Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ANA PAULA GUEDES | ||
Descritores: | VIOLÊNCIA DOMÉSTICA BEM JURÍDICO PROTEGIDO PODER-DEVER PODER PATERNAL | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/25/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
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Sumário: | (da responsabilidade da Relatora) I. No crime de violência doméstica, tutela-se a dignidade humana da vítima, sendo que no âmbito do seu normativo várias são as condutas que cabem no tipo legal, com gravidades distintas, o que deve ser doseado em sede de medida da pena. II. Não atua no âmbito do exercício de um poder/dever de educação o progenitor que exibe uma faca às filhas menores ou que lhes diz que se vai matar por culpa delas, não se encontrando tais condutas abrangidas por qualquer causa de justificação. III. O poder/dever de educar não comporta a adoção de comportamentos agressivos e violentos, nem justifica a adoção de castigos corporais, ou de violência psicológica. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os juízes da 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: A)-Relatório: No âmbito do processo 98/23.3..., do Juízo Central Criminal de Lisboa - Juiz 13, por acórdão datado de ........2025, foi o arguido condenado nos seguintes termos: “ a) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, n.º 1, als. a) e c) e n.ºs 2, al. a) e 4 do Código Penal (na pessoa da vítima BB), na pena de 2 (dois) anos e 11 (onze) meses de prisão. b) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, n.º 1, als. d) e e) e n.º 2, al. a) do Código Penal (na pessoa da vítima CC), na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão. c) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, n.º 1, als. d) e e) e n.º 2, al. a) do Código Penal (na pessoa da vítima DD), na pena de 2 (dois) anos e 3 (meses) meses de prisão. d) Condenar o arguido AA, em cúmulo jurídico, na pena única de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão. e) Suspender a pena de prisão aplicada por igual período de tempo, com regime de prova e com a obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de violência doméstica. f) Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de contactos com BB, estando vedado ao mesmo deslocar-se ao seu local de trabalho ou residência (com execpção das idas necessárias para ir buscar e entregar a filha menor de acordo com o que fique decidido no tocante às responsabilidades parentais), nos termos do art. 152.º, n.º 4, do C.P. e art. 34.º-B, da Lei 112/2009, de 16-09, pelo período de 3 (três) anos”. Inconformado com a decisão veio o arguido interpor recurso do acórdão. Apresenta as seguintes conclusões: “1. Da violação do artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (presunção de inocência) • O tribunal considerou suficiente para destruir a presunção de inocência a palavra isolada das assistentes, sem exigir corroboração por elementos objectivos, presumindo a veracidade das alegações sem aplicar o princípio in dubio pro reo perante as evidentes lacunas probatórias. • A presunção de inocência exige prova inequívoca da culpa, devendo aplicar-se o princípio in dubio pro reo sempre que existam dúvidas objectivas, como as contradições insanáveis entre testemunhos e a ausência absoluta de prova corroborativa. 2. Da violação do artigo 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa (ne bis in idem) • O tribunal considerou possível aplicar cumulativamente a forma agravada do crime contra a mãe (pela presença das menores) e crimes autónomos contra as próprias menores pelos mesmos episódios fácticos. • O artigo 29.º, n.º 5 da CRP determina que "Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime" e proíbe qualquer duplicação punitiva, impondo escolha entre a forma agravada ou crimes autónomos, mas nunca ambos pelos mesmos factos. 3. Da violação do artigo 152.º do Código Penal (tipo legal de violência doméstica) • O tribunal considerou suficientes episódios isolados e conflitos familiares pontuais para integrar o tipo legal, sem exigir o padrão sistemático e doloso de maltrato. • O tipo legal exige conduta reiterada, sistemática e dolosa dirigida especificamente à humilhação ou controlo da vítima, não se verificando com episódios isolados ou tensões familiares normais. 