Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1784/17.2T9AMD.L1-9
Relator: MARGARIDA VIEIRA DE ALMEIDA
Descritores: NULIDADE DE INQUÉRITO
QUEIXA CRIME
CRIME DE IMPORTUNAÇÃO SEXUAL
GRAVAÇÕES DE VOZ
CONVENÇÃO DE ISTAMBUL
ESTATUTO DE PROTECÇÃO À VÍTIMA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/21/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1.O MºPº não está vinculado à qualificação jurídica que dos factos faz o denunciante, conforme artºs 241º e 243º do Código do Processo Penal.
2.Dispõe o artº 243º do CPP que no auto de notícia se mencionam… a) os factos que constituam crime, b) o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que o crime foi cometido; c) tudo … acerca da identificação dos agentes, e dos ofendidos, bem como os meios de prova conhecidos, nomeadamente, as testemunhas que puderem depor sobre os factos.
3.Esse enquadramento jurídico deve ser efectuado pelo titular do inquérito que deve, igualmente, verificar se o procedimento criminal depende de queixa, e ordenar as diligências necessárias, em conformidade.
4.Conforme anotação 3 ao artº 241º do CPP, da autoria dos Conselheiros Henriques Gaspar, Santos Cabral, Mais Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Henriques da Graça, … “a aquisição da notícia de um crime obriga, por força do princípio da legalidade da acção penal, à abertura do inquérito, salvaguardadas as restrições previstas na lei – artº 262º, nº 2 do CPP- a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito, ressalvadas as excepções previstas neste Código).
5. No caso” sub judice”, a gravação foi o único meio que teve de se defender do assédio sexual de que estava a ser vítima por parte do denunciado desde 2015, pois não tinha outra forma de provar a importunação de que estava a ser vítima, e que entregou uma cópia à Administração da empresa porque o assédio era realizado no local de trabalho.
6.  ….”Não existe regulamentação processual penal, relativa às provas obtidas por particulares em relação à tutela da vida privada, pelo que a validade da prova fica dependente da sua não ilicitude à face da legislação penal.
 Pode ser considerada válida a gravação de palavras efectuada por particulares sem o consentimento do visado bem como julgada válida a prova recolhida por esse meio.
 Se a gravação documenta a comunicação telefónica do autor daqueles ilícitos da iniciativa do arguido e que teve como destinatário o assistente, na qual se materializou a conduta ilícita do arguido (crimes de ameaça e injuria) é justificada a gravação das “ -Ac STJ Relatora Conselheira Maria dos Prazeres Beleza. …”
7. Não obstante o assédio ser facilmente reconhecido enquanto assédio sexual, a verdade é que não se esgota no assédio sexual, tendo, contrariamente, um âmbito mais vasto. Abrange, por isso, todo o comportamento não pretendido, quer este tenha o objectivo de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador. Frequentemente, trata-se de um conjunto de situações que separadamente poderiam até não ter relevo jurídico mas que pelo seu caracter reiterado são aptas a atingir um objectivo… Trata-se, pois, de um processo não consubstanciando um mero fenómeno isolado, antes pressupõe um conjunto mais ou menos encadeado de actos ou condutas … “mobbing”, também designado por assédio moral. (Diogo Vaz Marecos).
8.O contacto físico intencional e não desejado por parte do denunciado enquadra uma das situações que está incluída na proibição deste artigo, actuação que se mostra ser do conhecimento da entidade empregadora.
9.Não foram efectuadas quaisquer outras diligências de prova sobre os demais crimes denunciados nos autos, para além do crime de ameaça por parte da arguida MGL, e do crime de assédio sexual por parte do arguido bem patente no teor da gravação junta aos autos, que juntamente com as declarações da assistente e da testemunha inquirida constituíam indícios suficientes para fundamentar a acusação.
