Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
26714/22.6T8LSB.L1-1
Relator: NUNO TEIXEIRA
Descritores: INQUÉRITO JUDICIAL À SOCIEDADE
PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
ÓNUS DE PROVA
LEGITIMIDADE DA RECUSA DE INFORMAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I–Ao processo de “inquérito judicial a sociedade”, sendo um processo de jurisdição voluntária, são aplicáveis as normas gerais previstas para este tipo de processos especiais constantes dos artigos 986º a 987º do CPC, bem como, por remissão do nº 1 do artigo 986º, as disposições dos artigos 292º a 295º do CPC.

II–Nos processos de jurisdição voluntária, o juiz não está vinculado a qualquer prova arrolada pelas partes, podendo prescindir de provas que repute de inúteis ou de difícil obtenção, intervindo de forma discricionária e fundamentada na avaliação da necessidade das provas que considere úteis para a decisão.

III–De acordo com os critérios de repartição dos ónus da prova, no processo especial de “inquérito judicial à sociedade”, enquanto ao requerente compete alegar e provar, por um lado, “os fundamentos do pedido de inquérito”(a identificação da sociedade; a qualidade do titular do direito à informação; e, o impedimento ou desvirtuamento em aceder à informação previamente solicitada à gerência da sociedade) e, por outro, “os pontos de facto que interessa averiguar”(o próprio conteúdo da informação obstaculizada e as realidades da vida societária que se pretenderam, e pretendem, conhecer), sobre a sociedade recai o ónus de demonstrar os factos dos quais se possa retirar ou inferir a licitude da recusa, já que são factos impeditivos do direito do requerente (artigos 342º, nº 2 do Código Civil, 215º e 290º, nº 2 ambos do CSC).

IV–Justifica-se a dispensa de inquirição das testemunhas arroladas, quando o ónus de prova que incumbia ao Requerente foi totalmente preenchido pelas demais provas (documentos e confissão).

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa,


1.–DJ., veio ao abrigo do disposto nos artigos 1048º e ss. do Código do Processo Civil, requerer inquérito judicial contra EDMEÉ, S.A., MP., RB. e PC., pelo qual pede lhe seja entregue:
a)-os relatórios de gestão e os documentos de prestação de contas previstos na lei, relativos aos três últimos exercícios, seja, 2016, 2017 e 2018 incluindo os pareceres do conselho fiscal, da comissão de auditoria, do conselho geral e de supervisão ou da comissão para as matérias financeiras, bem como os relatórios do revisor oficial de contas sujeitos a publicidade, nos termos da lei;
b)-as convocatórias, as actas e as listas de presença das reuniões das assembleias gerais e especiais de acionistas e das assembleias de obrigacionistas realizadas nos últimos três anos, seja 2016, 2017 e 2018;
c)-os montantes globais das remunerações pagas, relativamente a cada um dos últimos três anos, aos membros dos órgãos sociais;
d)-os montantes globais das quantias pagas, relativamente a cada um dos últimos três anos, aos 5 empregados da sociedade que recebam as remunerações mais elevadas.
e)-o documento de registo de ações.
Para o efeito, invocou que detém 4650 acções no valor de 23.250,00 €, da sociedade 1ª Ré, que tem o capital social de 372.000.00 € e que os demais réus administram.

Regularmente citados, os Réus contestaram, e, para além de arguirem a ineptidão da petição inicial, impugnaram a factualidade dela constante, alegando que: o A. foi convocado para as assembleias gerais realizadas no período de 2016 a 2018, nas quais esteve presente; sempre poderia consultar o IES ainda que este não contivesse toda a informação da empresa; insiste em utilizar a informação perante terceiros havendo até fundamento de legitima recusa. Concluem pela não verificação dos pressupostos do inquérito judicial, afirmando cumprir o estatuído para as sociedades comerciais juntando as actas onde o A. esteve presente.
O Requerente respondeu e deduziu incidente de litigância de má fé, pedindo a condenação em multa e indemnização no valor de € 5.000, e honorários às mandatárias, comprovando a notificação aos Réus que não se pronunciaram.

