Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
184887/14.1YIPRT.L1-8
Relator: TERESA PRAZERES PAIS
Descritores: OBRIGAÇÃO PECUNIÁRIA
PROCEDIMENTO DE INJUNÇÃO
EXCEPÇÃO INOMINADA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: -Decorrendo a obrigação pecuniária seu objecto de entrega feita a título de adiantamento de proveitos, não estão reunidos os pressupostos do procedimento de injunção.
-Este uso indevido configura uma excepção inominada que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, nos termos do art. 576, nº2, do CPC de 2013.
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


I-Relatório:


V… SA. intentou contra F…, procedimento de injunção à luz do D.L. 62/2013, mediante o qual pretende lhe seja paga a quantia de € 325.355,76, sendo € 300.000,00 de capital acrescidos de 25.355,76 a título de juros de mora vencidos entre 9.12.2009 e 5.9.3013.

A requerida deduziu oposição e consequentemente os autos foram remetidos à distribuição.

Porque, perante o requerimento de injunção ( e face à alusão que no mesmo era feita a "empréstimo") se afigurava que a requerente não poderia ter recorrido a tal procedimento foram as partes convidadas a pronunciar-se , o que fizeram, a requerida no sentido de ocorrer uma excepção dilatória e a requerente , nos termos constantes de fls. 39 e seguintes dos autos, procedendo à junção de documentos tendentes a corroborar o seu entendimento de que se estaria perante uma transacção comercial.

Os factos apurados.

A)A sociedade O… SGPS, S.A.("0… ") e a Requerida celebraram, no dia 19 de junho de 2009, um contrato que estabelecia os termos de uma parceria para desenvolver um projeto imobiliário no imóvel sito na Rua …Lisboa de que a requerida é dona, consubstanciado no escrito de fIs. 45 a 57 dos autos e cujo teor se dá por reproduzido;
B)O n." 4 da cláusula primeira do Contrato a que se alude em A) estabelecia a percentagem dos lucros a receber por cada uma das partes com o negócio, face ao do valor de vendas realizadas.

C)A O… obrigou-se à prestação de vários serviços (cláusula segunda, n.º 2, als, b) a j)), os quais, em suma, eram os seguintes:
a)Criação e desenvolvimento de um conceito comercial para o projeto imobiliário;
b)Contratação dos estudos e projetos necessários e obtenção das respetivas aprovações junto das entidades licenciadoras;
c)Negociação e contratação de financiamento para o projeto;
d)Comercialização do produto imobiliário final.

D)Nos termos da cláusula segunda, nº 2, al. a), do Primeiro Contrato, a O… obrigou-se também a adiantar à Requerida a quantia de € 300.000,00 (trezentos mil euros);
E)Tal quantia de € 300.000,00 já havia sido entregue pela O… à Requerida em 21.5.2009 , portanto em data anterior à celebração do Contrato atenta a urgência da Requerida na obtenção desse montante para cumprir uma obrigação de pagamento decorrente de uma sentença arbitral.
F)Ficou convencionado no mesmo contrato que: " A primeira outorgante ( i.e. a ora requerida ) obriga-se a devolver à 2ª outorgante a quantia de € 300.000,00 ( trezentos mil euros) referida na cláusula Segunda nº2 a) , ficando acordado para tal , chegado o momento de repartir os proveitos , a quota parte da Primeira Outorgante começará por ser entregue à Segunda Outorgante até perfazer a referida quantia de € 300.000,00 ( trezentos mil euros) ". Cfr.nº 2 da cláusula quarta).
G)Tal como previsto na cláusula décima do Primeiro Contrato, a 22 de julho de 2009, a O… cedeu à Vista Lisboa, ora requerente, a sua posição contratual no Primeiro Contrato, o que comunicou à requerida ( cf. documento de fls.59 dos autos);
H)A Requerente e a Requerida celebraram um outro contrato consubstanciado no escrito de fls. 63 a 75 dos autos que denominaram "contrato de prestação de serviços" com data de 9 de dezembro de 2009;
I)Nos termos da cláusula segunda, n.º 1, deste Contrato, a V… obrigava-se a "prestar e adquirir por conta da Primeira Contraente [Requerida], todos os serviços necessários à entrega a esta, no prazo previsto no presente Contrato, do Edifício reconstruído e submetido ao regime de propriedade horizontal ( ... )";
J)Em matéria de remuneração, o Acordo apenso a este Contrato previa o pagamento à Requerente dos serviços prestados no âmbito do contrato em termos semelhantes aos estabelecidos no Contrato a que se alude em A) (cf. n." 2 da cláusula primeira do documento de fls., 76 e 77 dos autos.
L)De acordo com o previsto na cláusula nona deste Contrato, "[a] título de caução, a Segunda Contraente [Requerente] entregou à Primeira Contraente [Requerida] a quantia de € 300.000 (trezentos mil euros), a qual deverá ser devolvida por esta àquela em caso de cessação deste Contrato, seja porque motivo for (sem prejuízo do direito à indemnização legal, se existir), devolução esta que deverá ter lugar no prazo máximo de 15 (quinze) dias contados da data da cessação do Contrato";
M)Por carta datada de 5 de setembro de 2013, a Requerida comunicou à Requerente a resolução do Contrato que entre ambas vigorava " constantes dos mencionados instrumentos assinados em 19 de Junho e 9 de Dezembro de 2009".- cfr. documento de fls. 78 a 80 dos autos cujo teor se dá por reproduzido.

