condenação do arguido. Quanto à ausência de antecedentes criminais por parte do Arguido ZB (cfr. o facto 96 dado como provado), a convicção do Tribunal filiou-se na análise do certificado do registo criminal do arguido junto com a RE 50376426, do qual não consta qualquer condenação do arguido. Quanto aos factos não provados constantes das alíneas a) e d), a convicção do tribunal fundou-se no facto de os arguidos terem negado que tivessem como destino final ou de paragem Portugal ou os Açores, inexistindo nos autos qualquer elemento que permita concluir de forma diferente daquilo que declararam, merecendo, por isso, credibilidade no reportado. Quanto ao facto não provado constante da alínea i), a convicção do tribunal fundou-se no facto de os arguidos terem afirmado ser a primeira vez que procederam a actividade semelhante, inexistindo nos autos qualquer elemento que permita concluir de forma diferente daquilo que declararam, merecendo, por isso, credibilidade no reportado. No que tange aos depoimentos prestados pelas testemunhas AS (especialista adjunto da PJ), PR (inspector da PJ), JL (agente da Polícia Marítima), RS (inspector da PJ), SLM (agente da PSP), NM (agente da PSP), RM (agente da PSP) e JP (agente da Polícia Marítima), os mesmos em nada relevaram, por incidirem sobre aspectos laterais ou meramente procedimentais e incidentais e em nada relevantes para a factualidade necessária às decisões a proferir.” * * * Por seu turno, as decisões interlocutórias, têm o seguinte teor: “Vieram os arguidos suscitar a nulidade prevista no art.º 120.º, n.º 2, al. d) do C. P. Penal. Pugnou o Ministério Público pelo indeferimento da nulidade em causa por falta de fundamente legal. Cumpre decidir. Conforme resulta do disposto no art.º 120, n.º 2, al. d), parte final, é nulidade dependente de arguição a omissão de diligência essencial à descoberta da verdade. Como resulta do despacho que antecede, a prova pericial requerida afigurou-se ao tribunal desnecessária, dada a irrelevância do documento com que o arguido foi confrontado e a credibilidade que mereceu a explicação que forneceu. Se assim é, tal como anteriormente se disse, a diligência em causa não é, por ora, essencial à descoberta da verdade. Não o sendo, não é a decisão em causa ferida de qualquer nulidade nos termos e para os efeitos do art.º 120.º, n.º 2, al. d) do C. P. Penal. Em face do exposto, nos termos da supra citada norma legal, decide-se indeferir a arguida nulidade.” * * * “Vieram os arguidos, a pretexto das reservas que entendem merecer vários dos depoimentos testemunhais que enunciam (e cujo teor resumem com a RE 3856402, em termos que se dão aqui por integralmente reproduzidos), requerer que: (1)- se oficie à Capitania do porto da Horta, no sentido de esclarecer: - Que navio (ou navios) fez a abordagem da embarcação Oggi no dia 21 de Junho de 2018, na posição indicada a folhas 1141 e 1142 (referência Citius 3102107); - A que horas de que dia e de onde partiu o referido navio; - Quem transportava a bordo; - Que pessoas fizeram a abordagem, entrando a bordo da embarcação Oggi; - Se seguiam a bordo elementos da Polícia Marítima e efectuaram a abordagem; - Se as pessoas que realizaram a abordagem (designadamente, elementos do Destacamento de Ações Especiais e da Polícia Marítima) transportavam câmaras e efectuaram filmagens, que devem ser fornecidas ao tribunal em caso afirmativo; (2)- se oficie ao Comando Local da Polícia Marítima da Horta no sentido de prestar as mesmas informações; (3)- se oficie à Força Aérea no sentido de esclarecer quem seguia a bordo da aeronave que efectuou o reconhecimento de folhas 15 a 17, informando se a testemunha AMA lá se encontrava; (4)- se oficie ao Observatório Astronómico de Lisboa (Tapada da Ajuda, 1349-018 Lisboa) no sentido de esclarecer: - que horas eram em Lisboa às 4h15m de 21 de Junho de 2018 nas Ilhas Virgens Britânicas; - no dia 21 de Junho de 2018, a que horas ocorreu o nascimento do sol na posição indicada a folhas 1136 (referência Citius 3102107); (5)- se oficie ao Instituto Português do Mar e da Atmosfera (Rua C do Aeroporto, 1749-077 Lisboa), no sentido de informar a que horas do dia 21 de Junho de 2018 ocorreu o nascimento do sol na posição indicada a folhas 1141 e 1142 (referência Citius 3102107); (6)- se oficie ao Instituto Hidrográfico (Rua das Trinas, 49, 1200-677 Lisboa), no sentido de informar a que horas do dia 21 de Junho de 2018 ocorreu o nascimento do sol na posição indicada a folhas 1141 e 1142 (referência Citius 3102107). Pugnou o Ministério Público no sentido de ser indeferido o requerido por estar em causa meios de prova que poderiam ter sido requeridos na contestação, com excepção do oficio ao Instituto Português do Mar e da Atmosfera, no sentido de informar a que horas do dia 21 de Junho de 2018 ocorreu o nascimento do sol na posição indicada a folhas 1141 e 1142, e do oficio ao Instituto Hidrográfico, no sentido de informar a que horas do dia 21 de Junho de 2018 ocorreu o nascimento do sol na posição indicada a folhas 1141 e 1142. Sendo inquestionada a possibilidade de sindicância da admissibilidade dos meios de prova requeridos, vejamos se é de deferir o pretendido. A prova que o arguido requeira para ser produzida na fase de julgamento, está sujeita ao disposto no artigo 340.º, do Código de Processo Penal, segundo o qual, no seu n.º 1, o tribunal ordena oficiosamente ou a requerimento a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e boa decisão da causa. Não obstante, nos termos do n.º 4, do mencionado artigo 340.º, do Código de Processo Penal, os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que: - as provas requeridas já podiam ter sido juntas ou arroladas com a acusação ou a contestação, excepto se o tribunal entender que são indispensáveis à descoberta da verdade e boa decisão da causa; - as provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas; - o meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou - o requerimento tem finalidade meramente dilatória. Salvo o devido respeito, a matéria relativamente à qual toda a produção de prova requerida diz respeito é matéria que sempre constou do processo, resultando a necessidade probatória invocada (tendente a apurar se a abordagem e entrada dos inspectores da Polícia Judiciária foi ou não anterior à autorização dada pelas Ilhas virgens Britânicas), desde logo, em face da acusação, da pronúncia e seus termos e prova documental indicada, em nada interferindo na necessidade probatória a produção de prova testemunhal entretanto ocorrida, entendida pelos arguidos como merecedora de reservas. Se assim é, os meios de prova em causa eram pertinentes já no momento da apresentação das contestações por parte dos arguidos, tendo os mesmos de ser indeferidos nos termos do disposto no art. 340.º, n.º 4, al. a), 1.ª parte, do Código de Processo Penal. E, note-se, ainda que pudesse considerar-se necessária a produção de prova e causa (que não é sequer, como veremos), atenta a qualidade e quantidade da prova produzida já sobre a matéria (e independentemente de na convicção subjectiva dos arguidos a mesma ter merecido reservas), quer testemunhal, quer documental, não se afigura ao tribunal como indispensável a produção de prova requerida para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa, de molde a que funcione a válvula de escape prevista na 2.ª parte, da alínea a), do n.º 4, do art. 340.º, do Código de Processo Penal, pois a prova existente nos autos (e poderá ainda ocorrer que à mesma se refira qualquer outra testemunha), analisada de forma crítica, à luz do princípio da livre convicção do tribunal (art. 127.º, do Código de Processo Penal) permite seja formada convicção acerca da matéria em causa. Isto é, salvo o devido respeito, a produção de prova já existente sobre a matéria é suficiente e até mesmo exaustiva, pelo número de pessoas ouvidas, o que torna, até mesmo, não necessário o pretendido. Por maioria de razão, não é a prova em causa indispensável, requisito mais exigente do que o da mera necessidade. O disposto no art. 340.º, do Código de Processo Penal, tem na sua base a pretensão suprema de que seja alcançada a verdade material. Não permite, contudo, a interpretação de que sobre determinado ou determinados pontos deve ser produzida de forma exaustiva e até fastidiosa toda a prova que hipoteticamente se possa configurar como pertinente. Tal circunstância resulta, sobejamente, da invocada 2.ª parte, da alínea a), do n.º 4, do artigo 340.º, do Código de Processo Penal, ao erigir como critério afastador da regra de que a prova da defesa deve ser apresentada na contestação a indispensabilidade do meio de prova a produzir. Tal indispensabilidade, nos termos sobreditos, não ocorre com a prova agora em apreço. Em face do exposto, ao abrigo da norma legal supra citada, decide-se indeferir a requerida produção de prova.” * * * “Vieram os arguidos invocar a nulidade do despacho que antecede a pretexto de que são omitidas diligências essenciais à descoberta da verdade. Pugnou o Ministério Público pelo indeferimento do requerido nos termos que antecedem. Cumpre decidir: Nos termos do disposto no art.º 120.º, n.º2, al. d) do C. P. Penal, no que ora interessa é nulidade dependente de arguição a omissão de diligências que posam reportar-se essenciais para a descoberta da verdade. Como se disse no despacho cuja nulidade agora se argui, a junção em causa não é essencial à descoberta da verdade. Na verdade, a mais de a prova em causa dever ter sido apresentada na contestação, destinava-se a demonstrar a intervenção de autoridades estrangeiras, o que parece ser pacífico nos autos, bem como a demonstrar que a abordagem ocorreu em águas que não são portuguesas, sendo os documentos em causa inadequados para tal prova. Se a junção em causa não é indispensável à descoberta da verdade e/ou não é adequada à prova dos factos que pretende ser demonstrada, então não se pode falar de omissão de diligência essencial a descoberta da verdade material, falecendo por isso a arguição em causa. Em face do exposto, nos termos do art.º 120.º, n.