Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
933/2007-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: ACEITAÇÃO DA HERANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/13/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: 1. É possível suscitar a reforma da sentença por requerimento autónomo também nos casos em que, não obstante caber recurso da decisão, não tenha sido interposto esse recurso;
2. Aceita tacitamente a herança aquele que não contesta no incidente de habilitação de herdeiros, não recorre da sentença que o julga habilitado e intervém nessa qualidade na audiência de discussão e julgamento;
3. O trânsito em julgado da sentença de habilitação de herdeiro implica a impossibilidade do habilitado de impugnar essa qualidade;
4. A declaração de repúdio da herança posterior às referidas circunstâncias é ineficaz.
(R.F.)
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:
I – Relatório
A… intentou acção declarativa sob a forma sumária contra R1…, R2… e R3… (falecido na pendência da causa, em 11ABR2002, do qual foram declarados habilitados como sucessores S1… e marido, S2…, S3… e S4…) pedindo a condenação dos mesmos ao pagamento de quantia de 1.541.171$00, e juros, referente a saldo negativo de conta associada a cartão de crédito.
Não houve contestação.
Em 31MAR2005 teve lugar a audiência de julgamento.
Entretanto foi junta aos autos declaração de repúdio da herança subscrita por S3…, datada de 4ABR2005.
A final foi proferida sentença que condenou os RR no pedido.
Veio, então, S3… requerer a reforma da sentença, nos termos do artº 669º, nº 2, al. b), do CPC, porquanto não foi considerada a existência nos autos de declaração sua a repudiar a herança de R3….
A isso se opôs o Autor, por impropriedade do meio e ineficácia do repúdio.
Entendendo-se o meio próprio e eficaz o repúdio, foi reformada a sentença, absolvendo-se a Ré S3… do pedido.
Recorre o A. reafirmando a impropriedade do meio e a ineficácia do repúdio.
Não houve contra-alegação.

II – Questões a Resolver
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio(1).
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo(2).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras(3).
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:

- se foi utilizado o meio próprio para requerer a reforma da sentença;
- se o repúdio da herança é eficaz.

III – Fundamentos de Facto
A factualidade relevante é a constante do relatório deste acórdão, para o qual se remete.

IV – Fundamentos de Direito
Dispõe o nº 3 do artº 669º do CPC que o requerimento de reforma da sentença previsto no seu nº 2 (que é o caso dos autos), cabendo recurso da decisão, é feito na própria alegação. Assim só é admissível um requerimento autónomo quando não caiba recurso da decisão.
O Mmº juiz a quo expressou o entendimento de que é possível suscitar a reforma da sentença por requerimento autónomo também nos casos em que, não obstante caber recurso da decisão, não tenha sido interposto esse recurso.
E entendemos ser de sufragar tal entendimento.
Com efeito a expressão ‘cabendo recurso’(4), constante do citado nº 3 do artº 699º do CPC, deve ser entendida não apenas num sentido abstracto (de na acção ser admissível recurso, em função da matéria, da forma de processo, da alçada e da sucumbência) mas, também, num sentido concreto (se as partes, pela sua concreta actuação, ainda conservam o direito de recorrer).
Não obstante caber, em abstracto, recurso da decisão, pode, afinal, não haver lugar a recurso se ambas as partes tiverem previamente renunciado ao recurso, se depois da decisão a parte renunciou ao recurso, aceitou a decisão ou desistiu do recurso que houvera interposto (artº 681º do CPC).
Nestes casos será de considerar, igualmente, que não cabe recurso da decisão, podendo ser suscitada a reforma da sentença através de requerimento autónomo(5).
Resta saber se o caso dos autos se enquadra nalguma dessas situações.
As declarações negociais podem ser expressas ou tácitas (artº 217º do CCiv). Regra essa que se aplica às declarações referentes à disponibilidade do direito ao recurso. Designadamente são nessa matéria admitidas declarações tácitas. Pode ser tácita a aceitação da decisão (artº 681º, nº 3, do CPC), a desistência do recurso (artigos 291º, nº 2, e 690º, nº 3, do CPC); como, igualmente, pode ser tácita a renúncia ao recurso.
Basta, para o efeito que a parte adopte um comportamento processual donde se deduza, com toda a probabilidade, a vontade de renunciar ao recurso.
E é isso que, em nosso entender, se verifica nos autos, quando, no decurso do prazo para recorrer a parte vem apresentar requerimento autónomo para reforma da sentença. Do acto da apresentação desse requerimento, desacompanhado de qualquer declaração de interposição de recurso, deduz-se, com toda a probabilidade (que veio, aliás, a confirmar-se integralmente) que não pretende recorrer, que pretende renunciar ao recurso(6).
Conclui-se, portanto, pela improcedência do recurso quanto à impropriedade do meio processual utilizado.