A final foi proferida esta decisão:
“Face a todo o exposto, conclui-se ocorrer uma excepção dilatória inominada que obsta ao conhecimento do mérito da causa e conduz à absolvição da Ré da instância, nos termos do n." 2 do art." 576° (e art." 577°), do CPC, o que se decide. “

É esta decisão que a requerente impugna, formulando estas conclusões:

1-O Tribunal “a quo “entendeu que não estamos perante uma "transação comercial", nos termos e para os efeitos previstos no Decreto-Lei nº 62/2013 de 10 de maio, o que impediria a prossecução dos autos.
2-Salvo o devido respeito, o Tribunal “a quo” não andou bem ao concluir não poder decidir sobre o pedido da Recorrente, caindo em erro na determinação do regime aplicável, erro de aplicação de normas legais e erro de interpretação. o que se invoca nos termos do artigo 639, nº 2, do CPC.
3-No âmbito do Primeiro Contrato. a O… obrigou-se à prestação de vários serviços (cláusula segunda. n. ° 2. als. b) a j)) conducentes ao desenvolvimento de um projeto imobiliário.
3.1-Nos termos da cláusula segunda, nº 2, aI. a), do Primeiro Contrato, a O… obrigou-se também a adiantar à Recorrida a quantia de E 300.000,00 (trezentos mil euros), adiantamento esse que ficou configurado no Primeiro Contrato como um pagamento antecipado à Recorrida.
4-Na sequência da cessão de posiçao contratual da O… à Recorrente, esta celebrou com a Recorrida o Segundo Contrato, o qual foi configurado como um contrato de prestação de serviços, substituindo o Primeiro Contrato.
5-Nos termos da cláusula segunda, nº1, do Segundo Contrato, a V… obrigava-se a "prestar e adquirir por conta da Primeira Contraente [Recorrida], todos os serviços necessários à entrega a esta, no prazo previsto no presente Contrato. do Edifício reconstruido e submetido ao regime de propriedade horizontal ("), prevendo-se, no Acordo apenso ao referido contrato, o pagamento à Recorrente pelos serviços a prestar.
6-De acordo com o previsto na cláusula nona do Segundo Contrato, "[a] título de caução, a Segunda Contraente [Requerente] entregou à Primeira Contraente [Requerida] a quantia de ê 300.000 (trezentos mil euros). a qual deverá ser devolvida por esta àquela em caso de cessação deste Contrato. seja porque motivo for (sem prejuízo do direito à indemnização legal, se existir), devolução esta que deverá ter lugar no prazo máximo de 15 (quinze) dias contados da data da cessação do Contrato ".
7-Por carta datada de 5 de setembro de 2013, a Recorrida comunicou à Recorrente a resolução do Segundo Contrato, não tendo, até à presente data efetuado o pagamento a que se encontra obrigada, nos termos da cláusula nona do Segundo Contrato,
8-O artigo 7º do Anexo ao Decreto-Lei n." 269/98. de I de setembro, determina que o requerimento de injunção se destina a exigir o cumprimento "das obrigações emergentes de transações comerciais abrangidas pelo Decreto-Lei n." 32/2003. de 17 de Fevereiro", sendo que este último diploma foi substituído pelo Decreto-Lei nº 62/2013. de 10 de Maio,
9-Para os efeitos da alínea b) do artigo 3º do Decreto-Lei nº 62/2013, de 10 de Maio, entende-se por transação comercial, "uma transacção entre empresas ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação. destinada ao fornecimento de mercadorias ali à prestação de serviços contra uma remuneração",
10-O n.º 1 do artigo 10.° do mencionado diploma estabelece que "[oJ atraso de pagamento em transações comerciais. nos termos previstos no presente diploma. confere ao credor o direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida".
11-A doutrina explica que o conceito de transação tem o "significado amplo de acta ", pretendendo abarcar-se "o maior número de casos possível",
12-No caso sub judice, o pedido diz respeito a um crédito emergente de um contrato de prestação de serviços, o qual consubstancia uma transação comercial, nos termos e para os efeitos previstos na alínea b) do artigo 3.° Decreto-Lei n." 62/2013, de 10 de maio.
13-O Tribunal “a quo” fez uma interpretação restritiva do conceito de "transação comercial", contrária àquela que a esmagadora maioria da doutrina e jurisprudência defende e contrária aos fins anunciados pelo legislador.