10. O despacho de arquivar tem de obedecer às exigências de fundamentação exigidas para a sentença, por forma a permitir sindicar o raciocínio seguido pelo acusador na valoração dos indícios de acusar, ou de não acusar, por força do disposto no artº 374º, nº2 do CPP, aplicável ex vi artº 4º do CPP que manda aplicar aos casos omissos as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal, e, na falta deles, os princípios gerais do processo penal.
11. Sendo uma decisão final de um procedimento, deve ser fundamentada, e tratando de análise da prova indiciária recolhida deve conter na sua fundamentação a explicitação do raciocínio lógico efectuado pelo acusador, por forma a permitir aos destinatários desse despacho sindicar como foram valorados os indícios recolhidos.
12.Essa exigência reveste tanto mais relevo quanto é certo que se entende, em entendimento jurisprudencial maioritário, que o requerimento de abertura de instrução tem de revestir a forma de uma acusação.
13.Ocorrendo falta de inquérito relativamente ao denunciado crime de perseguição p.p. pelo artº 154ºA do Código Penal (que constitui igualmente contra-ordenação muito grave, nos termos do nº 4 do artº 29º do Código de Trabalho), e quanto ao crime de importunação sexual p.p. pelo artº 170º do Código Penal (que não depende de queixa e que está consubstanciado na gravação efectuada), ocorrendo falta de inquérito relativamente ao denunciado crime de perseguição p.p. pelo artº 154ºA do Código Penal (que constitui igualmente contra-ordenação muito grave, nos termos do nº 4 do artº 29º do Código de Trabalho), e quanto ao crime de importunação sexual p.p. pelo artº 170º do Código Penal (que não depende de queixa e que está consubstanciado na gravação efectuada), fica prejudicado o conhecimento da questão objecto do presente recurso por se entender que a existência de nulidade insanável prevista no artº 119º alínea d) do CPP impõe a remessa/devolução dos autos ao MºPº para que realize as diligência relativas aos referidos ilícitos de perseguição e importunação sexual, e para que seja dado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa:

Relatório:

1.P.A.S.C. veio interpor recurso do despacho judicial que indeferiu o requerimento que apresentara, de abertura de instrução, por inadmissibilidade legal, uma vez que no mesmo a recorrente não imputa factos a uma pessoa determinada, nomeadamente o arguido, que conduzam a uma concreta incriminação com as respectivas circunstâncias de tempo, modo e lugar, bem como os respectivos elementos material, e subjectivo.
Pede que a decisão recorrida seja revogada e o recorrido sujeito a debate instrutório.
2. O MºPº pugna pela manutenção do decidido, quer na 1ª instância, em sede de resposta, quer em Parecer emitido nesta Relação, por entender que a decisão recorrida não merece censura já que o requerimento de abertura de instrução não respeitou as exigências legais.
3. O recorrido veio igualmente pugnar pela manutenção do decidido.
4.Vejamos, então:
Os autos tiveram o seu início em queixa apresentada em 2017 pela assistente, e da mesma queixa resultam descritos factos susceptíveis de integrar, para além do crime de coacção sexual denunciado expressamente, a eventual prática de um crime de perseguição p.p. pelo artº 154º A do Código Penal, cuja previsão foi introduzida pela Lei nº 83/2015, de 5 de Maio.
Com efeito, dispõe o artº 154ºA do Códº Penal que…” quem de modo reiterado perseguir ou assediar outra pessoa por qualquer meio, directa ou indirectamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação, ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos, ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal…”
A tentativa é punível e o procedimento criminal de queixa.
Do mesmo modo, prevê o artº 170º do CPP o crime de importunação sexual que não depende de queixa.
Analisando a queixa apresentada pela ofendida verifica-se que os factos nela descritos, sobretudo nos pontos 20, 21, 22, 23º, 24º e 25º, a apurarem-se, não são susceptíveis de integrar apenas os preceitos indicados pela assistente, e foi apresentada queixa válida já que o MºPº não está  vinculado à qualificação jurídica que dos factos faz o denunciante, conforme artºs 241º e 243º do Código do Processo Penal.