Finalmente, concluindo o tribunal não haver necessidade de produção de outras prova, proferiu sentença, cujo dispositivo se transcreve:
“Termos em que fundada nos preceitos aludidos e pelos motivos acima expostos, se julga procedente o presente inquérito judicial à 1.ª Ré, e, nessa conformidade, ao abrigo do disposto no art. 1048 e 1049/1 do Código de Processo Civil, se determina a entrega ao A dos elementos vertidos nas als. a) a e) do pedido com exclusão da acta n.º 8.
No prazo de 10 dias. A ter lugar na sede social da Ré.
Mais condeno os Réus em multa de 6 Ucs –art. 27/3 do Regulamento das Custas Processuais- visto o preenchimento múltiplo das aludidas condutas sancionáveis.
E numa indemnização global á luz do preceituado no art. 543/1 a 4 do Código de Processo Civil se fixa em € 2500 a pagar ao A (atento o valor da acção).
Fixo o valor da acção em -5.000,01 € - art. 303 do Código de Processo Civil.
Custas pelo A, nos termos do art. 1052/1, do Código de Processo Civil.
Registe e notifique.”

Não se conformando com  sentença proferida, dela interpuseram recurso os Requeridos, cujas alegações concluem da seguinte forma:
A.–A prova documental junta aos autos, não se mostrava suficiente para apreciar o mérito da causa,
B.–E, ao contrário do que o Tribunal “a quo” entendeu, não haver necessidade de produção de outra prova, os Recorrentes entendem que deveria terem sido ouvidas as testemunhas arroladas,
C.–O que sufragaria a recusa legítima de documentação ao Recorrido, uma vez que este a utiliza consciente e deliberadamente para denegrir o bom nome da Empresa e da Administração a terceiros,
D.–Os Recorrentes discordam de que estariam reunidas as provas suficientes para uma boa decisão da causa.
E.–Portanto, repete-se que importaria e se imporia o julgamento para audição e análise da prova testemunhal em confronto com a documental.
F.–O Tribunal “a quo” também não esteve bem ao ter condenados os Recorrentes em litigância de má-fé, tão só querem usar o seu direito legítimo de defesa, não havendo base para aferir o dolo por uso indevido do processo, apenas baseando-se nas alegações do Recorrido.
G.–Pelos documentos juntos, quer na P.I., quer na Contestação, actas e convocatórias, deveria ter sido considerado que o Recorrido tem cabal conhecimento da vida da Empresa,
H.–Atente-se, por exemplo, ao documento 4 junto com a P.I. , onde o Recorrido confessa ter o conhecimento e de ter estado presente nas Assembleias, assim, decisão diversa se impunha.
I.–Não tendo o Tribunal “a quo” fundamentado as provas e factos que concretamente se baseou a sentença está ferida de nulidade ou irregularidade se for este o entendimento.
J.–Nem tão pouco havia elementos junto aos autos para se aferir que os Recorrentes violaram o dever de cooperação, pelo que decisão diversa se impunha.
K.–Tão pouco a título de negligência grosseira poderia ser imputado aos Recorrentes a sua conduta em prevenir o uso abusivo da documentação.
L.–Os Recorrentes agiram com legitimidade na sua pretensão, cujo fundamento é o de pugnar pela sua defesa e direitos.

O Requerente apresentou contra-alegações onde conclui pela existência de prova documental susceptível de formar a convicção de verificação dos factos por ele alegados e não impugnados pelos Requeridos, pelo que a inquirição das testemunhas seria um acto meramente dilatório, referindo ainda que a condenação dos Requeridos como litigantes de má fé está devidamente fundamentada, quer de facto, quer de direito.

O recurso foi correctamente admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

2.–Como é sabido, o teor das conclusões formuladas pela recorrente define o objecto e delimitam o âmbito do recurso (artigos 608º, nº 2, 609º, 635º, nº 3 e 639º, nº 1 todos do Código de Processo Civil).
Assim, de acordo com as conclusões formulados pelos Recorrentes são estas as questões a resolver:
-(des)necessidade de inquirição das testemunhas arroladas e análise dos respectivos depoimentos em confronto com a prova documental;
-nulidade da sentença na parte em que condena os ora Recorrentes como litigantes de má fé, por falta de fundamentação, bem como verificação dos respectivos pressupostos.

