Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9503/2007-6
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/15/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: 1) O princípio da extinção do poder jurisdicional, que assegura a estabilidade da decisão jurisdicional, comporta certos desvios.
2) Proferido despacho a declarar extinta a instância, o juiz está ainda obrigado a conhecer do requerimento no qual, tacitamente, se invoca o cometimento de uma nulidade processual, que, sendo procedente, implicará a anulação do despacho, nos termos do n.º 2 do art. 201.º do CPC.
O.G.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
D, Lda., deduziu, em 21 de Dezembro de 2004, no 3.º Juízo da Comarca do Montijo, designadamente contra Banco, S.A., embargos de terceiro, pedindo o levantamento da penhora recaída sobre o prédio urbano, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial da Amadora, sob o n.º 418 (freguesia da Venteira), por o ter adquirido, conforme alega, mediante contrato de compra e venda, realizado em 19 de Fevereiro de 2001.
Admitidos liminarmente, foram os embargos contestados pelo embargado Banco Espírito Santo, que concluiu pela sua improcedência.
Em 24 de Novembro de 2005, foi proferido, para além do despacho a ordenar a junção do registo predial, despacho a determinar que a embargante, no prazo de dez dias, indicasse o valor da causa, sob pena de imediata extinção da instância (fls. 30).
Na mesma data, a embargante requer a junção aos autos do substabelecimento, “sem reserva”, passado a favor da Dr.ª R (fls. 32).
Em 9 de Março de 2006, foi remetida notificação do despacho para a primitiva mandatária da embargante, a Dr.ª Maria (fls. 36).
Em 24 de Março de 2006, a embargante, por requerimento assinado pela Dr.ª Maria requer a concessão de novo prazo, para a junção da certidão do registo predial (fls. 37).
Em 28 de Março de 2006, a embargante requer, de novo, a junção aos autos do substabelecimento, “sem reserva”, passado a favor da Dr.ª Rosa (fls. 39).
Em 13 de Junho de 2006, proferiu-se despacho, no sentido da notificação da embargante, para, no prazo de dez dias, “dar integral cumprimento ao despacho de fls. 30”, efectuando-se a notificação através da advogada, a Dr. ª Rosa (fls. 42).
Em 21 de Setembro de 2006, foi proferido despacho declarando extinta a instância, por falta de indicação do valor da causa (fls. 45/46).
Notificada desse despacho, a embargante, alegando não ter sido notificada para indicar o valor da causa e, por isso, não ter podido dar cumprimento ao ordenado, requereu a sua notificação “para dar cumprimento ao disposto na alínea f) do n.º 1 do art. 467.º do CPC” (fls. 49/50)
Sobre esse requerimento, recaiu, em 15 de Dezembro de 2006, o despacho:
“Fls. 49/50: Encontra-se esgotado o poder jurisdicional, pelo que nada mais há a determinar face ao despacho de fls. 45/46”.

Inconformada com este último despacho, a embargante recorreu e, tendo alegado, formulou, no essencial, as seguintes conclusões:
a) Devem ser declarados nulos, todos os despachos remetidos para a primitiva mandatária, após a junção do primeiro substabelecimento.
b) A extinção da instância, por causa imputável à recorrente, viola o disposto no art. 253.º do CPC.
Pretende, com o provimento do recurso, a revogação da decisão recorrida, substituindo-a por outra que declare nulas todas as notificações remetidas para o primitivo mandatário.

Não foram apresentadas contra-alegações.
O despacho recorrido foi, tabelarmente, sustentado.

Cumpre, desde já, apreciar e decidir.

Neste recurso, está em causa apenas saber se, esgotado o poder jurisdicional, pode o juiz ainda conhecer da arguição de uma nulidade processual.

II. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Descrita a dinâmica processual relevante, importa agora conhecer do objecto do recurso, delimitado pelas respectivas conclusões, das quais emerge a questão jurídica que se acabou de destacar.

2.2. De harmonia com o consignado no art. 666.º, n.º s 1 e 3, do Código de Processo Civil (CPC), proferida a sentença ou o despacho, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
Mantém-se, assim, seguindo antiga tradição jurídica portuguesa, a consagração do princípio da extinção do poder jurisdicional “quanto à matéria da causa”, nos termos do qual o juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão proferida, incluindo os seus fundamentos (ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, V, pág. 126, e J. RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo, III, 3.ª edição, 191).
Todavia, esse princípio não obsta a que o juiz possa e deva resolver as questões e incidentes surgidos posteriormente e que não exerçam influência na sentença ou despacho proferidos.
O princípio da extinção do poder jurisdicional justifica-se, quer por uma razão doutrinal, segundo a qual o juiz, ao decidir, cumpre um dever jurisdicional, quer, por outro lado, por uma razão pragmática, nos termos da qual importa assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional (ALBERTO DOS REIS, ibidem, pág. 127).
Apesar da importância conferida ao princípio, este não deixa, porém, de comportar certos desvios, nomeadamente a rectificação de erros materiais, o suprimento de nulidades e o esclarecimento de dúvidas ou a reforma da decisão, para além da reparação do agravo (art. 744.º do CPC) e da modificação das decisões que fixem alimentos (art. 671.º, n.º 2, do CPC).
No âmbito dos vícios da sentença ou do despacho não se inclui a nulidade dos actos processuais prevista no art. 201.º do CPC.
Contudo, tais actos poderão ser anulados, por efeito da procedência de nulidade processual, o que, naturalmente, implica o seu conhecimento, não obstante tenha sido antes proferida a sentença ou o despacho (J. LEBRE DE FREITAS, Código de Processo Civil Anotado, 2.º, págs. 664 e 665).
Assim, proferida a sentença ou o despacho, o juiz pode e deve conhecer da arguição de nulidade processual, que, sendo procedente, implicará a anulação daqueles actos processuais, nos termos do n.º 2 do art. 201.º do CPC.

Desenhado o enquadramento jurídico da questão emergente do recurso, interessa agora ponderar da correcção do despacho impugnado, sendo certo que o mesmo se baseou, expressamente, no princípio da extinção do poder jurisdicional, para não conhecer do requerimento deduzido pela recorrente.
Nesse requerimento alegava-se a falta de notificação do despacho, que convidara a recorrente a declarar o valor da causa, omissão que fora notada pelo Juiz, já depois de recebidos os embargos.
Trata-se, com efeito, da alegação da omissão de uma formalidade prescrita pela lei, susceptível de influir no exame e decisão da causa, ou seja, da arguição de uma nulidade processual prevista no art. 201.º, n.º 1, do CPC.
É certo que a recorrente, no referido requerimento, não aludiu, em termos expressos, ao cometimento da nulidade processual, nomeadamente com a clareza, que seria exigível, e agora empregue nas alegações de recurso (fls. 63).
Contudo, a declaração consubstanciada no requerimento corresponde a uma declaração tácita, dado que os factos invocados e a pretensão formulada são idóneos a revelar, com toda a probabilidade, o sentido da declaração, nomeadamente a arguição de uma nulidade processual (art. 217.º do Código Civil). Apesar de se tratar de um acto processual, nada obsta a que se lhe apliquem as regras das declarações negociais de vontade reguladas no Código Civil [acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de Junho 1978 (BMJ n.º 278, pág. 165), com a anotação favorável de A. VAZ SERRA (Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 111.º, pág. 383)].
A procedência da nulidade permitiria, à recorrente, manifestar a declaração do valor da acção, nos termos da alínea f) do n.º 1 do art. 467.º do CPC, e, assim, corresponder ao convite para o aperfeiçoamento da petição inicial.
Nesta perspectiva, o Juiz estava obrigado ainda a conhecer da pretensão formulada no requerimento de fls. 49/50, sendo certo que a mesma não abrangia “a matéria da causa”, pois o despacho, de 21 de Setembro de 2006, a declarar a extinção da instância, não o impedia. Nesta situação, o princípio da extinção do poder jurisdicional, por efeito da prolação do despacho, não tinha razão para ser aplicado.
Neste recurso, apesar de alguma confusão que perpassa pelas respectivas alegações, não está em causa a extinção da instância, declarada no aludido despacho, mas apenas o não conhecimento do requerimento da recorrente constante de fls. 49 e 50, que, a verificar-se o cometimento da invocada nulidade, acarretará a anulação daquele despacho, por efeito do disposto no n.º 2 do art. 201.º do CPC.
Assim sendo, não pode subsistir o despacho que recusou conhecer o requerimento de fls. 49 e 50 da recorrente.

2.3. Em conclusão, pode extrair-se de mais relevante:

1) O princípio da extinção do poder jurisdicional, que assegura a estabilidade da decisão jurisdicional, comporta certos desvios.
2) Proferido despacho a declarar extinta a instância, o juiz está ainda obrigado a conhecer do requerimento no qual, tacitamente, se invoca o cometimento de uma nulidade processual, que, sendo procedente, implicará a anulação do despacho, nos termos do n.º 2 do art. 201.º do CPC.

Nesta conformidade, o recurso merece obter provimento, ainda que por motivação distinta da invocada pela recorrente, importando a revogação do despacho proferido a 15 de Dezembro de 2006, com as inerentes consequências legais.

2.4. Não há lugar ao pagamento de custas, por a parte vencida estar isenta, nos termos da alínea g) do n.º 1 do art. 2.º do Código das Custas Judiciais.

III. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
Conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido.
Lisboa, 15 de Novembro de 2007
(Olindo dos Santos Geraldes)
(Fátima Galante)
(Ferreira Lopes)