14-A quantia reclamada neste processo corresponde precisamente a parte do correspetivo a pagar pela Recorrida pelos serviços a prestar pela aqui Recorrente no âmbito, quer do Primeiro, quer do Segundo Contrato.
15-Pelo que deve concluir-se que se encontram reunidos todos os pressupostos para o recurso ao procedimento de injunção no presente caso.
16-Ainda que assim não se entendesse, o que se admite por dever de patrocínio, o não cumprimento dos pressupostos de aplicação do procedimento de injunção não impediria o Tribunal a quo de conhecer do pedido formulado pela Recorrente na presente ação.
17-Isto porque tendo a Recorrente, no requerimento de injunção, peticionado o pagamento de € 325.355,76 e tendo a Recorrida apresentado oposição, passaram os presentes autos a configurar a forma de processo comum (cf. nº 2 do artigo 10.° do Decreto-Lei 62/2013, de 10 de maio).
18-A jurisprudência maioritária, incluindo o STJ em Acórdão de 14 de fevereiro de 2012, que se pronunciou sobre a contradição de julgados na Relação sobre esta matéria, esclarece que "o Tribunal não pode deixar de conhecer do pedido de condenação no pagamento do crédito por julgar a posteriori que não foram preenchidas as condições que a lei reconhecia como necessárias para ser decretada a injunção ",
19-A sentença recorrida, em desacordo com tal orientação e perante a ausência de qualquer invocação pela Recorrida, na oposição, de uma exceção dilatória inominada que obstasse ao conhecimento do mérito da causa ou qualquer outra exceção, assinala que as diferenças entre um processo que tem início com um requerimento de injunção e aquele que tem início com uma petição inicial que despoleta imediatamente uma ação de processo comum são incontornáveis.
20-A Recorrente discorda de tal entendimento, acompanhando a orientação do STJ, e por entender que as questões suscitadas pelo Tribunal” a quo” a este respeito foram inclusive ultrapassadas pela própria atuação das partes no presente processo.
21-Além do mais, caso assim o entendesse, o Tribunal “a quo” poderia convidar as partes ao aperfeiçoamento dos seus articulados.
22-.Conclui-se que, também por esse motivo, deveria o Tribunal” a quo “ter apreciado o mérito do pedido trazido aos autos pela Recorrente.
23-Encontrando-se ultrapassada a questão do cumprimento dos requisitos de que dependeria o recurso ao procedimento de injunção no caso concreto, a verdade é que o Tribunal da Relação de Lisboa dispõe de elementos que permitem decidir do mérito da causa.
24-Da factualidade dada como provada na sentença recorrida, resulta que, ao abrigo dos contratos celebrados entre as partes foi entregue à Recorrida o montante de € 300.000,00, o qual, nos termos da cláusula nona do Segundo Contrato. haveria de ser devolvido à Recorrente "em caso de cessação deste Contrato, seja porque motivo for (sem prejuízo do direito à indemnização legal, se existir), devolução esta que deverá ter lugar no prazo máximo de 15 (quinze) dias contados da data da cessação do Contrato ".
25-Resultou também provado que a Recorrida procedeu à resolução do Segundo Contrato por comunicação datada de 5 de setembro de 2013.
26-Não tendo a Recorrida procedido ao pagamento do montante de € 300.000,00 até à presente data (não obstante tal facto não constar taxativamente do elenco da factualidade dada como assente na Sentença, deve ser dada como provada mercê de acordo e confissão nas alegações das partes,
- cf. parágrafo 110 do requerimento de injunção e artigo 22° da oposição da recorrida), não restam dúvidas de que a Recorrente é credora da Recorrida no referido valor, ao qual acrescem os juros vencidos e vincendos.
27-Encontrando-se o Tribunal da Relação de Lisboa perante um quadro fáctico que não é objeto de contestação, impõe-se a integração jurídica do caso sub judice, condenando a Recorrida no pagamento à Recorrente do valor de €300.000,00, acrescido de juros legais vencidos e vincendos, o que desde já se requer.