Dispõe o artº 243º do CPP que no auto de notícia se mencionam… a) os factos que constituam crime, b) o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que o crime foi cometido; c) tudo … acerca da identificação dos agentes, e dos ofendidos, bem como os meios de prova conhecidos, nomeadamente, as testemunhas que puderem depor sobre os factos.
Logo, não é necessário, consequentemente, não é vinculativa, a indicação de quais os preceitos legais que as condutas denunciadas poderão integrar.
Esse enquadramento jurídico deve ser efectuado pelo titular do inquérito que deve, igualmente, verificar se o procedimento criminal depende de queixa, e ordenar as diligências necessárias, em conformidade.
No caso vertente, existiu queixa, ou seja, os factos foram denunciados por várias vezes ao longo do inquérito.
Conforme anotação 3 ao artº 241º do CPP, da autoria dos Conselheiros Henriques Gaspar, Santos Cabral, Mais Costa, Oliveira Mendes, Pereira Madeira e Henriques da Graça, … “a aquisição da notícia de um crime obriga, por força do princípio da legalidade da acção penal, à abertura do inquérito, salvaguardadas as restrições previstas na lei – artº 262º, nº 2 do CPP- a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito, ressalvadas as excepções previstas neste Código).

Sucede ainda que a denunciante vem reforçar a sua denúncia a fls. 34, referindo que os arguidos A.B. (…..) e M.G. (…) continuam a desempenhar funções na empresa, e que a empresa, conhecedora da situação, a suspendeu de funções, alegadamente, para sua própria protecção.
A suspensão retirou-lhe benefícios que a empresa se recusou a pagar, pelo que vem requerer a aplicação aos arguidos das medidas previstas no artº 199º e seguintes do CPP, (e 154ºA do CPenal).
O arguido usou do direito de não prestar declarações, desconhecendo-se sobre que factos, conforme resulta de fls 41 in fine.
Em novas declarações, vem a ofendida confirmar que a empresa sabedora da existência da presente queixa, a suspendeu de funções.
E explica que os motivos pelos quais pensa que a empresa é cúmplice desta situação, afirmação que vem reiterando, e que entende que é confirmada pelo facto de os arguidos continuarem em funções, e de a suspensa ter sido ela, e, após, ter sido incluída num processo de despedimento colectivo, enquanto o arguido o não terá sido.
Os funcionários da empresa inquiridos no inquérito sobre a matéria da queixa, afirmaram todos nada saber.
Aliás, a queixosa já tinha referido que não tinha testemunhas uma vez que eram todos funcionários da empresa.
A queixosa, engenheira de profissão, tinha as funções de Técnica de Controlo de Qualidade, o denunciado de responsável pela produção e a denunciada Consultora da Administração.
As restantes testemunhas inquiridas e que nada sabiam eram igualmente técnicos de controlo de qualidade e/ ou administrativos/embaladores, à excepção da testemunha Gestora.
Apenas a testemunha D. confirma a queixa da ofendida/assistente, testemunha que chegou a ter de intervir junto da escola do filho da assistente.
Esta testemunha confirma que foi contactado pela empresa para convencer a queixosa a despedir-se.
O arguido volta a ser ouvido, desconhecendo-se o que lhe foi perguntado, e não prestou declarações.
A denunciada MG nega os factos, e imputa a prática de factos e de problemas à queixosa, e refere a existência de processos disciplinares.
Constitui Advogados a fls 81.
Novamente inquirida a ofendida, esta refere a forma como sentiu a actuação da denunciada MG.
Volta a reiterar que o comportamento do denunciado se manteve até à realização da gravação.
Confirma o processo disciplinar, com sanção de 10 dias, e confirma que foi integrada em processo de despedimento colectivo.