4. Da violação dos artigos 483.º e seguintes do Código Civil (responsabilidade civil) • O tribunal considerou suficientes alegações genéricas de danos psicológicos para arbitrar indemnizações sem qualquer prova da sua existência ou quantificação. • A responsabilidade civil (artigos 483.º, 563.º e seguintes do Código Civil) exige prova efectiva dos danos alegados, não sendo admissível presumir prejuízos sem sustentação probatória e sem demonstrar o nexo de causalidade entre conduta do arguido e danos causados. 5. Da violação do artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (fundamentação) • O tribunal considerou suficiente uma fundamentação genérica sem explicação das razões concretas da credibilização selectiva de testemunhos contraditórios. • A fundamentação deve explicar especificamente como se resolveram as contradições probatórias e os critérios de valoração da prova, conforme prevê o artigo 374.º, n.º 2 do CPP. * O recurso foi admitido por despacho datado de ........2025, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeitos suspensivos. O Ministério Público respondeu ao recurso pugnando pela sua improcedência, concluindo que: “acórdão recorrido, não nos merece qualquer censura, pois bem ajuizou a prova produzida em audiência, fazendo a correcta qualificação dos factos e aplicando correctamente a pena, não se verificando qualquer nulidade, nem a violação dos princípios in dubio pro reo e ne bis in idem”. * Remetidos os autos a este Tribunal A Exm.ª Senhora Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de acompanhar a posição do MP na primeira instância. Colhidos os vistos legais foi o processo submetido à conferência. * Da decisão recorrida (na parte objeto de recurso): “II- Fundamentação de Facto Factos provados Produzida a prova e discutida a causa resultaram provados e não provados os seguintes factos com relevância para a decisão a proferir: 1. O arguido e BB casaram um com o outro em ... de ... de 2002, vínculo dissolvido por divórcio em ... de ... de 2024. 2. O arguido e BB são progenitores comuns de CC e DD, nascidas respectivamente em ... de 2005 e ... de 2011. 3. Em data não apurada, compreendida entre os nascimentos das duas filhas comuns, o arguido, movido por ciúmes, passou a proibir BB de privar com amigos, de comparecer em ocasiões festivas, como jantares, que fossem promovidas pela respetiva entidade patronal, e bem assim de envergar roupas mais reveladoras do respetivo corpo, como saias, exigências que a vítima foi acatando por não querer incorrer na ira do arguido. 4. Ao longo de todo o período compreendido entre data não apurada, situada em ..., e o término da coabitação, ocorrido em ... de ... de 2023, em múltiplas ocasiões, de número não apurado, com frequência pelo menos mensal, no domicílio comum, por vezes na presença das filhas menores comuns, o arguido dirigiu à vítima BB apodos como “burra, estúpida, puta, cabra, vaca, desumilde, desumana”, declarando-lhe ainda que a mesma tinha amantes, que era uma oferecida, péssima esposa e mulher, que nem a conseguia tratar por pessoa, que a mesma vinha abaixo de pessoa e abaixo de animal. 5. Ao longo de todo o período compreendido entre data não apurada de ... e o término da coabitação, em várias ocasiões, de número não apurado, no domicílio comum, quando eram ventiladas pelos órgãos de comunicação social notícias conexas com homicídios de mulheres em contexto de violência doméstica, o arguido declarava, aludindo a tais mulheres, “é bem feito, mereceste, de certeza que andavas com homens do ginásio”, fazendo menção de proferir tais expressões na presença de BB, para que esta das mesmas ficasse bem ciente, bem sabendo e não pudendo ignorar que tais expressões eram idóneas e adequadas a causar-lhe temor e inquietação. 