A apelada contra-alega, pugnando pela improcedência do recurso.

Vejamos ….

Na senda do Dl 404/93 de 10-12 , o DL 269/98 de 1/9 retomou a figura da injunção enquanto “providência que permite que o credor de uma prestação obtenha de uma forma célere e simplificada um título executivo (…) quando se consubstancie no cumprimento de uma obrigação pecuniária».

Este diploma, destinado, segundo o seu art 1º, a aprovar o regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada do tribunal de 1ª instância, afirmou-se no seu preâmbulo como especialmente vocacionado para as “acções de baixa densidade”, entendendo-se por tais, as que têm por objecto a cobrança de dívidas por parte dos “grandes utilizadores”, os ditos credores institucionais (bancos, seguradoras, operadoras telefónicas, instituições financeiras…).

Estava, pois, em causa com o mesmo, o cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, contratos esses que não excedessem o valor da alçada do tribunal de 1ª instância, e foi designado por RPCOP.

O espírito deste diploma era o do credor poder utilizar um destes dois mecanismos à escolha - acção declarativa, ou injunção - de forma facultativa e alternativa, num caso e noutro, independentemente do próprio valor do contrato em causa, desde que o montante da prestação exigida fosse igual ou inferior ao valor da alçada do tribunal de 1ª instância e desde que declarasse haver renunciado à outra parte do crédito.

Surgiu, entretanto, o DL 32/2003 de 17/2, que pretendeu transpor a Directiva nº 2000/35/CE do Parlamento Europeu e do Conselho para a ordem jurídica interna, com a finalidade de «combater os atrasos de pagamento nas transacções comerciais» (art 1º).

Alargou a possibilidade de recurso às injunções a todos os pagamentos efectuados como remuneração de transacções comerciais (art 2º), e definiu “transacção comercial” (art 3º al a), como «qualquer transacção entre empresas, ou entre empresas e entidades públicas, qualquer que seja a respectiva natureza, forma ou designação, que dê origem ao fornecimento de mercadorias ou à prestação de serviços contra uma remuneração», e, “empresa” (art 3º al b)), como«qualquer organização que desenvolva uma actividade económica ou profissional autónoma, mesmo que exercida por pessoa singular».

E determinou, que, estando em causa o “atraso de pagamento” em tais “transacções comerciais”, o credor teria direito a recorrer à injunção, independentemente do valor da dívida (art 7º/1 do DL 32/2003 e art 7º RPCOP na redacção do DL 32/2003).

O DL 107/2005 de 1/7, que não revogou nenhum dos outros anteriores, apenas deu nova redacção a muitos dos preceitos do DL 269/98 e ao art 7º do DL 32/2003 de 17/2, veio introduzir alterações nesta matéria de formas processuais.

Do que resulta que desde que o art 8º do DL 32/2003 alterou a redacção do art 7º do DL 269/98, o procedimento da injunção passou a ser utilizável no caso do cumprimento das obrigações a que se refere o art 1º do diploma preambular – obrigações pecuniárias emergentes de contrato – e a obrigações emergentes de transacções comerciais abrangidas pelo DL 32/2003 de 17/2, aqui independentemente do valor.