3.–A sentença recorrida deu por provados os seguintes factos:
1.–Por carta registada datada de 20/02/2020, com aviso de recepção assinado em 21/02/2020, dirigida aos administradores da 1.ª Ré, o A, invocando o disposto no art. 216º do CSC, solicitou lhe fosse facultada a consulta do livro de actas da sociedade, e cópias, sugerindo para o efeito o dia 5 de Março pelas 15h45 no local indicado na carta – doc 2.
2.–Por carta de 27/02/2020 a administração da Ré acusou a recepção da carta e lamentando informar, respondeu não poder satisfazer o pedido, à luz daquela norma, “por não ter sido prestada qualquer informação presumivelmente falsa, incompleta ou não elucidativa” – doc. 2.
3.–No dia 26/10/2022 e após a realização da Assembleia plasmada na acta junta como documento n.º 1, o A. enviou aos RR., carta registada e email com o seguinte teor:
“Atentas as poucas informações prestadas na Assembleia Geral ocorrida ontem, dia 25.10.2022, bem como o facto de não ter sido convocado para Assembleias Gerais anteriores, que parece terem existido, venho ao abrigo do disposto no art.º 288.º do Código das Sociedades Comerciais, solicitar:
a)- Os relatórios de gestão e os documentos de prestação de contas previstos na lei, relativos aos três últimos exercícios, seja, 2016, 2017 e 2018 incluindo os pareceres do conselho fiscal, da comissão de auditoria, do conselho geral e de supervisão ou da comissão para as matérias financeiras, bem como os relatórios do revisor oficial de contas sujeitos a publicidade, nos termos da lei;
b)- As convocatórias, as actas e as listas de presença das reuniões das assembleias gerais e especiais de accionistas e das assembleias de obrigacionistas realizadas nos últimos três anos, seja 2016, 2017 e 2018;
c)- Os montantes globais das remunerações pagas, relativamente a cada um dos últimos três anos, aos membros dos órgãos sociais;
d)- Os montantes globais das quantias pagas, relativamente a cada um dos últimos três anos, aos 5 empregados da sociedade que recebam as remunerações mais elevadas.
e)- O documento de registo de acções.
Mais vem solicitar que o referido nas alíneas c) e d) seja certificado pelo revisor oficial de contas, bem como que, no prazo de 10 dias lhe seja disponibilizada a consulta pessoal destes documentos na sede social devendo V.ªs Ex.ªs indicar para o email (...)@gmail.com, o dia e hora em que poderei deslocar-me à sede para consulta do solicitado.” – doc. 3 e 4.
4.–A referida carta expedida em 26/10/2022 com aviso de recepção, teve assinatura deste no dia seguinte, 27/10/2022.
5.–A acção deu entrada no dia 11/11/2022. E os Réus juntaram com a contestação:
a.-cópia da acta n.º 8 datada de 07/12/2017, relativa ao exercício de 2015 e 2016[1] bem como a convocatória e lista de presenças;
b.-carta dirigida no dia 05/12/2017 pelo A. à 1.ª Ré solicitando informação sobre falta de rendas visto a existência de propriedades de investimento; o porquê das dívidas de mora; a razão de inventário de 544 mil euros desde 2014; a razão do aumento do passivo de 478 mil euros em 2015 para 458 mil em 2016; o porquê dos prejuízos em 2015 e 2016, e o motivo de haver gastos não havendo rendimentos – doc 2, fls. 25 verso dos autos;
c.-cópia da acta n.º 10 de 19/09/2019, relativa ao exercício de 2018, bem como lista de presenças;
d.-mais juntou modelo 22 do IRC de 2022.
6.–Da acta de 07/12/2017 consta que o conselho de administração em face do requerimento apresentado pelo A. “enviado por carta registada de 6-12-2017 não presta qualquer esclarecimento adicional e remeteu para o relatório e contas bastante esclarecedor”. E em face da questionada ausência do ROC, pelo ora A, este declarou ausentar-se.
7.–Consultada a certidão permanente verifica-se o cancelamento do averbamento da dissolução administrativa e última prestação de contas com data 02/06/2023.
8.–Com data de 25/10/2022 reuniu a assembleia geral da Ré tendo sido lavrada a acta n.º 11, no decurso da qual o ora A pediu os esclarecimentos melhor vertidos no doc. 1, cujo teor aqui se dá por reproduzido. O A votou contra as deliberações tomadas e em declaração de voto afirmou que os esclarecimentos eram insuficientes.