º 2, al. d) do C. P. Penal, indefere-se a arguida nulidade.” -- // -- // -- Cumpre apreciar. De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso. * * * São assim questões a decidir: Como questões prévias: Competência jurisdicional nacional e lei aplicável; e Invalidade das apreensões. Nulidades arguidas em audiência. Nulidade do acórdão: Por alteração de factos sem comunicação; Por falta de fundamentação. Por excesso e omissão de pronúncia. Contradição insanável da fundamentação. Insuficiência da matéria de facto provada. Impugnação da matéria de facto. Errada qualificação jurídico-penal. Medida da pena e forma de execução. Perdas de dinheiro e bens decretada. * * * Questões prévias. Lei aplicável e competência jurisdicional. Desde o início do processo está documentado que a embarcação “Oggi”, com bandeira das Ilhas Virgens Britânicas, tripulada por 3 indivíduos (entre os quais os dois recorrentes), que não têm nacionalidade portuguesa, provinha de Grenada com destino à Europa e foi abordada por uma força de fuzileiros da Marinha Portuguesa nas coordenadas 037º 31.8 N, 030º 19.6 W, no Oceano Atlântico, ao largo dos Açores, mais concretamente a cerca de 90 milhas náuticas da Ilha do Faial, transportando na altura 1.208.610,521 gramas líquidas de cocaína. Como facilmente se pode comprovar e de resto todos os intervenientes aceitam, o local da abordagem situa-se na Zona Económica Exclusiva portuguesa, fora do mar territorial nacional, sequer na zona contígua (“grosso modo” a 12 e 24 milhas náuticas da costa, respectivamente). Semelhante circunstância equivale a afirmar, na verdade e salvo o elevado respeito por posição adversa, que tal abordagem ocorreu fora do território nacional. Na ZEE, os Estados costeiros exercem a sua soberania e jurisdição nos termos previstos na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, traduzidas no direito a explorar, gerir e conservar os recursos naturais aí existentes, vivos e não vivos, das águas sobrejacentes ao leito do mar, do leito do mar e seu subsolo, incluindo a exploração e aproveitamento dos recursos energéticos renováveis, a partir do vento, das ondas e das correntes marinhas. Na verdade, segundo o nº 1 do artº 56º daquela Convenção, de que Portugal é parte, “na zona económica exclusiva, o Estado costeiro tem: a)–Direitos de soberania para fins de exploração e aproveitamento, conservação e gestão dos recursos naturais, vivos ou não vivos das águas sobrejacentes ao leito do mar, do leito do mar e seu subsolo, e no que se refere a outras actividades com vista à exploração e aproveitamento da zona para fins económicos, como a produção de energia a partir da água, das correntes e dos ventos; b)–Jurisdição, em conformidade com as disposições pertinentes da presente convenção, no que se refere a: i)-colocação e utilização de ilhas artificiais, instalações e estruturas, ii)- investigação científica marinha, iii)- protecção e preservação do meio marinho; c)–Outros direitos e deveres previstos na presente convenção.” Trata-se pois de jurisdição e soberania limitadas àqueles fins e com as correspondentes finalidades e por assim ser, não correspondem a soberania e jurisdição clássicas idênticas às exercidas no território nacional. Ou seja, como se afirmou, a abordagem em causa ocorreu fora do território nacional. Simplesmente e perante o mais que consta dos autos, a conclusão a tirar é inversa à dos recorrentes. Em causa está um crime de tráfico de estupefacientes e sobre a matéria rege a alínea b) do artº 49º do Dec.-Lei nº 15/93 de 22.1, segundo o qual “para efeitos do presente diploma, a lei penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional... quando praticados a bordo de navio contra o qual Portugal tenha sido autorizado a tomar as medidas previstas no artigo 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988”. E é fora de dúvida, perante os elementos que logo constam da fase inicial do processo, que neste caso Portugal foi autorizado a tomar as medidas previstas no artigo 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988, o que solicitou ao país de bandeira da embarcação em causa. Ora, como resulta claro do respectivo preâmbulo, aquele decreto-lei visou justamente adaptar a lei nacional às exigências dos tratados internacionais de que Portugal é parte. “A aprovação da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988, oportunamente assinada por Portugal e ora ratificada - Resolução da Assembleia da República n.º 29/91 e Decreto do Presidente da República n.º 45/91, publicados no Diário da República, de 6 de Setembro de 1991- é a razão determinante do presente diploma. Tal instrumento de direito internacional público visa prosseguir três objectivos fundamentais. Em primeiro lugar, privar aqueles que se dedicam ao tráfico de estupefacientes do produto das suas actividades criminosas, suprimindo, deste modo, o seu móbil ou incentivo principal e evitando, do mesmo passo, que a utilização de fortunas ilicitamente acumuladas permita a organizações criminosas transnacionais invadir, contaminar e corromper as estruturas do Estado, as actividades comerciais e financeiras legítimas e a sociedade a todos os seus níveis. Em segundo lugar, adoptar medidas adequadas ao controlo e fiscalização dos precursores, produtos químicos e solventes, substâncias utilizáveis no fabrico de estupefacientes e de psicotrópicos e que, pela facilidade de obtenção e disponibilidade no mercado corrente, têm conduzido ao aumento do fabrico clandestino de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas. Em terceiro lugar, reforçar e complementar as medidas previstas na Convenção sobre Estupefacientes de 1961, modificada pelo Protocolo de 1972, e na Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971, colmatando brechas e potenciando os meios jurídicos de cooperação internacional em matéria penal. A transposição para o direito interno dos objectivos e regras que, num processo evolutivo, vão sendo adquiridos pela comunidade internacional mostra-se necessária ao seu funcionamento prático, acontecendo que as disposições mais significativas daquela Convenção das Nações Unidas não são exequíveis sem mediação legislativa.” Perfeitamente consonante se mostra ainda aquela norma do artº 49º do Dec.-Lei nº 15/93 de 22.1 com a que resulta do disposto no nº 2 do artº 5º do Código Penal, segundo o qual “a lei penal portuguesa é ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional que o Estado Português se tenha obrigado a julgar por tratado ou convenção internacional”. Acresce ainda o que dispõe a alínea k) do nº 2 do artº 6º do Dec.-Lei nº 43/2002, de 2.3, do qual resulta atribuição a autoridade nacional (Autoridade Marítima Nacional), dependente do orgão de soberania Governo, para “prevenção e repressão da criminalidade, nomeadamente no que concerne ao combate ao narcotráfico” por forma a “garantir o cumprimento da lei nos espaços marítimos sob jurisdição nacional, no âmbito dos parâmetros de actuação permitidos pelo direito internacional e demais legislação em vigor”, tal como resulta do nº 1 do mesmo artigo legal. E o normativo que antecede, conjugado com o que o dispõe o artº 4º do mesmo diploma, que define quais sejam os espaços marítimos sob soberania ou jurisdição nacional, não deixa margem para dúvidas sobre a pretensão do Estado Português relativamente a tal jurisdição, expressamente, em relação à Zona Económica Exclusiva. E as normas gerais que a propósito da extensão das zonas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional e os poderes que o Estado Português nelas exerce, bem como os poderes exercidos no alto mar, são traçadas pela Lei n.º 34/2006 de 28 de Julho, em nada contendem com o que antecede. O que conjugado com o princípio revelado pelo disposto no nº 1 do artº 6º do Código Penal (pretensão de punição criminal, ainda que a título subsidiário), implica inelutavelmente a competência jurisdicional nacional, logo dos correspondentes tribunais (neste sentido vão os acórdãos do S.T.J. - em DGSI - de 3.2.2021 – procº 99/16.8JELSB.L1.S1 – de 22.6.2011 – procº 65/11.0YFLSB.S1 – e de 5.7.2007 – procº 07P1496). Quanto à competência interna e tal como sucedeu, foi a mesma deferida nos termos do nº 3 do artº 20º do Código de Processo Penal, já que ainda que a embarcação tivesse Portugal como destino, o correspondente porto não foi apurado. Portugal era, ao menos formalmente, o destino do veleiro, nos termos do que a tal propósito consta da declaração de saída de Grenada, no dia 17.5.2018, a fls. 195, facto ainda reforçado pela circunstância do arguido MA, capitão da embarcação, entender a língua portuguesa, o que bem transparece, ainda que de forma inadvertida, logo das suas declarações durante o respectivo 1º interrogatório judicial. Ou seja, a lei aplicável é a portuguesa e são nacionais os tribunais competentes. * * * Invalidade de apreensões. Ainda que de diferente teor, com a questão antecedente está ligada a presente, já que se prende com a alegada circunstância de ter a abordagem sido efectuada, bem como as buscas terem início, antes da autorização do Estado de bandeira da embarcação. A este propósito, o que consta dos autos logo na sua primeira fase, apresenta uma série de incongruências, devidas, ao que tudo indica, à diferença de fusos horários dos locais onde se encontravam as várias entidades envolvidas. Com efeito, temos a Polícia Judiciária de Lisboa a contactar, por oficial de ligação da MAOC (N) britânica, o responsável das Ilhas Virgens Britânicas e ainda, como receptor final, os agentes da Polícia Judiciária nos Açores. Como se alcança das trocas de correspondência, há ainda outras vias de comunicação, fazendo-se referência a contactos telefónicos e a participações formais que posteriormente seguiriam. Tudo em muito pouco tempo, circunstâncias propícias a equívocos que nada significam, pois que autoridade policial pretenderia levar a cabo diligência não autorizada e dissimulada e contemporâneamente, ou quase, a iria solicitar? Mas há duas circunstâncias incontornáveis e que tal como as demais que até agora vimos referindo, estão documentadas na fase incial do processo (nos seus primeiros dias). A primeira é a de que a embarcação (que então apenas se sabia ser um veleiro) foi localizada durante a tarde de 20.6.2018, por aeronave da Força Aérea Portuguesa, tendo então sido verificado que aquele veleiro não exibia pavilhão nem nome. E quanto à não exibição do nome, se alguma dúvida houvesse quanto à veracidade daquela informação, é circunstância depois fotografada em reportagem seguida à respectiva apreensão, já no Porto da Horta e da qual ressalta que o veleiro não tem o seu nome na popa, o que sucedia na altura em que foi adquirido pelo arguido MA e se pode verificar das correspondentes fotografias, apreendidas e juntas. Ou seja, para se apurarem elementos absolutamente essenciais à própria necessidade do pedido de autorização ao estado de bandeira (qual seria, se algum?) e depois à sua efectivação, teria de se identificar a embarcação, o que apenas se poderia alcançar com abordagem. E a partir desta, desde logo devido à existência, bem fundada como se viu, da prática do crime de tráfico de estupefacientes, não mais se poderia perder de vista o veleiro e a sua tripulação, sob pena de se perder a prova daquele, o que constituiria grave infracção das obrigações internacionais de Portugal. Dispõe, na parte mais relevante, o artº 17º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, de que Portugal é parte, que: “1 -As Partes cooperam o mais amplamente possível para eliminar o tráfico ilícito por mar, em conformidade com o direito internacional do mar. 3 -A Parte que tenha motivos razoáveis para suspeitar que um navio no uso da liberdade de navegação de acordo com o direito internacional e que arvore o pavilhão ou tenha matrícula de uma outra Parte é utilizado para o tráfico ilícito, pode notificar desse facto o Estado do pavilhão e solicitar a confirmação da matrícula; se esta for confirmada, pode solicitar ao Estado do pavilhão autorização para adoptar as medidas adequadas em relação a esse navio. 