Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
849/2007-9
Relator: FERNANDO ESTRELA
Descritores: RECONSTITUIÇÃO DO FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO
Sumário: 1. O "Auto de reconhecimento de local" efectuado pelo inspector da P.J. que o levou a cabo com o recorrente, tratou-se duma verdadeira “reconstituição do facto”. Não é o nomen juris que releva mas antes a substância/conteúdo da diligência.
2. Não é necessário, como requisito formal da “reconstituição de facto” o ser determinada por juiz, ou magistrado do M.P, pois tal não o impõe o n° 2 do referido art.° 150° do C.P.P.. No caso, tal diligência foi efectuado pela Polícia Judiciária a quem competia a investigação específica/reservada deste tipo de crimes ( vd. art.º 5.º n.º 2 alínea o) do DecLei 275-A / 2000 de 9 de Novembro)
3. A interpretação ao n° 2 do art. 150° do CPP deve ser a de que, caso seja proferido despacho ordenando a reconstituição, tal despacho deverá fornecer indicações, ainda que breves, de modo a orientar o órgão de polícia criminal que irá executar a diligência.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - No Processo Comum n.º 22/04.2JBLSB do 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Torres Vedras, por acórdão de 30 de Outubro de 2006 foi decidido julgar parcialmente procedente e provada a acusação e, em consequência:
1. Absolver o arguido A. da prática, como co-autor material, de um crime de roubo p. e p. pelo art.º 210º nºs 1 e 2, al. b), art.º 204º nº2 als. a) e f) e 202º al. a), todos do CP;
2. Condenar o arguido D. pela prática, como co-autor material, de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210º nºs 1 e 2, al. b), art.º 204º nº1 al. a) e 202º al. a), todos do CP, na pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão;
3. Condenar o arguido D. pela prática, como co-autor material, de um crime de roubo, p. e p. pelo art.º 210º n.º 1 do CP, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
4. Em cúmulo jurídico, condenar o arguido D. na pena única de 5 (cinco) anos de prisão.

II - Inconformado o arguido D. interpôs recurso da referida decisão formulando as seguintes conclusões:
(…)


III - Em resposta o Ministério Público formulou as seguintes conclusões:

(…)
IV - Transcreve-se a decisão recorrida:
(…)

3. O arguido veio levantar as seguintes questões:
a) o Tribunal recorrido levou "longe demais o princípio da livre apreciação" da prova, pois face à prova produzida e atendendo ao princípio in dubio pro reo impunha-se a absolvição;
b) o "Auto de reconhecimento do local" que serviu para que Tribunal formasse a sua convicção no sentido da sua condenação não é um meio de prova lícito nem atendível, nem se reconduz à prova por "reconstituição dos factos", prevista no art.° 150.° do Código Penal.
c) Invocou ainda o recorrente que, caso se não entenda ser de absolvê-lo, face às suas "circunstâncias pessoais'' sempre seria de lhe aplicar a pena mínima e execução da mesma ser suspensa.

(…)
a)
Na motivação da decisão de facto o Tribunal a quo teve em consideração sobretudo o auto de reconhecimento de fls. 287 a 289 ,conjugado com o depoimento de J., agente da P.J. – vd fls 879 e 880 das transcrições - em audiência de julgamento.
Relativamente à validade do auto de reconhecimento, sustentou a decisão recorrida:
“Finalmente, haverá que ponderar qual o peso a atribuir à diligência denominada de “auto de reconhecimento de local” documentada de fls. 287 a 289, no âmbito da qual o arguido D. apontou os locais onde teriam ficado estacionados os veículos utilizados nos dois assaltos levados a cabo na agência da CCAM da Sapataria.
Os arguidos, conforme se deixou já referido, optaram por não prestar declarações, assim inviabilizando o seu confronto com quaisquer depoimentos por si antes prestadas. Todavia, tal circunstância não inviabiliza a valoração de tal diligência como meio de prova lícito e atendível. Com efeito, tendo-se o agente da PJ que participou na diligência, a testemunha J., referido à mesma no seu depoimento prestado em audiência, limitou-se a declarar ter-se deslocado com o arguido à Sapataria, onde este, de forma espontânea, indicou os locais onde tinham sido deixadas a moto, num dos assaltos, e a viatura automóvel, no outro. Não se tratou, pois, de se pronunciar sobre o que é que o arguido disse ou deixou de dizer, tendo-se limitado a depor sobre uma situação de facto que, por si e directamente, percepcionou e que, de resto, ficou fotograficamente documentada nos autos (cfr., no sentido da validade de tais declarações, Ac. STJ de 11/12/1996, in BMJ 462, pág. 229, e ainda acórdão do mesmo STJ de 3/10/02, proferido no processo 2804/02, onde se refere esclarecedoramente “Há, pois, que distinguir a mera reconstituição dos factos -cuja legitimidade processual e valor probatório não se põem, obviamente, em causa, das declarações do arguido, estas sempre sujeitas ao falado regime específico de valoração previsto no Código de Processo penal, ainda que produzidas a pretexto e (ou) em simultâneo com aquela “diligência externa”)”.

O "Auto de reconhecimento de local" efectuado pelo inspector da P.J. que o levou a cabo com o recorrente, tratou-se duma verdadeira “reconstituição do facto”. Não é o nomen juris que releva mas antes a substância/conteúdo da diligência.
A mencionada diligência externa foi efectuada sem que a precedesse qualquer despacho de autoridade judiciária, sendo designada como "Auto de reconhecimento de local".
Mas, tratou-se de um auto de reconstituição de facto, nos termos do disposto no n° 1 do art.° 150° do C.P.P. que "(...)consiste na reprodução tão fiel quanto possível, das condições em que se afirma ou se supõe ter ocorrido o facto e na repetição do modo de realização do mesmo.
Aí se procedeu a uma reconstituição, ainda que parcial, de parte dos acontecimentos que envolveram o assalto, neste caso, os acontecimentos que se prendem com a utilização dos veículos empregues nas deslocações ao banco assaltado e fuga empreendida após os assaltos.
Não é necessário, como requisito formal da “reconstituição de facto” o ser determinada por juiz, ou magistrado do M.P, pois tal não o impõe o n° 2 do referido art.° 150° do C.P.P..
Entendemos, tal como o M.P. nas suas alegações, que “a interpretação ao n° 2 do art. 150° do CPP é a de que, caso seja proferido despacho ordenando a reconstituição, tal despacho deverá fornecer indicações, ainda que breves, de modo a orientar o órgão de polícia criminal que irá executar a diligência”.
No caso, tal diligência foi efectuado pela Polícia Judiciária a quem competia a investigação específica/reservada deste tipo de crimes ( vd. art.º 5.º n.º 2 alínea o) do DecLei 275-A / 2000 de 9 de Novembro)
Não se vislumbra qualquer nulidade no modo como tal prova foi recolhida e o que resulta dos autos e do depoimento do agente da P.J., aquele “colaborou na diligência, apontando locais e o que neles ocorreu, deixou-se fotografar e assinou o auto ratificando tudo quanto nele se lavrava, sendo que nunca veio aos autos pôr em causa, quer a veracidade do que então declarara ao inspector que executou a diligência, quer a sua colaboração livre e espontânea na execução da reconstituição efectuada”.
No sentido em que sustentamos se pronunciou, mutatis mutandis, o Ac STJ de 14 Junho.2006 in Proc.1574 in http://www.dgsi.pt/jstj:
I - Se os depoimentos de um inspector da PJ e de um funcionário da Guarda Florestal - que participaram no reconhecimento documentado nos autos - não reproduzem quaisquer declarações do recorrente prestadas em inquérito, antes incidem sobre a reconstituição dos factos, em que o recorrente colaborou - meio de prova que não se confunde com a prestação de declarações - tal é admitido pelo art. 150.º do CPP.
II - A circunstância de o arguido ter participado na reconstituição dos factos não tem o efeito de fazer corresponder esse acto a declarações suas para se concluir pela impossibilidade de valoração daquele meio de prova, ponto é que só sejam valorados como provas os depoimentos das testemunhas sobre o que observaram e não as revelações feitas durante a realização dessas diligências.
(…)
Não foi posta em causa a legalidade da reconstituição dos factos, constante do auto de fls. 88, e apenas o valor probatório do mesmo, questão que adiante será objecto de apreciação.
Tudo está em saber se o tribunal podia valorar EE das referidas testemunhas.
Nos termos do n.º 1 do artigo 355.º do Código de Processo Penal, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formar a convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência. O n.º 2 ressalva as provas contidas em actos processuais cuja leitura em audiência seja permitida, nos termos dos artigos seguintes.
O artigo 356.º regula a leitura permitida de autos e declarações, estatuindo o n.º 7 que os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado da sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.
No que concerne ao inspector da Polícia Judiciária e ao funcionário da Guarda Florestal, trata-se de depoimentos que, diversamente do que alega o recorrente, não reproduzem quaisquer declarações do recorrente prestadas em inquérito, antes incidem sobre a reconstituição dos factos, em que o recorrente colaborou, sendo um meio de prova que não se confunde com a prestação de declarações.
É inequívoco que as referidas testemunhas não podiam ser inquiridas sobre o conteúdo de quaisquer declarações do arguido prestadas na fase do inquérito, dado que a sua leitura não era permitida, face ao disposto no artigo 357.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, tendo o tribunal colectivo consignado no acórdão a impossibilidade de valoração dessas declarações.
E, na mesma linha, estava vedada a valoração de revelações feitas pelo arguido em conversas informais, por decorrência do princípio da legalidade do processo consagrado no artigo 2.º do Código de Processo Penal.
Mas nada impedia que as testemunhas fossem ouvidos sobre outras diligências realizadas no inquérito para apuramento da verdade, designadamente sobre a reconstituição dos factos, meio de prova admitido no artigo 150.º do Código de Processo Penal.
A circunstância de o arguido ter participado na reconstituição dos factos não tem o efeito de fazer corresponder esse acto a declarações suas para se concluir pela impossibilidade de valoração daquele meio de prova.
Na verdade, a reconstituição dos factos, como meio de prova, tem por finalidade verificar se um facto poderia ter ocorrido nas condições em que se afirma ou supõe a sua ocorrência e na forma e na forma da sua execução – Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, pg. 196.
Ponto é que só fossem valorados como provas EE das testemunhas sobre o que observaram, e não as revelações do arguido feitas durante a realização dessas diligências, inculcando a fundamentação da decisão da matéria de facto que esse princípio foi observado.
E não se diga que o direito de defesa do arguido sofreu qualquer redução com a produção da referida prova testemunhal, dado que esta teve lugar em audiência de julgamento, onde o arguido a poderia ter contrariado.
No sentido de que os agentes da Polícia Judiciária que procederam à reconstituição do crime podem depor como testemunhas sobre o que se terá passado nessa reconstituição, pronunciaram-se os acórdãos deste Supremo Tribunal de 11-12-1996, BMJ 462, pg. 299, de 22-4-2004, CJ, STJ, XII, tomo II, pg. 165, e de 30-03-2005, proc. n.º 552/05. Este, sendo do mesmo relator, foi seguido de perto.
Em relação ao soldado da GNR FF, o depoimento limitou-se a confirmar o conteúdo do auto de notícia que elaborou e subscreveu, do qual consta que o recorrente «aproximou-se de mim e do soldado II e proferiu em voz alta (…) Eu sou o autor dos incêndios aqui junto do aeródromo, levem-me preso pois fui eu que ateei os fogos» (fls. 4). A elaboração de um auto de notícia não pode todavia ser confundida com um acto de prestação de declarações.
Porque os depoimentos das referidas testemunhas não incidiram sobre declarações prestadas pelo arguido, não estava vedada pelo n.º 7 do artigo 356.º do Código de Processo Penal, a inquirição das mesmas e, consequentemente, a valoração dos depoimentos.
Alegou também o recorrente que essa norma, interpretada, como a interpretaram as instâncias, no sentido de que, mesmo nos casos em que o arguido se recuse legitimamente a depor, é válido como prova o depoimento de órgãos de polícia criminal, ou de quaisquer pessoas que, a qualquer título, tenham participado na sua recolha, sobre declarações feitas pelo arguido extraprocessualmente, em "conversas informais" ou no decurso de uma "reconstituição do facto", é inconstitucional, por violação das garantias de defesa do arguido, e portanto da norma constante do n.° l do artigo 32 da Constituição da República.
Todavia, como resulta do exposto, não se trata de valorar declarações extraprocessuais feitas pelo arguido e sim da valoração de depoimentos de testemunhas em audiência de julgamento. E o arguido não sofreu qualquer compressão nos seus direitos de defesa, dado que poderia ter contrariado essa prova nessa audiência.