4.–Estabelecidos os factos provados, cumpre agora responder às questões colocadas pelos Recorrentes.
4.1.–Apesar de não terem impugnado a decisão que recaiu sobre a matéria de facto[2], é entendimento dos Recorrentes que a prova documental junta aos autos não era suficiente para o tribunal apreciar o mérito da causa, impondo-se o julgamento para “audição e análise da prova testemunhal em confronto com a documental” (cfr. alínea E) das conclusões recursivas).
Contrariamente, considera o Recorrido que a inquirição das testemunhas redundaria num acto meramente dilatório, dado existir prova documental suscetível de formar a convicção de verificação dos factos por si factos alegados.
Ora, tendo em conta a classificação do processo especial de inquérito judicial à sociedade como de jurisdição voluntária e atendendo às regras de repartição do ónus da prova, a resposta a esta questão só poderia ser negativa.
Com efeito, o “inquérito judicial à sociedade” é um processo (especial) de jurisdição voluntária previsto nos artigos 1048º a 1052º do CPC, com uma tramitação mais simplificada.[3] Esta simplicidade e celeridade que o legislador quis impor a este tipo de processo é confirmada, desde logo, pelo nº 1 do artigo 986º do CPC (preceito que estabelece as regras gerais dos processo de jurisdição voluntária), que manda aplicar aos processos de jurisdição voluntária as disposições dos artigos 292º a 295º (disposições gerais previstas no CPC para os incidentes da instância). A corroborar essa simplicidade e celeridade de tramitação, basta reparar na disciplina que estabelece o nº 1 do artigo 293º para a indicação das provas: as partes devem oferecer o rol de testemunhas e requerer as demais provas no requerimento em que suscite o incidente e na oposição que lhe for deduzida.

Na verdade, nos processos de jurisdição voluntária, o princípio do inquisitório, para além de traduzir um reforço dos poderes de direcção do processo por parte do juiz, impõe-lhe “um dever de boa gestão processual, exigindo-lhe uma postura activa na condução do mesmo processo, devendo diligenciar pelo seu andamento célere, promovendo, para tanto, oficiosamente, as diligências adequadas ao normal desenvolvimento da lide e recusando o que for impertinente ou dilatório, tudo com vista a alcançar uma justa composição do litígio em prazo razoável”.[4] Em resultado deste alargamento do principio do inquisitório, nestes processos, poderá o juiz recusar a produção de provas quando as julgue desnecessárias, podendo mesmo privar os interessados do direito à produção de prova.[5]

Como referem ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e FILIPE DE SOUSA em comentário ao artigo 986º, parafraseando ANTÓNIO FIALHO em obra já citada, o que se pode deduzir do seu nº 2 é a “prevalência do princípio do inquisitório sobre o princípio do dispositivo, de modo que “os factos essenciais que constituam a causa de pedir não delimitam o âmbito de cognição do tribunal já que este pode considerar outros factos (complementares, concretizadores, instrumentais, notórios, de que tenha conhecimento no exercício das suas funções ou que sejam constitutivos dos desvio da função processual) para além daqueles que são alegados pelas partes”, não estando dependente de nenhum ónus de alegação pelos intervenientes, na precisa medida em que pode conhecer oficiosamente os factos, quer por investigação própria, quer na sequência de alegação dos interessados”. Segundo os referidos comentadores, que recorrem à jurisprudência, o mesmo nº 2 “preconiza a flexibilidade da tramitação processual, sendo lícito ao juiz realizar atos ou formalidades não especificamente previstos e omitir aqueles que se revelem destituídos de interesse para o exame ou decisão da causa (RP 02/02/2015, proc. 955/12, www.colectaneadejurisprudencia.com), assim como prescindir de provas que repute inúteis ou de difícil obtenção (RP 14/06/2010, 148/09), numa vertente de intervenção discricionária e fundamentada na avaliação do que, no seu prudente arbítrio, considere útil para a decisão (RP 15/09/2016, 2848/15, (www.colectaneadejurisprudencia.com). Concluem que “a especificidade dos processos de jurisdição voluntária levou ainda o legislador a adotar uma tramitação processual simplificada, em resultado da remissão para as disposições sobre incidentes da instância (artigos 292º a 295º) que não contrariam o que especificamente se escreve. Tal encontra tradução na simplicidade da alegação dos fundamentos fácticos e jurídicos, na apresentação imediata dos meios de prova com o requerimento e com a oposição (sublinhado nosso), na limitação do número de testemunhas, em comparação com o que se verifica no processo comum (sem embargo da oficiosidade), e na brevidade das alegações orais. Diversamente dos que consta do art. 295º, a decisão pode ser proferida dentro do prazo de 15 dias, e, por outro lado, a obrigatoriedade de constituição de advogado apenas ocorre na fase de recurso.”[6]
Esta simplicidade de tramitação processual dos processos de jurisdição voluntária serve para, por exemplo, fundamentar a recusa da inquirição das testemunhas arroladas, cujos depoimentos apenas teriam como objectivo, certamente, a confirmação dos factos alegados e que a 1ª instância julgou provados por confissão, por acordo ou por resultarem dos documentos juntos aos autos (cfr. ponto III da sentença recorrida). Na verdade, todos os factos provados ou reproduzem o teor dos documentos juntos (por exemplo as cartas enviadas pelo Recorrido aos Recorrentes de 05/12/2017, 20/02/2020), 27/02/2020, 26/10/2022), ou fazem-lhes referência (actas nºs 8, 10 e 11, modelo 22 do IRC de 2022 e certidão permanente do registo comercial referente à sociedade).