4 -... Estado do pavilhão pode autorizar o Estado requerente a, inter alia: a) Ter acesso ao navio; b) Inspeccionar o navio; c) Se se descobrirem provas de envolvimento no tráfico ilícito, adoptar medidas adequadas em relação ao navio, às pessoas e à carga que se encontrem a bordo. 5 -Quando uma medida é adoptada de acordo com o presente artigo, as Partes interessadas devem ter devidamente em conta a necessidade de não pôr em perigo a segurança da vida no mar nem do navio ou da carga e de não prejudicar os interesses comerciais e jurídicos do Estado do pavilhão ou de qualquer outro Estado interessado. 6 -O Estado do pavilhão pode, em conformidade com as obrigações previstas no n.º 1 do presente artigo, subordinar a sua autorização a condições que sejam acordadas entre o referido Estado e a Parte requerente, incluindo condições relativas à responsabilidade. 7 -Para os efeitos dos nos 3 e 4 do presente artigo, as Partes respondem sem demora aos pedidos de outras Partes com vista a determinar se um navio arvorando o seu pavilhão está autorizado a fazê-lo, assim como aos pedidos de autorização formulados nos termos do n.º 3. Cada Estado designa, no momento em que se tornar Parte da presente Convenção, a autoridade ou, se for caso disso, as autoridades encarregadas de receber e de responder a esses pedidos. Essa designação será notificada pelo Secretário‑Geral a todas as outras Partes no mês seguinte ao da designação. 8 -A Parte que tiver adoptado qualquer das medidas previstas no presente artigo informa de imediato o Estado do pavilhão dos resultados dessa medida. 10 -As medidas adoptadas nos termos do n.º 4 do presente artigo só são aplicáveis por navios de guerra ou aeronaves militares ou quaisquer outros navios ou aeronaves devidamente assinalados e identificáveis como navios ou aeronaves ao serviço de um governo e autorizados para esse fim.” Tal como resulta cristalino daquela fase inicial do processo e com o que se inicia a segunda das referidas circunstâncias, a busca que veio a determinar as apreensões e as detenções dos arguidos só se iniciou no Porto da Horta, já a coberto de mandato judicial e numa altura em que, com segurança, já estavam volvidas mais de 24 horas sobre a autorização dada pela autoridade das Ilhas Virgens Britânicas e que, ademais, cobria toda a sucessão de diligências efectuadas. É certo que foi intentada busca anterior (a coberto de mandato de busca policial) mas o resultado desta foi nulo, já que a mesma nem sequer foi possível, atendendo ao estado do mar. Mais. Como se veio a verificar posteriormente, esse sempre seria o resultado daquela busca, atendendo às operações necessárias para ser encontrada a droga e que envolveu tempo e meios não compagináveis com o local onde se encontrava a embarcação e com a segurança de todos os envolvidos, a que Portugal também está obrigado, nomeadamente com necessidade de quebra de partes do soalho e compartimentos de combustível e baterias. Ou seja, qualquer hipotética invalidade daquela busca derivada da eventual circunstância de ter sido iniciada antes da autorização do Estado de bandeira, incidiria sobre um nulo resultado factual. Totalmente irrelevante, portanto. E sempre se dirá que a nulidade da prova obtida por métodos proibidos (artº 126º do Código de Processo Penal) tem como finalidade muito clara a protecção de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, particularmente os suspeitos ou acusados em processo criminal, como bem resulta da sua fonte constitucional, o nº 8 do artº 32º da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual “são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.” Ora, as normas daquele artº 7º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, no que respeita à autorização a conceder, ou não, para procedimento em navio seu por outro estado, visa proteger a soberania dos estados de pavilhão sobre os respectivos navios, ainda que na óptica do combate ao tráfico de estupefacientes, para a afirmar plenamente, por exemplo, na pretensão de ser o estado de bandeira a exercer a acção penal, ou por se tratar de entrega de droga controlada pelo mesmo. A prova assim obtida nunca seria nula. Quando muito, a falta de autorização conduziria a diferendo entre estados, a dirimir pelos meios próprios, também previstos na mesma convenção. Não há pois qualquer prova inválida a este propósito. * * * Nem no que respeita à obtenção de prova imprestável, relativa a informações contidas em dispositivos electrónicos, por a sua obtenção não ter sido devidamente ordenada, quer porque o foi por juiz de instrução criminal, quer porque o foi fora dos parâmetros indicados nos artos 15º e 16º da Lei nº 109/2009 de 15.11 (Lei do Cibercrime). Esta última não tem, manifestamente, aplicação ao caso, pois visa casos de ataque a sistemas de informação no domínio do cibercrime e da recolha de prova em suporte electrónico, naturalmente no mesmo âmbito, como resulta do seu artº 1ª. Ora, como bem se decidiu no acórdão recorrido, a intervenção do juiz de instrução criminal acresce garantias de defesa aos acusados, pelo que entorse alguma se verificou. Por outro lado, conhecida restrição à doutrina das consequências da utilização de método proibido de prova, que no entender dos recorrentes foi a este propósito utilizado, deita por terra a respectiva tese. É aquela referida como a limitação da “descoberta inevitável” e assenta na ideia de que a projecção do efeito da prova proibida não impossibilita a admissão de outras provas derivadas quando estas tivessem inevitavelmente (would inevitably) sido descobertas através de outra actividade investigatória legal (Jerold H. Israel e Wayne R. LaFave, Criminal Procedure - Constitutional Limitations, 6.ª ed., Saint Paul, Minnesota, 2001, 297). É o caso, pois não tivesse sido ordenada a apreensão por juiz de instrução e a mesma seria inelutavelmente determinada pelo Ministério Público, obtendo-se a mesma prova. * * * Nulidades arguidas em audiência. A primeira prende-se com a decisão que negou perícia a uma folha quadriculada que contem um esquema para saber quando teria sido efectuado. Não se vê, nem os recorrentes explicam, qual a importância de tal documento para a decisão, menos ainda se alcança a sua essencialidade. De resto, nem tal documento contou para o que seja, como bem se alcança da motivação relativa à factualidade apurada constante do acórdão recorrido. Bem andou pois o tribunal ao indeferir a pretendida perícia. É a este propósito arguida inconstitucionalidade, mas em lado algum explicam os recorrentes os alcance e significado da mesma, que de qualquer forma não se verifica. * * * A segunda tem que ver também com o indeferimento de diligências de prova tendentes ao apuramento das horas das primeiras diligências efectuadas no processo. Como se viu, logo no seu início continham os autos todos os elementos necessários à resolução das questões conexas com tal problemática, pelo que, mais uma vez bem andou o tribunal. A circunstância da decisão recorrida ter sido anunciada pelo Juiz Presidente e a de não constar em acta que previamente haja havido deliberação, perde qualquer tipo de importância, já que posteriormente em lado algum o tribunal vem colocar a decisão em causa, pelo que se tem de ter a mesma como validamente tomada, para além de acertada, como vimos. É a este propósito e de novo, arguida inconstitucionalidade, mas em lado algum explicam os recorrentes os alcance e significado da mesma, que de qualquer forma não se verifica. * * * A terceira nulidade refere-se a decisão de indeferimento de junção de documentos tendentes a confirmar a participação de agentes policiais estrangeiros na operação e muito particularmente na busca ocorrida no porto da Horta. Ora, como se refere na decisão recorrida, tais documentos deviam ter sido juntos com a contestação, caso a defesa os reputasse de essenciais. Passado esse momento, não se vislumbra qualquer tipo de importância relativamente a circunstância que ocorre depois dos factos que constituem o objecto do processo e que são, em apertada síntese, o transporte da cocaína e as circunstâncias em que este ocorreu. Esta é a factualidade (muito resumida, para melhor compreensão) relevante à luz do Direito, pois é a que constitui crime. Para além disso, que houve cooperação internacional policial desde o início da operação é facto indesmentível e que está devidamente documentado, sendo irrelevantes mais pormenores quando certo é que o processo foi levado a cabo por autoridade policial portuguesa e sob a orientação do órgão de polícia criminal competente. Também a este propósito é arguida inconstitucionalidade e de novo em lado algum explicam os recorrentes os alcance e significado da mesma, que de qualquer forma não se verifica. * * * Improcedem portanto os recursos interlocutórios. * * * Entrando agora na apreciação do recurso respeitante à decisão final, logo se verifica que o teor das conclusões apresentadas, paralelas ao constante das peças processuais destinadas a fixar o objecto do processo, fazem intuir que alguma entorse se verificou nos presentes autos. E na verdade assim sucede. * * * Os crimes em causa, sem qualquer dissenção nos autos e independentemente do que se venha a concluir quanto à prova dos respectivos factos constitutivos, são o de tráfico de estupefacientes agravado e o de adesão a associação criminosa. “Quem, sem para tal se encontrar autorizado... transportar... ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos” tal como dispõe o nº 1 do artº 21º do Dec.- Lei nº 15/93 de 22.1. O artigo 40º daquele diploma prevê o consumo ou a detenção para consumo próprio de estupefacientes. A cocaína consta da tabela I-B, anexa àquele diploma. Por seu turno, “as penas previstas nos artigos 21.º... são aumentadas de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se... o agente obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória”, tal como resulta do disposto na alínea c) do artº 24º do mesmo diploma legal. “Quem... aderir ou apoiar o grupo, organização ou associação... de duas ou mais pessoas que, actuando concertadamente, vise praticar algum dos crimes previstos nos artigos 21.º... é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos”, tal como resulta dos nos 1 e 2 do artº 28º daquele Decreto-Lei. Desde o primeiro momento processual que em causa esteve o transporte marítimo intercontinental de mais de uma tonelada de cocaína, em actividade levada a cabo por conta de cartel de cocaína. Logo, os factos penalmente relevantes seriam tão-somente aqueles que, trazidos aos autos, serviriam para preencher ou infirmar aquelas condutas típicas, na sua multiplicidade. É certo serem aqueles dos tipos penais mais abrangentes, principalmente o primeiro, mas que ainda assim se contêm em proposições apreensíveis e o mais sintéticas possível, como é característica das normas penais e não só, por razões que de tão evidentes e conhecidas dispensam outro género de explanação. Como assim e por regra, os factos a tanto ajustados não hão-de constituir um longo acervo, apto, desde logo, a penosa tramitação, julgamento e mal entendidos. E não é por constarem de peças processuais, que circunstâncias várias, ainda que conexas com os factos bastantes para a integração da conduta no tipo penal, passam a ser objecto do processo. Sobre o ponto a jurisprudência está firmada há muito tempo. “... Não existe violação do artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal por nem todos os factos constantes da acusação/pronúncia e da contestação terem sido enumerados como provados ou não provados. Só os factos essenciais para a decisão da causa têm de constar dessa enumeração”, Ac. S.T.J. de 11.2.1998 em B.M.J. 474, 151. E o que sejam tais factos essenciais foi, já há muito, alvo de doutrina do S.T.J. no seu Ac. de 15.1.1997, em C.J., tomo I, pág. 181: “A obrigação legal de na sentença se fazer a descrição dos factos provados e não provados refere-se aos que são essenciais à caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes, o que exclui os factos inócuos, irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido, mesmo que descritos na acusação ou na contestação”. Em acórdão de 26.5.2005, o S.T.J, pela pena do Colendo Conselheiro Pereira Madeira, à margem do “thema decidendum”, tratou da matéria dos requisitos formais da sentença em termos que nos devem encorajar a retomar caminho interrompido há tempos por sobressaltos processuais, impensáveis quando a economia e brevidade, a par com a sua celeridade e utilidade, constituíam referências habituais na discussão forense, vindo a desaparecer paulatinamente e a dar lugar a discussões sobre descrição e prova acerca dos próprios meios de prova, da sua obtenção, ou de meios de convicção de intervenientes processuais, quantas vezes seguidas de retrocessos na marcha do processo, o qual acabava assim por ser o objecto de si mesmo, correndo ainda o risco de olvidar o crime cuja notícia lhe deu origem e única razão de ser. Transcrevendo, “(…) importa afirmar com a frontalidade exigida na “jurisdictio” de um Supremo Tribunal, que o elenco da matéria de facto, tal como foi levado avante pelas instâncias, mormente pelo tribunal recorrido, não deixa de ser tecnicamente censurável, ao misturar factos com simples meios de prova, confundindo uns com outros. Com efeito, não se vê onde buscar assento legal para, em vez de se cingir à enunciação de factos que a lei exige – artº 374º, nº 2, do Código de Processo Penal - se haver adoptado uma postura algo próxima do floreado relato jornalístico, com a transcrição inútil do resultado de algumas escolhidas conversas objecto de escuta telefónica, em vez, como seria mister, desses elementos de prova se extraírem os factos e apenas os factos com relevo para a decisão da causa. São esses - e só esses - que a lei manda enunciar, procedendo-se, se necessário e na extensão tida por necessária, ao aparo ou corte do que porventura em contrário e com carácter supérfluo provenha da acusação ou mesmo da pronúncia, de que a sentença não é nem pode ser fiel serventuária. De resto, sempre ao juiz se impõe, sob pena de ilegalidade que se abstenha da prática de actos inúteis, como esse a que se acaba de fazer menção – artº 137º do diploma adjectivo subsidiário.” * * * Como logo se constata, os crimes em causa nos autos estavam perfeitamente consumados muito antes de qualquer notícia dos mesmos, quanto mais no momento da actuação das autoridades portuguesas. Como assim, as circunstâncias atinentes ao local da abordagem e todas as posteriores, se se constituem em pressupostos e balizas da acção penal, não passam por isso a objecto do processo. Devem constar e constam dos autos nessa conformidade e com grande relevo procedimental, como motivo da acção policial e de investigação, bem como da respectiva legalidade, mas, por definição, não constituem aquele objecto. Daí que hajam sido tratadas no local próprio, como questões prévias, justamente por se terem levantado interrogações acerca da respectiva legalidade. E foram-no sempre com base no que dos autos consta a esse respeito, sobretudo independentemente da “prova” efectuada em audiência sobre as mesmas, que corre sempre o risco de desvirtuamento, pois naturalmente não constitui o foco da atenção dos intervenientes. Repare-se como escapou o destino (pelo menos formalmente declarado) do veleiro, inicialmente demonstrado por documento que depois aquela “prova” por declarações acabou por adulterar. A prova, em processo penal, tem como objecto, por definição elementar e primeira, factos que à luz da lei penal substantiva constituam crime, ou o excluam. Como assim, escutas, buscas, revistas, apreensões, etc. são apenas meios de obtenção de prova de crimes, processualmente fulcrais e a analisar com todo o rigor, mas não passando por isso a objecto do processo, nem mesmo que constem das peças processuais a tanto destinadas. * * * Vejamos então qual a factualidade que, neste caso, constitui o verdadeiro e próprio objecto do processo, à luz das normas penais incriminadoras. Com alguma latitude, pode ser assim descrita: Os arguidos MA, LH, juntamente com outros indivíduos, fazem parte de um grupo organizado que se dedica à importação e transporte, desde a América do Sul para a Europa, com entrada através de Portugal, de cocaína com vista à sua venda. Por tal grupo foi concebido plano para introduzir na Europa, em Junho de 2018, através de Portugal, por via marítima, de cerca de uma tonelada e meia de cocaína, usando para tanto o veleiro denominado “Oggi”, com pavilhão das Ilhas Virgens Britânicas, que é propriedade e que foi comandado pelo arguido MA , tendo os arguidos reconfigurado partes por debaixo do soalho do veleiro, para aí poderem acondicionar, dissimuladamente, a cocaína. O veleiro “Oggi”, tripulado pelos 3 arguidos, partiu de Grenada, nas Caraíbas, no dia 17 de Maio de 2018 e entre os dia 27 de Maio e 2 de Junho de 2018, navegou pela América do Sul, nomeadamente pelo norte da República Cooperativa da Guiana, Suriname, Guiana Francesa e nordeste do Brasil, tendo por ultimo destino de navegação o arquipélago dos Açores, sendo tais pontos de navegação desconhecidos dos arguidos à partida e tendo-lhes sido transmitidos ao longo da viagem, pelos outros elementos da associação. Num desses pontos de navegação e de acordo com o combinado, entre 17 de Maio de 2018 e 22 de Junho de 2018, os arguidos, juntamente com outros elementos do grupo, executando o plano, colocaram no interior do veleiro, ocultando-as nos compartimentos que tinham sido criados por debaixo do soalho, 1200 embalagens de cocaína, com o peso bruto de 1.408092,00 gramas e 1.208610,521 gramas líquidos e 84% de pureza, navegando nessas condições até às coordenadas 037º 31.8 N, 030º 19.6 W, no Oceano Atlântico, ao largo dos Açores, no dia 21 de Junho de 2018 pelas 7h30. Os arguidos agiram do modo descrito a troco do recebimento de quantia em dinheiro não apurada. Conheciam perfeitamente a natureza estupefaciente e proibida da cocaína que detiveram, guardaram e transportaram e que se destinava à venda, visando obter, globalmente, quantia não inferior a 215.889.857€ (duzentos e quinze milhões oitocentos e oitenta mil e oitocentos e cinquenta e sete euros). Os arguidos ao actuarem conforme descrito contribuíram, na parte que lhes competia, para a prática do crime, agindo sempre com a consciência da sua integração no grupo e de que o cumprimento das respectivas tarefas era indispensável à prossecução dos objectivos do grupo a que aderiram, fazendo-os seus. Assim, acrescentaram à estrutura da organização os seus meios individuais, o que fizeram através de laços de disciplina e hierarquia definidos para melhor levarem a cabo os seus intentos. Quiseram ajudar a levar à prática os factos para deles retirarem todos, globalmente, benefícios económicos que se cifrariam, pelo menos, naquela quantia. Os arguidos, bem como os demais indivíduos com quem actuavam concertadamente, juntaram-se em grupo e actuaram sempre nos moldes descritos em comunhão de esforços e união de vontades, destinados à prática do crime de tráfico de estupefacientes em grande quantidade, com a finalidade comum de obterem grandes proventos económicos. Para tanto, actuavam nos termos descritos de forma conjugada e concertada. Actividade a que já se vinham dedicando desde data não apurada. Agiram de comum acordo, livre, voluntária e conscientemente. Bem sabiam que as descritas condutas eram proibidas e punidas por lei. Os arguidos, aquando da sua intercepção em 22 de Junho, detinham € 2.920 (dois mil, novecentos e vinte euros) e £ 420 (quatrocentas e vinte libras inglesas), quantias em dinheiro que lhes haviam sido entregues por outros elementos da organização criminosa para fazerem face às despesas da viagem entre o seu