Do conteúdo do processo disciplinar, instaurado já depois da presente queixa, conclui-se que são imputadas faltas, que a terem existido, podiam ter resultado do clima gerado pelo arguido, sabedor de que a ofendida já havia sido vítima de violência doméstica, se tinha divorciado e tinha dois filhos a cargo  sem que essa possibilidade tenha sido ponderada e sem que tenha sido considerado o conhecimento que havia sido dado do assedio por parte do denunciado.
Nos pontos nºs 34 e 35, passa o denunciado a ser o trabalhador que se sentiu ameaçado e com receio.
Na contestação do processo disciplinar, a ofendida/assistente contesta as faltas que lhe são imputadas nos pontos 16 e seguintes, e volta a reafirmar que o denunciado lhe moveu um clima de perseguição devido ao não acolhimento das propostas de cariz sexual que lhe fazia, e que constam explicitas das gravações.
E conclui, reafimando que a empresa se não actuar estará a dar cobertura ao comportamento do denunciado.
Efectivamente, do teor de fls. 200., ponto 35, parece que a empresa acolheu a versão do denunciado – cfr relatório subscrito pela sociedade advogados que consta da procuração junta pela denunciada MG Leal, que termina pela aplicação à assistente de sanção disciplinar de 10 dias de multa, com perda de retribuição.
Aqui chegados,
vem o denunciado a fls. 215 requerer que a testemunha inquirida que presenciou os seus comportamentos para com a ofendida seja notificada para esclarecer se em momento prévio à inquirição pediu autorização junto da sua Ordem dos Advogados uma vez que é patente a violação de segredo profissional e apresentar queixa contra a denunciada por crime de gravação ílicita por ter sido feita contra a vontade do interlocutor.
Andou muito bem o MºPº titular do inquérito ao entender que a referida testemunha não foi inquirida sobre factos de que tivesse tido conhecimento no exercício da profissão ou do mandato conferido pelo que não estava impedido de depor nem tem de esclarecer se pediu autorização à Ordem.
Ouvida como arguida, esclareceu a assistente que a gravação foi o único meio que teve de se defender do assédio sexual de que estava a ser vítima por parte do denunciado desde 2015, pois não tinha outra forma de provar a importunação de que estava a ser vítima, e que entregou uma cópia à Administração da empresa porque o assédio era realizado no local de trabalho.
Nesta data, a assistente/arguida já tinha disso despedida e o denunciado embora integrado no processo de despedimento colectivo não havia sido alvo de despedimento.
É neste momento processual que a Il Defensora Oficiosa nomeada à assistente requereu escusa de patrocínio à Ordem dos Advogados. -fls 265.
A assistente vem ainda requerer a aplicação de medidas de afastamento ao denunciado porque este continua a importuná-la quando vai buscar o filho à escola.
Aqui chegados, o MºPº entendeu arquivar os autos no que concerne à arguida AA (….) pela prática de um crime de ameaças p.p. pelo artº153º do CP., arquivar os autos no que concerne ao denunciado crime de gravação ilícita por parte da assistente por esta ter actuado em direito de necessidade, logo, e arquivar os autos no que concerne à prática de um crime de coacção sexual por parte do arguido por falta de dolo e por não existirem indícios suficientes da probabilidade da condenação.
Na sequência deste despacho de arquivamento, veio a assistente requerer a abertura de instrução, que foi rejeitada, rejeição com que se não conformou, recorrendo para este Tribunal de recurso.

Vejamos, então:
Vale para a presente situação a jurisprudência dos acórdãos que se transcrevem, já que os princípios neles citados são os aplicáveis à presente situação:


29/03/2016 AC TRE supra

TAMBEM: 4. CONVERSAS TELEFÓNICAS EM ALTA VOZ E GRAVAÇÕES DE VOZ A (não) admissibilidade de testemunho sobre conversas telefónicas que se escutaram no telefone de outrem, em alta voz, provocou forte discussão jurisprudencial no passado. A orientação da jurisprudência mais recente é serena no sentido da admissibilidade deste tipo de prova, nalgumas circunstâncias. Acórdão da Relação de Évora de 11 de maio de 2017 Por constituir meio de prova obtido de forma ilícita, não pode ser admitida a junção, em processo civil, de gravações não consentidas de comunicações orais, por telefone ou de viva voz, não destinadas ao público, mesmo que sejam dirigidas a quem fez a gravação. Acórdão da Relação de Évora de 25 de novembro de 2014 A prova por depoimento de testemunha que escutou conversação telefónica por intermédio de sistema alta voz, em geral, não é prova livre, podendo cair nas proibições de prova.