4.2.–Acrescentam ainda os Recorrentes que o depoimento das testemunhas poderia sufragar “a recusa legítima de documentação ao Recorrido, uma vez que este a utiliza consciente e deliberadamente para denegrir o bom nome da Empresa e da Administração a terceiros” (cfr. alínea C) das alegações recursivas).
Na verdade, no que respeita às sociedades anónimas, o nº 2 do artigo 290º do CSC considera lícita a recusa de informações em assembleia geral se a prestação “puder ocasionar grave prejuízo à sociedade ou a outra sociedade com ela coligada ou violação de segredo imposto por lei”. Por sua vez, quanto às sociedades por quotas, o artigo 215º, nº 1 do CSC permite a recusa “quando for de recear que o sócio as utilize [a informação, a consulta ou a inspeção] para fins estranhos à sociedade e com prejuízo desta”. Nestas situações, como refere SOVERAL MARTINS, “a recusa é possível quando “for de recear” uma utilização pelo sócio para fins estranhos à sociedade e quando “for de recear” que tal utilização cause prejuízo à sociedade”, prejuízo esse que não tem de ser grave, ao contrário do que é exigido pelo artigo 290º, nº 2. Já neste último preceito, continua o mesmo autor, “não se exige que seja de recear  a utilização da informação pelo sócio para fins estranhos à sociedade; considera-se relevante a possibilidade de causar prejuízo a sociedade coligada com aquele a que se solicita a informação; exige-se que o prejuízo possível seja grave; usa-se a formulação “puder ocasionar” em vez de “for de recear”. Por isso, conclui que “não haverá razão para recusar a prestação de informações se apenas for de recear que o sócio utilize a informação para fins estranhos à sociedade mas não seja de recear que tal utilização cause prejuízo à sociedade. E, por outro lado, também não será lícita a recusa se apenas for de recear que a utilização da informação cause prejuízo à sociedade e não seja de recear que a informação seja utilizada para fins estranhos à sociedade.”[7]

No caso em apreço, a recusa dos Recorrentes em prestarem ao Recorrido as informações por ele solicitadas só estaria legitimada se fosse de recear que a informação fosse utilizada para fins estranhos à sociedade e, simultaneamente, fosse de recear que tal utilização causasse prejuízo (grave) à sociedade.

Ora, tendo em vista os critérios de repartição dos ónus da prova, num inquérito judicial à sociedade, enquanto ao requerente compete alegar e provar, por um lado, “os fundamentos do pedido de inquérito” (a identificação da sociedade; a qualidade do titular do direito à informação; e, o impedimento ou desvirtuamento em aceder à informação previamente solicitada à gerência da sociedade) e, por outro, “os pontos de facto que interessa averiguar” (o próprio conteúdo da informação obstaculizada e as realidades da vida societária que se pretenderam, e pretendem, conhecer)[8], sobre a sociedade “recai o ónus de demonstrar os factos  dos quais se possa  retirar ou inferir a licitude da recusa, já que são factos impeditivos do direito do requerente” (artigos 342º, nº 2 do Código Civil, 215º e 290º, nº 2 ambos do CSC).[9]

Examinada a oposição deduzida pelos Requeridos, ora Recorrentes, verifica-se que, para além de negarem o impedimento do acesso à informação societária pelo Requerente – não impugnando, no entanto, o teor dos documentos juntos com a petição – , apenas alegam, muito vagamente, que este “insiste em utilizá-la indevidamente perante terceiros, pelo que haveria fundamentos de recusa legítima” (cfr. artigo 8º), o que na realidade, corresponde a não alegar nada quanto à licitude da recusa de prestação da informação. Com efeito, cabia aos Requeridos alegar e provar as circunstâncias das quais resultasse o receio de que a informação fosse utilizada para fins estranhos à sociedade e que tal utilização causava prejuízo (grave) à sociedade. Ora, se nada de concreto foi alegado pelos Requeridos, também nada poderia ser provado pelas testemunhas arroladas.