ponto de partida, nas Caraíbas, e os Açores. * * * Tudo o mais, para além do que se encontra repetido e de pormenores irrelevantes, são descrições de meios de prova e da sua obtenção, que como se disse, não fazem parte do objecto do processo, devendo contudo ser indicados, mas na parte a tanto dedicada daquelas peças, justamente sob a epígrafe Prova. Centrado o real objecto do processo e à luz deste, cabe proceder à apreciação do recurso principal. * * * Nulidade do acórdão: Por alteração de factos sem comunicação; Refere-se este ponto, desde logo, à alteração das horas de abordagem do veleiro e autorização do país de bandeira. Circunstâncias irrelevantes para a caracterização dos factos criminalmente relevantes, como se viu. Irrelevante é assim qualquer alteração efectuada, nesta sede. No que respeita aos pontos 9º, 12º, 30º e 31º do acórdão, não se vê onde haja alteração relevante, para além de pormenores sem importância e logo se vendo que os mesmos foram adiantados em audiência pelos arguidos. Nenhuma alteração haveria a comunicar. Aliás e no que respeita ao alegado a este propósito quanto ao ponto 30º do acórdão, sempre se dirá que absolutamente nenhuma alteração factual é detectável. Apenas uma simples mudança de redacção, processualmente insignificante. Os factos, esses, são os mesmos. A busca quase obsessiva de diferenças entre peças processuais tem de ter obviamente este limite. Os factos só são processualmente diferentes quando a narrativa de um determinado e concreto trecho de vida real é transformado e deixa de ser o mesmo, à luz do direito substantivo, ou em confronto com os meios probatórios inicialmente alinhados e narrativa destes extraída. Um simples exemplo para ilustrar o que antecede: Diariamente são dadas notícias sobre acontecimentos reais pelos orgãos de comunicação social, por vídeo, áudio e ainda por escrito. Cada um deles, com poucas excepções, comunica de forma diversa. E cada um utiliza diferentes apresentações, expressões, redacções, sintaxe e pontuação. Contudo, a notícia é a mesma. Os factos (o acontecimento da vida quotidiana) são exactamente os mesmos. Ora, as alterações factuais processualmente relevantes e por isso mesmo, hão-de estar para além daquelas diferenças, atendendo às finalidades da sua previsão e como não podia deixar de ser. * * * Por falta de fundamentação. Por, na versão dos recorrentes, não indicar a prova ou explicitar o exame crítico referente à factualidade constante do ponto 23º dos factos provados. Sem razão, já que se é verdade que na motivação escapou a expressa referência àquele ponto, o total daquela fundamentação revela perfeitamente as provas e o exame efectuado quanto à factualidade correspondente: “a convicção do tribunal fundou-se na admissão da realização da viagem em causa por parte de ambos os arguidos, conhecimento das transformações feitas no barco em que velejavam (o que foi levado a cabo por terceiros, como reportado pelo arguido MA ) e produto transportado e forma como foram cooptados para a actividade em causa, declarações que, nesta parte, foram coerentes, não foram infirmadas e, por isso, mereceram credibilidade. Tais declarações foram devidamente conjugadas com o teor, natureza e quantidade do produto estupefaciente que lhes foi aprendido (cfr. o exame pericial de fls. 993, devida e cabalmente explicitado em julgamento pela especialista superior da PJ JS ) e com as mais elementares regras da normalidade ou experiência comum, das quais resulta, indubitavelmente, o conhecimento da natureza ilícita do produto e do respectivo transporte e a integração destes, com o fim de transporte, numa organização que era e bem perceberam ser organizada para o efeito (e submetendo-se os arguidos à vontade e desígnios desta e acrescentando a sua importante contribuição no transporte da cocaína), não só porque dela fazia parte quem os cooptou (o indivíduo de nome J. , mencionado pelos arguidos), quem previamente fez as transformações no veleiro e quem, mais tarde, em alto mar (como estes reportaram), aí introduziu o produto estupefaciente, mas também por tal ser evidente pela forma como foi determinado que os mesmos actuassem, sem saber para onde iam em concreto, com uma navegação orientada por terceiro à distância (de 2 em 2 ou de 3 em 3 dias, como referiu o arguido MA ) e pela quantidade de produto que transportavam (e seu elevadíssimo grau de pureza), tudo próprio da actuação de uma perceptível organização, vulgarmente designada por “cartel”, sólida, organizada, com elevada capacidade económica e especialmente vocacionada para a introdução de estupefaciente na Europa e que nunca confiaria o transporte em causa a alguém que não controlasse (e não fosse fiel) e totalmente externo à organização, com o perigo, inclusive, da perda de tão valiosa carga (com um valor de, pelo menos, € 38.608.336,69) através de uma intervenção policial ou do roubo da mesma por um “cartel” rival”. Semelhante vício ocorreria, mais uma vez na versão dos recorrentes, por falta de fundamentação relativamente à medida concreta das penas. Sem razão, contudo, pois o acórdão explicita as razões que presidiram àquela operação, no capítulo 4 do mesmo, onde, individualmente e por cada um dos crimes se explanam com proficiência e clareza os motivos que levaram o tribunal a fixar as concretas penas aplicadas, inclusivamente a resultante do cúmulo de penas. * * * Por excesso e omissão de pronúncia. O excesso de pronúncia prender-se-ia com a desconsideração de hora constante de um auto de busca e apreensão. Circunstância totalmente irrelevante nesta sede, como vimos. Insignificante pois para o fim em vista. A omissão de pronúncia terá que ver com a falta de apreciação sobre a aplicabilidade de lei penal substantiva portuguesa. Mas o tribunal, sob o título “da excepção de incompetência” apreciou expressamente tal questão. Ainda de tal vício padeceria o acórdão por não se ter pronunciado sobre factualidade constante da contestação. Ora, sobre a nacionalidade dos arguidos e da embarcação, bem como para onde esta se dirigiria e respectiva rota, ouve pronúncia. Sobre o mais alegado, nem tanto, ou pelo menos com as expressões que os recorrentes pretenderiam, mas, como vimos, versam circunstâncias irrelevantes nesta sede, pelo que pronúncia alguma deveria ser tomada a esse propósito. * * * Contradição insanável da fundamentação. Em primeiro lugar alegam os recorrentes que tal se verificaria, já que “... no elenco de factos provados, consta que “foi intercetado o veleiro em causa no dia 21 de Junho de 2018, em hora não concretamente apurada mas anterior às 8:15 horas dos Açores, […] entrando neste, primeiramente, os fuzileiros e, após, a Polícia Judiciária portuguesa” e depois na fundamentação de Direito, diz-se que “numa primeira linha, os fuzileiros abordaram e entraram no veleiro em causa” e “num segundo momento, as autoridades portuguesas esperaram pela autorização das Ilhas Virgens Britânicas e só depois atuaram”. O alegado vício resultaria então da menção à actuação das autoridades portuguesas num segundo momento e após aguardarem por autorização, quando já se tinha dado a entrada dos Fuzileiros Navais na embarcação. Como é fácil de ver e como de resto os próprios recorrentes revelam ter compreendido, no segundo trecho faz-se equivaler a Polícia Judiciária a autoridades portuguesas, distinguindo-a assim dos Fuzileiros, para o caso, força militar sem aquela prerrogativa, ou pelo menos de forma originária. Como refere Sérgio Gonçalves Poças (Recurso da matéria de facto, Revista “Julgar”, nº 10, 2010, pag. 28: “... como resulta da norma, para que o vício se verifique, a contradição tem que ser contradição, perdoe-se a redundância e tem de ser insanável, isto é, não ser ultrapassável pelo tribunal de recurso com eventual recurso às regras da experiência ou elementos dos autos; ou seja, o facto de se verificar uma contradição no texto da decisão não quer dizer que se esteja necessariamente logo em presença do vício previsto no artº 410º, nº 2, al. b).” Como assim e como já se havia feito menção, nem é necessário fazer exame da decisão, bastando o texto do próprio recurso para se concluir pela simplesmente aparente contradição. Menos ainda depois de se ter considerado a irrelevância daquelas circunstâncias relativamente à matéria de facto objecto do processo. Do mesmo vício padecerá ainda a decisão, na versão dos recorrentes, “quando se indicam as declarações dos arguidos como prova para sustentar a inserção de certa factualidade na matéria cuja existência fica demonstrada, respeitante à integração no tipo de adesão a associação criminosa (artigos 1º a 3º, 9º e 24º a 26º), e depois se declara, em desabono de cada um deles, a sua posição relativamente a tal ilícito: “a não interiorização da adesão à organização em causa, que nega”. Não se compatibiliza a confissão de adesão a uma associação com a negação de adesão à mesma.” Mais uma vez basta o teor do texto do recurso para concluir pela não verificação de semelhante vício. É certo que a concreta adesão a associação criminosa também resultou das declarações dos arguidos, os quais, todavia, negam tal anuência. Invertamos os termos, para melhor compreender. Os arguidos negam clara e frontalmente qualquer adesão a associação daquele tipo. Mas pelo que mais declararam em audiência, conjugado com as demais circunstâncias apuradas relativamente ao transporte, o tribunal concluiu pela verificação factual de tal adesão. Ou seja, como é evidente, os arguidos não confessaram coisa alguma. Pelo contrário, negaram a circunstância em causa. Mas pelo que foram afirmando (que até pode ser de forma inadvertida), com o restante material probatório recolhido, o tribunal chegou à conclusão que na verdade a acusação era certeira, naquele ponto. Não há pois qualquer contradição, neste particular. Não se verifica, pois, o invocado vício. * * * Insuficiência da matéria de facto provada. Depois invocam os recorrentes a verificação deste vício, já que o acórdão não permite retirar a conclusão de que só após as 8h15m dos Açores “as autoridades portuguesas […] atuaram”. Tal insuficiência, prevista na alínea a) do nº 2 do artº 410º do Código de Processo Penal, versa vício consistente na falta de preenchimento factual relativamente ao tipo penal imputado. Como é sabido, resultará do texto da própria decisão, em termos de se poder afirmar, em face apenas desta, que os factos da mesma constantes não integram a prática de crime, designadamente do que é imputado. Ora, a decisão em apreço contém os factos essenciais ao preenchimento dos crimes em causa: tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º 1, e 24.