Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1395/2006-3
Relator: CONCEIÇÃO GOMES
Descritores: APREENSÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/29/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: Deve ser ordenado o levantamento da apreensão de um computador e o mesmo restituído ao seu proprietário se for possível proceder à cópia dos ficheiros informáticos que se mostrem relevantes para a investigação e que se encontrem inseridos no disco rígido do computador, logo que a tal proceda a autoridade competente por ordem do Juiz de Instrução.
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

1. RELATÓRIO
1.1. Inconformada com o despacho de 10OUT05 que indeferiu o levantamento da apreensão de um computador, veio a sociedade “X, LDA”, interpor o presente recurso, que motivou, concluindo, nos seguintes termos.
«1. Conforme resulta de fls., a recorrente através de requerimento, requereu o que acima se transcreveu para melhor apreciação nestas alegações;
2. No Despacho recorrido foi decidido indeferir a pretensão da recorrente, e ainda condená-la nas custas;
3. A recorrente é uma empresa que tem a sua contabilidade organizada e toda ela no computador que foi apreendido;
4. Sem esse computador, ou pelo menos os ficheiros, não poderá a recorrente cumprir as suas obrigações fiscais e até contratuais com clientes, fornecedores, etc.
5. Para se poder aprender o computador, teria de se ter justificado a razão de tal comportamento;
6. Não basta como se diz no Despacho recorrido, que: "tendo em conta o juízo relativo à utilização de produtos e instrumentos na prática dos crimes em causa só pode ser feito pelas autoridades competentes para a respectiva investigação, uma vez que a busca e apreensão realizadas foram ao abrigo do despacho judicial";
7. No despacho judicial dizia na "apreensão de produtos ou instrumentos na prática dos crimes de fraude fiscal e branqueamento de capitais em investigação nos presentes autos";
8. Isto quer dizer, tendo em conta a interpretação da nossa língua mãe, que, apenas poderiam ser apreendidos produtos ou instrumentos na prática dos crimes de fraude fiscal e branqueamento de capitais em investigação nos presentes autos;
9. Não está comprovado, nem vai ser comprovado em como o computador foi utilizado na prática de tais irregularidades, visto que era esse o computador onde a recorrente lançava a sua escrita e tinha toda a sua actividade – aliás como sucede hoje com qualquer empresa, tribunal, escritório de advogado, etc.
10. Para se saber ou existirem suspeitas, seria obrigatório que os Srs. Agentes da PJ, tivessem aberto o computador e depois de analisado o seu conteúdo, decidissem que poderia ter interesse para a investigação apreendê-lo;
11. Mas para isso, sob pena de ser cometida uma ilegalidade corno o foi, tinham de verificar o seu conteúdo;
12. Depois de verificado o seu conteúdo, tinham de proceder à gravação dos ficheiros constantes do mesmo computador, para uma novo computador, ou outro aparelho, de modo a não prejudicar descaradamente a recorrente, como efectivamente prejudicaram e continuam a prejudicar, até o computador ser entregue;
13. Porém, tem pelo menos até ao momento a recorrente para junto dos serviços fiscais JUSTIFICAR o incumprimento das suas obrigações, derivadas ao facto de ter ficado sem qualquer tipo de contabilidade;
14. No entanto, a Lei não foi feita para interpretação desta forma abusiva e ilegal por parte dos Srs. Agentes da PJ, e que pelos visto o Exmo. Sr. Dr. Juiz "a quo" deu-lhe razão;
15. Continua-se como no passado, e já lá vão mais de 30 anos desde esse passado ainda muito recente a forma de actuar da PJ – apreende-se tudo o que "mexe" e depois a final logo se vê – sem que daí resulte qualquer responsabilidade para quem procede desta forma;
16. Na sociedade moderna em que se vive, não se pode ter comportamentos desta forma;
17. Era sempre obrigatório pelo menos abrirem-se os ficheiros do computador, e depois tendo em conta o seu conteúdo, decidir-se pela apreensão ou não;
18. Caso se decidisse pela apreensão, fundamentar-se a mesma, copiarem-se os ficheiros importantes para o cumprimento das obrigações fiscais e contratuais pendentes, e depois aprender-se o que fosse decidido em conformidade;
19. Assim, não vamos a lado nenhum, e em vez de estarmos no pelotão da frente, estamos km atrás de último;
20. De referir que a recorrente é das poucas empresas deste país que paga IRC e com procedimentos destes, qualquer dia nenhuma empresa deste país pagará IRC e ainda pedirá subsídios ao Estado;
21. Não há dúvida nenhuma que foi cometida uma nulidade por parte dos Srs. Agentes da PJ, e também foi cometida uma nulidade por parte do Exmo. Sr. Juiz "a quo"; E essa nulidade apenas pode ser declarada pela Revogação do Despacho recorrido;
22. O que desde já e aqui se requer;
23. Não se compreende como pode ter-se decidido condenar a recorrente nas custas de 2 Ucs, quando nos termos do disposto no 6 do artigo 178° do CPP: "Os titulares dos bens ou direitos objecto de apreensão podem requerer ao juiz de instrução a modificação ou revogação da medida";
24. A recorrente não fez mais do que se recorrer desta disposição legal, e ao mesmo tempo denunciar a forma abusiva, ilegal e inconstitucional, como de facto os Srs. Agentes da PJ actuaram neste caso em concreto;
25. É obrigação de qualquer cidadão reclamar, quando os seus direitos são ofendidos, e não é cumprida a Lei, que foi o caso neste processo;
26. Tem assim o Despacho recorrido de ser REVOGADO.
Termos em que, e com os fundamentos acima expostos, requer-se a REVOGAÇÃO do Despacho recorrido, por ser de LEI, DIREITO e JUSTIÇA.
1.2. Na 1ª Instância houve Resposta do MP, o qual conclui pela improcedência do recurso.
1.3. Nesta Relação o Exmº PGA emitiu Parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, acompanhando a Resposta à motivação de recurso pelo magistrado do MP em 1ª Instância.
1.4. Foi cumprido o disposto no art. 417º, nº2, do CPP.
1.5. Foram colhidos os Vistos legais.
***
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Resultam dos autos as seguintes ocorrências processuais relevantes para a decisão do presente recurso:
2.1.1. No âmbito do processo de inquérito nº 1596/03.0JFLSB-A que corre termos nos serviços do MP junto do Tribunal Judicial de Alenquer, em que são arguidos A. e Outros, na sequência do mandado de busca por autoridade judiciária competente foi ordenada a busca à sede da sociedade “X., LDA”, para efectiva apreensão de produtos ou instrumentos utilizados na prática dos crimes de fraude fiscal e branqueamento de capitais, em investigação nos autos.
2.1.2. Na busca efectuada foi apreendido um computador pertencente á sociedade “X., LDA”.
2.1.3. A recorrente arguiu a nulidade da apreensão, bem como requereu a devolução do computador.
2.1.4. Por despacho de 10OUT05 foi indeferida a arguida nulidade, bem como a devolução do computador, com os seguintes fundamentos:
«Fls. 831 a 833:
Conforme consta de fls. 924, a busca efectuada à sede da empresa X. sita na R…., foi ordenada por despacho da autoridade judiciária competente.
Conforme consta igualmente dos respectivos mandados, a busca foi ordenada para efectiva apreensão de produtos ou instrumentos utilizados na prática dos crimes de fraude fiscal e branqueamento de capitais, em investigação nos presentes autos.
Do auto de busca e apreensão de fls. 927 resulta a apreensão de um computador.
Ora, tendo em conta que o juízo relativo à utilização de produtos e instrumentos na prática dos crimes em causa só pode ser feito pelas autoridades competentes para a respectiva investigação, e uma vez que a busca e apreensão realizadas o foram ao abrigo de despacho judicial, carece de fundamento legal a nulidade invocada pela X..
No que concerne à devolução do computador, uma vez que as informações contidas no mesmo se mostram indispensáveis à descoberta da verdade material (cfr. informação fls. 840), indefere-se, por ora, o requerido.
Custas pela requerente que fixo em 2 Ucs - art. 84° do CCJ. Notifique»
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3. O DIREITO
3.1. O objecto do presente recurso delimitado pelas respectivas conclusões prende-se com a seguinte questão:
- se deve ou não ser devolvido à recorrente o computador que lhe foi apreendido.
3.1.1. De harmonia com o disposto no art. 178º, nº1, do CPP, «São apreendidos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agentes no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir de prova”, sendo que nos termos do nº 3 do citado preceito «As apreensões são autorizadas, ordenadas ou validadas por despacho de autoridade judiciária». Por seu turno consagra o nº4, que «Os órgãos e de polícia criminal podem efectuar apreensões no decurso de revistas ou de buscas ou quando haja urgência ou perigo na demora, nos termos previstos no artigo 249º, nº2, al c)», e o nº5, do mesmo normativo determina que «As apreensões efectuadas por órgãos de polícia criminal são sujeitas a validação pela autoridade judiciária no prazo máximo de 72 horas».
3.1.2. Como é sabido, aos órgãos de polícia criminal, nos termos do art. 55º, nº 2, do CPP, compete em especial, mesmo por iniciativa própria, colher notícia dos crimes e impedir quanto possível as suas consequências, descobrir os seus agentes e levar a cabo os actos necessários e urgentes destinados a assegurar os meios de prova, e no âmbito das medidas cautelares proceder à apreensão no decurso das revistas e buscas (art. 249º, nº2, al. c), do CPP). São razões de economia processual – evitando-se a repetição de formas e diligências – que ditam a apreensão directa ou valoração probatória dos objectos que corporizam os conhecimentos fortuitos (1)
Como é sabido, a apreensão é um acto de polícia criminal que tem como escopo obter prova, protegendo portanto a realização do direito criminal
Tem, pois, natureza meramente preventiva. (2)
No entanto, a apreensão não é apenas um meio de obtenção e conservação de provas, mas também de segurança de bens para garantir a execução, embora em grande maioria dos casos esses objectos sirvam também como meios de prova. A apreensão destina-se essencialmente a conservar provas reais e bem assim os objectos que em razão do crime com que estão relacionados podem ser declarados perdidos a favor do Estado(3).
3.1.3. Contudo, com reforma introduzida pela Lei nº 59/98, de 25AGO, foi aditada a norma contida no nº 6, que não tinha correspondência na versão originária [assim como os nºs 4, 5 e 7], segundo o qual «Os titulares dos bens ou direitos objecto de apreensão podem requerer ao juiz de instrução a modificação ou revogação da medida. É correspondentemente aplicável o disposto no art. 68º, nº5».
Na Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 157/VII, pode ler-se o seguinte:
«O regime das apreensões, enquanto meio de obtenção de prova, é alterado tendo em vista, por um lado, uma maior eficácia no combate ao crime e, por outro lado, a necessidade de reforçar a tutela do direito de propriedade enquanto direito fundamental. Embora sem por em causa a sua natureza, permite-se que a medida possa ser levada a efeito por órgãos de polícia criminal no decurso de revistas ou buscas ou em caso de urgência ou perigo na demora, conferindo, por esta forma, maior exequibilidade às medidas de polícia; porém, exige-se, neste caso a sua validação por autoridade judiciária, no prazo de setenta e duas horas. Por outro lado, introduz-se a possibilidade de apreciação da medida de apreensão pelo juiz de instrução, dadas as restrições impostas ao direito de propriedade que deve ser eficazmente tutelado».
No caso subjudice, conforme resulta do despacho sob recurso, o que se está a investigar no processo de inquérito nº 1596/03.0JFLSB-A que corre termos nos serviços do MP junto do Tribunal Judicial de Alenquer, em que são arguidos A. e Outros são crimes de fraude fiscal e branqueamento de capitais, sendo que a devolução do computador à recorrente, foi indeferida, por as informações contidas no mesmo se mostrarem indispensáveis à descoberta da verdade material.
Ora, não há dúvida que o computador apreendido á recorrente, pode conter elementos fundamentais para a descoberta da verdade, no entanto, também é certo que, sendo a recorrente uma sociedade com contabilidade organizada, se no computador apreendido a recorrente tem todos os ficheiros com os elementos respeitantes à sua contabilidade, e se o juízo relativo à utilização de produtos e instrumentos na prática dos crimes em causa só pode ser feito pelas autoridades competentes para a respectiva investigação, nada obsta que a autoridade competente para a investigação proceda á cópia dos ficheiros ou elementos que entenda por necessários á investigação, através dos meios informáticos adequados, e seja restituído à recorrente o aludido computador, de forma a que esta possa prosseguir a sua actividade, designadamente elaborar a sua contabilidade, cumprir as suas obrigações quer com a administração fiscal, quer com terceiros.
Com efeito, há que ponderar, por um lado, o prejuízo da recorrente com a impossibilidade de ter acesso à sua contabilidade por se encontrar no computador apreendido, e por outro a possibilidade da prova poder ser obtida através da cópia dos ficheiros que se encontram no computador apreendido, e que mostrem necessários á descoberta da verdade material, a efectuar pelos órgãos de polícia criminal que procedem á investigação.
Na ponderação destes interesses – a prossecução da actividade da sociedade “X.” – e a possibilidade da prova para a descoberta da verdade ser obtida através da cópia dos ficheiros constantes do computador, através dos meios informáticos adequados - não há dúvida que o computador apreendido deve ser devolvido à recorrente.
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4. DECISÃO
Termos em que acordam os Juízes que compõem a 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso, e em consequência revogar o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que ordene a restituição do computador apreendido á recorrente, após a autoridade que procede à investigação proceder á cópia dos ficheiros informáticos que se mostrem relevantes para a investigação, e que se encontrem inseridos no disco rígido do computador, em prazo a fixar pelo Mmº JIC.
Sem tributação.
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Lisboa, 06-03-29
Conceição Gomes
Teresa Féria
Isabel Duarte

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(1).-Manuel da Costa Andrade, in “Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal”, Coimbra, 1992, pág. 278

(2).-Simas Santos e Leal-Henriques, in Código de Processo Penal Anotado, I Vol. 2003, pág. 902

(3).-vide Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. II, Ed. Verbo, 1999, pág. 197