Desta feita, bem andou o tribunal a quo em dispensar a inquirição de testemunhas, até porque o ónus de prova que incumbia ao Requerente foi totalmente preenchido. Dos factos provados resulta que o Requerente é accionista da sociedade Requerida e que, nessa qualidade, desde 05/12/2017, e por várias vezes, solicitou-lhe a consulta de documentos e a prestação de informações relativas à actividade societária que esta vem recusando, pelo menos parcialmente, sem qualquer razão justificativa razoável, até porque se trata de  documentação que deve estar na sede social.

Assim, improcem as conclusões das alíneas A) a E) das alegações recursórias.

4.3.–Os Recorrentes consideram ainda que a parte da sentença que trata da litigância de mé fé e que termina pela sua condenação no pagamento de uma multa e em indemnização a favor do ora Recorrido padece de nulidade, por o tribunal a quo não ter “fundamentado as provas e factos que concretamente se baseou” (cfr. alínea I) das conclusões de recurso).

Ora, de acordo com o disposto no artigo 615º, nº 1, alínea b) do CPC, a sentença é nula quando “não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”. Esta nulidade, que respeita à estrutura da sentença, ocorre “quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão. Não a constitui a mera deficiência de fundamentação.”[10] Ou, como decidiu recentemente o STJ, no Acórdão de 21/09/2021 (proc. 1480/18.3T8LSB-A.L1.S1), “a nulidade das decisões judiciais por falta de fundamentação só ocorre no caso de ausência absoluta, e não de sucinta, deficiente, incompleta ou insuficiente motivação e não abrange eventuais erros de julgamento”.[11]

A sentença em crise, na parte em que condena os ora Recorrentes como litigantes de má fé, não padece de nulidade em razão da ausência de fundamentação, uma vez que indica as normas violadas, bem como adianta as razões, de facto e de direito, que justificam a sua condenação como litigantes de má fé, a saber: dedução de oposição sem fundamento e omissão de factos relevantes para a decisão da causa, para além da violação do dever de cooperação.

Deste modo, não se verifica a alegada ausência absoluta de fundamentação, a única que poderia levar à nulidade do despacho.

4.4.–Por fim, entendem os Recorrentes que a sua conduta de “prevenir o uso abusivo da documentação” não pode justificar a condenação como litigantes de má fé, a título de negligência grosseira, tendo agido com legitimidade na sua pretensão, cujo fundamento foi o de pugnar pela sua defesa e direitos (cfr. alíneas J), K) e L) das concussões recursórias)

Com efeito, na decisão recorrida consignou-se o seguinte:
“Dos factos apurados emerge, portanto, que houve por banda dos Réus uma actuação, pelo menos, gravemente negligente nos termos sobreditos, pois não podiam deixar de saber que actuando como actuaram o estavam a fazer de forma a deduzir oposição com falta de fundamento a omitir factos relevantes para a decisão da causa e ainda a omitir o dever de cooperação.”

Vejamos, pois, se é legítima esta conclusão.

Diz-se litigante de má fé, segundo o disposto pelo artigo 542º, n.º 2, do Código de Processo Civil, quem, com dolo ou negligência grave:
a)-Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b)-Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c)-Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d)-Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente, reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Tendo litigado de má fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização, a favor da parte contrária, se esta a pedir, nos termos do disposto no artigo 542º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

Para não caírem no âmbito de aplicação dos normativos ora acabados de transcrever e nas correlativas sanções previstas para o efeito, as partes deverão litigar com a devida correcção, ou seja, no respeito dos princípios da boa fé e da verdade material e, ainda, na observância dos deveres de probidade e cooperação expressamente previstos nos artigos 7º e 8º do Código de Processo Civil, para assim ser obtida, com eficácia e brevidade, a realização do Direito e da Justiça no caso concreto que constitui objecto do litígio.