º, al. c), do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro e de adesão a associação criminosa, previsto e punido pelo artº 28º, nº 2, do mesmo diploma legal. Constam (com alguma latitude, para que melhor se entenda aqui) dos números 1 a 4, 8 a 11, 18, 20, 22, 23, 28 e 29 dos factos provados. Para além de não versar tal circunstância sobre o objecto do processo, sequer padece assim o acórdão do apontado vício. * * * Impugnação da matéria de facto. Consideram os recorrentes mal julgados os pontos de facto constantes dos respectivos artigos 1º a 4º, 7º, 9º, 12º, 14º, 17º, 21º, 22º, 24º a 27º, 30º, 31º e 35º. Isto porque “dos elementos probatórios não resulta que os arguidos tenham tomado parte num grupo organizado com determinada finalidade, composto por pessoas cuja identidade se desconhece mas que devem ser quatro ou cinco, que, depois, em alto mar, foram acondicionar o estupefaciente no interior do veleiro. As declarações do arguido MA não vão nesse sentido: MA (através de intérprete)- Eu não sabia qual a quantidade de droga que vou receber e também não sabia qual o tamanho do espaço preparado para o efeito, uma vez que não fui eu quem preparou o barco. Juiz-Presidente- Quem é que preparou o barco? MA (através de intérprete)- Portanto, chegaram os carpinteiros. Foram enviados e foram eles quem prepararam o... Juiz-Presidente- E onde é que isso foi feito? MA (através de intérprete)- Em Grenada. Juiz-Presidente- E enviados por quem? MA (através de intérprete)- Portanto, a pessoa que me contactou para efetuar este... Juiz-Presidente- Sabe identificá-los? MA (através de intérprete)- Sei o nome e sei o aspeto físico Juiz-Presidente- Como se chama? MA (através de intérprete)- J. é o nome. (sessão da audiência de julgamento de 22 de outubro de 2020, depoimento iniciado às 10h36m27s com termo pelas 12h58m57s, gravação 20201022103625_12169983_2870242, 7m38s a 8m50s) Juiz-Presidente- Quem é que foi no barco consigo? MA (através de intérprete)- LH e ZB . Juiz-Presidente- Porque aparecem estas pessoas no barco? Foi o Senhor que os contratou para este serviço? Como é que foi? MA (através de intérprete)- Sim. Fui eu quem... Perguntei se eles querem fazer esta viagem. (sessão da audiência de julgamento de 22 de outubro de 2020, depoimento iniciado às 10h36m27s com termo pelas 12h58m57s, gravação 20201022103625_12169983_2870242, 18m50s a 19m31s). Muito menos as do arguido ZB , que não lidou com a pessoa que encarregou o arguido MA de efetuar o transporte”. E só. É o que se retira das motivações do recurso no que respeita à factualidade apta a preencher ou infirmar os tipos penais em causa. Tudo o mais que sob o título de impugnação da matéria de facto surge, prende-se com a investigação posterior ao cometimento dos crimes e que não tem como principais visados os arguidos, antes os agentes das autoridades que àquela procederam. Não obstante e para que não restem dúvidas, o tribunal percorreu os meios de prova que neste momento tem ao seu dispôr, documentados nos autos, bem como as gravações das declarações prestadas em audiência, desprovidas estas de parte fundamental da sua compleitude, totalmente obliterada de imediação e oralidade, presencial e interactiva, mas que sempre podem fornecer base para qualquer alteração dos factos que se venha a impôr. Ora, nas suas declarações, os arguidos reconheceram a essencialidade dos factos de que vinham acusados no que respeita ao transporte da cocaína e forma como o mesmo se efectuou, esclarecendo que sabiam o que transportavam, ainda que apenas a partir de cerca de 10/15 dias depois de terem zarpado de Grenada, altura em que aquela droga foi transbordada para o veleiro, vinda de outro navio com o qual se encontraram em alto mar e conforme indicações dadas pelo mesmo indivíduo que combinou o transporte e pagamento do serviço com o arguido MA e foi dando, via telefone por satélite, as coordenadas por onde deviam navegar. Declararam ainda que não contactaram mais ninguém para além desse indivíduo, que de resto apenas estabeleceu contacto com o arguido MA, dono e capitão do veleiro, que se encarregou de contratar os demais membros da tripulação. Os arguidos esclareceram ainda em audiência que tinham perfeito conhecimento da natureza ilícita do produto que transportavam e da respectiva proibição, motivando-se por razões financeiras. Do que antecede não se vê, de todo, qualquer possibilidade de modificação da factualidade assente no que tange ao transporte da droga, muito menos ainda que quanto a este particular imponha diferente decisão. O mesmo se diga relativamente à preparação do veleiro para aquele transporte, já que o arguido MA afirmou que aquela foi levada a cabo por iniciativa e conta daquele mesmo indivíduo. O quadro, neste aspecto, fica completo com o exame à droga apreendida no que toca ao respectivo peso e grau de pureza e parecer sobre o respectivo valor, efectuado pela unidade de perícia financeira e contabilística da Polícia Judiciária. * * * Quanto à factualidade respeitante à actuação dos arguidos no âmbito de grupo dedicado ao tráfico de estupefacientes, como é natural, inexiste prova directa, pelo que apenas por inferência de variados indícios alinhados e conjugados entre si se pode concluir. Tal matéria, vertida na acusação, tem vindo a ser abordada ao longo do processo. Em primeiro lugar por acórdão desta Relação, segundo o qual “como não considerar que três homens de profissões simples, sendo um chefe de mesa e os outros dois marinheiros, sendo dois residentes na Croácia e outro em Maiorca (Baleares, Espanha), actuaram no âmbito de uma organização mais ampla, quando se têm por certo os seguintes factos... transportaram desde o Caribe até à Europa (Açores) por barco, que foi objecto de transformações (esconderijos), cerca de tonelada e meia de cocaína em elevado grau de pureza (84%), cujo valor ascende a dezenas de milhões de euros. Sendo um dos arguidos proprietário do barco desde 2013, não podia desconhecer o facto indiciado de que o mesmo foi objecto de modificações que consistiram em reconfigurar algumas partes, que ficam por debaixo do soalho do veleiro, por forma a aí poderem acondicionar, dissimuladamente, como o fizeram, grandes quantidades de cocaína em pó, para assim poderem fazer o seu transporte... o veleiro "Oggi", tripulado pelos três arguidos e comandado pelo arguido MA , partiu de Grenada, nas Caraíbas, no dia 17 de Maio de 2018. Entre os dias 27 de Maio e 2 de Junho de 2018, navegou pela América do Sul, nomeadamente pelo norte da República Cooperativa da Guiana, Suriname, Guiana Francesa e nordeste do Brasil... Os aludidos pontos de navegação eram desconhecidos dos arguidos à partida de Caraíbas, e foram-lhes sendo transmitidos, via rádio, ao longo da viagem, por outros elementos e cuja identidade não se logrou apurar. A apurada navegação em barco intencionalmente transformado, sendo orientada à distância por outros, em actividade de tráfico internacional de estupefacientes, o valor económico do produto transportado, como o seu elevadíssimo grau de pureza, a sofisticação de meios e elevadas capacidades de organização evidenciadas, não permitem a conclusão alcançada na decisão recorrida de não verificação de um interesse superior que, de certa forma, ultrapassasse os meros intentos pessoais dos arguidos, e que conduzissem também à conclusão de inexistência de indícios de adesão a associação criminosa, como o demonstra exuberantemente também o facto de serem orientados quanto às coordenadas de navegação, numa típica acção de "Cartel", que nunca confiaria o transporte de tão valiosa quantidade de cocaína a pessoas "externas" à associação, num "outsourcing" - que poderia permitir o roubo do produto por um "Cartel" rival, - a qualquer pessoa que não fizesse parte integrante da associação criminosa e que no final não recebessem parte do produto da venda resultante de tal operação, como é consabido pelas regras da experiência comum, - daí o controlo e orientação de coordenadas à distância, como também a possível presença nas imediações ainda que a algumas milhas marítimas de outra embarcação com a função de vigilância do trânsito marítimo e das autoridade e de possível escolta contra qualquer "Cartel" concorrente, como normal em tais circunstâncias. Não se trata de uma mera situação de comparticipação ou de actuação em bando... Não deve escapar à apreciação do julgador o facto de os agentes do crime de tráfico internacional de estupefacientes, navegarem, como já foi visto também em submarinos (e, também, com número reduzido ao mínimo de tripulantes) ou veleiros (como in casu, de igualmente três), de elevado valor económico, especialmente transformados com o único propósito de ocultarem a actividade de transporte de elevadíssimas quantidades de droga, em elevadíssimo grau de pureza, como também in casu, no valor calculado entre 36 e 45 milhões de euros, e que se destinava à venda da qual resultaria quantia não inferior a 215.889.857€... valor superior a vários Jackpots do Euromilhões, - lucro esse que seria distribuído por todos os elementos da associação, o que só pode ser levado a cabo por associações criminosas com sólida estrutura permanente, (como o revela também a orientação de coordenadas de navegação à distância, via rádio,) e com muito astronómica capacidade económica, e nunca por vulgares cidadãos de modesta, média ou até elevada capacidade económica pessoal, que não estivessem submetidos à vontade e desígnios da associação criminosa e que por todos repartiria os lucros da operação.” Depois no acórdão recorrido, pois resulta da análise conjugada da prova directa “com as mais elementares regras da normalidade ou experiência comum, das quais resulta, indubitavelmente, o conhecimento da natureza ilícita do produto e do respectivo transporte e a integração destes, com o fim de transporte, numa organização que era e bem perceberam ser organizada para o efeito (e submetendo-se os arguidos à vontade e desígnios desta e acrescentando a sua importante contribuição no transporte da cocaína), não só porque dela fazia parte quem os cooptou (o indivíduo de nome J. , mencionado pelos arguidos), quem previamente fez as transformações no veleiro e quem, mais tarde, em alto mar (como estes reportaram), aí introduziu o produto estupefaciente, mas também por tal ser evidente pela forma como foi determinado que os