Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2070/2005-6
Relator: CARLOS VALVERDE
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
ACÇÃO CAMBIÁRIA
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/14/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Sumário: 1 - Quando dos títulos de crédito prescritos não conste a causa da obrigação, tal como quanto a qualquer outro documento particular nas mesmas condições, há que distinguir consoante a obrigação a que se reportam emirja ou não de um negócio jurídico formal.
2 - No primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não poderá constituir título executivo (arts. 221º, 1 e 223º, 1 do CC).
3 - No segundo caso, porém, a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento da dívida (art. 458º, 1 do CC) leva a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação dever ser invocada no requerimento inicial da execução e poder ser impugnada pelo executado.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:


(A) e marido (R) deduziram embargos à execução que lhes move a Caixa Económica Montepio Geral, alegando, em síntese, a prescrição da obrigação cambiária e o preenchimento abusivo da livrança exequenda.

A embargada contestou, contrariando a factualidade trazida aos autos pelos embargantes para suportar o alegado preenchimento abusivo da livrança, nada dizendo em relação à também alegada excepção da prescrição.

Foi elaborado o despacho saneador, no âmbito do qual o Sr. Juíz desatendeu a excepção da prescrição alegada pelos embargantes e condensou-se a matéria de facto tida por pertinente.

Inconformados com o despacho que indeferiu a excepção da prescrição que alegaram, dele os embargantes interpuseram recurso, recebido como de apelação, deixando-se para momento posterior ao oferecimento das alegações a fixação do seu regime de subida, o que não chegou a ser feito, sobrando a subida diferida do mesmo, ao abrigo do disposto no nº 1, do artº 695º do CPC.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal, após o que o Sr. Juíz proferiu sentença, julgando os embargos improcedentes.

Igualmente inconformados com esta última decisão, dela apelaram atempadamente os embargantes.

Em ambos os recursos foram apresentadas oportunamente alegações, em cujas respectivas conclusões, devidamente resumidas - artº 690º, nº 1 do CPC -, se suscitam, nuclearmente, as seguintes questões:

recurso de apelação interposto do despacho saneador

- nulidade da decisão;

- a prescrição da acção cambiária.

recurso de apelação interposto da sentença

- a decisão factual;

- nulidade do processo;

- vícios formais da sentença.



A apelada apenas no recurso interposto da decisão final contra-alegou.



Os factos dados como provados no tribunal recorrido são os seguintes:

1 - A embargada Caixa Económica Montepio Geral emitiu, com data de 24-7-96, vencimento em 23-10-96 e na importância de 820.000$00, o documento junto a fls, 5 dos autos de execução, livrança subscrita pela sociedade, 1ª executada e avalizada pelos restantes executados;

2 - Em 28-9-95, a embargada emprestou à executada sociedade a quantia de 1.000.000$00, titulada por uma livrança entregue em branco e subscrita por esta como sacadora e avalizada pelos restantes executados;

3 - Após algumas entregas em dinheiro por parte dos executados para amortização da dívida, esta, em 24-7-96, orçava pelo menos em 820.000$00.

Cumpre decidir, começando pelo recurso de apelação interposto do despacho saneador, em obediência ao disposto no nº 1 do artº 710º do CPC.



Dizem os recorrentes que a decisão em causa enferma da nulidade prevista na al. c), do nº 1 do artº 668º do CPC, porque se refere a "prescrição da letra", quando nos encontramos perante uma livrança.
A oposição apontada na alínea c), do nº 1 do art. 668º do C.P.C., que constitui a nulidade alegada é a que, como observa Rodrigues Bastos, “se verifica no processo lógico, que das premissas de facto e de direito que o julgador tem por apuradas, este extrai a decisão a proferir. Não é, por isso, relevante, para esse efeito, a contradição que se diga existir entre os factos que a sentença dá como provados e outros já apurados no processo, designadamente por haverem sido incluídos na especificação. Poderá haver nesse caso erro de julgamento, mas não nulidade da decisão.” (in Notas ao C.P.C., vol.III, pág. 246).
Por outras palavras, para que exista esta nulidade é necessário que a fundamentação da decisão aponte num sentido e que esta siga caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente (cfr. Ac. do S.T.J. de 19-2-91, AJ, 15º/16º, pág. 31).
Tal não aconteceu na decisão posta em crise, em que, no entendimento defendido, se tinha de concluir, como se concluíu, pela inverificação da excepção alegada, sendo irrelevante que, na respectiva fundamentação, se tenha feito referência à letra e não à livrança, porque, neste segmento, a esta se aplicam as disposições legais que regulam a primeira.
Posto isto, os embargantes excepcionaram, como se disse, com a prescrição da obrigação cartular, nos termos dos arts. 70º e 77º da LULL, alegando que, entre a data do vencimento da livrança exequenda e a data da propositura da acção, decorreu mais de um ano.
O Sr. Juíz desatendeu esta pretensão dos embargantes, considerando que, "independentemente da prescrição da letra enquanto título consubstanciador de uma obrigação cartular, sempre existirá título executivo face ao disposto no artº 46º, al. c), do C. P. Civ.."
Neste enquadramento, a questão fundamental deste recurso consiste em saber se, prescrita a obrigação cambial representada na livrança dada à execução, poderá esta continuar a valer como título executivo.
Por definição, o título executivo é o documento que pode segundo a lei, servir de base à execução de uma prestação, já que ele oferece a demonstração legalmente bastante do direito correspondente (cfr. Castro Mendes, Lições de Direito Civil, 1969, pág. 143).
Do ponto de vista formal, o título é o documento em si próprio e, do ponto de vista material, é a demonstração legal do direito a uma prestação (cfr. o mesmo Autor, A causa de Pedir na Acção Executiva – Rev. Fac. Direito da Universidade de Lisboa, vol. XVIII, págs. 189 e segs).
Como se sabe, o Processo Executivo visa realizar coercivamente um direito já afirmado.
Ora, como “toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva” – artº.45º, nº 1 do C.P.C. – facilmente se percebe que aquela afirmação deve necessariamente constar do título executivo.
E também só essa prévia afirmação do direito permitirá entender o comando do artº 55º, nº 1 do mesmo Código: “A execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figura como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tinha a posição de devedor”.
Como se vê, “... pela análise do título se há-de determinar a espécie de prestação e da execução que lhe corresponde (entrega de coisa, prestação de facto, dívida pecuniária), se determinará o quantum da prestação e se fixará a legitimidade activa e passiva para a acção” (Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, pág. 11).
É dizer, em suma, que deverá existir necessária concordância entre o título executivo e o pedido formulado no requerimento inicial da execução, pois esse título “... é o documento (título hoc sensu) donde consta (não donde nasce) a obrigação cuja prestação se pretende obter por via coactiva (por intermédio do Tribunal)” (Antunes Varela, R.L.J., Ano 121º, pág. 147).
Conforme já salientava Alberto dos Reis, “...desde que a execução não é conforme ao título, na parte em que existe divergência, tudo se passa como se não houvesse título: nessa parte a execução não encontra apoio no título” (Código do Processo Civil Explicado, pág. 26).
E, sempre que isso aconteça, ou seja, “... se a discordância entre o pedido e o título consistir em excesso de execução, isto é, em se pedir mais do que o autorizado pelo título”, cabe ao juiz indeferir liminarmente o requerimento executivo na parte em que exceda o conteúdo do título, mandando prosseguir a execução pela parte que efectivamente lhe corresponda” (Lopes Cardoso, Manual da Acção Executiva, pág. 29).
Se a discordância entre o pedido e o título for absoluta, o indeferimento será, naturalmente, total.
Quanto à causa de pedir em acção executiva, há quem entenda que ela se reconduz ao próprio título accionado (cfr. Alberto dos Reis, Comentário, I, pág. 98, Lopes Cardoso, ob. cit., págs. 23 e 29 e Ac. do STJ de 24-11-83, BMJ 331/469), enquanto outros sustentam que ela é antes constituída pela factualidade essencial de onde emerge o direito, reflectida embora no próprio título (cfr. Castro Mendes, A Causa de Pedir..., págs. 189 e sgs., Lebre de Freitas, Acção Executiva , 2ª ed.. págs. 64 e 65, A. Varela, RLJ, 121º/148 e sgs e Ac. do STJ de 27-1-98, CJ, STJ, I, pág. 40).
Como quer que seja, os próprios defensores da 2ª teoria não retiram qualquer relevo ao título executivo, limitando-se a enquadrá-lo no seu meio próprio, que é o processual, do mesmo passo que enquadram a factualidade causal no seu meio próprio, que é o substantivo (cfr. Ac. do STJ de 27-7-94, CJ, STJ, III, pág. 70).
No caso dos autos, a exequente oferece à execução uma livrança subscrita pela primeira executada e avalizada pelos demais, entre os quais os embargantes.
A livrança é um título cambiário, sujeito a certas formalidades, pelo qual uma pessoa se compromete, para com outra, a pagar-lhe determinada importância em certa data (artº 75º da LULL).
Toda a acção contra o subscritor, bem como o dador do aval (porque responsável nos termos do primeiro) prescreve decorridos que sejam três anos, contados da data do seu vencimento (arts. 70º e 32º, ex vi do 77º, todos da LULL).
Atenta a data do vencimento da livrança ajuizada (23-10-96) e a da propositura da acção executiva (23-11-2000), é fora de dúvida que se encontra prescrita a acção cambiária, não constituindo essa livrança, enquanto tal, título executivo.
Mas, atenta a posição, ainda que sinóptica e quase tabelar, assumida na decisão censuranda, importa ainda apurar se a livrança continua a valer como título, agora como simples documento particular, assinado pelo devedor, desprovido das características específicas dos títulos de crédito, na atenção da formulação abrangente da redacção dada à al. c) do artº 46º do CPC, pela reforma processual de 1995 (DL nº 329-A/95, de 12/12), o que nos transporta para a questão que supra se enunciou.
A propósito desta questão, que, diga-se, não tem tido resposta pacífica, observa Lebre de Freitas que "quando o título de crédito de crédito mencione a causa da relação jurídica subjacente, não se justifica nunca o estabelecimento de qualquer distinção entre o título prescrito e o documento particular, enquanto ambos se reportem à relação jurídica subjacente.
Quanto aos títulos de crédito prescritos dos quais não conste a causa da obrigação, tal como quanto a qualquer outro documento particular nas mesmas condições, há que distinguir consoante a obrigação a que se reportam emerja ou não de um negócio jurídico formal. No primeiro caso, uma vez que a causa do negócio jurídico é um elemento essencial deste, o documento não poderá constituir título executivo (arts. 221º, 1 e 223º, 1 do CC). No segundo caso, porém, a autonomia do título executivo em face da obrigação exequenda e a consideração do regime do reconhecimento da dívida (art. 458º, 1 do CC) leva a admiti-lo como título executivo, sem prejuízo de a causa da obrigação dever ser invocada no requerimento inicial da execução e poder ser impugnada pelo executado; mas, se o exequente não a invocar, ainda que a título subsidiário, no requerimento inicial, não será possível fazê-lo na pendência do processo, após a verificação da prescrição da obrigação cartular e sem o acordo do executado (artº 272º do CPC), por tal implicar alteração da causa de pedir" (ob. cit., págs. 53 e 54).
Esta doutrina vem de encontro à opinião dos que, como supra se referiu, entendem dever fazer-se a distinção entre título executivo e causa de pedir.
Todavia, mesmo na concordância com o entendimento delineado, ainda assim, no caso em aprêço, haveria que julgar procedente a excepção da prescrição invocada plos embargantes.
O requerimento executivo remete pura e simplesmente para o teor da livrança, nada se dizendo quanto à relação subjacente, donde deriva que a causa de pedir é a própria livrança e a abstracta obrigação de pagamento por ela corporizada, o que, de resto, em relação aos embargantes, enquanto simples avalistas, sempre e em quaisquer circunstâncias se verificaria. É que o avalista não é sujeito da relação jurídica originária da obrigação cartular, antes e tão só da relação fundada no próprio aval, a qual só pode ser invocada, como é apodíctico, nas relações entre o avalista e o avalizado. (cfr. Pedro de Vasconcelos, Direito Comercial, Títulos de Crédito, pág. 128).
Daí que, como observa Paulo Sendim, a respeito da letra de câmbio, mas servindo igualmente par a livrança, “o adquirente da letra, mesmo como portador imediato, em relação à operação avalizada, está sempre em situação de portador mediato, face ao seu aval, que o garante com um valor patrimonial correspondente, mas independente, livre de excepções que, porventura, se formem na operação garantida”. (in Letra de Câmbio, vol. II, Pág. 842).
O aval é, pois, um autêntico acto cambiário, origem duma obrigação autónoma, já que o dador do aval assume também uma responsabilidade abstracta e objectiva pelo pagamento do título, subsistindo, como já se referiu, mesmo no caso de ser nula a obrigação que ele garante (cfr. Ac. desta Rel. de 9-7-92, Col. Jur., Tomo IV, pág. 148).
Em conclusão, tendo-se suportado o pedido executivo apenas na livrança ajuizada e prescrita que está a obrigação cartular nela incorporada, por entre a data do seu vencimento e a data da instauração da acção executiva terem decorrido mais de três anos (arts. 70º e 77º da LULL), não é de aceitar que a mesma valha como título executivo, a coberto do disposto na al. c) do artº 46º do CPC (neste sentido, o Ac. do STJ de 30-01-2001, CJ, STJ, IX, I, pág. 85).

Pelo exposto, na procedência do recurso de apelação interposto do despacho saneador, revoga-se a decisão que julgou improcedente a excepção peremptória da prescrição da acção cambiária alegada pelos embargantes, julgando-se a mesma agora procedente e, em consequência, extinta a execução em relação aos embargantes (artº 493º do CPC), com o que fica prejudicado o conhecimento do recurso de apelação interposto da sentença.


Custas pela apelada.


Lisboa, 14-04-2005

Carlos Valverde
Granja da Fonseca
Roger de Sousa