Mais recentemente, o DL 62/2013 de 10/5, cujo objectivo foi o de transpôr para a ordem jurídica nacional a Directiva nº2011/7/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 16/2/2011, também ela a estabelecer medidas contra os atrasos de pagamento nas transacções comerciais, revogou o DL 32/2003 de 17/2, embora com excepção dos respectivos arts 6º e 8º, mas manteve-o relativamente aos contratos celebrados antes da sua entrada em vigor.

Cumpre, pois, saber o que é a transacção comercial.

Estabelece o art° 2.° deste diploma sob a epígrafe "Âmbito de aplicação" o seguinte:
1-O presente diploma aplica-se a todos os pagamentos efetuados como remuneração de transações comerciais.

2-São excluídos do âmbito de aplicação do presente diploma:
a)Os contratos celebrados com consumidores;
b)Os juros relativos a outros pagamentos que não os efetuados para remunerar transações comerciais;
c)Os pagamentos de indemnizações por responsabilidade civil, incluindo os efetuados por companhias de seguros.

3-(. .. )".
Por seu turno, a norma subsequente (art." 3°) define o que se entende, para efeitos do diploma, como "transação comercial" esclarecendo que se trata de uma transação entre empresas ou entre empresas e entidades públicas destinada ao fornecimento de bens ou à prestação de serviços contra remuneração".

É referido por Joao Vasconcelos Raposo e Luis Batista Carvalho, «Injunções e Acções de Cobranças», 2012, p 28: «Sendo uma transacção comercial aquele contrato oneroso em que um dos obrigados forneça determinado bem ou preste certo serviço contra uma remuneração, nos casos de contratos em que as contraprestações sejam ambas pecuniárias é inaplicável este regime».

E assinalado por Paulo Teixeira Duarte , «a expressão transacção pressupõe a existência de uma relação contratual em moldes (...) semelhantes aos já exigidos pelo procedimento da injunção (...) Estamos, perante um contrato cujo objecto imediato é uma prestação pecuniária, ou seja, que consiste numa quantia em dinheiro, (cfr art 3º al b) parte final, "contra (o pagamento) de uma remuneração”. Essa expressão pressupõe que a obrigação prevista no diploma seja uma obrigação pecuniária e não de valor».

Sem deixar de referenciar o entendimento de Salvador da Costa , tal como emerge da sentença impugnada.

Por isso, tal como se consigna na decisão “… Está, portanto, em causa a cobrança do preço correspetivo ao valor dos bens fornecidos ou dos serviços prestados.”

É, assim, pressuposto objectivo genérico do procedimento da injunção, a presença de obrigações pecuniárias geradas por um contrato, melhor, por um negócio jurídico plurilateral de natureza onerosa.

Obrigações pecuniárias essas que , para o efeito pretendido - de determinação do conceito de obrigação pecuniária actualizável pela via da injunção –consiste numa quantia em dinheiro e são de quantidade (aquelas que têm por objecto uma prestação em dinheiro a qual é destinada a proporcionar ao credor o valor da quantia devida e não de determinada espécie monetária); cf artº 550 do CC .

Porém, a obrigação pecuniária que aqui está em análise só pode ser vista em sentido estrito, ou seja, como aquela em que a quantia pecuniária é o próprio objecto da prestação . E não aquela prestação em que o valor pecuniário é perspectivado como meio de liquidação ,tal como ocorre na obrigação de indemnização.

Conclusão ainda mais sustentada, se atentarmos no seguinte, tal como é assinalado na sentença impugnada:

“…., se bem virmos, as transacções comerciais que o legislador teve em mente são as que dão origem à emissão de uma factura (documento emitido pelo vendedor ou prestador de serviço) como se colhe dos Considerandos 2) ,3) e 18) da DIRECTIVA 20 1117/UE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 16 de Fevereiro de 2011 que o Decreto-Lei 62/2013, de 10 de maio transpôs.