mesmos actuassem, sem saber para onde iam em concreto, com uma navegação orientada por terceiro à distância (de 2 em 2 ou de 3 em 3 dias, como referiu o arguido MA ) e pela quantidade de produto que transportavam (e seu elevadíssimo grau de pureza), tudo próprio da actuação de uma perceptível organização, vulgarmente designada por “cartel”, sólida, organizada, com elevada capacidade económica e especialmente vocacionada para a introdução de estupefaciente na Europa e que nunca confiaria o transporte em causa a alguém que não controlasse (e não fosse fiel) e totalmente externo à organização, com o perigo, inclusive, da perda de tão valiosa carga (com um valor de, pelo menos, € 38.608.336,69) através de uma intervenção policial ou do roubo da mesma por um “cartel” rival.” Tirando as naturais diferenças de pormenor, compreensíveis atendendo às diversas fases processuais, a linha de motivação é lógica e inatacável, de resto, a única coerente com as mais elementares regras de experiência comum, à luz da normalidade dos comportamentos humanos. Acresce que existem ainda mais elementos indiciários que apontam exactamente no mesmo sentido. Assim, a cocaína vinha acondicionada em embalagens de cerca de 1 quilograma, exibindo cada uma logotipo característico dos cartéis que a tanto se dedicam, como forma de identificarem os lotes do produto que vendem. Em audiência o arguido MA afirmou ter sido ele quem engajou os restantes dois tripulantes, pessoas da sua inteira confiança, como não poderia deixar de ser, adiantando que essa era de sua competência e inciativa, depois de ter contactado indivíduo que disse chamar-se J. e que havia conhecido em contexto de diversão cerca de dois anos anos antes, tendo o mesmo proposto a realização de serviço marítimo muito lucrativo, que o arguido então tinha negado. Falou sobre as verbas acordadas como pagamento pelo presente transporte (no total de 80.000€, metade para si e o restante para os demais tripulantes) , adiantando que as quantias que todos tinham consigo (as depois apreendidas) foram adiantadas para despesas de viagem. Por seu turno o arguido ZB afirmou que o transbordo da droga para o veleiro ocorreu no alto mar, proveniente de navio com o qual se encontraram, de noite, tendo vindo a bordo quatro ou cinco indivíduos que procederam ao acondicionamento da cocaína, enquanto um deles ficava com os tripulantes no “cockpit” do veleiro, sem presenciarem aquela arrumação. Mais verbalizou que o arguido MA não disse para quem era, nem por conta de quem, seria efectuado o transporte. Passando de largo a preocupação dos arguidos no sentido de aliviar ao máximo o seu envolvimento no transporte, admitindo apenas o que se mostrava incontornável, temos um panorama claro e típico de actuação enquadrada por importante organização dedicada ao tráfico internacional de estupefacientes., sem qualquer pormenor factual dissonante. O muro de secretismo construído à volta da actividade do tráfico de estupefacientes por quem a leva a cabo não se compadece com o engajamento ao acaso e com desconhecimento dos encarregados das grandes descargas e transportes de estupefacientes (repare-se que é o pretendido pelo arguido MA , primeiro ao descrever a sua relação com J. , conhecido de ocasião e depois com o recrutamento dos demais tripulantes - ainda que depois lá tenha acrescentado que eram da sua total confiança). Fazê-lo equivaleria com grande probabilidade à perda da carga e à prisão, o que não corresponde à realidade, pois como é por demais sabido, a cocaína flúi continua, ininterruptamente e em grandes quantidades pelo Velho Continente, sem haver por outro lado notícia de grandes criminosos que, em qualquer “área”, invistam meios avultados para depois poderem deitar tudo as perder com a inexistência de sólida e bem hierarquizada organização de inteira confiança do transporte de tais cargas, ou com improviso relativamente àqueles que podem deitar tudo a perder ou depois denunciar os seus elementos. E note-se como tenaz permanece a fidelidade àquela organização por parte dos arguidos, que nada mais adiantaram quanto à mesma, pretextando o arguido ZB nada saber daquela, nem mesmo na altura da audiência quando ali afirma que o arguido MA nada lhe disse sobre o assunto. Do que antecede também não se vê, de todo, qualquer possibilidade de modificação da factualidade assente no que tange ao envolvimento e adesão dos arguidos na organização em causa, quer na sua actuação concertada, muito menos ainda que quanto a este particular imponha diferente decisão. O mesmo vale para a proveniência e destino das quantias apreendidas, logo, como se explicou, pela admissão feita a esse propósito pelo arguido MA, das quais também resulta (e é plenamente lógico e coerente, alegado até pela sua defesa) que para tanto havia recebido mais dinheiro, entretanto despendido. Nesta e apenas nesta dimensão é possível e foi (como se vê do total da restante motivação) assente e tomada em consideração a correspondente factualidade. * * * Haveria ainda, na versão dos recorrentes , de ter sido dado como provado o seguinte: “Na sequência de informações obtidas via MAOC – Maritime Analysis and Operations Centre - Narcotics, as autoridades portuguesas localizaram, pelas 16h15m dos Açores de 20 de junho de 2018 nas coordenadas 36043′8"N 31029′6"W e pelas 16h50m dos Açores desse mesmo dia nas coordenadas 36045′5"N 31027′2"W o veleiro “Oggi”, os arguidos e LH , no Oceano Atlântico, ao largo dos Açores, que assim vieram intercetar no dia 21 de Junho de 2018 pelas 7h30m de Lisboa, nas coordenadas 0370 31.8"N; 0300 19.6"W. Às 7h30m de Lisboa (6h30m dos Açores) do dia 21 de Junho de 2018, foi cumprido o mandado de busca e apreensão que recaía sobre o veleiro. Foi a embarcação conduzida ao porto comercial da cidade da Horta, na ilha do Faial, Açores, onde chegou no dia 22 de junho de 2018 pelas 8h da manhã dos Açores. Tudo o que sucedeu desde as 7h30m de Lisboa de 21 de junho de 2018 dependeu da vontade das autoridades policiais, da correspondente estratégia e das táticas adotadas. Onde os arguidos e LH se encontrariam nos restantes dias do mês de junho de 2018, caso não tivessem sido interceptados pelas autoridades portuguesas no dia 21, é algo que não se consegue apurar. No momento em que os arguidos e LH foram abordados, não se encontravam em águas territoriais portuguesas: não estavam em Portugal. Apesar de ser proprietário e comandante do veleiro, o arguido MA deixou de ter a faculdade de optar pela correspondente rota e, assim, a embarcação foi realmente conduzida ao porto comercial da cidade da Horta, na ilha do Faial, nos Açores. O navio entrou em águas territoriais açorianas, portanto portuguesas. Mas tal sucedeu por avaliação e decisão das autoridades policiais portuguesas. O navio não é português. Nenhum dos arguidos é português. LH não é português.” Neste particular e como se viu, para além do que já consta como provado quanto ao tempo e local de abordagem, trata-se de circunstancialismo atinente à investigação, posterior à ocorrência dos crimes e que não tem por objecto actuação dos arguidos relevante à luz da lei penal, pelo que não deverá ser alvo de pronúncia sobre matéria de facto provada, como exposto. Improcede assim a impugnação da matéria de facto. * * * Qualificação jurídico-penal. No que respeita à prática do crime de tráfico de estupefacientes pelos arguidos, não há qualquer dissenção, pois esta apenas surge relativamente à correspondente agravação, designadamente pela alínea c) do artº 24º do Dec.-Lei nº 15/93 de 22.1, que tem como previsão o agente ter obtido ou procurar “obter avultada compensação remuneratória”. Ora quanto às características da retribuição visada com a operação de transporte daquela cocaína, o que se apurou é, de largo, apto ao preenchimento da correspondente previsão. Trata-se de um transporte intercontinental, por via marítima, de mais de uma tonelada de cocaína, justamente do continente da sua produção e obviamente para a Europa (onde actualmente ainda se regista um dos mais elevados níveis de vida mundial). Na escala da traficância a que respeita esta operação, o lucro cifra-se na casa dos milhões de euros. Sublinhe-se pois a tal propósito, que a quantidade de estupefaciente em causa, os meios envolvidos para a respectiva introdução e transporte, bem como o carácter internacional da operação não deixam qualquer margem para dúvidas sobre os lucros brutais visados. Neste sentido veja-se a evolução persistente da jurisprudência do S.T.J. (por todos Ac. de 28.11.2018, procº 36/16.0PEPDL.L1.S1-DGSI). Estamos perante uma operação situada logo de seguida à produção do estupefaciente em causa, ou seja, no primeiro ou segundo grau da rede em questão e ainda muito longe do consumidor final, envolvendo transporte marítimo por embarcação apropriada para a Europa, denunciando-se ainda claras ligações internacionais. À fortuna que valia o estupefaciente transportado, equivaleria, como é evidente à luz do mais elementar senso comum, elevadíssima compensação a caber ao importador e principal responsável pelo crime, mesmo que se viesse sem custo a admitir que aquela seria apenas percentual relativamente ao enorme diferencial entre o custo junto da fonte de produção e aquele que já fica perto dos consumidores. É assim seguro que os arguidos participaram em crime correspondente a actividade que envolvia avultada compensação económica tirada até como claríssima ilação jurídica do conjunto dos factos provados, pelo que o tipo em causa é o agravado por tal circunstância, independentemente da concreta compensação de cada um deles – ainda assim se apura que só o dono do veleiro iria receber 40.000 euros e os demais tripulantes 20.000 euros, cada (e poderia até nem sequer haver remuneração, por exemplo, para alguém que participasse no transporte como forma de entrar para a organização, por qualquer outro motivo ou militância, que não deixaria de ser co‑autor do crime, que é agravado atendendo ao lucro visado, designadamente e desde logo pelo dono ou donos daquela droga). Ou seja, da análise crítica dos factos resultaria sempre, insofismavelmente e neste caso, a inferência retirada, mais ainda com o que se apurou. De resto, ou visto o problema por outro prisma, qualquer cidadão do mundo sabe que o tráfico de estupefacientes visa justamente a obtenção de lucro. Ao nível do tráfico intercontinental, qualquer pessoa sabe que esse lucro se cifra em fortunas. Por outro lado ainda, estamos perante operação que se desenrola junto da produção da droga e que não vai até perto dos seus consumidores, isto é, em lugar cimeiro na cadeia do tráfico de estupefacientes mundial. Os arguidos ingressaram no clube dos principais responsáveis pelo tráfico de estupefacientes, indubitavelmente e ainda que sejam apenas operacionais da plena confiança do dono da droga, já que se existe alvo para a agravação do tráfico de estupefacientes é justamente ao nível do tipo de traficância a que se dedicaram ( o artº 24º está reservado precisamente para o tráfico maior, como incessantes vezes referia o saudoso Exmo. Conselheiro do S.T.J. Carmona da Mota). Não se desconhece, respeitando-a, jurisprudência que entende ser a compensação relevante para este efeito a visada pelo concreto agente e não por terceiros. Simplesmente, os demais comparticipantes do crime não são, por definição, terceiros e ainda que se não tenha apurado a respectiva identificação, participaram no cometimento do crime, neste estando sempre tão presentes, como, por regra e por razões consabidas, processualmente ausentes. Agente, ou agentes do crime (conceito de direito penal substantivo) não corresponde, por variadas razões, a arguido ou arguidos em processo penal (apenas tendencial tradução processual penal daquele primeiro). Todos os envolvidos no cometimento do crime são pois seus co-autores e é por tal via que tem de ser analisada a participação de todos e qualquer um dos agentes. * * * No que respeita ao crime de adesão a associação criminosa dispõem os nos 2 e 1 do artº 28º do Dec.