A má-fé traduz-se, em última análise, na violação do dever de cooperação que os artigos 7º, 8º e 542º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil, impõem às partes.
Tal como se refere no Acórdão do S.T.J. de 24/04/92, “os factos a que se refere o art. 456º n.º 2 do C. P. Civil [actual artigo 542º], e cuja alteração consciente constitui litigância de má fé, são os factos que as partes alegam nos articulados para fundamentar o pedido e a oposição”.[12]

A doutrina tem considerado a má fé  (quer dolosa, quer baseada em culpa grave) de que trata o preceito acima mencionado como material aquela que abrange os casos de dedução do pedido ou de oposição cuja falta de fundamento se conhece, e a alteração consciente da verdade dos factos ou omissão de factos essenciais e como instrumental a que respeita ao uso reprovável do processo, ou de meios processuais para conseguir um fim ilegal, para entorpecer a acção da justiça ou para impedir a descoberta da verdade.[13]

No que respeita à “dedução de pretensão (…) cuja falta de fundamento não devia ignorar” (artigo 542º, nº 2, alínea a) do CPC), tem-se entendido que “a parte pratica um acto desconforme e provocador de um dano num bem jurídico protegido porque, antes de agir, devia ter observado os deveres de indagação que sobre ela impendiam; o desconhecimento quanto à falta de fundamentação é-lhe imputável, sendo censurável”.[14] Por outras palavras, exige-se ao autor que, antes de intentar uma acção, “pondere a sua razoabilidade, evitando-a se não houver fundamento sério para a dedução da pretensão, sendo ilegítima uma atitude irreflectida ou sem qualquer base mínima de apoio.”[15]
Já quanto à violação da alínea b) do nº 2 do artigo 542º do CPC – alteração da verdade dos factos – trata-se de uma falta ao dever de verdade, que vincula ambas as partes, não sendo legítimo a qualquer delas, seja de forma consciente, ou gravemente negligente, afirmar factos que não são verdadeiros ou negar outros que sabe serem verdadeiros, ou em relação aos quais lhe era exigível esse conhecimento.

Por fim, a litigância de má fé instrumental resultará ou da violação do dever de cooperação ou da utilização dos meios processuais para os fins ilegítimos referidos no artigo 542º, nº 2, alínea d) do CPC.

No caso em apreço o tribunal a quo concluiu que os Recorrentes agiram de má fé, porquanto a sua conduta processual preencheu os requisitos previstos nas alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 542º do CPC, isto porque considera que deduziram oposição, sabendo que não havia fundamento para tal, que omitiram factos relevantes para a decisão da causa, bem como o dever de colaboração.

Aquela conclusão do Tribunal a quo assenta nos seguintes fundamentos:
É referido na contestação ser “falso o que o A. alega e que inclusivamente o A. utiliza indevidamente a informação havendo até motivo para recusa ilegítima.
Como se alcança da matéria dada como provada e assente nos documentos juntos, não consta de lado algum que a informação esteja a ser recusada ao A. desde 2017 com tal fundamento, surgindo agora na acção em Fevereiro de 2023.
Acresce que os Réus invocam, que o A., por ter estado sempre presente, não tem razão em demandá-los.
Ora, os Réus juntaram os elementos que entenderam, contudo não, ou pelo menos, não todos aqueles quer o A. pede, quer por escrito, quer em acta das assembleias onde lhe foram negados aqueles mesmos elementos que solicita.
Mais, apresentam elementos que manifestamente não são aqueles que o A. pediu nem os substituem, como aliás admitem quanto ao Modelo 22 de IRC e relativamente à informação de disponibilidade do IES.”

Mas, face à factualidade dada por assente – que decorre da confissão operada e do teor dos documentos juntos –  é difícil concluir que estejamos perante uma violação dos deveres processuais por parte dos Requeridos, designadamente que tivessem deduzido oposição cuja falta de fundamento não ignoravam. É certo que os Recorridos deduziram oposição, negando que tivessem impedido o acesso a informação societária ao Requerente, quando sabiam que haviam recusado, por várias vezes,  pedidos de informação por escrito. É igualmente certo que impende sobre o órgão da sociedade anónima que para tal esteja habilitado – designadamente o conselho de administração – o dever de prestar ao accionista, em assembleia, as informações verdadeiras, completas e elucidativas que lhe permitam formar opinião fundamentada sobre os assuntos sujeitos a deliberação e que tais informações só poderão ser recusadas se a sua prestação puder ocasionar grave prejuízo à sociedade ou a outra sociedade com ela coligada ou violação de segredo imposto por lei, sendo certo que se a recusa for acompanhada de uma justificação que não corresponda à verdade ou não seja relevante, é  causa de anulabilidade da deliberação em relação à qual a informação requerida permitiria formar opinião fundamentada  (artigo 290º nºs 1, 2 e 3 do CSC).[16]

Contudo, como resulta, quer da oposição antes deduzida, quer das alegações de recurso, os Requeridos agiram convencidos da legitimidade da recusa em fornecer as informações pedidas pelo Requerente, pelo facto de este alegadamente as utilizar indevidamente perante terceiros. Ora, não resultaram provados factos dos quais se pudesse concluir que os Requeridos tivessem conhecimento de que tal fundamento não bastava para recusar as informações pedidas.