Porém, a mesma pode ser admissível, desde que se mostre imprescindível, atentas as circunstâncias do caso concreto, designadamente, ocorrer causa de justificação, nota prática nº 12/2017 - jurisprudência sobre prova digital 8 consistente numa legítima defesa - obter testemunho do crime praticado pelo arguido para o enfrentar e obstar a que prossiga na agressão - ou num direito de necessidade (probatório) - agir para obter prova para o perseguir criminalmente. Acórdão da Relação de Coimbra de 10 de julho de 2013 Quando a vítima é a destinatária da comunicação telefónica (ou outra), considera-se justificada a divulgação do teor da conversa pelo sistema de alta voz, quando essa comunicação é o meio utilizado para cometer um crime de ameaças, ou injúrias, se a vítima consentir na divulgação; como tal não constitui prova proibida. Acórdão da Relação de Coimbra de 6 de março de 2013 A divulgação, pelo sistema de alta voz, de uma conversa telefónica, quando essa precisa comunicação telefónica é o meio utilizado para cometer um crime de ameaças ou injúrias é lícita, sendo permitido a quem a escutou testemunhar sobre ela, se a vítima consentir na divulgação, como forma de se proteger de tais ameaças ou injúrias.

Enfim ....AC TRP
ARIA DOS PRAZERES SILVA
Descritores:GRAVAÇÃO
VALIDADE
MEIO DE PROVA
CONVERSA TELEFÓNICA
http://www.dgsi.pt/icons/ecblank.gifhttp://www.dgsi.pt/icons/ecblank.gif
Nº do Documento:RP201601271548/12.0TDPRT.P1
Data do Acordão:27/01/2016
Votação:UNANIMIDADE
Texto Integral:S
Privacidade:1
http://www.dgsi.pt/icons/ecblank.gifhttp://www.dgsi.pt/icons/ecblank.gif
Meio Processual:REC PENAL
Decisão:PROVIMENTO PARCIAL
Indicações Eventuais:4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 666, FLS.179-194)
Área Temática:.
http://www.dgsi.pt/icons/ecblank.gifhttp://www.dgsi.pt/icons/ecblank.gif
Sumário:I - Não existe regulamentação processual penal, relativa às provas obtidas por particulares em relação à tutela da vida privada, pelo que a validade da prova fica dependente da sua não ilicitude à face da legislação penal.
II – Pode ser considerada valida a gravação de palavras efectuada por particulares sem o consentimento do visado bem como julgada valida a prova recolhida por esse meio.
III – Se a gravação documenta a comunicação telefónica do autor daqueles ilícitos da iniciativa do arguido e que teve como destinatário o assistente, na qual se materializou a conduta ilícita do arguido (crimes de ameaça e injuria) é justificada a gravação das palavras dirigidas ao assistente sem o consentimento do autor daqueles ilícitos.
Reclamações:
Face a tal procedimento, a questão que se coloca prende-se com a definição do valor probatório dessa gravação e não propriamente com a violação de proibição de prova.
Com efeito, as normas processuais convocadas pelo recorrente permitem distinguir duas distintas realidades, a que corresponde tratamento jurídico diferenciado, embora se possam traduzir num resultado comum, qual seja o não aproveitamento da prova recolhida contra o regime legal imposto.
Assim, as regras de proibição de prova obtida por intromissão na vida privada sem o consentimento do respetivo titular, consagradas no artigo 126.º, n.º 3, do Código Processo Penal, dirigem-se às instâncias formais de controlo, designadamente aos investigadores e autoridades judiciárias, mormente ao Ministério Público e ao Juiz de Instrução. Trata-se de normas que visam disciplinar a investigação e o procedimento penal, definindo os limites de interferência na vida privada com o objetivo de recolher prova, e que constituem orientações a observar no âmbito do processo penal.

Enquanto no tocante às provas obtidas por particulares e à tutela da vida privada, não existe regulamentação que decorra de norma processual penal, antes o legislador remete para a tipificação dos ilícitos penais previstos no Código Penal, na tutela do referido direito fundamental à privacidade, como decorre do disposto no artigo 167.º, n.º 1, do Código Processo Penal[17]. Donde, a validade da prova fica, nestes casos, dependente da sua não ilicitude à face da legislação penal[18].
Portanto, a validade da prova questionada no presente recurso está condicionada à inexistência de actividade criminosa na sua obtenção, por isso, não poderá ser atribuído valor probatório à gravação da conversa estabelecida pelo arguido com o assistente se for de concluir que a conduta traduzida na gravação das palavras proferidas nessa chamada telefónica configura um ilícito penal.
Ora, no concernente a gravações ilícitas a norma incriminadora corresponde ao artigo 199.º do Código Penal, onde se tutela o direito à palavra, contra a sua gravação e reprodução sem o consentimento do visado.

No entanto, o preenchimento, em abstrato, dos elementos constitutivos do ilícito criminal, pode ser afastado, em concreto, pela verificação de causa de justificação ou exclusão da ilicitude ou da culpa, e, em consequência, pode ser considerada válida a gravação de palavras efetuada por particulares sem o consentimento do visado, bem como julgada válida a prova recolhida por esse meio[19].
No caso sub judice, a gravação em causa documenta a comunicação telefónica, da iniciativa do arguido e que teve como destinatário o assistente, na qual se materializou a conduta ilícita do arguido, subsumível aos crimes de ameaça e de injúria[20]. Perante tais circunstâncias surge justificada a gravação das palavras dirigidas ao assistente, sem o consentimento do autor daqueles ilícitos criminais, pois que, como considerou o STJ[21] «a proteção da palavra que consubstancia práticas criminosas (…) tem de ceder perante o interesse da proteção da vítima e a eficiência da justiça penal: a proteção acaba quando aquilo que se protege constitui crime», sendo ainda de considerar, quando por meio da gravação é cometido o crime de ameaça, como sucede no caso dos autos, a verificação de legítima defesa como excludente da ilicitude da gravação[22].
No seguimento de tal entendimento, não sendo possível concluir pelo cometimento por parte do assistente de um crime mediante a gravação da comunicação telefónica que lhe foi dirigida pelo arguido, também não subsiste razão para considerar inválida a prova conseguida por via de tal gravação[23].
Assim sendo, nenhum obstáculo legal existia à respetiva valoração pelo tribunal e à sua reprodução em audiência, sendo certo que a audição, na audiência de julgamento, do conteúdo da gravação foi precedida de decisão judicial[24] que não foi impugnada.
Improcede, pois, nesta parte, o recurso.
….”
Aplicando a jurisprudência do Ac do STJ à presente situação, sufragando o correcto entendimento efectuado pelo MºPº titular do inquérito no que à inexistência de crime de gravação ilícita concerne (até porque estava igualmente em causa a reserva da intimidade da ofendida do crime denunciado) cumpre concluir que a gravação transcrita nos autos faz prova do que a assistente denunciou.
Ora, como pode ler-se na anotação 3 ao artº 29º do Código do Trabalho …” não obstante o assédio ser facilmente reconhecido enquanto assédio sexual, a verdade é que não se esgota no assédio sexual, tendo, contrariamente, um âmbito mais vasto. Abrange, por isso, todo o comportamento não pretendido, quer este tenha o objectivo de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador. Frequentemente, trata-se de um conjunto de situações que separadamente poderiam até não ter relevo jurídico mas que pelo seu caracter reiterado são aptas a atingir um objectivo… Trata-se, pois, de um processo não consubstanciando um mero fenómeno isolado, antes pressupõe um conjunto mais ou menos encadeado de actos ou condutas … “mobbing”, também designado por assédio moral. (Diogo Vaz Marecos).
