Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
16141/17.2T8LSB.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: EXECUÇÃO
INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
DECISÃO SURPRESA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Não constitui decisão surpresa o indeferimento liminar do requerimento executivo, por verificação da excepção dilatória da incompetência material do tribunal, quando a exequente sabia que tal questão se discutia em outras execuções por si propostas, tendo a mesma sido sempre decidida em sede de recurso no mesmo sentido, da verificação da incompetência em razão da matéria dos tribunais judiciais para a tramitação dessas execuções.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Novo Código de Processo Civil)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:
Com data de apresentação de 28/6/2017 Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores intentou execução para pagamento de quantia certa contra N., advogado de profissão, alegando que o executado se encontra obrigatoriamente inscrito na exequente, nos termos do disposto no art.º 29º, nº 1, do D.L. 119/2015 de 29/6, tendo de pagar mensalmente as contribuições a que se referem os art.º 79º e seguintes desse diploma, não o tendo feito, e devendo a quantia indicada de € 13.012,21 a título de contribuições e de juros, conforme certidão de dívida emitida pela direcção da exequente, e que constitui título executivo, nos termos do disposto no art.º 703º, nº 1, al. d) do Novo Código de Processo Civil e do art.º 81º, nº 5, do D.L. 119/2015.
Foi proferido despacho inicial (em 20/12/2017) que indeferiu liminarmente a execução, por verificação da excepção dilatória da incompetência dos tribunais judiciais para apreciar tal tipo de execução, aí se entendendo que tal competência pertence à ordem dos tribunais administrativos e fiscais, atento o disposto no art.º 129º, nº 1, da Lei 62/2013, de 26/8 e no art.º 4º, nº 1, al. o), do ETAF, e que o conhecimento da excepção dilatória em questão é de natureza oficiosa, sendo a mesma insuprível.
A exequente veio (em 18/1/2018) arguir a nulidade do despacho em questão, invocando que o mesmo foi proferido sem que pudesse exercer o direito ao contraditório ou pronunciar‑se sobre a questão conhecida, nos termos do disposto no art.º 3º, nº 3 do Novo Código de Processo Civil.
O tribunal indeferiu (por despacho de 20/2/2018) tal arguição de nulidade, entendendo que se estava perante a apreciação oficiosa de um pressuposto processual, a conhecer em sede de despacho liminar, e com dispensa de audição prévia da exequente, posto que já devia contar com o conhecimento oficioso desse pressuposto processual, até porque já conhecia decisões anteriores do mesmo tribunal, todas no mesmo sentido, e todas confirmadas em sede de recurso.
A exequente recorre deste despacho de indeferimento de arguição de nulidade, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
1º A CPAS arguiu “a nulidade do despacho/sentença proferido”, mas fê-lo com fundamento no disposto art.º 195º, nº 1 do CPC.
2º Uma vez que não foi concedida, à ora recorrente, a possibilidade de se pronunciar, previamente à decisão, sobre a competência do tribunal, ao abrigo do disposto no art.º 3º, nº 3 do CPC.
3º E por isso a nulidade da decisão seria uma mera consequência da nulidade pela omissão de um acto processual essencial, nos termos do disposto no art.º 195º, nº 2 do CPC.
4º Não tendo a ora recorrente sido previamente ouvida sobre a competência do tribunal para tramitar e julgar a presente acção, a decisão que julgou incompetente o tribunal em razão da matéria, tem de ser considerada uma decisão-surpresa.
5º Pois essa questão da decisão-surpresa terá de ser vista em cada um dos processos de per si, como no presente caso.
6º Não sendo admissível a chamada decisão-surpresa, tem a CPAS, previamente à decisão, de ser auscultada sobre a matéria (competência dos tribunais judiciais para cobrança coerciva das contribuições em dívida pelos seus beneficiários).
7º Além disso, o princípio do contraditório visa, também, permitir que a parte possa carrear para os autos os elementos que achar pertinentes por forma a que o tribunal, quando decidir, o faça na posse do máximo de informação possível.
8º Não tendo a CPAS sido ouvida previamente à decisão, foi violado o princípio do contraditório previsto no art.º 3º, nº 3 do CPC.
9º Conforme, aliás, jurisprudência dos Tribunais da Relação de Lisboa, Porto e Coimbra, atrás citada.
10º Nestes termos deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que reconheça à CPAS o direito de se pronunciar sobre a questão da competência dos tribunais judiciais, para dirimir e julgar as execuções intentadas pela CPAS para cobrança das contribuições em dívida pelos beneficiários.
Não há contra-alegação.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Novo Código de Processo Civil, a questão submetida a recurso, delimitada pelas aludidas conclusões, prende‑se unicamente com a violação do disposto no art.º 3º, nº 3, do Novo Código de Processo Civil.
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A materialidade com relevo para o conhecimento do objecto do presente recurso é a que decorre das ocorrências e dinâmica processual expostas no relatório que antecede.
