Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10859/2006-6
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: COMPETÊNCIA TERRITORIAL
FORO CONVENCIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/19/2006
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I - A cláusula contratual que estipula como competente o foro da comarca de Lisboa com expressa renúncia a qualquer não pode ser reconhecida pois o pacto de aforamento, que tal cláusula traduz, extravasa os limites da autonomia contratual consagrada no artigo 405.º n.º 1 do Código Civil.
II - O princípio da aplicação imediata da lei processual assenta no facto de o direito processual ser um ramo de direito público e que apenas regula o modo como as partes podem exercer os seus direitos e, de acordo com tal princípio, a nova lei processual deve aplicar-se imediatamente, não apenas às acções que venham a instaurar-se após a sua entrada em vigor, mas a todos os actos a realizar futuramente, mesmo que tais actos se integrem em acções pendentes.
III - No caso da Lei nº 14/2006 foi introduzida uma restrição de a lei processual se aplicar apenas às acções instauradas depois da sua entrada em vigor.
IV - A norma em causa não ofende o princípio constitucional da proporcionalidade ou da proibição do excesso nem o princípio da exigibilidade nem o princípio da não retroactividade da lei considerando, quanto a este último, que a nova lei não conduz a uma alteração inadmissível, intolerável, arbitrária, demasiado onerosa e inconsistente que atinja expectativas fundadas e razoáveis dos cidadãos e da comunidade.
(FG)
Decisão Texto Integral: Nos termos do disposto no artigo 705º do Código de Processo Civil decide-se:

1. Relatório:
B, SA, intentou no Tribunal Cível da Comarca de Lisboa a presente acção declarativa com processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, nos termos do DL nº 269/98, de 1 de Setembro, contra B e V, pedindo a sua condenação no pagamento de quantia determinada fundada no incumprimento de contrato.
Foi proferido despacho que julgou aquele Tribunal territorialmente incompetente para conhecer do objecto da acção e determinou a remessa do processo ao Tribunal Judicial de Portimão, de acordo com o disposto nos artigos 74º e 110º nº 1 al. a) do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril.

Inconformada, agravou a autora, formulando na alegação de recurso a seguinte síntese conclusiva:
1ª O despacho recorrido ao aplicar o disposto na alínea a), do nº 1 do artigo 110º do Código de Processo Civil, com a reacção que lhe foi dada pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, à hipótese dos autos, atento o que consta do contrato aos mesmos junto com a petição inicial, em que as partes escolheram um foro convencional nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 100º, nºs. 1, 2, 3 e 4 do Código de Processo Civil, violou o disposto nos artigos 5º e 12º, nºs. 1 e 2, do Código Civil.
2ª O despacho recorrido, ao interpretar e aplicar, como o fez, a alínea a) do nº 1 do artigo 110º do Código de Processo Civil, com a redacção que lhe foi dada pela dita Lei 14/2006, de 26 de Abril, à hipótese dos autos e, consequentemente, a não considerar válida e eficaz a escolha do foro convencional constante do contrato dos autos, atento a data da celebração do mesmo e o disposto no artigo 100º, nºs. 1, 2, 3 e 4, do Código de Processo Civil, do que então se dispunha no artigo 110º do mesmo normativo legal, maxime na alínea a) do respectivo nº 1, é inconstitucional por violação dos princípios da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade, e da não retroactividade consignados no artigo 18º, nºs. 2 e 3, da Constituição da República Portuguesa, e, também ainda, por violação dos princípios da segurança jurídica e da confiança, corolários ambos do principio de um Estado de Direito Democrático consagrado no artigo 2º da Constituição da Republica Portuguesa.
3ª Impõe-se, pois, como se requer, na procedência do presente recurso, a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que reconheça a competência territorial do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa para conhecer dos autos onde o mesmo foi proferido.

Não houve contra alegação
Foi proferido despacho de sustentação.

2. Fundamentos:
2.1 De facto:
Para o conhecimento do recurso releva a seguinte factualidade:
a) a presente acção entrou em juízo no dia 7 de Setembro de 2006;
b) os réus têm residência no Bairro Jacinto Correia, lote 8 C, R/c C/v, em Lagoa;
c) o contrato celebrado pelas partes, cuja cópia se encontra junta a fls. 10-11, denominado “Contrato de Mútuo” foi outorgado no dia 11 de Maio de 2004;
d) as partes convencionaram na clª 15ª das condições gerais do contrato o seguinte: “Para todas as questões emergentes do presente contrato estipula-se como competente o foro da comarca de Lisboa com expressa renúncia a qualquer outro”.

2.2. De direito:
Tal como emerge das conclusões da alegação de recurso, as quais, como é sabido, balizam o seu objecto, está em causa unicamente determinar qual o tribunal competente em razão do território para conhecer da presente acção.
No caso vertente, as partes elegeram no contrato que firmaram em 11 de Maio de 2004 um foro convencional, atribuindo competência territorial para dirimir os litígios dele emergentes ao Tribunal da Comarca de Lisboa.
Os artigos 74º nº 1 e 110º nº 1 al. a), permitiam tal eleição do tribunal territorialmente competente, visto não se tratar de qualquer dos casos em que a competência em razão do território devesse ser conhecida oficiosamente pelo tribunal.
Estes preceitos foram, porém, alterados pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril, passando o artigo 74º nº 1 a dispor que “A acção destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu, podendo o credor optar pelo tribunal do lugar em que a obrigação deveria ser cumprida, quando o réu seja pessoa colectiva ou quando, situando-se o domicílio do credor na área metropolitana de Lisboa ou do Porto, o réu tenha domicílio na mesma área metropolitana”.
E o artigo 110º passou a incluir as causas a que refere o artigo 74º nº 1 na al. a) do seu nº 1, o que significa que nelas o conhecimento da incompetência relativa passou a ser de conhecimento oficioso, vedando, assim, a possibilidade de as partes afastarem, por convenção, as regras de competência territorial nesses casos, como resulta do disposto no nº 1 do artigo 100º.
E perante esta alteração legislativa a primeira questão que se coloca é a de saber se a mesma tem aplicação no caso concreto, visto o contrato em causa, que contém a cláusula atinente à competência convencional, ter sido celebrado em data anterior à referida alteração legislativa.
Sobre a problemática da aplicação das leis processuais no tempo, na vertente de a relação material litigada se constituir na vigência de lei processual diferente da que vigora no momento em que é posta em juízo a acção fundada nessa relação, escrevem A. Varela, M. Bezerra e S. Nora que “A solução de problemas desta natureza vem a cada passo formulada na nova lei, através de disposições transitórias especiais destinadas a definir o seu campo temporal de aplicação” (1).
Dizem os mesmos autores que “Ao lado das disposições especialmente insertas em determinados diplomas, há que considerar ainda as normas transitórias sectoriais ou parcelares, destinadas a definir, em termos relativamente genéricos, o domínio temporal das leis processuais reguladoras de certas matérias (prazos, forma dos actos, etc.)” (2).
E acrescentam que o sentido da solução geral aplicável ao comum das leis processuais, sempre que não haja disposição transitória, especial ou sectorial, em contrário, é o do princípio da aplicação imediata da lei processual.
A este princípio, que não tem formulação expressa na lei, estão subjacentes, para a generalidade dos autores, o facto de o direito processual ser um ramo do direito público que se sobrepõe aos interesses particulares dos litigantes e a circunstância de se tratar de um ramo de direito adjectivo que apenas regula o modo como as partes podem exercer os seus direitos que a lei substantiva consagra.
No entanto, para os citados autores a solução passa por estender ao domínio do processo civil, com as necessárias adaptações, a doutrina estabelecida, em termos genéricos, no artigo 12º do Código Civil. Assim, a “…ideia, proclamada neste artigo, de que a lei dispõe para o futuro significará, na área do direito processual, que a nova lei se aplica às acções futuras e também a actos futuramente praticados nas acções pendentes”, continuando a aferir- -se a validade e regularidade dos actos processuais anteriormente praticados pela lei processual antiga vigente ao tempo (3).
No caso, o legislador introduziu uma norma transitória especial no artigo 6º da Lei nº 14/2006, sob a epígrafe aplicação no tempo, ao dispor: “A presente lei aplica-se apenas às acções e aos requerimentos de injunção instauradas ou apresentados depois da sua entrada em vigor”.
Esta norma só pode significar que a lei nova prevalece nos processos entrados após o início da sua vigência, seja qual for o momento da celebração dos contratos em que se funda a pretensão do demandante, pois que não haveria dúvida quanto à sua aplicação aos contratos celebrados posteriormente à sua entrada em vigor.
Logo, tal norma de direito transitório afasta a convenção das partes quanto ao foro de eleição ainda que inserta em contrato celebrado anteriormente à data em aquela Lei entrou em vigor, como sucede no caso vertente, tendo, assim, plena aplicação o disposto no nº 1 do artigo 74º e na alínea a) do nº 1 do artigo 110º, na nova redacção dada pela Lei 14/2006, de 26 de Abril, visto esta acção ter sido instaurada após a sua entrada em vigor.
E este sentido interpretativo não viola qualquer princípio constitucional, designadamente, os invocados princípios da proporcionalidade, da segurança jurídica e confiança e da não retroactividade.
O princípio da proporcionalidade está consagrado na segunda parte do nº 2 do artigo 18º da Constituição em termos genéricos, como limitação geral ao exercício do poder público. Este princípio, que se desdobra em três subprincípios: princípio da adequação, princípio da exigibilidade e princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito, só é violado em conexão com qualquer outro direito fundamental relativamente ao qual se afirme que uma determinada situação subjectivável é desproporcionada.
Por outro lado, como se escreveu no Ac. do Tribunal Constitucional nº 88/2004, de 10.02.2004, (4) “…estando em causa actividade legislativa, é reconhecido ao legislador um considerável espaço de conformação, um largo âmbito de discricionariedade, pelo que a avaliação pelos tribunais da inconstitucionalidade de uma norma, por violação do princípio da proporcionalidade, depende de se poder assinalar uma manifesta inadequação da medida, uma opção manifestamente errada do legislador, um carácter manifestamente excessivo da medida ou inconvenientes manifestamente desproporcionados em relação às vantagens que apresenta.”
Ora, no caso, a questionada interpretação da norma em causa não evidencia que se esteja perante uma medida legislativa manifestamente inadequada ou excessiva, com inconvenientes manifestamente desproporcionados em relação a vantagens que podem dela advir. A mesma explica-se, apesar da ausência de exposição de motivos, por razões práticas de administração da justiça e visa obviar à concentração de elevada pendência processual em certas circunscrições territoriais motivada pela litigiosidade de “massa”.
E o princípio da segurança jurídica e confiança ínsito no Estado de Direito (artigo 2º da Constituição) também se não mostra violado.
É certo que o equilíbrio contratual é alterado, na medida em que da aplicação da norma em questão, com a interpretação que lhe foi dada, advêm custos acrescidos para uma das partes.
Atendendo, porém, ao interesse público que está em causa, ligado à organização dos meios judiciários, procurando, bem ou mal não cabe aqui apreciar, a sua racionalização num quadro de litígios de “massa” em que o “queixoso” é uma entidade profissionalizada e o tipo de litígio se prende mais com a análise documental do que testemunhal ou pericial, com meios de comunicação à disposição dessas entidades que lhes permite a prática da generalidade dos actos processuais à distância, não há razões para se concluir que a referida interpretação ofende a lei fundamental.
Quanto ao princípio da não retroactividade da lei estabelecido no artigo 12º do Código Civil, há que ter em consideração, por um lado, que apenas tem consagração constitucional expressa em matéria penal (artigo 29º) e relativa a direitos, liberdades e garantias (artigo 18º nº 3), que não estão em causa nestes autos. Por outro lado, só ocorre tal inconstitucionalidade se a retroactividade da norma gerar nas situações e relações jurídicas anteriormente constituídas uma alteração arbitrária ou intolerável com a qual os cidadãos e a comunidade não poderiam contar, quebrando de forma acentuada a sua confiança no ordenamento jurídico, o que, manifestamente, não acontece no caso em análise.
Termos em que, residindo os réus na área da Comarca de Portimão, tem de concluir-se, à luz da nova redacção dos artigos 74º nº 1 e 110º nº 1 al. a) dada pela Lei nº 14/2006, que afasta o pacto de aforamento, pela competência territorial do Tribunal Judicial de Portimão para conhecer desta acção.
Improcedem, assim, as conclusões da alegação da agravante, na totalidade.

3. Decisão:
Termos em que se nega provimento ao agravo e se confirma o despacho recorrido.
Custas pela agravante.

19 de Dezembro de 2006
(Fernanda Isabel Pereira)
__________________________________
1 In Manual de Processo Civil, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 45.
2 Ob. cit. Pág. 46.
3Ob. cit., pág. 49.
4 Publicado no DR – IIª Série de 16.04.2004.