Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
60/09.9PJCSC-A.L1-5
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: BUSCA
BUSCA DOMICILIÁRIA
PROVAS
PROVAS NULAS
MEDIDAS DE COACÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/22/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – As irregularidades do auto de busca e apreensão, quando não arguidas, apenas têm relevo na medida em que não permitirem a verificação dos pressupostos da legalidade da busca efectuada ou na medida em que depois não puderem fazer prova dos factos respectivos.
II – Uma busca domiciliária nocturna (entre as 21h e as 7h) só pode ser realizada pela polícia, no caso de flagrante delito, se se verificar uma situação grave que implique a necessidade urgente de tal diligência.
III – Não sendo esse o caso dos autos, em que o arguido foi detido na rua às 22h45 e a busca a casa do mesmo pode ter sido efectuada só às 5h06 do outro dia, a busca traduz-se num método proibido de prova não podendo ser utilizadas as provas obtidas (excepto, para alguns autores, se houver um consentimento posterior do visado, o que não é o caso dos autos, em que a nulidade foi invocada).
IV – Se forem utilizadas as provas obtidas nessa busca proibida para fundamentar o despacho de aplicação prisão preventiva, o despacho é nulo (art. 122/1 do CPP).
V - Não podem ser considerados para fundamentar a aplicação de qualquer medida de coacção, os factos e os elementos do processo que não tenham sido comunicados ou que não constem como tendo sido comunicados. Não o podem ser nem para 1ª instância, nem pelo tribunal de recurso, pelo que, se não houver quaisquer factos imputáveis ou elementos do processo que possam ser considerados, não pode ser aplicada qualquer medida de coacção pelo tribunal de recurso.
VI – A falta de referência a quaisquer factos concretos que preencham os pressupostos de aplicação da medida, implicam a nulidade do despacho (art. 194/4, parte final) e a ausência de fundamentação da medida de coacção aplicada, tornando impossível a sua confirmação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa que constam abaixo assinados:

1. No dia 16/10/2009, por volta das 22h45, na rua, O… M… foi manietado pela PSP de Cascais que o deteve.
2. No dia 17/10/2009, pelas 12h10, foi declarada aberta a diligência de 1º interrogatório judicial de arguido detido.
3. Seguidamente a Srª juíza começou por informou o arguido de que estava na sua presença, perguntando-lhe depois se lhe fora feita a comunicação a que se refere o art. 58/2 do CPP, respondendo o arguido afirmativamente.
4. Depois, foram-lhe feitas perguntas nos termos do art. 141/3 do CPP, a que o arguido respondeu.
5. Após, a Srª juíza informou o arguido dos direitos que lhe assistem e dos deveres a que está obrigado, nos termos do art. 61 do CPP.
6. O arguido declarou a sua intenção de não querer prestar quaisquer declarações e então foi dada a palavra ao MP que no uso dela se pronunciou em 12 linhas sobre a qualificação do crime indiciado, sobre aquilo com que o arguido tinha sito detido e sobre as razões pelas quais entendia que devia ser aplicada prisão preventiva ao arguido.
7. Após foi dada a palavra à defensora do arguido que disse:
“a defesa do arguido perante as informações que constam dos autos, as quais foram imputadas ao arguido, entende tratar-se de um crime pontual sem quaisquer antecedentes na vida do arguido. Pelo que, até existirem elementos de investigação mais fortes nos autos requer-se a Vª Exª que, a aplicar medida de coacção privativa da liberdade, seja a mesma a obrigação de permanência na habitação sujeita a vigilância electrónica, requerendo-se em consequência a elaboração do relatório social”.
8. E depois foi proferido o seguinte despacho judicial:
“[…]
Indiciam fortemente os autos a prática pelo arguido de um crime do art. 21 do Dec. Lei 15/93, de 23/01, com referência à tabela 1-A.
Com efeito, tal resulta quer da quantidade do estupefaciente que o arguido detinha – num total de 69,87 g -, da forma como estava acondicionado (em embalagens pequenas), da posse de produtos normalmente utilizados para o “corte” de estupefacientes, da quantidade e qualidade de objectos que detinha (14 telemóveis, 3 computadores, 2 playstations, jóias diversas, algumas de uso tipicamente feminino).
Assim, não é possível atribuir estes actos a um comportamento isolado na vida do arguido.