Aí se pode ler : "2) A maior parte dos bens e serviços é fornecida no mercado interno por operadores económicos a outros operadores económicos e a entidades públicas em regime de pagamentos diferidos, em que o fornecedor dá ao cliente tempo para pagar a factura, conforme acordado entre as partes, ou de acordo com as condições expressas na factura do fornecedor ou ainda nos termos da lei.

(3)Nas transacções comerciais entre operadores económicos ou entre operadores económicos e entidades públicas, acontece com frequência que os pagamentos são feitos mais tarde do que o que foi acordado no contrato ou do que consta das condições comerciais gerais. Ainda que os bens sejam entregues ou os serviços prestados, as correspondentes facturas são pagas muito depois do termo do prazo. Atrasos de pagamento desta natureza afectam a liquidez e complicam a gestão financeira das empresas.
Também põem em causa a competitividade e a viabilidade das empresas, quando o credor é forçado a recorrer a financiamento externo devido a atrasos de pagamento. O risco destes efeitos perversos aumenta grandemente em períodos de recessão económica, quando o acesso ao crédito é mais difícil. ".
( ... )

(18)As facturas constituem avisos de pagamento e são documentos importantes na cadeia de valor das transacções para o fornecimento de bens e a prestação de serviços, nomeadamente para determinar os prazos de pagamento.

Para efeitos da presente directiva, os Estados-Membros deverão promover sistemas que contribuam para a certeza jurídica no que respeita à data exacta da recepção das facturas pelos devedores, incluindo a facturação em linha, em que a recepção das facturas pode produzir prova electrónica, a qual é em parte regulada pelas disposições relativas à facturação da Directiva 2006/112/CE do Conselho, de 28 de Novembro de 2006, relativa ao sistema comum do imposto sobre o valor acrescentado ".

Daí que, em consonância com tal regime, o DL nº 62/2013 estatui que o "montante devido" integra "as taxas, direitos ou encargos aplicáveis que constam da factura'", atribuindo ainda relevância jurídica à data da recepção da factura pelo devedor:cf.artº 4º nº 3 al a) e 5º nº1 al b)do referido Diploma.

Atento este quadro conceptual , a questão que se coloca é se a quantia de € 300.000,00 que a requerente pretende cobrar da requerida constitui dalguma sorte, na acepção do diploma, uma remuneração de uma transacção comercial entre ambas.

Relendo o contrato firmado com a requerida ,concluímos que esta e a sociedade O… SGPS,SA se associaram com o objectivo de desenvolver no imóvel, pertença da requerida, um projecto imobiliário .

Projecto este a concretizar mediante as tarefas enumeradas na cláusula 1ª do contrato datado de 19/6.

Como proveitos do negócio as partes estipularam o constante na cláusula 4ª, pelo que os €300.000,00 adiantados pela antecessora da requerente à requerida o foram como antecipação do pagamento que caberia a esta aquando da distribuição dos lucros da parceria que ambas encetaram e na qual a requerente se obrigava a prestar uma série de serviços para desenvolver um projeto imobiliário num imóvel da requerida (cfr. A) a F)).

Na verdade, chegado o momento de repartir os proveitos ,a quota parte da requerida começará por ser entregue à sociedade até perfazer aquele montante de € 300.000,00: cf nº2 da cláusula 4ª.

Por isso, aquando da celebração do contrato datado de 9-12 se tenha designado a entrega dos tais e 300.000,00 como caução ,no caso de cessação do contrato ;é que o que estava em causa era um adiantamento de proveitos por banda da sociedade , por via do pagamento dessa quantia à requerida , uma vez que já tinha usufruído da mesma.

Concluímos, então, que o litígio acerca do pagamento desta quantia prende-se com a distribuição de proveitos, por força da resolução contratual levada a cabo pela requerida, ainda que ,anteriormente, tenha havido uma entrega à requerida de € 300.000,00, a título de adiantamento de lucros.

O que significa que esta obrigação pecuniária é encarada como meio de liquidação dos proveitos, e não em sentido estrito, tal como explanamos; termos em que não poderia ser objecto de injunção.

Aliás, à mesma conclusão se pode chegar ,caso o apelante entenda “ divorciar” a entrega da referida quantia da distribuição de proveitos ,para a perspectivar como uma mera transferência para a esfera patrimonial da requerida : é que também nesta hipótese não estaria em discussão a transacção comercial ,tal como o citado diploma a entende.