-Lei nº 15/93 de 22.1 que “quem prestar colaboração, directa ou indirecta, aderir ou apoiar o grupo, organização ou associação... de duas ou mais pessoas que, actuando concertadamente, vise praticar algum dos crimes previstos nos artigos 21.º... é punido com pena de prisão de 5 a 15 anos.” A factualidade apurada não deixa qualquer margem para dúvida sobre a existência de tal organização, integrada, desde logo, pelo indivíduo que controlou a preparação do veleiro e a deslocação dos arguidos, bem como pelos quatro ou cinco operacionais que efectuaram o transporte e transbordo da cocaína em alto mar. Este tipo de operações é totalmente impossível sem uma já existente, bem oleada e consistente estrutura hierárquica a envolver recursos financeiros, logísticos e humanos de grande envergadura, mundialmente conhecida por cartel, no que ao tráfico internacional de cocaína respeita. A colaboração, adesão e apoio, com conhecimento e consciência, dados pelos arguidos à organização criminosa, está patente e ainda bem concretizada nos factos apurados sobre o seu recrutamento e desenvolvimento de actividades no transporte, sendo ademais essencial à actividade daquela organização a tarefa de transporte marítimo, o qual teria de contar com o mínimo de três tripulantes para assegurar a correcta e permanente navegação do veleiro, como também em audiência referiu o arguido ZB . Conclui-se pois pelo preenchimento dos tipos penais de que vinham acusados os arguidos. * * * Medida da pena e forma de execução. Dentro das múltiplas possibilidade de preenchimento do tipo penal agravado de tráfico de estupefacientes em causa, pela natureza cimeira do crime relativamente à demais traficância que se lhe seguiria, ao que acresce a fortuna envolvida na operação, verifica-se que a ilicitude é elevadíssima. É deste tipo de traficância que depende toda a demais que enxameia as vilas e cidades da Europa e que vai alimentando o exército dos demais traficantes e fornecendo os consumidores, alimentando-se por sua vez perniciosa e repugnantemente destes e do que os mesmos conseguem tirar à sociedade. Tudo para dizer que os factos em questão ultrapassam, de muito largo, o estritamente necessário para o preenchimento do tipo já agravado. A quantidade de estupefaciente em causa, os meios envolvidos para a respectiva introdução e transporte, bem como o carácter internacional da operação que com toda a segurança se afirmou, não deixam qualquer margem para dúvidas. Estamos, como se disse, perante uma operação situada muito próximo da produção do estupefaciente em causa, ou seja, no segundo grau da rede em questão e ainda muito longe do consumidor final. O dolo é directo, intenso e persistente durante toda a necessária preparação e execução da operação. Repare-se como em audiência os arguidos se mastrearam em vítimas das autoridades, principal e decididamente porque pretendem haver direito à sua actividade criminosa sem serem incomodados, numa clara manifestação de inconformismo pelo impedimento daquele crime, a denunciar total falta de real e sincero arrependimento. Os arguidos foram operacionais da inteira confiança de quem leva a cabo o primeiro transporte intercontinental de monta, reconhecendo-se todavia que não ocupam lugares cimeiros da organização, pois não se pode perder de vista as suas concretas e apuradas actividades. No mesmo sentido, os motivos primeiros que os levaram ao crime e as capacidades de inserção social demonstradas, constituem circunstância atenuante. Sem nunca perder de vista a medida da culpa de cada um dos arguidos, que é muito elevada, ainda que diferenciada, teremos de considerar, neste caso e pelo que acima se referiu, como particularmente alto o limite inferior da moldura de prevenção geral positiva, revelado pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico, neste particular, até internacional, atendendo às obrigações assumidas por Portugal no concerto das Nações no que respeita ao tráfico de estupefacientes. Fazemos nossas, por judiciosas, as considerações a este propósito expandidas no acórdão recorrido. “No que concerne ao concreto tempo de privação da liberdade a impor ao arguido (MA ), importa ponderar, à luz dos critérios estabelecidos pelo art. 71.º, do Código Penal, que, quanto ao crime em apreço, são elevadíssimas as necessidades de prevenção geral, derivadas do facto de a incriminação em causa se apresentar, cada vez mais, frequente por todo o país, com especial incidência nas Ilhas dos Açores, com um claro alarme social, e, por vezes, com graves consequências. Contudo, se, como já dissemos, são, cada vez mais, prementes as necessidades de prevenção geral em crimes deste tipo, também não deixa de ser verdade que a pena a aplicar concretamente há-de resultar das regras da prevenção especial, segundo as quais esta será o limite necessário à reintegração do arguido na sociedade, causando-lhe apenas e tão-só o mal necessário.” De referir ainda que as necessidades de prevenção geral, se se apresentam como veículo de alguma atenuação, não deixam contudo de ter de levar em conta a tenaz fidelidade à organização criminosa e vitimização dos arguidos pelo sucedido, preocupante indício de não interiorização da gravidade da conduta e perigo de persistência na prática de idênticos crimes, impondo maior período de reflexão sobre as consequências do mesmo, desde logo para os próprios. Por tais razões não se vislumbra qualquer motivo para diminuir a pena que concretamente lhe foi aplicada pela prática do crime de tráfico de estupefacientes. No que respeita à pena aplicada pelo cometimento do crime de adesão a associação criminosa, temos por perfeitamente adequada a pena aplicada. “Assim, o limite aconselhado pela culpa e pela prevenção geral, deve ser temperado pela prevenção especial que, in casu, apesar da inexistência de antecedentes criminais, atendendo à forma como tudo ocorreu e motivo da adesão em causa, aconselha uma mediana agravação”, temperada ainda com o motivo da adesão e sem esquecer o papel de relativo relevo desempenhado, ainda que em organização de perigosos contornos para a vida comunitária mundial. * * * O quadro encontrado na sua globalidade dos factos, a denunciar clara relação de pluriocasionalidade entre os crimes, mas sem olvidar a grande gravidade dos mesmos e sobretudo a danosidade social do seu conjunto, revelam ainda como justas, adequadas e proporcionais as penas encontradas em cúmulo. * * * No que ao arguido ZB respeita idênticas considerações se impõem, fazendo notar que a gravidade do crime de tráfico de estupefacientes por si cometido é menor em relação à do arguido MA , atendendo ao papéis que um e outro desempenharam (já não assim, quanto ao crime de adesão a associação criminosa, porquanto aqui é sobretudo a perigosidade desta que importa sobremaneira e nesse aspecto o patamar de um e outro é equivalente). Daí sufragarmos, na íntegra, as penas aplicadas, quer por cada um dos crimes, quer em cúmulo, como se disse. A manutenção das penas aplicadas, pela respectiva dimensão, prejudica a pronúncia sobre a respectiva substituição. * * * Perda de dinheiro e bens decretada. “São declarados perdidos a favor do Estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infracção prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos”, nos termos do disposto no nº 1 do artº 35º do Dec.-Lei nº 15/93 de 22.1. Nesta previsão cabem, sem qualquer tipo de reserva, quer a embarcação, quer as quantias apreendidas, aquela porque serviu para o cometimento do crime e o demais porque se destinava a financiar o mesmo. * * * Inconstitucionalidades. São invocadas ao longo do recurso várias inconstitucionalidades, sem que os recorrentes indiquem qual o sentido das normas aplicadas e o porquê de semelhante vício normativo. Excepto quanto à inconstitucionalidade de que padeceria a regra do artº 127º do Código de Processo Penal por não permitir a faculdade de pronúncia da defesa sobre a autenticidade de um documento autêntico. Mas a norma não foi aplicada nessa dimensão. Para além disso, trata-se de matéria fora do objecto do processo, ademais, sem qualquer relevância para a decisão. Também quanto à norma que permitiria a punição a título de dolo eventual do crime de adesão a associação criminosa, não se entende a arguição, pois desde logo, não foi considerado o preenchimento do elemento subjectivo do crime por tal forma. Ou quanto a regra que admite concurso real ou efectivo entre os crimes de tráfico de estupefacientes e de adesão a associação criminosa. Não se vê aqui onde buscar tal incompatibilidade constitucional. Nem o tribunal o consegue lobrigar quanto ao total das correspondentes arguições. * * * Consequentemente, improcede o recurso. * * * * Pelo exposto, acordam em negar provimento aos recursos, confirmando na íntegra o acórdão recorrido. Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em cinco (5) UC, para cada um. * Lisboa, 08-06-2021 Manuel Advínculo Sequeira Alda Casimiro Filomena Gil |