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Decorre do art.º 3º, nº 3, do Novo Código de Processo Civil que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Tendo presente a expressão “salvo caso de manifesta desnecessidade”, há que concluir que o legislador entende que há casos em que não se revela necessária a observância do contraditório, o que retira a tal princípio estruturante do processo civil o seu carácter absoluto, nos termos defendidos pela exequente.
Segundo o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 18/6/2015 (relatado por Bárbara Tavares Teles e disponível em www.dgsi.pt), um dos casos em que não se revela necessária a observância do contraditório, nos termos a que alude o art.º 3º, nº 3, do Novo Código de Processo Civil, respeita às situações de indeferimento liminar. E tal posição mostra-se sustentada pela jurisprudência do STA aí citada, a par da doutrina também aí referida.
Também no acórdão de 27/2/2018 do Tribunal da Relação de Coimbra (relatado por Jorge Arcanjo e disponível em www.dgsi.pt) vem sustentado tal entendimento, bem como nos acórdãos do STJ de 24/2/2015, do Tribunal da Relação do Porto de 4/11/2008, e deste Tribunal da Relação de Lisboa de 27/9/2017 e de 9/11/2017, todos mencionados naquele primeiro.
Tal entendimento está igualmente defendido no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 24/4/2018 (relatado por Luís Filipe Sousa e disponível em www.dgsi.pt), onde a aqui exequente figura como exequente/recorrente (em situação processual em tudo igual à destes autos), aí se concluindo que “à data da instauração da execução, a exequente estava mais do que ciente que a sua tese da competência dos tribunais comuns não era líquida, tanto mais que todos os acórdãos indicados (e anteriores à propositura desta execução) foram em sentido oposto. Ou seja, em termos objetivos e segundo a boa fé, a exequente não podia ignorar – aquando da instauração da execução – que se colocava, com toda a acuidade, a questão da competência material do Juízo de Execução Cível para tramitar a execução. Nessa medida, cabia à exequente aduzir desde logo argumentação no sentido de pugnar pela competência material do tribunal, tratando-se de uma questão jurídica sobre a qual estava mais do que alertada”.
Para além do mais, em 27/4/2017 foi proferido pelo Tribunal de Conflitos acórdão que decidiu julgar competente para uma execução como a que aqui está em causa a ordem dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
Ou seja, em 28/6/2017 (data da apresentação do requerimento executivo), a exequente estava perfeitamente ciente da orientação jurisprudencial dominante relativamente à questão da incompetência dos tribunais judiciais para a tramitação de execução como aquela que intentou.
Pelo que não se pode falar em qualquer surpresa quanto ao conhecimento oficioso dessa questão no despacho liminar, nem quanto ao sentido da decisão tomada.
Por outro lado, tal tratamento jurisprudencial repete-se, face à actuação processual repetida da exequente, disso sendo exemplo os seguintes acórdãos (todos disponíveis em www.dgsi.pt):
· Do Tribunal de Conflitos de 1/2/2018 (proc. 044/17);
· Do Tribunal da Relação de Lisboa de 2/11/2017 (proc. 9354/16.6T8LSB.L1) e de 22/3/2018 (proc. 16976/17.6T8SNT.L1);
· Do Tribunal da Relação de Coimbra de 27/11/2017 (proc. 2077/17.0T8ACB.C1), de 16/1/2018 (proc. 6611/17.8T8CBR.C2) e de 6/3/2018 (proc. 5471/17.3T8CBR.C1);
· Do Tribunal da Relação de Guimarães de 7/12/2017 (proc. 2725/17.9T8VCT.G1),
· Do Tribunal da Relação de Évora de 11/1/2018 (proc. 3303/17.1T8ENT.E1), de 25/1/2018 (proc. 3485/17.2T8ENT.E1), de 8/2/2018 (proc. 5863/17.8T8STB.E1) e de 22/3/2018 (proc. 694/17.8T8BJA.E1);
· Do Tribunal da Relação do Porto de 5/2/2018 (proc. 785/17.5T8OVR.P1 e proc. 17311/17.9T8PRT.P1), de 21/2/2018 (proc. 16878/17.6T8PRT.P1 e proc. 24893/17.3T8PRT.P1) e de 11/4/2018 (proc. 1789/16.0T8MAI.P1).
O que mais reforça a afirmação da desnecessidade de notificação da exequente para se pronunciar sobre a questão da incompetência dos tribunais judiciais para a tramitação de acção executiva destinada à cobrança de contribuições devidas por advogado, na medida em que a mesma tem posição firmada (e sobejamente conhecida) sobre a mesma, bem como relativamente à posição da jurisprudência (manifestamente divergente da sua).
Acresce que é a própria exequente que, na sua alegação, reconhece conhecer previamente a questão da incompetência material dos tribunais judiciais para a tramitação da execução, já que invoca a existência de um parecer em seu poder, emitido pela Autoridade Tributária, em que tal entidade invoca não ter competência para instaurar processos de execução para a cobrança das contribuições devidas à exequente. E se invoca a existência de tal parecer (que se sabe ser datado de 9/11/2015, como está referido nos acórdãos já mencionados), então não constituía qualquer surpresa para a exequente o tratamento jurisprudencial que vem sendo dado à mesma.
Ou seja, não se verifica qualquer nulidade decorrente da violação do preceituado no art.º 3º, nº 3 do Novo Código de Processo Civil, improcedendo as conclusões da alegação de recurso da exequente e não havendo que fazer qualquer censura ao despacho recorrido.
DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso, mantendo-se o despacho recorrido.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 20 de Setembro de 2018

António Moreira

Magda Geraldes

Farinha Alves