(Para uma clara distinção entre mobbing, bullying e assédio moral, O Assedio no Trabalho, Marie France Hirigoyen, capítulo 4, as diferentes abordagens do fenómeno.)
De entre os exemplos enunciados na nota 3, contam-se  estabelecer metas e objectivos impossíveis de cumprir, com prazos inexequíveis, pedir sistematicamente  trabalhos urgentes sem necessidade, criar sistematicamente situações de “stress”.
O mesmo entendimento é perfilhado pelo Ac STJ de 13 de Janeiro de 2010.
Ora, o contacto físico intencional e não desejado por parte do denunciado enquadra uma das situações que está incluída na proibição deste artigo, actuação que se mostra ser do conhecimento da entidade empregadora.
No seu livro “Assédio, Coacção e Violência no Quotidiano”, Marie-France Hirigoyen, edição de 1999, refere que …infelizmente, num contexto de opressão, os colegas muitas vezes dessolidarizam-se da pessoa constrangida com medo de represálias, e, por outro lado, quando um assediante visa uma pessoa, as outras estão tranquilas e preferem manter-se discretas. No entanto, basta um testemunho para dar fé às alegações de uma vítima…
…Mesmo que o assediante não seja superior hierárquico a vítima encontra-se debaixo de fogo dos projectores. Observam-na … . O mínimo atraso, a mínima falta serão usados como provas da sua responsabilidade no processo…”ibidem, capítulo 11.

E prossegue:
…” não existe nenhuma lei … que reprima (1999) o assédio moral…
Todavia, uma resolução adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em relação às vítimas da criminalidade e às vítimas de abuso de poder, define as vítimas de abuso de poder como segue:” entende-se por vítimas pessoas que individual ou colectivamente, sofreram um prejuízo, especialmente uma ofensa à sua integridade física ou moral, um sofrimento moral, uma perda material, ou uma ofensa grave aos seus direitos fundamentais em razão de actos ou omissões que não constituem ainda uma violação da legislação penal nacional mas que representam violações das normas internacionalmente reconhecidas em matéria de direitos do homem”
E mais à frente:
…” A perversão moral detém um tal poder de dano que é difícil contê-la. Se os indivíduos em primeiro lugar, depois, as empresas não encontram soluções para por limites de civilidade e respeito de outrem, mais dia, menos dia, será preciso legislar sobre o assédio moral na empresa como foi preciso fazê-lo para o assédio sexual.”

Em 2002, na introdução à obra “Assédio no trabalho” a mesma autora diz…” o interesse actual por este assunto não se limita, aliás, à França, uma vez que… os governos de outros países europeus foram intimados a tomar medidas… em breve, regulamentações europeias virão sancionar o assédio moral no trabalho”.
Sucede que em 2017, à data da denúncia efectuada nos autos, já existia a legislação cuja falta a autora lamenta em 1999.
As declarações tomadas nos autos ao denunciado não explicitam, ao invés do que se exige para os interrogatórios judiciais, a indicação dos factos sobre os quais é/foi perguntado, e em relação aos quais usou do direito de não prestar declarações, pelo que a diligência em causa não é, por si só, suficiente para se considerar o inquérito realizado em relação aos demais crimes indiciados nos autos.
Não foram efectuadas quaisquer outras diligências de prova sobre os demais crimes denunciados nos autos, para além do crime de ameaça por parte da arguida AA.., e do crime de assédio sexual por parte do arguido bem patente no teor da gravação junta aos autos, que juntamente com as declarações da assistente e da testemunha inquirida constituíam indícios suficientes para fundamentar a acusação.
É nosso entendimento o de que o despacho de arquivar tem de obedecer às exigências de fundamentação exigidas para a sentença, por forma a permitir sindicar o raciocínio seguido pelo acusador na valoração dos indícios de acusar, ou de não acusar, por força do disposto no artº 374º, nº2 do CPP, aplicável ex vi artº 4º do CPP que manda aplicar aos casos omissos as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal, e, na falta deles, os princípios gerais do processo penal.
O artº 277º, nº 1 e 2 dispõe sobre o momento em que o despacho de arquivamento tem lugar mas nada refere quanto à sua necessidade de fundamentação, e exame crítico das provas.
Sendo uma decisão final de um procedimento, deve ser fundamentada, e tratando de análise da prova indiciária recolhida deve conter na sua fundamentação a explicitação do raciocínio lógico efectuado pelo acusador, por forma a permitir aos destinatários desse despacho sindicar como foram valorados os indícios recolhidos.
Só assim poderá o assistente desempenhar cabalmente as suas funções de coadjuvar o MºPº, exercer cabalmente o direito a reclamar hierarquicamente e o direito a requerer a instrução, tanto mais que as finalidades desta são apenas as de confirmar ou infirmar a decisão tomada pelo MºPº ao arquivar ou ao acusar.
Para se permitir/assegurar o direito a um processo justo e equitativo no cumprimento do entendimento de que deve não só ser feita, mas ser visível, e sentida como tal – not only be done but seen to be done – tem o destinatário do despacho de arquivamento direito a tal fundamentação.
Essa exigência reveste tanto mais relevo quanto é certo que se entende, em entendimento jurisprudencial maioritário, que o requerimento de abertura de instrução tem de revestir a forma de uma acusação.
Para poder divergir, e requerer instrução, com os requisitos contidos no artº 287º, nº 2 do CPP, discordando da não acusação, tem o assistente de ter acesso a essa fundamentação.
Só depois de analisada a fundamentação, estará em condições de concluir se concorda com o MºPº na avaliação das provas, se está em condições de requerer instrução articulando os factos indiciados, e os demais elementos que devem constar de uma acusação, e de requerer a prova que entender.
E só assim verá efectivado o seu exercício do direito de acesso ao direito, consagrado constitucionalmente.
No caso vertente, ocorrendo falta de inquérito relativamente ao denunciado crime de perseguição p.p. pelo artº 154ºA do Código Penal (que constitui igualmente contra-ordenação muito grave, nos termos do nº 4 do artº 29º do Código de Trabalho), e quanto ao crime de importunação sexual p.p. pelo artº 170º do Código Penal (que não depende de queixa e que está consubstanciado na gravação efectuada).
Fica prejudicado o conhecimento da questão objecto do presente recurso por se entender que a existência de nulidade insanável prevista no artº 119º alínea d) do CPP impõe a remessa/devolução dos autos ao MºPº para que realize as diligência relativas aos referidos ílicitos de perseguição e importunação sexual, e para que seja dado cumprimento ao estatuído na Convenção de Istambul e no Anexo à Lei nº 130/2015, de 4 de Setembro, Estatuto da Vítima.

Decisão:
Termos em que acordam, após vistos e conferência, em julgar verificada a nulidade insanável de falta de inquérito prevista na alínea d) do CPP, relativamente aos crimes denunciados de perseguição p.p. pelo artº 154º A e de importunação sexual p.p. pelo artº 170º do mesmo diploma legal, e, em consequência, determinar a remessa dos autos ao MºPº para esse efeito, ficando prejudicado o conhecimento do recurso interposto pela assistente. 
Nos termos do disposto no artº 11º do Estatuto da Vítima, deve a mesma ser notificada pessoalmente, ou através do seu Advogado, pelo meio mais expedito possível, do teor desta decisão, em estrito cumprimento ainda da Convenção de Istambul.
É devida taxa de justiça, pelo mínimo legal.
Registe e notifique, nos termos legais.
Lisboa,