Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
24206/18.7T8LSB.L1-4
Relator: SÉRGIO ALMEIDA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
PROVA PERICIAL
JUNTA MÉDICA
PARECERES COMPLEMENTARES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I - A prova pericial em que se traduzem os exames médicos efectuados no quadro nas acções emergentes de acidente de trabalho, quer de natureza singular, quer de natureza colectiva, está sujeita à livre apreciação do julgador, sem prejuízo do acrescido cuidado requerido atentos os conhecimentos especializados dos peritos.
II – Nos termos do disposto no art.º 145/6 do CPT não há lugar à realização de outras diligências a não ser que se revelem necessárias para a decisão.
(sumário da autoria do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Sinistrado: AA
Responsável civil (adiante designada por R.) e recorrente: Generali Seguros, SA.
Empregadora:  Períciargumento, SA.
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No presente incidente da revisão da capacidade em acção especial emergente de acidente de trabalho, estando em causa a determinação das incapacidades, o Tribunal a quo proferiu afinal sentença em que decidiu
a) Considerar o sinistrado AA afectado por incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH) com incapacidade permanente parcial (IPP) de 18,87% (0,1258x1,5) desde 20-5-2021, alterando a incapacidade anteriormente fixada.
b) Alterar a pensão anual e vitalícia anteriormente fixada ao sinistrado
fixando-a, ponderados os valores remidos, agora em 5 943,52 € (cinco mil, novecentos e quarenta e três euros e cinquenta e dois cêntimos) desde 20-5-2021, valor actualizado para 6 002,96 € (seis e dois euros e noventa e seis cêntimos) a partir de 1-1-2022 e para 6 507,21 € (seis mil, quinhentos e sete euros e vinte e um cêntimos, cêntimos) a partir de 1-1-2023.

c) Condenar Generali Seguros, SA e Periciargumento, SA, na proporção de, respectivamente 80,48% e 19,52%, no pagamento da pensão anual fixada, acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa anual de 4% desde os juros de mora vencidos e vincendos, contabilizados sobre o valor de cada prestação mensal da pensão desde o seu vencimento e até efectivo e integral pagamento.
d) Fixar o valor do subsídio de elevada incapacidade em 4 279,81 € (quatro
mil, duzentos e setenta e nove euros e oitenta e um cêntimos) condenando Generali Seguros, SA no seu pagamento acrescido de juros de mora vencidos e vincendos à taxa anual de 4,00% contabilizados desde 20-5-2021 e até efectivo e integral pagamento.

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Precedendo a sentença o Tribunal proferiu despacho em que menciona designadamente:
“Sendo questão controvertida nos autos a verificação de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH) foi solicitada a elaboração de parecer nos art.º 139º nº 7 do Código de Processo do Trabalho, com vista a esclarecer o descritivo de funções do posto de trabalho inerente à categoria profissional de encarregado de construção (civil) e as exigências físicas e funcionais que a execução da mesma demanda.
Junto tal parecer veio a seguradora consignar a sua não aceitação do referido parecer por desconhecer se o perito que o elaborou é especialista e avaliação do ano, requerendo que seja solicitado parecer ao Centro Nacional de Protecção Contra Riscos Profissionais, o qual reputa de competente, seguindo a realização de junta médica de especialidade de medicina do trabalho.
Opôs-se o sinistrado, considerando que os autos já reúnem todos os elementos para decisão e que o pretendido pela responsável seguradora mais não se afigura que uma diligência dilatória, a qual deve ser indeferida.
(…) A discordância da seguradora fundada no desconhecimento das competências de avaliação do dano do sujeito que elaborou o parecer junto aos autos afigura-se ser irrelevante porquanto o referido parecer não visava que fosse emitida uma pronúncia sobre a incapacidade ou sobre o tipo de incapacidade.
O que se visava no parecer era o descritivo de funções do posto inerente à referida categoria profissional do sinistrado e as exigências físicas e funcionais que a sua execução demanda.
(…)
Por tal, não se vislumbra necessidade de qualquer outro parecer e designadamente da realização de qualquer outra junta médica.”
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Inconformada, a R. Seguradora recorreu, concluindo:
A. Ao rejeitar a prova “parecer do Departamento de Proteção Contra os Riscos Profissionais do Instituto da Segurança Social - DPCRP”, o douto Tribunal violou o disposto nos art.º 410.º, do CPC e 145.º, n.º 6, do CPT.
B. Não sendo a junta médica suficiente para revelar uma IPATH, deve ordenar-se a realização de exames ou pareceres complementares ou requisitar-se pareceres técnicos tidos por úteis, como é o caso do parecer do DPCRP, uma vez que o relatório do IEFP, então solicitado, não visa colmatar essa insuficiência e fixar incapacidade aos sinistrados.
C. Estando-se perante uma questão médica em que se exigem conhecimentos na área da reabilitação/readaptação profissional, o DPCRP está capaz de se pronunciar com o rigor necessário sobre a matéria relacionada com a IPATH.