Conhecendo do requerimento o Mmº juiz a quo reformou a sentença revogando a condenação da requerente, que substituiu pela absolvição do pedido, por considerar eficaz o repúdio da herança.
Consideração essa que se nos afigura menos acertada.
Com efeito, a titularidade das relações jurídicas transmite-se pela sucessão hereditária (artº 2024º do CCiv), que se abre no momento da morte (artº 2031º do CCiv) através do chamamento dos herdeiros (artº 2032º do CCiv).
Aos chamados abrem-se duas hipóteses, que mutuamente se excluem: ou aceitam a herança (artº 2050º do CCiv) ou a repudiam (artº 2062º do CCiv), sendo tais declarações irrevogáveis (artigos 2061º e 2066º do CCiv).
Daí que uma vez aceite a herança já não possa haver repúdio da mesma, sendo ineficaz toda a declaração nesse sentido.
A aceitação pode ser expressa ou tácita (artº 2056, nº 1, do CCiv).
Falecendo uma parte na pendência da causa suspende-se a instância (artº 277º do CPC) para que seja habilitado o sucessor do falecido para com ele prosseguirem os termos da demanda (artigos 284º e 371º do CPC).
No incidente de habilitação os imputados sucessores são citados/notificados para tomarem posição sobre a qualidade que lhes é imputada (artº 372º do CPC), terminando tal incidente com uma sentença que declara a qualidade de sucessor do habilitado, a qual constitui para ele caso julgado, impedindo-o de impugnar a qualidade que lhe foi atribuída (artº 373, nº 2, do CPC).
Na presente acção o Réu faleceu em 11ABR2002, não havendo notícia de que a requerente da reforma da sentença, S3…, tenha tomado qualquer posição no sentido de repudiar a herança. Após aquela data foi citada, imputando-se-lhe a qualidade de herdeira e não contestou essa qualidade, que lhe foi reconhecida por sentença transitada em julgado. Habilitada na acção constituiu mandatário e interveio na audiência de discussão e julgamento, ocorrida em 31MAR2005.
Todo este comportamento consubstancia uma atitude donde se deduz, com toda a probabilidade, uma intenção de se assumir como herdeira, de aceitar a herança.
Qualidade essa que, aliás, lhe advinha da força de caso julgado da sentença de habilitação.
Sendo herdeira, porque irrevogavelmente aceite a herança, já não podia repudiá-la, sendo ineficaz a declaração que emitiu nesse sentido.

Não sendo minimamente invocável para o efeito, como foi feito pelo Mmº juiz a quo, o disposto no artº 2043º do CCiv, dado que este não regula sobre a atribuição da qualidade de herdeiro, mas antes no domínio da representação sucessória – possibilidade do sucessor de um herdeiro que não pôde ou não quis aceitar a herança de um terceiro ser chamado a ocupar a posição deste – afirmando que o facto de o sucessor do herdeiro ter repudiado a herança deste não impede a representação sucessória relativamente à herança daquele terceiro.

V – Conclusões
Do exposto podem extrair-se as seguintes conclusões:

1. é possível suscitar a reforma da sentença por requerimento autónomo também nos casos em que, não obstante caber recurso da decisão, não tenha sido interposto esse recurso;
2. aceita tacitamente a herança aquele que não contesta no incidente de habilitação de herdeiros, não recorre da sentença que o julga habilitado e intervém nessa qualidade na audiência de discussão e julgamento;
3. o trânsito em julgado da sentença de habilitação de herdeiro implica a impossibilidade do habilitado de impugnar essa qualidade;
4. a declaração de repúdio da herança posterior às referidas circunstâncias é ineficaz.

VI – Decisão
Termos em que, dando provimento à apelação, se revoga a reforma da sentença, confirmando integralmente esta na sua versão originária.
Custas pela apelada S3….
Lisboa, 2007MAR13
(Rijo Ferreira)
(Afonso Henrique)
(Rui Moura)
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1 - Cf. artº 684º, nº 3, e 690º CPC, bem como os acórdãos do STJ de 21OUT93 (CJ-STJ, 3/93, 81) e 23MAI96 (CJ-STJ, 2/96, 86).
2 - Cf. acórdãos do STJ de 15ABR93 (CJ-STJ, 2/93, 62) e da RL de 2NOV95 (CJ, 5/95, 98). Cf., ainda, Amâncio Ferreira, Manual dos recursos em Processo Civil, 5ª ed., 2004, pg. 141.
3 - Cfr artigos 713º, nº 2,, 660º, nº 2, e 664º do CPC, acórdão do STJ de 11JAN2000 (BMJ, 493, 385) e Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, 247.
4 - tal como a expressão ‘se esta não admitir recurso ordinário’, constante do nº 3 do artº 668º do CPC.
5 - cf, no mesmo sentido, Lebre de Freitas, CPC Anotado, vol II, 2001, pgs 671 e 674.
6 - e nem se obtempere que no caso o que se verifica é a caducidade do direito de recurso e não a renúncia ao mesmo dado que (e sem discutir da equivalência das situações para o efeito) tendo o requerimento sido apresentado no último dia do prazo o direito ao recurso ainda se não encontrava caducado em virtude da possibilidade de interposição do mesmo nos três dias úteis imediatos.