A profissão que afirmou ter não é compatível com a propriedade dos bens acima referidos, atento o seu valor provável.
Por outro lado, não é conhecido o modo de vida do arguido nem a sua inserção social.
Existe assim, em concreto, quer o risco de alarme social, atenta a natureza dos crimes, quer de continuação da actividade criminosa, quer de fuga.
Pelo exposto, e porque é insuficiente qualquer outra medida para acautelar estes crimes, nos termos dos artigos 191, 192, 204 e 202, do CPP, determino que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito à medida de prisão preventiva”.
*
O arguido interpôs recurso deste despacho.
Nas conclusões 1, 2, 28 a 34 e primeira parte de 37 faz considerações sobre os requisitos e condições da aplicação da prisão preventiva; na conclusão 3 defende que no caso não estão preenchidos aqueles requisitos nem as condições da insuficiência e inadequação de outra medida; nas conclusões 4 a 6 diz o que é que foi dito no despacho recorrido; na conclusão 7 repete parcialmente o que diz na 3ª e acrescenta que no despacho recorrido não se fundamenta em concreto os perigos de fuga ou de continuação da actividade criminosa; nas conclusões 8 a 11 desenvolve esta conclusão quanto ao perigo de fuga; na conclusão 12 diz que os indícios apontam em sentido contrário; na conclusão 13 faz considerandos sobre o perigo de continuação da actividade criminosa; na conclusão 14 fala da detenção; na conclusão 15 diz que a alegação de que se dedica ao tráfico não passa de uma alegação; nas conclusões 16 e 26 diz que não há indícios disso e que os factos que levaram à sua detenção são um episódio único; na conclusão 17 diz que não tem antecedentes criminais; na conclusão 18 diz que ainda não teve possibilidade de se defender dos indícios fortes que contra si existem; na conclusão 19 faz considerações sobre as condições da aplicação da prisão preventiva; na conclusão 20 formula hipóteses sobre os factos; na conclusão 21 diz o que lhe terá sido dito pela Srª juíza sobre as informações obtidas pela PSP que o deteve; na conclusão 22 defende que não existem os perigos de continuação da actividade criminosa ou de perturbação da ordem pública; na conclusão 23 e parte da 24 faz considerações sobre este último perigo; na parte restante da conclusão 24 começa a fazer considerações sobre o perigo de continuação da actividade; criminosa que só retoma na conclusões 35 e 36; mas na conclusão 25 volta à questão de, no caso, não ser necessária a aplicação da prisão preventiva; na conclusão 27 volta à questão de serem suficientes outras medidas para conter o risco, não muito intenso, de continuação da actividade criminosa; na parte final da conclusão 37 conclui que a prisão preventiva, no caso, não se justificava, sendo excessiva; nas conclusões 38 a 41 faz considerações genéricas sobre as buscas e requisitos das mesmas; na conclusão 42 diz que não houve qualquer consentimento para a busca e que na casa se encontrava uma sobrinha do arguido; na conclusão 43 faz considerações sobre o consentimento e diz que a assinatura do arguido num documento [está a referir-se ao auto de apreensão de fls. 9 a 13] não equivale a consentimento; na conclusão 44 diz que não havia indícios de que guardasse em casa objectos relacionados com o crime ou que pudessem servir de prova do mesmo ou motivo de suspeita que legitimasse a realização de uma busca; na conclusão 45 conclui no sentido da nulidade da busca; nas conclusões 46 e parte inicial de 48 diz que foram violados os princípios de adequação e proporcionalidade no que diz respeito à aplicação da medida de privação da liberdade; na conclusão 47 diz que é nula a apreensão efectuada na sequência da busca; na parte restante da conclusão 48 diz que o despacho deve ser revogado e o arguido restituído à liberdade, impondo-se-lhe outras medidas de coacção adequadas e suficientes.
O MP, quer na 1ª instância (de forma desenvolvida) quer junto deste tribunal, defenderam o despacho recorrido.
*
Assim, as questões que são objecto deste recurso são: se não se verificavam os pressupostos da busca domiciliária nocturna efectuada pela polícia e nesse caso quais as consequências; se se encontram preenchidos os requisitos e as condições da aplicação da prisão preventiva, entre eles se foram referidos e se verificam os factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida previstos no art. 204 do CPP;
A)
Quanto à busca e apreensão de bens na sequência dela:
I
Uma busca tem de ser documentada num auto. No caso, não existe aparentemente qualquer auto de busca, o que equivaleria à ausência do próprio acto de busca (arts. 99 e 169, ambos do CPP – Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao CPP, Dez2007, UCP, pág. 274, nota 2: a falta do auto corresponde à falta da diligência a que ele diz respeito).
Existe, no entanto, um auto de apreensão, com a hora 5h06 de 17/10/2009 (registo 6618), e um aditamento (fls. 16), feito às 6h03 de 17/10/2009, diz que onde ali se lê auto de apreensão se deve ler auto de busca e apreensão… (nesse aditamento também se lê que o estupefaciente, o dinheiro, o telemóvel …1721077 e o telemóvel …348133/4 se encontravam na posse do arguido, pelo que devem constar no auto de apreensão…).
Aceitando esta correcção, que terá sido feita menos de 1h depois, pode-se entender que, formalmente, sempre existe um auto de busca e apreensão.
II
Tendo em conta o disposto no art. 99 do CPP e a estrutura da diligência, o auto de busca deve conter (segundo Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao CPP, UCP, Dez2007, págs. 476/477), entre o mais:
- identidade da autoridade que realiza a busca e a das pessoas presentes;
- identidade do visado e menção explícita se consentiu na busca ou não;
- dia e hora em que começou e terminou a busca;
- local em que decorrer a busca;
- menção da comunicação ao visado dos seus direitos [entre eles o dia assistir à busca, de se fazer acompanhar ou substituir na busca por pessoa da sua confiança e a fazer-se acompanhar, ainda, pelo seu advogado – arts. 60/1a) e f) e 176/1, ambos do CPP, e autor e obra citados, pág. 476; note-se que o artigo 176/1 diz que antes de se proceder à busca é entregue cópia do despacho que a determinou, na qual se faz menção destes direitos; no caso do nº. 5 do art. 174 do CPP é dispensada a entrega da cópia, mas os direitos não podem deixar de continuar a existir, ao menos nos casos em que a busca não visar evitar a consumação do delito ou a detenção do agente];
- descrição do modo pelo qual foi feita a busca, com indicação das partes do lugar buscado [o que decorre da al. c) do nº. 3 do art. 99: descrição especificada das operações praticadas];
- descrição dos objectos encontrados durante a busca [o que decorre da al. c) do nº. 3 do art. 99: descrição especificada (…) dos resultados alcançados, de modo a garantir a genuína expressão da ocorrência];
- descrição de quaisquer declarações prestadas pelo visado, por pessoa da sua confiança […] e pela pessoa que tiver a responsabilidade do lugar;
- registo de quaisquer incidentes; [o que decorre da d) do nº. 3: qualquer ocorrência relevante para apreciação da prova ou da regularidade do acto].
- data da elaboração do auto e assinatura.
Concretizando o que antecede, tendo em conta o caso dos autos, do auto tinha que constar, para além do mais, o necessário para se saber se a casa era habitada só pelo arguido ou por mais alguém, onde é que foram encontrados os objectos apreendidos, quaisquer circunstâncias que permitissem esclarecer quem é que detinha os objectos encontrados, o registo da hora e dia em que começou a diligência e da hora e dia em que terminou, quem é que a ela assistiu ou participou, para além do agente que a realizou.
Ora, do auto de busca em causa:
- consta a presença de duas testemunhas que terão presenciado a apreensão mas depois só uma delas assina o auto;
- identifica-se o possuidor mas não se diz que ele seja o visado nem se diz que o possuidor/arguido assistiu à busca nem se, tendo assistido, consentiu na busca ou não (no fim do auto consta a assinatura do arguido mas na qualidade de possuidor, não de visado);
- não consta o dia e hora em que começou a busca, nem mesmo a hora em que terminou. É certo que dele consta uma hora: 5h06; mas esta é a hora em que o auto terá sido elaborado, não a hora a que terminou.
- não se faz menção da comunicação dos direitos;
- não se descreve o modo pelo qual foi feita a busca (e por isso não se sabe o local concreto onde os bens apreendidos foram encontrados e por isso não existem quaisquer circunstâncias que apontem para quem é que estaria na sua detenção no caso de a casa ser habitada por outra pessoa para além do arguido, como poderá ser o caso...).
- os bens apreendidos são os mesmos que constam do auto de notícia de detenção, embora da conjugação dos dois se possa concluir quais os bens que foram apreendidos ao arguido na rua, e quais os que foram apreendidos em casa. Seja como for, o que é certo é que do auto de busca e de apreensão constam bens que não estavam na casa onde o arguido vivia… o que põe em causa que o auto de busca afinal tenha a virtualidade de provar aquilo para cuja finalidade existia.
Tudo isto são irregularidades do auto (art. 123 do CPP e autor e obra citados, pág. 477, nota 7), que não foram arguidas e que por isso não contendem com a produção de efeitos próprios do mesmo… excepto na medida em que não permitirem a verificação dos pressupostos da legalidade da busca efectuada ou na medida em que depois não puderem fazer prova dos factos respectivos.
O que tem relevo no que se segue.
III
As buscas domiciliárias têm o seu regime especificamente regulado no art. 177 do CPP.
As buscas domiciliárias, realizadas entre as 21h e as 7h só podem ser efectuadas por órgão de polícia criminal: - no caso do consentimento do visado, documentado por qualquer forma, ou - em flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos [art. 177/3b) e 2b) e c), do CPP]. Note-se que é diferente o pressuposto do art. 177/2b) do CPP – ‘flagrante delito’ – e o do art. 174/5c) do CPP – ‘aquando de detenção em flagrante’. Num caso refere-se a um crime que se está ou acabou de cometer, No outro, refere-se à situação subsequente a uma detenção em flagrante. São situações diferentes. E é só aquele que está em causa no caso da aplicação do art. 177/3b) e foi só ele o aqui analisado.
Ora, por contraposição com o disposto no nº. 2 do art. 177 do CPP, constata-se que no caso do nº. 3 do art. 177 do CPP (busca nocturna) não se permite a busca policial no caso de terrorismo ou criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada (excepto havendo flagrante delito…).
Pelo que não é o facto de se estar perante um crime de extrema gravidade que permite a busca domiciliária nocturna pela polícia, mas apenas um flagrante delito de um crime (para além do caso do consentimento, que não vem ao caso por não ter sido invocado nem estar documentado).
Ora, dos autos consta que “por se tratar de um crime de extrema gravidade, foi efectuada uma busca domiciliária à residência do arguido”.
O que logo aponta para que a busca em causa não foi efectuada com base na única previsão legal que sobrava, o flagrante delito.
IV
Seja como for e porque não importa muito o “nome” que foi dado ao motivo que levou à busca domiciliária, importa ver se terá sido um flagrante delito o motivo da busca domiciliária nocturna policial.
Flagrante é todo o crime que se está a cometer ou se acabou de cometer; reputa-se também flagrante delito o caso em que o agente for, logo após o crime, perseguido por qualquer pessoa ou encontrado com objectos ou sinais que mostrem claramente que acabou de o cometer ou nele participar (art. 256/1 do CPP).
Ora, sabendo-se a abrangência que o crime de “tráfico” de droga (art. 21 do Dec. Lei 15/93, de 22/1) tem, bastando para tal a simples detenção de droga, e sabido também que o arguido tinha saído de casa e tinha consigo cerca de 70 g de cocaína – se tudo isto for assim – pode-se aceitar que, imediatamente antes de ser detido, ele estava na prática de um crime de tráfico inclusive no período de tempo em que esteve ou passou por sua casa.
Pelo que, nessa ocasião, havia um flagrante delito.
V
Mas justifica-se uma busca que pode ter sido efectuada mais de 6h depois de o arguido ter acabado de cometer o crime [foi “manietado” por volta das 22h45; a busca pode ter sido feita pouco antes das 5h – todas as dúvidas decorrentes dos defeitos que foram apontados ao auto de busca têm que ser valoradas a favor do arguido…]?
O MP, nas suas contra-alegações, invoca o disposto no art. 251/1a) do CPP. Mas esta norma não pode servir de resposta, desde logo porque tal norma claramente afasta da sua previsão o caso de buscas domiciliárias. E depois porque a parte final da mesma até poderia servir para conclusão contrária, como se verá, pois que faz depender os poderes em causa da consideração de que, de outra forma, os objectos poderiam perder-se.
Isto posto:
Uma busca tem, por regra (art. 174/1 e 2 do CPP), uma pluralidade de fins possíveis - a procura de objectos relacionados com um crime ou que possam servir para a prova de um crime ou a detenção de pessoa que deva ser detida (por estar a cometer um crime ou por ter contra ela um mandato de detenção ou captura).
Não estando em causa evitar a prática de um delito (já terminado…), nem necessidade urgente da actuação policial em causa para deter o seu autor (que já há muito estava detido…), a finalidade que poderia estar em causa era apenas a procura de objectos relacionados com o crime ou que pudessem servir para a sua prova.
Ora, já foi visto que um caso de extrema gravidade como é o de terrorismo ou criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada não permite, só por si, a busca domiciliária nocturna policial, pelo que não será qualquer tipo de investigação de situações de flagrante delito que poderia estar em causa.
Por outro lado, o art. 177/3a) do CPP só permite (para além dos casos de detenção em flagrante…), nos casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, à autoridade policial, por sua iniciativa, a busca domiciliária diurna (entre as 21 e as 7h) quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa.
Ou seja, mesmo em casos de extrema gravidade (terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada) só é permitida a busca policial domiciliária diurna para evitar a prática de um crime (que está iminente).
Assim, tendo em conta estes dois casos paralelos e que a busca domiciliária nocturna policial põe em causa, de um modo particularmente grave, os direitos fundamentais da inviolabilidade do domicílio (art. 34 da CRP) e da reserva da intimidade da vida privada e familiar (art. 26/1 da CRP), a interpretação da norma que a possibilita terá sempre que partir do seu carácter excepcional e “a realização de uma busca tem assim [por ter de respeitar as exigências constantes do art. 18/2 da CRP], como regra fundamental, o cumprimento dos princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade” (Ana Luísa Pinto, Aspectos Problemáticos do Regime das Buscas Domiciliárias, na RPCC, 2005, págs. 415 a 456, espec. Pág. 420).
Por isso, a excepção da proibição de buscas domiciliárias nocturnas só vale para casos especialmente graves (no dizer de Durão Barroso, Diário da Assembleia da República, 8ª legislatura, 3ª sessão legislativa, 1ª série, nº. 9, pág. 5 – a localização da discussão é feita por PP de Albuquerque, Comentário, notas 10 e 11, págs. 480/481). Ou, no dizer de Jorge Lacão (mesmo DAR, pág. 38), mais impreciso, a natureza do crime, pela sua gravidade, tem de exigir a necessidade de uma intervenção imediata (mais à frente, pág. 39, 2ª coluna, fala na necessidade de defesa – o exemplo que dá é de um homicídio que se esteja a testemunhar). Vários outros deputados se pronunciaram sobre a questão, mas o que disseram, hoje, depois da lei aprovada, só pode ter o alcance do recurso, já defendido, ao artigo 18/2 da CRP, na interpretação da norma em causa.
Daí que perante normas semelhantes (art. 553 da LECr e art. 18/2 da CE) se venha entendendo em Espanha, seguindo-se um acórdão do STS de 29/03/1993, que a entrada policial para busca em caso de flagrante delito, depende dos seguintes requisitos: - imediatismo temporal (que se está a cometer um delito ou tenha sido cometido instantes antes) - imediatismo pessoal (que o delinquente se encontre ali numa situação tal, com relação aos objectos ou aos instrumentos do delito, que ofereça uma prova da sua participação no delito) e necessidade urgente (de tal modo que a polícia, pelas circunstâncias concorrentes no caso concreto, se veja impelida a intervir imediatamente com o duplo fim de impedir a propagação do mal que a infracção penal acarreta e de conseguir a detenção do autor dos factos, necessidade que não existirá quando a natureza dos factos permite acorrer à autoridade judicial para obter o mandado correspondente) (Manual del Policía, coordenado por Francisco Alonso Pérez, La ley, edição de Junho de 2004, págs. 425/427, tirado de http://books.google.pt/books?id=uqDj5NAPG-YC&printsec=frontcover&source=gbs_navlinks_s#v=onepage&q=427&f=false – notícia disto é dada também no artigo de Nieves Sanz Mulas, sobre Los Médios de Obtencion de Prueba en España, publicado nas Memórias do I Congresso de Processo Penal, Almedina, Janeiro de 2005, págs. 313 a 343, especialmente págs. 318 e segs e 324/325).
Dizendo-o de outro modo, veja-se o ac. do TS de 26/11/2003, publicado sob o nº. ROJ: STS 7528/2003, CENDOJ, que chama a atenção para que foi a tutela do direito fundamental da inviolabilidade do domicílio que tornou necessária a intervenção do Tribunal Constitucional para estabelecer o que devia entender-se por "flagrante delito", negando o TC que se pudesse assimilar ao conceito constitucional de flagrante delito o “conhecimento fundado” ou as “constatações”, exigindo a "percepção evidente do delito e a urgência da intervenção policial" como requisitos do flagrante (S.T.C. de 18 de noviembre de 1.993 y STS 14 de abril de 1997, núm 472/1997). Ou seja, requisitos do flagrante delito, numa interpretação constitucional do preceito que permite a entrada policial no domicílio, para busca, são a percepção evidente do delito e a urgência da intervenção policial.
Pelo que terá de aceitar-se, desde logo, que uma tal busca (policial, domiciliária, nocturna, realizada por ocasião de um flagrante delito), se tiver por fim a procura de objectos relacionados com o crime ou que possam servir para a prova de um crime, terá que ser, pelo menos, em extremo necessária e urgente e para uma situação grave.
Ora, no caso dos autos, nada há que aponte para essa extrema necessidade e urgência na procura de objectos ou de prova de um crime que tinha sido cometido noutro lugar e há talvez mais de 6 horas (tendo o seu autor sido detido desde logo).
VI
Em suma, a busca policial domiciliária nocturna foi feita sem que o pudesse ser, concretizando-se assim num método proibido de prova, pelo que as provas por ela obtidas (no caso: os objectos apreendidos) não podem ser utilizadas (art. 126/3 do CPP – neste sentido, Manuel da Costa Andrade, “Bruscamente no verão passado”, a reforma do CPP, Observações críticas…, especialmente págs. 325 e segs (= §15, págs. 318 a 332) e João Conde Correia, Contributo para a análise da inexistência e das nulidades processuais penais, Coimbra Editora, BFD, SI 44, Outubro de 1999, págs. 156 a 161 – a alteração na redacção do nº. 3 do art. 126 do CPP, feita pela Lei 48/2007, de 29/3, tem este sentido, pretendendo superar uma “dúvida interpretativa” que a redacção anterior do art. 126/3 suscitaria, como refere no começo do nº. 59 do seu estudo Costa Andrade)
No sentido desta conclusão, no caso, também iria Paulo Pinto de Albuquerque, já que a nulidade foi invocada pelo arguido que assim não a sanou com um consentimento posterior e a nulidade da busca é causa da nulidade consequente da apreensão feita durante a busca (arts. 126/3 e 122/1 do CPP – obra citada, págs. 325 a 329 e 331, notas 1 a 11, 20, respectivamente, e anotações 18e) e 19 ao art. 177, págs. 484 e 485, respectivamente – posição que está mais de acordo com a jurisprudência do STJ mas que pareceria desautorizada face à alteração da redacção referida no parágrafo anterior, mas que o autor justifica com a referência à possibilidade de um consentimento posterior; no sentido da possibilidade de um consentimento à utilização de provas obtidas mediante intromissão…, veja-se agora a nota de 19 do estudo de João Conde Correia, Concordância Judicial à Suspensão Provisória do Processo: Equívocos que persistem, Revista do Ministério Público, nº. 117).
VII
A impossibilidade de utilização da prova obtida ou a nulidade desta prejudica o despacho (por exemplo, o despacho que determina uma medida de coacção) se a prova proibida / nula tiver sido utilizada na fundamentação da decisão, bastando para o efeito que ela seja um dos meios de prova invocados, mesmo que não seja o elemento preponderante para a fundamentação da decisão do tribunal (PP de Albuquerque, obra citada, pág. 328, nota 8, que cita no mesmo sentido Costa Andrade). O despacho que determina uma medida de coacção fundado em prova obtida por método proibido / em prova nula é, também ele, nulo [art. 122/1 do CPP – parafraseou-se PP de Albuquerque, obra citada, nota 8 já referida, pág. 328].
B)
Quanto à medida de coacção aplicada:
VIII
É o artigo 141 que regula o 1º interrogatório judicial de arguido detido.
Diz ele, na parte que importa aos autos [por ex: as excepções previstas na al. d) do nº. 4 não têm interesse por não terem sido invocadas],
1 — O arguido detido que não deva ser de imediato julgado é interrogado pelo juiz de instrução, no prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, logo que lhe for presente com a indicação circunstanciada dos motivos da detenção e das provas que a fundamentam.
3 — O arguido é perguntado pelo seu nome […]
4 — Seguidamente, o juiz informa o arguido: a) Dos direitos referidos no n.º 1 do artigo 61.º, explicando-lhos se isso for necessário; b) Dos motivos da detenção; c) Dos factos que lhe são concretamente imputados, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo; e d) Dos elementos do processo que indiciam os factos imputados […]
ficando todas as informações, à excepção das previstas na alínea a), a constar do auto de interrogatório.
[…].
Por sua vez, o artigo 194 do CPP regula o despacho de aplicação de medidas de coacção.
Dispõe ele, na parte que importa [por ex: as excepções previstas na al. d) do nº. 4 não têm interesse por não terem sido invocadas] que:
1 — À excepção do termo de identidade e residência, as medidas de coacção e de garantia patrimonial são aplicadas por despacho do juiz […]
3 — A aplicação referida no n.º 1 é precedida de audição do arguido […] aplicando-se sempre à audição o disposto no n.º 4 do artigo 141.º
4 — A fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade:
a) A descrição dos factos concretamente imputados ao arguido incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo; b) A enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados […] c) A qualificação jurídica dos factos imputados; d) A referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193.º e 204.º
5. […] não podem ser considerados para fundamentar a aplicação ao arguido de medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, quaisquer factos ou elementos do processo que lhe não tenham sido comunicados durante a audição a que se refere o n.º 3.
[…].
IX
Como se vê da transcrição quase integral (as partes não transcritas são irrelevantes para o caso) que se fez do auto de 1º interrogatório de arguido detido com aplicação da medida de coacção [pontos 2 a 8 do relatório deste acórdão], não consta que a Srª juíza tenha informado o arguido dos factos que lhe são imputados, nem os elementos do processo que os indiciariam.
Mas, como se vê da posição assumida pela Srª defensora do arguido (ponto 7 do relatório deste acórdão – embora com redacção deficiente), essa informação terá sido prestada. Pelo que não se trata de uma questão de inexistência da informação, mas de uma não documentação da mesma, expressamente exigida por lei.
A não documentação da comunicação destes factos ou elementos impede que se saiba quais é que foram comunicados, pelo que, sendo total, equivale à total ausência de comunicação de factos e elementos.
Pois que dada a exigência legal de documentação daquelas informações só se podem considerar comunicadas as informações que tiverem sido documentadas e nenhumas outras que agora se possam extrair seja do que for, ou que fossem mais tarde invocadas.
Ora, a lei (art. 194/5 do CPP) diz que não podem ser considerados para fundamentar a aplicação de qualquer medida de coacção, os factos e os elementos do processo que não tenham sido comunicados.
O que no caso quer dizer que estamos perante uma prisão preventiva aplicada sem que de todo se saiba quais os factos criminosos imputados e os elementos do processo que os indiciavam, e que por isso não pode subsistir.
Note-se que o facto de se estar perante uma impossibilidade de consideração é diferente e mais do que uma qualquer nulidade. São duas consequências distintas: a nulidade está prevista no nº. 4, a impossibilidade (ou proibição) de consideração está prevista no nº. 5.
E a impossibilidade/proibição de consideração, no caso, é total, já que se fica sem um único facto imputado ou um único elemento do processo que indicie um qualquer facto.
Pelo que também o tribunal de recurso não tem factos ou elementos de processo que possam ser considerados para aplicação de qualquer medida de coacção.
*
Para além desta consequência – da impossibilidade da consideração de qualquer facto criminoso ou elemento indiciário - e se não fosse ela, a falta de referência a quaisquer factos concretos que preenchessem os pressupostos de aplicação da medida, implicaria a nulidade do despacho (art. 194/4, parte final).
Com efeito, não há um único facto em concreto que tenha sido referido como fundamento da afirmação de que existe risco quer de continuação da actividade criminosa, quer de fuga.
E quanto ao invocado, pela decisão recorrida, risco de alarme social atenta a natureza dos crimes, por um lado, não se concretiza, dizendo quis os factos em concreto que o fundamentam; e, por outro lado, o alarme social não é pressuposto da aplicação da medida. E se a decisão recorrida, com esta expressão, se está a referir ao perigo da perturbação da ordem e da tranquilidade pública, então esquece que esse pressuposto está ligado à demonstração de que esse perigo seja criado pelo arguido, o que não é minimamente invocado.
Esta nulidade traduz-se simultaneamente na falta de fundamentação da aplicação da medida de coacção: não se diz porque é que em concreto existe qualquer perigo de fuga ou de continuação da actividade criminosa. Pelo que o despacho recorrido não poderia ser confirmado por falta de fundamentação.
*
Por fim, e como se viu acima, a nulidade da prova proibida (os bens apreendidos na busca ilegal) prejudica o despacho que determinou a medida de coacção, tornando-o nulo, já que este despacho utilizou tais provas na sua fundamentação (art. 122/1 do CPP).
E tal implica a libertação imediata do arguido - até porque, como já se viu, este tribunal da relação, perante a total ausência de factos imputáveis e de elementos do processo que os indiciem que possam ser tomados em consideração, não tem qualquer fundamento que lhe possa permitir considerar necessária a aplicação de qualquer medida de coacção, nem para determinar (ao abrigo do art. 122/2 do CPP) que o tribunal recorrido a aplique depois de fazer as diligências legais e necessárias para o efeito (embora para um caso paralelo de nulidade do despacho que aplica medida de coacção, mas com outra causa - vício do 1º interrogatório judicial –, defende esta consequência Paulo Pinto de Albuquerque, obra citada, nota 40 ao art. 141, pág. 400; de resto, também no caso dos autos foi a falta de documentação das informações que deviam ser dadas ao arguido no decurso do 1º interrogatório judicial que tornou impossível tomar em consideração quaisquer factos ou elementos de prova).
*
Em suma:
I – As irregularidades do auto de busca e apreensão, quando não arguidas, apenas têm relevo na medida em que não permitirem a verificação dos pressupostos da legalidade da busca efectuada ou na medida em que depois não puderem fazer prova dos factos respectivos.
II – Uma busca domiciliária nocturna (entre as 21h e as 7h) só pode ser realizada pela polícia, no caso de flagrante delito, se se verificar uma situação grave que implique a necessidade urgente de tal diligência.
III – Não sendo esse o caso dos autos, em que o arguido foi detido na rua às 22h45 e a busca a casa do mesmo pode ter sido efectuada só às 5h06 do outro dia, a busca traduz-se num método proibido de prova não podendo ser utilizadas as provas obtidas (excepto, para alguns autores, se houver um consentimento posterior do visado, o que não é o caso dos autos, em que a nulidade foi invocada).
IV – Se forem utilizadas as provas obtidas nessa busca proibida para fundamentar o despacho de aplicação prisão preventiva, o despacho é nulo (art. 122/1 do CPP).
V - Não podem ser considerados para fundamentar a aplicação de qualquer medida de coacção, os factos e os elementos do processo que não tenham sido comunicados ou que não constem como tendo sido comunicados. Não o podem ser nem para 1ª instância, nem pelo tribunal de recurso, pelo que, se não houver quaisquer factos imputáveis ou elementos do processo que possam ser considerados, não pode ser aplicada qualquer medida de coacção pelo tribunal de recurso.
VI – A falta de referência a quaisquer factos concretos que preencham os pressupostos de aplicação da medida, implicam a nulidade do despacho (art. 194/4, parte final) e a ausência de fundamentação da medida de coacção aplicada, tornando impossível a sua confirmação.
*

Pelo exposto, declara-se nula a busca policial efectuada à residência do arguido, bem como a apreensão subsequente dos bens e o despacho recorrido que se baseou em tais provas, que se revoga, determinando-se a imediata libertação do arguido.
Passe mandados de libertação, faça-os cumprir e depois de ter notícia do seu cumprimento devolva os autos.
Notifique.
Sem custas.

Lisboa, 22 de Dezembro de 2009

Pedro Martins
Nuno Gomes da Silva