D. A recusa do parecer do DPCRP viola o direito ao contraditório da Recorrente, quando se admite a produção de um tipo de prova que necessariamente lhe será desfavorável, como sempre é o caso dos relatórios do IEFP, sem lhe dar qualquer oportunidade de sobre ela se pronunciar ou contra produzir prova.
E. Deve, pois, o douto despacho recorrido ser revogado, sendo substituído por outro que admita e ordene a realização daquele parecer.
F. A sentença recorrida viola o art.º 388.º, do CC, quando assenta a decisão respeitante à IPATH num laudo pericial manifestamente insuficiente.
G. Dos autos não constava nenhum elemento que levasse a concluir pela IPATH e a junta médica maioritária nem justifica a sua conclusão.
H. Afigurava-se absolutamente essencial à descoberta da verdade que os senhores peritos esclarecessem o porquê da atribuição da IPATH, considerando a posição do senhor perito da Seguradora.
I. Resta concluir que o douto Tribunal aderiu a uma perícia médica que não traduz um juízo pericial devidamente fundamentado e esclarecedor da situação do Recorrido e que é, assim, nulo, determinando, por consequência, a nulidade da sentença recorrida, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil.
J. Caso assim não se entenda, a verdade é a sentença recorrida sempre deverá ser anulada pelo douto Tribunal ad quem nos termos do artigo 662.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Civil porquanto assenta num relatório pericial manifestamente insuficiente, e que, por isso mesmo, necessita de concretização, devendo ser determinada a realização de nova perícia médica.
K. A decisão do Tribunal viola ainda o artigo 3.º, n.º 3, do CPC, integrando a violação do princípio do contraditório.
L. Com efeito, à Recorrente não foi dada a possibilidade de se pronunciar sobre o relatório do IEFP cujo conteúdo foi dado como integralmente assente pelo douto Tribunal, assim como não teve a possibilidade de sobre ele produzir qualquer contraprova (tanto mais que o parecer do DPCRP foi recusado).
M. Esta inobservância do contraditório, no sentido de não se conceder à Recorrente a possibilidade de se pronunciar sobre a questão a conhecer, na medida em que influi na decisão da causa, pois que incide sobre uma questão de integra a base da decisão, constitui uma nulidade processual, nos termos do artigo 195.º do Código de Processo Civil.
Rematou pedindo que
a) O despacho que rejeita o parecer do DPCRP anulado e substituído por outro que admita e ordene a sua realização; ou, caso assim não se entenda,
b) a sentença recorrida (i) seja anulada nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil ou anulada nos termos do artigo 662.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Civil, determinando-se, neste caso, a realização de nova junta médica, sendo também (ii) anulada em face da violação do princípio do contraditório da Recorrente.
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Respondeu o sinistrado, pedindo a improcedência do recurso, mas sem formular conclusões (não se ignora que o recorrido abriu um capitulo que entendeu intitular “das conclusões”, o qual consiste praticamente na cópia integral das alegações, tanto que redundou na significativa redução de 50 artigos para 45 (e isto para responder a 13 da recorrente!). Como as conclusões são proposições que sintetizam as alegações, é óbvio que este apartado não passa de uma cópia das alegações, e, uma vez que os comandos do art.º 639 do Código de Processo Civil se dirigem ao recorrente e não cominam o recorrido, o que se pode dizer é que se não queria fazer conclusões escusava de ter aberto tal capítulo).
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O DM do MP emitiu parecer.
As partes não responderam ao parecer.
Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
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FUNDAMENTAÇÃO
É sabido que o objeto dos recursos é definido pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, e exceptuando aquelas cuja decisão fique prejudicada pela decisão dada a outras, art.º 635/4, 639/1 e 2, e 663, todos do Código de Processo Civil.
Importa apurar nos autos se
- devia ter sido admitido o parecer do Departamento de Proteção Contra os Riscos Profissionais do Instituto da Segurança Social – DPCRP;
- existe algum vício da sentença resultante da insuficiência do laudo inicial;
- existe nulidade processual por preterição do contraditório.
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São estes os factos dados por assentes nos autos:
1. No dia 29 de Janeiro de 2018, quando AA exercia a actividade de encarregado de construção ao serviço de Periciargumento, SA, caiu de joelhos no chão sofrendo traumatismo do membro inferior esquerdo com fracturada rótula.
2. O sinistrado auferia uma retribuição anual de 13 971,94€.
3. A responsabilidade por acidentes de trabalho encontrava-se transferida para Seguradoras Unidas, SA com referência a retribuição anual de 11 243,94€.
4. As lesões consolidaram em 22-10-2018 com sequelas de sequelas de fractura da rótula com artralgia à marcha e ao esforço, com limitação da mobilidade do joelho com flexão possível até 90º, bem como atrofia da coxa de 4 cm em relação à contralateral.
5. Foi-lhe fixada desde a data a alta uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 16,05% (0,107x1,5) e reconhecido o direito a uma pensão anual remível, cujo capital de remição de 1 569,75€ foi suportado pela seguradora em 80,48% e pela empregadora
em 19,52%.

6. Submetido a nova perícia no âmbito do presente incidente apurou-se que actualmente apresenta agravamento da cinética osteoarticular do joelho esquerdo determinante de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH) com incapacidade permanente parcial (IPP) de 18,87% (0,1258x1,5) desde 20-5-2021.
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De Direito
Do despacho
Insurge-se a recorrente contra o indeferimento da sua pretensão para a solicitação e junção de parecer do Departamento de Proteção Contra Riscos Profissionais do Instituto da Segurança Social (DPCRP), antes da realização da junta médica de medicina do trabalho.
Isto  por não se conformar com o relatório do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) que respeitou ao descritivo das funções que compunham o posto de trabalho do sinistrado, entendendo ser contraditório, e porque a seu ver o IEFP excede por frequentemente os limites do que lhe é solicitado, pronunciando-se também sobre a incapacidade ou não do sinistrado; e mais, estando em causa questão médica que exige conhecimentos na área da reabilitação/readaptação profissional, o DPCRP é capaz de se pronunciar com o rigor necessário sobre a matéria relacionada com a IPATH.
Vejamos.
A ré manifestou-se contra um parecer do IEFP, e é nessa sequência que pretende o outro parecer.
É sabido que o Tribunal aprecia livremente a prova, incluindo, ainda que com as devidas cautelas, a prova pericial.
O que se discute nos autos é a existência ou não de IPATH.
A seguradora entende que não existe prova suficiente de tal.
Isto prende-se com a valoração da prova produzida (e será melhor apreciada adiante).
Neste momento importa saber se se impunha a realização da diligência pretendida ou se o tribunal podia - e porventura até devia -, prolatar imediatamente a sentença.
Desde já cumpre notar que não existe qualquer norma que imponha o deferimento de tal diligência: o art.º 145/6 (e por referência o 139/7) do CPT permite ao juiz que ordene a realização de exames e solicite a elaboração de pareceres complementares ou requisite pareceres técnicos “se o considerar necessário”.
Pressuposto é, pois, a necessidade de tais elementos de prova.
Nos autos foi realizado um exame singular que concluiu pela verificação de IPATH.
E também foi realizada Junta médica que entendeu, por maioria, existir realmente a incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual.
Assim sendo, é óbvio que há elementos nos autos que permitiam decidir.
E não é a realização um parecer técnico do IEFP que desvaloriza ou inutiliza essa prova.
Por outro lado, não se vislumbra nesta sede a pertinência, com carácter de necessidade, da realização de tal parecer.
Deste modo, conclui-se que, tendo o tribunal concluído pela desnecessidade do parecer demandado pela ré, havendo outros elementos nos autos e não impondo a lei a realização deste meio de prova, nada impunha a sua realização e nem obstava à prolação da sentença.
Pelo que improcede o recurso do despacho.
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Do recurso da decisão final
1. Da nulidade processual por violação do contraditório, não tendo a R. possibilidade de se pronunciar sobre o relatório do IEFP
Esta questão é levantada certamente por equívoco: a ré foi notificada do parecer do IEFP em outubro de 2022, conforme consta da notificação de folhas 242. Teve, pois, oportunidade para se pronunciar. E mais, até requereu a realização de parecer da segurança social.
Assim é óbvio que não existe qualquer nulidade de tramitação nem violação do princípio do contraditório (e nem qualquer vício daí resultante que se possa refletir na decisão final).
2. Do vício resultante da insuficiência do laudo
Defende a recorrente a nulidade da sentença nos termos do art.º 615, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil por a seu ver o laudo dos peritos conter um juízo pericial não devidamente fundamentado.
Salvo o devido respeito, a questão é posta de forma confusa. Em primeiro lugar o tribunal a quo não deixou de conhecer nenhuma questão e nada conheceu para além do que lhe cabia, o que exclui liminarmente a nulidade invocada.
E mesmo que se pretenda existir lapso na indicação da alínea e se trate de simples falta de fundamentação (al. b/1/615, CPC), é manifesto que a decisão judicial se encontra fundamentada quer de facto quer de direito, pelo que não padece desse vício.
Poder-se-ia discutir, sim, a existência de erro de julgamento por eventualmente o relatório da Junta não estar fundamentado da melhor forma.
A recorrente parece pretender ir por aí, ao invocar jurisprudência nas alegações de recurso e ao pretender a final a anulação da decisão com vista à realização de nova junta médica.
Mas nem nessa vertente a podemos acompanhar, porquanto na realidade quer o exame singular quer a junta médica são coincidentes. É certo que esta é apenas por maioria, porém a sua fundamentação, conjugada com a do exame singular, que é abundante, e a comunhão de conclusões de ambos, não permitem que se diga que não há elementos suficientes para se poder formar convicção segura. Há elementos que permitem decidir sem tergiversações.
E nem se vislumbra pertinência suficiente noutras diligências para que se discuta com premência a sua realização.
Desta sorte, conclui-se pela inexistência dos vícios imputados à decisão final.
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DECISÃO
Pelo exposto, o Tribunal julga o recurso improcedente e confirma as decisões recorridas.
Custas do recurso pela recorrente.

Lisboa, 06 de março de 2024
Sérgio Almeida
Alves Duarte
Manuela Fialho