Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
73/16.4PFCSC-A.L1-5
Relator: VIEIRA LAMIM
Descritores: DADOS DE TRÁFEGO
SEGREDO DE TELECOMUNICAÇÕES
TELECOMUNICAÇÕES MÓVEIS
SUSPEITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/03/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I.Os arts.187 a 189, do CPP, regulam o recurso aos dados relativos a conversações ou comunicações telefónicas em tempo real, enquanto o acesso aos dados conservados pelas operadoras por conversações ou comunicações telefónicas passadas é regulado pela Lei nº32/2008, de 17Julho;
II.O suspeito pode não ser determinado, mas tem de ser determinável, o que, em caso de desconhecimento da sua identificação, pressupõe a existência de dados factuais tendentes à sua individualização, não sendo admissível que sejam consideradas suspeitas de determinada acção criminosa, todas as pessoas que se encontrassem em local e tempo compatível com a prática dos factos;
III.Não estando identificado o suspeito, só com a concretização do alvo é possível determinar os dados a transmitir, de modo a evitar devassa intolerável na privacidade de pessoas em relação às quais não existam quaisquer indícios da prática de um crime;
IV.No caso, não identificando o recorrente o suspeito, nem concretizando os alvos geradores dos dados que pretende obter, não pode ordenar-se às operadoras de telecomunicações o fornecimento dos dados produzidos pelos cartões SIM e IMEIS de todas as pessoas que tiveram o seu telefone ligado em determinado tempo e local.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa.


Iº-Relatório.


Iº-1.No processo de inquérito nº73/16.4PFCSC, da Comarca de Lisboa Oeste, Cascais - Inst. Central - ...ª Secção de Inst. Criminal J..., na sequência de requerimento do Ministério Público, o Mmo JIC, por despacho de 24Fev.16, decidiu:
"…

Veio o MP, a fls. 45 e seguintes requerer que sejam oficiadas as operadoras de telemóveis que se identificam para, nos termos do artigo 189°, n.°2 do CPP, remeterem, a seguinte informação:

Listagem — em suporte digital e formato excel — contendo todos os dados de tráfego - registos completos das comunicações efectuadas e recebidas nas BTS (infra identificadas), detalhes das comunicações e eventos de rede (lixo eletrônico) com indicação da hora e com indicação dos números chamados e chamadores incluindo as mensagens de texto, duração e hora das chamadas e localização celular — relativos aos cartões SIM que operaram entre as 19.00h e as 19.35h do dia 26 de janeiro de 2016 quanto as antenas que se identificam, basicamente na zona de Outeiro de Polima e Abóboda.

Nos termos do artigo 189° do CPP, o disposto nos artigos 187° e 188° é correspondentemente aplicável às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telemóvel designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital e à intercepção entre presentes.

De acordo com o n.°2 do mesmo artigo a obtenção e junção dos dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações só podem ser ordenadas ou autorizadas em qualquer fase do processo, por despacho do juiz, quanto a crimes previstos no artigo 187° e em relação às pessoas referidas no n.°4 do mesmo artigo.

As pessoas referidas no artigo 187°, n.°4 do CPP são os suspeitos, arguidos, pessoa que sirva de intermediário, relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de arguido, ou vítima de crime.

No caso dos autos, o MP pretendia que se ordenasse às operadoras o fornecimento de todos os cartões SIM e IMEIS de pessoas (suspeitas ou não) que, entre outras coisas, tivessem o seu telefone ligado numa área que abrangeria vários locais de Outeiro de Polima e Abóboda, em determinado dia e hora.

O que o MP requer não tem fundamento legal e esbarra no artigo 187°, n.°4 do CPP, razão pela qual se indefere, sem mais considerações.
….".

2.-Deste despacho recorre o Ministério Público, motivando o recurso com as seguintes conclusões:

2.1-Visam os presentes autos investigar os factos ocorridos a 26 de Janeiro de 2016, pelas 19h25m, ocorridos no Centro de Inspecções ‘CONTROLAUTO’, sito na Estrada de Polima, n.º 9, em S. Domingos de Rana, área deste município, os quais se mostram susceptíveis de integrar, em abstracto, a prática de crime de roubo agravado, previsto e punido pelo disposto no artigo 210.º, nºs 1 e 2, alínea b) do Código Penal (atento o disposto no artigo 204.º, n.º 1, alínea e), n.º 2, f) e g) do Código Penal), e um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º do Regime Jurídico das armas e suas munições.

2.2-Realizadas diversas diligências foi possível trazer aos autos uma descrição física dos autores (três indivíduos, do sexo masculino: um deles de raça negra ou tez morena – típica de brasileiro, com cerca de 1,70m, com idade compreendida entre 25 e os 30 anos, estatura normal, que vestia roupa escura e que falava português com sotaque brasileiro; os outros dois indivíduos, de raça negra, com cerca de 1,65/1,70m, idade compreendida entre os 20 e os 30 anos, estatura normal, vestindo roupa desportiva), pelo que, perante tal, requereu-se à M.ma Juiz de Instrução que, ao abrigo do disposto nos artigos 10.º e 7.º, nºs 2 e 3 da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, fossem as operadoras de telemóveis oficiadas para que remetessem relação de todos os cartões SIM e respectivos IMEI que tenham estado presentes e activos nas células que se discriminaram (dados de tráfego armazenados), com menção da respectiva localização celular, para o curto período temporal entre as 19h00m e as 19h35m do dia 26 de Janeiro de 2016.

2.3-Na promoção elaborada dá-se conta da GRAVIDADE do crime (artigo 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho) e da INDISPENSABILIDADE da diligência, com menção de que outras não se vislumbravam que pudessem alcançar o duplo objectivo de localização e identificação dos autores dos factos e de que a listagem remetida seria sujeita à respectiva análise, sendo única e exclusivamente junta aos autos a informação pertinente para a investigação.

2.4- Em sede de decisão, a M.ma Juiz de Instrução, invocando os artigos 187.º e 189.º do Código de Processo Penal – sem esclarecer as razões do afastamento do regime constante da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho invocado ou as de aplicação do diploma legal indicado -, indeferiu a diligência requerida, concluindo que ‘o que o MP requer não tem fundamento legal e esbarra no artigo 187.º, n.º 4 do CPP, razão pela qua se indefere, sem mais considerações’, decisão da qual ora se recorre, por se entender que a mesma procedeu a uma errónea apreciação da promoção apresentada e a uma interpretação restritiva do conceito de suspeito, não sopesando, de forma adequada, as necessidades impostas pela eficiência da justiça penal.

2.5-Em primeiro lugar, sempre se dirá que terá de ser atender ao teor da diligência requerida, que mais não é do que uma listagem de números de telemóvel e de IMEI (correspondendo tal à identificação do equipamento utilizado) – uma vez que diferentes cartões podem encontrar-se associados ao mesmo aparelho – que accionaram antenas determinadas, num período temporal restrito, reduzido a trinta e cinco minutos, e da qual não consta qualquer conteúdo das operações realizadas.

2.6-Em segundo lugar, sempre se dirá que, nos termos do disposto nos artigos 125.º e 126.º do Código de Processo Penal apenas são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei, devendo aqui entender-se a constante no artigo 262.º do referido diploma legal e aos princípios de idoneidade, necessidade e proporcionalidade – ‘estas três vertentes são requisitos intrínsecos de toda a medida processual restritiva de direitos fundamentais e exigíveis, tanto no momento da sua previsão pelo legislado, como na sua aplicação prática’ (in Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar e outros, 2014, ALMEDINA). Ora, não sendo prova proibida, aferida a pertinência da diligência e mostrando-se a mesma respeitadora dos princípios indicados, teria de ser a mesma deferida.

2.7-Em terceiro lugar, certo é que a decisão judicial de que ora se recorre não procede à apreciação do requerido, fazendo aplicar as normas previstas no Código Processual Penal, afastando o regime previsto na Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho, o qual é invocado na promoção que a antecede, por se entender que constitui o aplicável à recolha de prova electrónica por localização celular conservada, sem enunciar qualquer fundamento para tal.

2.8-Mais se afirme que dúvidas inexistem quanto à gravidade do ilícito em investigação – o qual constitui, em nosso entender, no crime que maior intranquilidade gera na sociedade, em face do modo aleatório como as vítimas são escolhidas, a indiferença pelas mesmas e pela sua vida e a violência gratuita utilizada na sua consumação – e que a informação que se pretende recolher – listagem de números e IMEI que activaram um número determinado de antenas, num período de apenas 35 minutos (curto, refira-se) -, visando alcançar a dupla finalidade de localização e identificação dos suspeitos, alcançará efeitos úteis, perante a possibilidade de comparação da mesma com a recolhida no âmbito do NUIPC n.º 31/16.9PHOER (factos do mesmo dia, com elevado grau de probabilidade de terem sido praticados pelos mesmos indivíduos, atenta a similitude das descrições físicas dos mesmos e do modus operandi).

2.9-Por último, e parecendo resultar da decisão ora recorrida que a rejeição se funda na falta de identificação cabal de quem é o suspeito, sempre se dirá que, nos termos da definição constante do artigo 1.º, alínea e) do Código de Processo Penal, o mesmo é ‘toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou nele participou ou se prepara para participar’, não se exigindo que o mesmo seja uma pessoa determinada ou identificada, mas apenas que estejamos perante ‘uma pessoa concreta, com determinadas características, ainda que não devidamente apurada a respectiva identidade e sobre a qual existam indícios de que cometeu ou se prepara para cometer um crime’ (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 10 de Julho de 2014, Processo n.º 36/14.4GDEVR-A.E1).

2.10-A noção de suspeito avançada no despacho de que ora se recorre, não tendo correspondência na lei, constitui uma limitação excessiva do normativo, produzindo, no limite, a ineficácia do meio de prova em causa em todos os casos em que o agente do crime não se mostra cabalmente identificado.

2.11-Mais se acrescente que, em todo o caso, os dados obtidos, atenta a forma como solicitados, não violariam a privacidade de qualquer cidadão. Por um lado, porque a listagem remetida apenas conteria uma lista dos números/IMEI que acederam, em determinado dia e hora, a uma determinada antena, sem qualquer informação sobre o conteúdo dessa operação e, por outro lado, porquanto a informação que seria junta aos autos respeitaria única e exclusivamente aos ‘suspeitos’ e ‘intermediários’ (artigo 10.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho), em estrito cumprimento dos princípios constitucionais erigidos nos artigos 26.º, n.º 1, 34.º, n.º 1 e 18.º, nºs 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa.

2.12-O indeferimento da diligência, uma vez que se mostram preenchidos todos os requisitos legais – gravidade e indispensabilidade - e se aferem protegidos os princípios da idoneidade, necessidade e proporcionalidade (além do mais, em face do modo como a informação seria remetida e o conteúdo a verter para os autos) vai contra as próprias finalidades da investigação criminal, nos termos do constante no artigo 262.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

2.13-Pelo que, com o despacho judicial proferido a M.ma Juiz de Instrução violou o disposto no artigo 125.º, 126.º, 262.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, bem como os artigos 10.º e 7.º, nºs2 e 3 da Lei n.º 32/2008, de 17 de Julho e procedeu a uma interpretação restritiva e violadora da definição constante do artigo 1.º, alínea e) do Código de Processo Penal, devendo o mesmo ser revogado e substituído por outro que determine a remessa dos elementos solicitados, nos termos requeridos na promoção que o antecede.
Pelo exposto, deve o presente recurso merecer provimento, revogando-se a decisão judicial recorrida e substituindo-a por outra que determine a remessa aos autos das informações solicitadas nos termos e para os efeitos referidos.

3.O recurso foi admitido a subir imediatamente, em separado e sem efeito suspensivo.

4.Neste Tribunal, a Exma. Srª Procuradora-geral Adjunta, pronunciou-se pelo não provimento do recurso.

5.Após os vistos legais, realizou-se a conferência.

6.O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas conclusões, reconduz-se à questão de saber se existe fundamento para requerer às operadoras de telemóveis os elementos pretendidos pelo Ministério Público (elementos conservados por aquelas operadoras, consistentes em listagem dos dados de tráfego, detalhes das comunicações e eventos de rede, com indicação da hora e com indicação dos números chamados e chamadores incluindo as mensagens de texto, duração e hora das chamadas e localização celular — relativos aos cartões SIM que operaram entre as 19.00h e as 19.35h do dia 26 de janeiro de 2016 quanto as antenas que se identificam, basicamente na zona de Outeiro de Polima e Abóboda).
*     *     *

IIº-1.-Pretendendo o Ministério Público, como acto de investigação destinado a identificar os autores de determinada conduta criminosa, aceder a elementos conservados por operadoras de telemóveis, o Mmo JIC inferiu o requerido apoiando-se nos arts.187 a 189, do CPP.

O nº1, do art.187 citado, delimita o objecto dessa regulação como “a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas”, o que dá a ideia de comunicações a ocorrer, de conversações ou comunicações telefónicas em tempo real.

Não é essa, porém, a pretensão do recorrente, a quem interessam comunicações passadas, que localiza no tempo e no espaço, pretendendo aceder a elementos conservados pelas operadoras.

Em relação à conservação desses dados, importa chamar à colação a Lei nº32/2008, de 17 de Julho, que define o seu objecto no seu art.1 "… regula a conservação e a transmissão dos dados de tráfego e de localização relativos a pessoas singulares e a pessoas colectivas, bem como dos dados conexos necessários para identificar o assinante ou o utilizador registado, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves…", enuncia no seu art.4, as categorias de dados a conservar e no art.6, o período de conservação (um ano a contar da data da conclusão da comunicação).

Entre as categorias de dados a conservar, enunciadas naquele art.4, encontram-se os elementos pretendidos pelo recorrente.

A transmissão desses dados, estabelece o art.9, nº1, só pode ser autorizada, por despacho fundamentado do juiz de instrução, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves.

Conciliando os regimes dos arts.187 a 189, do CPP e da Lei nº32/2008, conclui-se que o primeiro aplica-se aos “dados sobre a localização celular”, obtidos em tempo real e intercepção das comunicações entre presentes, enquanto a Lei nº32/2008 se refere aos dados arquivados por comunicações do passado[1].

Importa ter presente, ainda, a Lei nº109/2009, de 15-09 (Lei do Cibercrime), mas a Lei nº32/08, mantém-se em vigor na parte “arquivística” em relação aos dados contidos no seu artigo 4º, não sendo invocável para o caso aquela, relativa a comunicação electrónica, uma vez que se pretendem dados relativos a comunicação telefónica.

Assim, o regime a aplicar ao caso dos autos é o da Lei nº 32/2008, de 17-07, citado pelo recorrente e não o disposto nos arts.187 a 189, do CPP citados no despacho recorrido, pois, como referimos, não são pretendidos dados em tempo real, mas antes elementos arquivados ao abrigo da citada Lei nº32/08.

O recorrente pretende dados que possam conduzir à identificação dos suspeitos, com referência à localização e tempo em que ocorreram os factos investigados, dados esses que integram as categorias de dados previstas no art.4, da Lei nº32/08.

A transmissão desses dados só pode ser autorizada, por despacho fundamentado do JIC, como prevê o art.9, nº1, daquele Lei "…  se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter no âmbito da investigação, detecção e repressão de crimes graves".

No conceito de "crime grave", deve entender-se como cabendo ilícitos integradores de "Criminalidade violenta", definida na alínea j, do art.1, do CPP, o que abrange o crime de roubo agravado investigado nos autos.

Aceita-se, também, que tendo sido subtraídas coisas de natureza fungível e face aos poucos elementos que as testemunhas forneceram sobre os seus agentes, dado terem actuado com os rostos cobertos, os elementos pretendidos são indispensáveis para a descoberta da verdade.

O nº3, daquele art.9, exige, ainda, que os dados sejam relativos a suspeito ou arguido, que o despacho recorrido não considerou verificado uma vez que o Ministério Público pretende os dados em relação a todas as pessoas, sem identificar suspeitos.

De facto, o que o Ministério Público pretende são elementos em relação a todas as pessoas que operaram aparelhos em certo local e espaço temporal delimitado, para depois, em conjugação com outros elementos de prova disponíveis (do auto de notícia constam referências ao carro usado, sexo, nacionalidade de um deles, cor da pele) chegar à identificação dos agentes.

Suspeito, segundo a definição do art.1, al.e, do CPP, é "toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar".

Essa pessoa pode não ser determinada, mas tem de ser determinável[2], o que pressupõe a existência de dados factuais tendentes à sua individualização e afasta a hipótese de se considerar suficiente a afirmação de que sendo o crime fruto de uma ação ou omissão humana, alguém teve que praticá-lo tornando suspeitos todos os que se encontrassem em local e tempo compatível com a prática dos factos[3].

O recorrente refere que dos autos constam elementos relativos à descrição dos agentes do crime (referências ao carro usado, sexo, nacionalidade de um deles, cor da pele), mas tais elementos não permitem qualquer delimitação dos dados a fornecer pelas operadoras de comunicações, que só poderiam satisfazer a pretensão do recorrente remetendo elementos de todas as pessoas que nas circunstâncias de tempo e lugar em causa tivessem produzido dados.

Não sendo possível uma delimitação subjectiva dos dados, terá de haver uma delimitação objectiva, através da concretização do alvo gerador dos dados pretendido.

No caso concreto, porém, também não se concretiza o alvo relativo aos dados pretendidos, com referência, por exemplo, a um telemóvel concreto relacionado com os factos, antes se pretendendo todos os dados produzidos no espaço de tempo e lugar em causa, o que a ser deferido transformaria em suspeitos todos aqueles que no momento estivessem ou passassem pelo local.

Sendo suspeito a pessoa em relação à qual exista indício (al.e, do citado art.1, CPP), só com a concretização do alvo é possível determinar os dados a transmitir, quando não se conheça a identificação do suspeito.

Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, em relação a situação paralela[4], “a existência de um catálogo de alvos obsta à determinação de escutas telefónicas em processo contra incertos. O legislador pretendeu que a autorização judicial tivesse por referência as conversações mantidas por pessoas concretas, ainda que não seja conhecida a sua identidade civil. São, portanto, inadmissíveis as escutas determinadas a grupos de pessoas cujo único traço comum é o de ocuparem habitualmente ou esporadicamente um determinado espaço físico”.

Não existindo determinação do suspeito, nem do alvo, o que se pretende no caso concreto, como refere o Ac. da Relação de Évora de 18-10-2011 (Proc. nº19/11.6GGEVR-A.E1, Relator
Fernando Ribeiro Cardoso, acessível em www.dgsi.pt), "… não é tanto a autorização para uso de um certo meio de obtenção de prova, mas antes a autorização para que se abra um caminho que possa vir a tornar-se meio de obtenção de prova; pretende-se que se destape uma caixa de Pandora e que dela ressalte o fio que haverá de conduzir a uma pista de investigação e permita dar corpo a um qualquer grau de suspeita, até agora inexistente. Trata-se, manifestamente, de pretensão que, para além de ferir os ditames legais, se apresenta desprovida de razoabilidade, é desproporcionada e inadequada e que a perseguição do crime em investigação não justifica, face à devassa intolerável que o seu deferimento claramente constituiria"[5] [6].

Concluindo:

Os arts.187 a 189, do CPP, regulam o recurso aos dados relativos a conversações ou comunicações telefónicas em tempo real, enquanto o acesso aos dados conservados pelas operadoras por conversações ou comunicações telefónicas passadas é regulado pela Lei nº32/2008, de 17Julho;
O suspeito pode não ser determinado, mas tem de ser determinável, o que, em caso de desconhecimento da sua identificação, pressupõe a existência de dados factuais tendentes à sua individualização, não sendo admissível que sejam consideradas suspeitas de determinada acção criminosa, todas as pessoas que se encontrassem em local e tempo compatível com a prática dos factos;
Não estando identificado o suspeito, só com a concretização do alvo é possível determinar os dados a transmitir, de modo a evitar devassa intolerável na privacidade de pessoas em relação às quais não existam quaisquer indícios da prática de um crime.

No caso, não identificando o recorrente o suspeito, nem concretizando os alvos geradores dos dados que pretende obter, não pode ordenar-se às operadoras de telecomunicações o fornecimento dos dados produzidos pelos cartões SIM e IMEIS de todas as pessoas que tiveram o seu telefone ligado em determinado tempo e local.
*     *     *

IIIº-DECISÃO:

Pelo exposto, os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, acordam em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando a decisão recorrida.
Sem tributação.


Lisboa,03 de Maio de 2016


(Relator: Vieira Lamim)
(Adjunto: Ricardo Cardoso)



[1]Neste sentido, Ac. do Trib. da Relação de Évora de 20-01-2015, Pº648/14.6GCFAR-A.E1, Relator JOÃO GOMES DE SOUSA, acessível em www.dgsi.pt.
[2]Neste sentido, Ac. do Trib. Rel. Évora de 21-05-2013, Relator João Gomes de Sousa, Pº 199/12.3GTSTB, acessível em www.dgsi.pt.
[3]Neste sentido, Ac. do Trib. Rel. Évora de 30-09-2010, Relator António Latas, Pº 49/10.5JAFAR-A.E1, acessível em www.dgsi.pt.
[4]Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 2ª ed., Universidade Católica Editora, pág. 509.
[5]Neste sentido, ainda, Ac. deste Tribunal da Relação de 17-12-2014, Pº nº131/14.0JBLSB-A.L1-9, Relator Carlos Benido, acessível em www.dgsi.pt.
[6]No mesmo sentido, Ac. Rel. Porto de 11Fev.2015, Relator Neto de Moura, Pº2063/14.2JAPRT-A.P1, acessível em www.dgsi.pt, que decidiu "V – O suspeito de um crime não tem de ser completamente identificado ou individualizado bastando que seja pessoa determinável ou identificável. VI – Se os dados de localização celular que se pretendem obter não tem como alvo um suspeito, mas um conjunto de pessoas não identificadas e unidas apenas pelo simples facto de estarem num dado local num dado momento não é admissível a obtenção de dados de localização celular relativos a um número indeterminado de pessoas".