Pelo exposto, improcedem as conclusões.

Poderia o Tribunal conhecer do pedido ,ainda que não se aplicassem os pressupostos do recurso ao procedimento de injunção?

O processo simplificado que o legislador teve em vista com a criação do regime especial da injunção, com vista a facultar ao credor de forma célere a obtenção de um título executivo , em acções que normalmente se revestem de grande simplicidade, não é adequado a decidir litígios decorrentes de contratos que revestem alguma complexidade ,como é o caso:
-há que analisar e avaliar clausulado complexo; há que analisar e avaliar a resolução levada a cabo pela requerida ; há que analisar e ponderar as consequências da resolução ; há que conceder á requerida a possibilidade de deduzir pedido de reconhecimento de um crédito ,por via da reconvenção ( artº 266 nº2 al c) CPC).

Por isso, concordamos com o explanado na decisão impugnada:

“…..Porém, com todo o respeito por esta posição, essa transmutação não tem a virtual idade de sanar as diferenças incontornáveis entre:

-o requerimento de injunção, cujos contornos estão estabelecidos no art." 10.° do anexo ao DL n.º 269/98, e a petição inicial que despoleta uma ação de processo comum, a qual, em forma articulada, há de conter os fundamentos de facto e de direito que sustentam a pretensão formulada, desde logo instruída com os pertinentes documentos e, tratando-se a ação com o valor da presente, impondo-se a constituição de mandatário judicial;
-a notificação para pagamento em 15 dias ou para dedução de oposição em 15 ou 20 dias, consoante o valor (art.vs 12.° n." 1, 13.° e 15.° do anexo ao DL n." 269/98) e a citação para contestar no prazo de 30 dias, com possibilidade de prorrogação e de dedução de reconvenção, acompanhada dos documentos que sustentam a pretensão do demandante, com indicação para constituir mandatário, se for o caso;
-a oposição à injunção, que não carece de forma articulada (art.s 15.° e 1º nº 3 do já referido anexo) e uma contestação que obedeça aos formalismos enunciados no art." 572.° do CPC.
Tais diferenças que são, portanto, tão acentuadas nas fases vitais do processo, reforçam a conclusão de que o recurso ao procedimento injuntivo só pode ocorrer quando se verifiquem na íntegra os pressupostos da sua admissibilidade, V.g. dívida proveniente de transacção comercial.

O requerimento de injunção com a linearidade prevista no art° 10° do D.L. 269/98 de 1 de Setembro e uma notificação para pagar ou deduzir oposição em 15 dias, e com o conteúdo descrito no art° 13° do mesmo diploma ( com uma advertência como a prevista na alínea e) do respectivo nº1 !!!) só são compagináveis quando os pressupostos que presidiram à criação deste expediente célere e simples de cobrança de dívidas se verifiquem efectivamente…(“)"Caso contrário, estava encontrado o meio para, com pensado propósito de, ilegitimamente, se tentar obter título executivo, se defraudar as exigências prescritas nas disposições legais que disciplinam o procedimento de injunção" ( Cfr. neste sentido Acórdão da Relação de Coimbra de 20.5.2014 relatado pelo Desembargadador Fonte Ramos, consultável na Base de Dados do IGFEJ.) e de se coarctar direitos de defesa dos demandados (acrescentamos nós)”.

Assim, foi feito um uso indevido pela Requerente do procedimento de injunção, o que configura uma excepção inominada que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, nos termos do art. 576, nº2 ( art. 577) do CPC de 2013.

Improcedem as conclusões.

Conclusão:
-tendo em conta que o adiantamento da quantia de € 300.000,00 da sociedade O… à apelada foi feito a título de adiantamento de proveitos , a obrigação pecuniária objecto do procedimento de injunção não pode ser encarada como especifica ,pelo que não estão reunidos os seus pressupostos.
Este uso indevido configura uma excepção inominada que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, nos termos do art. 576, nº2 ( art. 577) do CPC de 2013.

Pelo exposto, acordam em julgar a apelação improcedente e confirmam a decisão impugnada.
Custas pela apelante.


Lisboa,21/4/2016


Teresa Prazeres Pais
Carla Mendes
Octávia Viegas
Decisão Texto Integral: