Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6646/14.2T2SNT.L1-8
Relator: CARLA MENDES
Descritores: ASSOCIAÇÃO
ESTATUTOS
ANULABILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇLÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Os estatutos não podem, sob pena de anulabilidade das suas deliberações, prescrever a suficiência de maiorias menos qualificadas do que as exigidas na lei para a deliberação sobre as matérias nela previstas.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

  O Ministério Público, ex vi arts. 158-A e 280 CC, intentou acção de declaração de nulidade contra a C... pedindo a declaração de nulidade das disposições constantes do art. 19 dos estatutos da ré com a consequente comunicação ao 15º Cartório Notarial de Lisboa, para efeitos de averbamento - art. 131/1 d) Cód. de Notariado aprovado pelo DL 207/95 de 14/8, na redacção do DL 125/2013 de 30/8.
   Alegou, em suma, que a C... foi constituída, em 3/12/2002.
No art. 19 dos seus estatutos pode ler-se que “Os Estatutos poderão ser alterados por proposta da Direcção ou de, pelo menos, um terço dos Confrades Fundadores, carecendo essa alteração da aprovação de 2/3 dos Confrades presentes na Assembleia Geral especificamente convocada para o efeito. Contudo, é necessário que, nos referidos 2/3, estejam incluídos os votos de, pelo menos, metade dos Confrades Fundadores”.
Ora, esta disposição estatutária colide com a disposição legal de carácter imperativo prevista no art. 175/3 CC – “As deliberações sobre alterações de estatutos exigem o voto favorável de 3/4 do número de associados presentes”
Na verdade esta disposição imperativa, pode ser afastada no caso de exigência de número de votos superior, mas nunca inferior, como sucedeu – cfr. art. 175/5 CC.
No entanto, a nulidade não deve recair sobre os estatutos da ré, na sua globalidade, uma vez que seria de presumir que a vontade das partes seria, face a tal vício, manter as demais normas estatutárias.

Apesar de citada a ré não contestou.

Foram declarados confessados os factos articulados pelo autor e prolatada sentença que julgando a acção improcedente absolveu a ré do pedido com fundamento no facto de a desconformidade existente relativa ao quorum deliberativo não configura a nulidade subsumível ao art. 280 CC mas tão só anulabilidade – cfr. fls. 21, 26 a 30.

 Inconformado o Ministério Público apelou formulando as conclusões que se transcrevem:
1ª. Os estatutos constituem o documento fundamental que determina as competências e normas internas de determinada sociedade.
2ª. À Assembleia Geral, órgão máximo das Associações, entidade que representa a universalidade dos associados, compete-lhe, designadamente, destituir os respectivo titulares, aprovar o balanço, as alterações aos estatutos, a autorização para demandar os administradores por factos cometidos no exercício do cargo, e a própria extinção da associação (cfr. art. 172 do CC)      
3ª. No art. 19 dos Estatutos da C... prevê a possibilidade de alteração dos estatutos de dois terços dos Confrades presentes na Assembleia-Geral especificamente convocada para o efeito.
4ª. Preceitua o art. 175/3 CC que "As deliberações sobre alterações dos estatutos exigem voto favorável de três quartos do número de associados presentes".
5ª. Os estatutos devem respeitar o regime legal imperativo aplicável no que respeita à constituição, organização, funcionamento e extinção da associação, sob pena de nulidade, e ao permitir poderes de alterações estatutárias com quórum deliberativo inferior ao legalmente previsto, nos moldes consignados no art. 19 dos estatutos da associação, constitui clara violação de princípios e normas legais imperativas, como sejam os art. 18/1 e 46 CRP, os art. 172 e 175/3 CC.
6ª. O valor negativo duma disposição estatutária desconforme com uma norma imperativa, como é o caso do art. 175/3 CC, é necessariamente, o da nulidade, ex vi do cit. art. 280 CC.
7ª. Não confundamos "alterações estatutárias" com "vício de funcionamento da assembleia-geral", quer atinente ao respectivo objecto, quer por irregularidades na respectiva convocação ou funcionamento, estas meras irregularidades contidas na parte final do art. 294 que determinam apenas a sua anulabilidade - art. 177 CC).
8ª. Ao incluir uma disposição que admite um quorum deliberativo inferior ao legalmente previsto para alteração aos estatutos essa disposições estatutária padece de nulidade, porquanto desrespeita preceitos legais de carácter imperativo - artigo 175/3 CC .
9ª. Ao sustentar que a consequência dessa desconformidade é a mera anulabilidade da deliberação que introduza uma alteração aos estatutos e que seja aprovada apenas por dois terços dos associados da ré presentes na respectiva assembleia e não a nulidade da referida previsão estatuária, o Senhor Juiz a quo violou os arts. 172, 175/3, 280, 294 e 295 do CC.
10ª. Assim, o preceito do art. 19 dos Estatutos da associação ré contende com os preceitos dos arts. 18/1, 46 CRP e com normas legais imperativas (arts. 172, 175/3 CC), pelo que, nessa medida e nos termos dos arts. 280, 294 e 295 do CC, deve ser declarado nulo por esse Superior Tribunal, o qual deve revogar, em conformidade com o exposto, a decisão recorrida.

         Não foram apresentadas contra-alegações.

    Verificados os pressupostos de validade e de regularidade da instância, dispensados os vistos, cumpre decidir.

         Vejamos, então:

Atentas as conclusões do apelante que delimitam, como é regra o objecto de recurso – arts. 639 e 640 CPC – a questão a decidir consiste em saber se o art. 19 dos Estatutos da ré enferma ou não de nulidade.

A Associação da “C...” também designada por “C...” é uma associação cultural sem fins lucrativos, foi constituída, em 3/12/2002, no 15º Cartório Notarial de Lisboa, com os objectivos de disfruta dos prazeres do vinho (português), fomento da partilha dos conhecimentos sobre este e, ainda, de promoção do estudo e divulgação do vinho (art. 1 estatutos).
Tem como órgãos a Assembleia-Geral, o Conselho Fiscal e a Direcção (art. 7 estatutos).
  Consta no art. 19 dos seus estatutos o seguinte: “Os estatutos poderão ser alterados por proposta da Direcção ou de pelo menos um terço dos Confrades Fundadores, carecendo essa alteração da aprovação de 2/3 dos Confrades presentes em Assembleia-Geral especificamente convocada para o efeito. Contudo, é necessário que, nos referidos 2/3 estejam incluídos os votos de pelo menos metade dos confrades Fundadores”.
A nossa Constituição - art. 46 - consagra a liberdade de associação, compreendendo a liberdade de auto-organização e auto-gestão, sem prejuízo da observância dos limites normativos consagrados na nossa lei, mormente o regime das pessoas colectivas constantes dos arts. 157 e sgs. do CC.
O acto de constituição da associação especificará os bens ou serviços com que os associados concorrem para o património social, a denominação, fim e sede da pessoa colectiva, a forma do seu funcionamento, assim como a sua duração, quando a associação se não constitua por tempo indeterminado (norma de carácter imperativo).
Os estatutos podem ainda especificar os direitos e obrigações dos associados, as condições da sua admissão, saída e exclusão, bem como os termos de extinção da pessoa colectiva e consequente devolução do seu património (norma de carácter exemplificativo) - art. 167/1 e 2 CC.
O acto constitutivo (bases da associação) e os estatutos (fixam a sua regulamentação/traçam o seu regime), constituem as peças fundamentais criadoras do substrato da associação.
Os estatutos da pessoa colectiva designarão os respectivos órgãos, entre os quais haverá um órgão colegial de administração e um conselho fiscal, ambos eles constituídos por um número ímpar de titulares, dos quais um será o presidente – art. 162 CC.  
Compete à assembleia-geral tomar as deliberações não compreendidas nas atribuições legais ou estatutárias de outros órgãos da pessoa colectiva (regra supletiva).

No entanto, é da competência exclusiva da assembleia-geral, entre outros, pronunciar-se sobre a alteração dos estatutos – cfr. art. 172 CC.
Dispõe o art. 175/3 CC que “ As deliberações sobre a alteração dos estatutos exigem o voto favorável de 3/4 do número de associados” (maioria qualificada).
E o nº 5: “Os estatutos podem exigir um número de votos superior ao fixado nas regras anteriores”.
Por seu turno, o art. 177 CC estipula que: as deliberações da assembleia-geral contrárias à lei ou aos estatutos, seja pelo seu objecto, seja por virtude de irregularidades havidas (arts. 174 e 175) na convocação dos associados ou no funcionamento da assembleia, são anuláveis.
Estando o regime da anulabilidade regulado no art. 178 CC. 
Atentos estes arts., nomeadamente o art. 175, a conclusão que se extrai, argumento a contrario, é a de que os estatutos não podem, sob pena de anulabilidade das suas deliberações, prescrever a suficiência de maiorias menos qualificadas do que as exigidas na lei para a deliberação sobre as matérias nela previstas – cfr. P. Lima e A. Varela in CC Anot., 3ª ediç., Coimbra Edit, art. 175 CC.
Tendo em atenção estas normas e o constante do art. 19 dos estatutos verifica-se a existência de uma desconformidade legal, porquanto aquele estipula um quorum deliberativo relativo às alterações estatutárias inferior ao legal (2/3 versus 3/4).

Qual a sanção aplicável a esta desconformidade - a nulidade da norma estatutária ou, ao invés, a sua anulabilidade?
Dispõe o art. 158-A CC que: É aplicável às pessoas colectivas o disposto no art. 280, devendo o Ministério Público promover a declaração judicial da nulidade.
Não obstante o aqui exarado, sempre se dirá que, em bom rigor, seja qual for a sua natureza jurídica o acto de constituição das pessoas colectivas estaria sempre sujeito, mesmo sem esta disposição à estatuição do art. 280, quer por força desse art., quer do art. 295 CC.
A verdadeira utilidade deste art. reside na imposição ao Ministério Público do dever de promover a declaração judicial da nulidade da pessoa colectiva incursa na sanção prevista no art. 280 – cfr. M. Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II – 40/41 e P. Lima e A. Varela in obra cit., art. 158-A.
É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável, bem como o negócio contrário à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes – art. 280 CC.
Os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo são nulos, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei – art. 284 CC.
Tendo em atenção as normas citadas e o extractado supra, a norma do art. 19 dos estatutos da ré não se subsume à previsão do art. 280 CC – não traduz um negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável, contrário à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes -, pelo que afastada está a sua nulidade.
Ao invés, a consequência/sanção da desconformidade da norma, atento o preceituado no art. 175/3 e 5 CC é a da anulabilidade.
Destarte, soçobra a pretensão do apelante.

Em conclusão:

1 – Os estatutos não podem, sob pena de anulabilidade das suas deliberações, prescrever a suficiência de maiorias menos qualificadas do que as exigidas na lei para a deliberação sobre as matérias nela previstas.

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, confirma-se a sentença recorrida.
Sem custas.

Lisboa-15-01-2015

(Carla Mendes)
(Octávia Viegas)
(Rui da Ponte Gomes)