Cremos, pois, que não se verificam in casu os pressupostos para a declaração de litigante de má fé constantes das alíneas a) e b) e c) do nº 2 do artigo 542º do CPC. Na verdade, a falência geral da argumentação jurídica sustentada pelos Requeridos para justificar a recusa de prestação de informação, não legitima a sua condenação como litigantes de má fé, designadamente a título de negligência grave.

Assim, procedem, nesta parte, as alegações de recurso, com a consequente revogação da sentença, na parte em que condena os ora Recorrentes como litigantes de má fé.

5.–Pelo exposto, acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente o presente recurso de apelação, revogando a sentença na parte em que condena os Requeridos como litigantes de má fé, e confirmando-a no mais nela decidido.
Custas da apelação a cargo dos Recorrentes e Recorrido, na proporção de 2/3 e 1/3, respectivamente.



Lisboa, 05/03/2024



Nuno Teixeira- (Relator)
Manuela Espadaneira Lopes-  (1ª Adjunta)
Paula Cardoso - (2ª Adjunta)



[1]Na sentença, por lapso, aparece 2026.
[2]A concluir-se terem os Recorrentes incluído no seu recurso a impugnação da matéria de facto, certamente que não seria admissível, desde logo por não estarem especificados os vários itens mencionados nas várias alíneas do nº 1 do artigo 640º do CPC.
[3]Apesar de serem classificados pelo CPC como de jurisdição voluntária, há quem entenda que os processos que visam o exercício de direitos sociais, “constituem, substancialmente, processos de jurisdição contenciosa; têm na sua base um conflito de interesses e permitem a justa composição de interesses e direitos contrapostos dos litigantes, diferentemente da jurisdição voluntária, que visa essencialmente promover a realização de interesses privados não organizados em conflito” (cfr. REMÉDIO MARQUES, “Anotação  ao artigo 292º”, in [coord. COUTINHO DE ABREU] Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume V, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 256).
[4]FERNANDO PEREIRA RODRIGUES, O Novo Código de Processo Civil – Os Princípios Estruturantes, Almedina, Coimbra, 2013, pág. 87.
[5]Cf. neste sentido, ANTÓNIO FIALHO, Conteúdo e Limites do Princípio do Inquisitório na Jurisdição Voluntária (dissertação de mestrado apresentada na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, consultável em https://run.unl.pt/bitstream/10362/19279/1/Fialho_2016.pdf), Lisboa, 2016, pág. 71.
[6]Cf. Código de Processo Civil Anotado, volume II, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 436.
[7]Cfr. ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, “Anotação 215º do CSC”, in [coord. COUTINHO DE ABREU] Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume III, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2016, pág. 312.
[8]Cfr. DIOGO LEMOS E CUNHA, “O inquérito judicial enquanto meio de tutela do direito à informação nas sociedades por quotas”, in Revista da Ordem dos Advogados, 75º, tt. I e II, pág. 344.
[9]Cfr. REMÉDIO MARQUES, “Anotação ao artigo 216º”, in [coord. COUTINHO DE ABREU], Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume III, 2ª Edição, pág. 326.
[10]Cf. LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pág. 669. No mesmo sentido, cf. ANTUNES VARELA [et al.], Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1984, pág. 669.
[11]Consultado em www.direitoemdia.pt.
[12]Cf. AJ, 18º, pág. 28.
[13]Cf. ABRANTES GERALDES, Temas Judiciários, I Volume, Almedina, Coimbra,1998, pág. 318.
[14]PAULA COSTA E SILVA, A Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pág. 394.
[15]ABRANTES GERALDES, Ob. Cit., pág. 320.
[16]Cfr. neste sentido, ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, “Anotação ao artigo 290º do CSC”, in [coord. COUTINHO DE ABREU] Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Volume V, 2ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 237.