A interpretação feita pelas instâncias do n.º 7 do artigo 356.º do Código de Processo Penal, não viola assim as garantias de defesa consagradas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Falece pois razão ao recorrente nesta parte.
IV.2. Questão da inexistência de provas para dar como provados os factos Alega o recorrente que não há nos autos nem muito menos se fez em audiência qualquer prova directa e objectiva de que o arguido tenha ateado os fogos. Não foram apresentados quaisquer vestígios, indícios materiais ou testemunhos directos e presenciais desses factos, nem sequer de que os incêndios tenham tido origem criminosa. O tribunal fundamentou a sua convicção apenas no depoimento de algumas testemunhas, mas estas nada disseram sobre os factos em concreto, tendo-se limitado a dizer que, no decurso do inquérito, o arguido afirmou ter sido ele o autor dos fogos. E se a confissão, desacompanhada de qualquer outro elemento de prova, não é suficiente para fundamentar uma condenação, muito menos o poderá ser uma pseudo-confíssão, alegadamente feita pelo arguido e por este negada na audiência e no próprio inquérito. Quanto à reconstituição do facto, nos termos do artigo 150.º do Código de Processo Penal, apenas pode servir para determinar "se um facto poderia ter ocorrido de certa forma", pelo que da reconstituição efectuada no inquérito apenas se poderia concluir que os incêndios poderiam ter sido ateados pelo arguido, mas não que efectivamente o foram. Perante tal indigência de provas, era impossível o tribunal ter a certeza de que foi o arguido que ateou os fogos. Quando muito, poderia ficar na dúvida quanto a esse facto.
Mas, na dúvida, deveria ter absolvido o arguido.
Esta questão insere-se no plano da sindicação das provas, que se situa fora dos poderes de cognição deste Supremo Tribunal, que apenas conhece de direito ─ artigo 434.º do Código de Processo Penal.
O Supremo não pode reapreciar as provas produzidas. Apenas poderá conhecer oficiosamente (que não como fundamento do recurso) de qualquer dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do citado Código, ou julgar verificada a violação do princípio in dubio pro reo, quando resulte do texto da decisão recorrida que o tribunal, colocado perante a dúvida sobre a ocorrência de um facto, optou por decidir contra o arguido.
No caso não se verifica qualquer dessas situações.
Nem se poderá falar de um caso de ausência absoluta de prova, dado que, além de outros elementos circunstanciais referidos na fundamentação da decisão da matéria de facto, é referida a prova por reconstituição dos factos, meio de prova regulado no artigo 150.º do Código de Processo Penal.
A apreciação da prova ocorreu no âmbito do artigo 127.º do Código de Processo Penal, que consagra o princípio da livre apreciação da prova. Saber se a prova produzida era bastante para dar como provados os factos que integram os crimes pelos quais o recorrente foi condenado, é matéria que, como se referiu, este Supremo Tribunal não pode sindicar.
Deste modo, há que aceitar o veredicto factual, tal com as instâncias o fixaram.
E ainda o Ac. STJ de 05.Jameiro.2005 in Proc. 3276 http://www.dgsi.pt/jstj sobre validade deste tipo de prova em audiência:
Vista a dimensão da reconstituição do facto como meio de prova autonomamente adquirido para o processo, e a integração (ou confundibilidade) na concretização da reconstituição de todas as contribuições parcelares, incluindo do arguido, que permitiram, em concreto, os termos em que a reconstituição decorreu e os respectivos resultados, os órgãos de polícia criminal que tenham acompanhado a reconstituição podem prestar declarações sobre os modo e os termos em que decorreu; tais declarações referem-se a elementos que ganham autonomia, e como tal diversos das declarações do arguido ou de outros intervenientes no acto, não estando abrangidas na proibição do artigo 356º, nº 7 do CPP.
Deste modo, era lícito ao Tribunal recorrer ao "auto de reconhecimento de local" sendo este válido para formar a sua convicção.

(…)