6. Ao longo de todo o período compreendido entre os sete anos e pelo menos os quinze anos de idade de CC, em múltiplas ocasiões, de número não apurado, com a cadência de pelo menos uma vez a cada três semanas, no domicílio comum, a pretexto de mau comportamento da menor em ambiente escolar, o arguido desferiu pancadas com as mãos abertas na cara e braços da CC, com intensidade bastante para lhe causar dores e marcas visíveis nas zonas atingidas, mormente na cara. 7. Nesse contexto, em data não apurada, época em cursava o sétimo ano de escolaridade, quando CC se encontrava no respectivo quarto, o arguido entrou e desferiu pancadas com a mão aberta na cara da vítima, com intensidade bastante para lhe causar dores e marcas visíveis na zona atingida. 8. Em data não apurada, compreendida em ... 2013, ao final da tarde, no domicílio comum, o arguido, fazendo uso de um cinto, desferiu várias pancadas no corpo de CC, com intensidade bastante para lhe causar dores e marcas visíveis nas zonas atingidas, mormente braços, ventre e pernas. 9. Em data não apurada, quando DD tinha cerca de seis anos, no domicílio comum, o arguido desferiu várias pancadas com a mão aberta na cara da mesma, assim lhe causando dores. 10. No dia ... 2022, perto da meia-noite, o arguido, a partir da janela do domicílio comum, sito na ..., propôs-se pôr em voo uma aeronave não tripulada, vulgo “drone”, para filmar o espetáculo de fogo de artifício que seria desencadeado na via pública no âmbito da celebração da passagem de ano. 11. Ao fazer tal drone transpor a janela, o mesmo caiu à via pública. 12. O arguido foi então à via pública, recolheu o drone, regressou a casa e disse a BB que a culpa de tal evento com o drone tinha sido dela. 13. No dia....2023, pelas 15h, o arguido interpelou suas filhas DD e CC, e declarou-lhes: “olha, eu quero-vos dizer que o meu único desejo para este ano é morrer, e quero que saibam que a culpa é vossa, ou que grande parte da culpa é vossa”, não ignorando nem podendo ignorar que tais expressões, verbalizadas daquela forma séria, eram idóneas e adequadas a causar sofrimento e angústia a DD e CC, fazendo-as recear pela vida do arguido, como sucedeu. 14. No dia ... 2023, o arguido, BB e as filhas comuns CC e DD encontravam-se a almoçar, no domicílio comum, sito na .... 15. Findo o almoço, o arguido recolheu da cozinha uma faca com o comprimento de lâmina de cerca de 15/20 cm, comprimento de cabo de cerca de 10cm, largura de lâmina de cerca de 4/5cm, na presença da esposa e filhas, depositou-a na mesa da refeição, nada dizendo. 16. Nesse mesmo dia, pelas 22 horas, o arguido, BB e as filhas comuns CC e DD encontravam-se no domicílio comum já referido. 17. Nessas circunstâncias, o arguido comia cereais com leite e, volvidos alguns instantes, foi à cozinha, daí trazendo a mesma faca referida em 15), pousando-a na mesa. 18. Decorridos alguns instantes, na presença das filhas comuns CC e DD, o arguido agarrou em tal faca, apontando a respetiva lâmina a BB, declarando-lhe: “então agora vamos conversar”, assim lhe pretendo significar que estava na disposição de a vulnerar com tal faca, do que a mesma ficou bem ciente, bem sabendo e não podendo ignorar o arguido que tal conduta, associada a tal verbalização, era idónea e adequada a causar temor e inquietação a sua mulher. 19. Receosa do que o arguido lhe pudesse fazer, BB recolheu o respetivo telemóvel e, com recurso à respetiva câmara, começou a filmar a actuação do arguido, com vista a demovê-lo de adotar acção mais grave. 20. O arguido tentou então arrebatar o telemóvel das mãos de BB, o que esta não permitiu. 21. Acto contínuo, o arguido agarrou numa taça de cereais e projetou o respetivo conteúdo contra a cara de BB, assim a encharcando em leite. 22. O arguido logrou então arrebatar o telemóvel das mãos de BB, projetando-o ao solo, assim o partindo. 23. Volvidos alguns instantes, o arguido desferiu um empurrão em BB, fazendo-a tombar no solo, desta forma causando-lhe dores. 24. Então, quando BB estava ajoelhada no solo, o arguido ajoelhou-se junto a si, colocando a lâmina da faca contra o seu peito, enquanto dizia a sua mulher “mata-me, espeta-me”. 25. Tomada de pânico, BB tentou afastar a lâmina de tal faca do peito do arguido, agarrando-a, assim causando cortes nos seus dedos. 26. Então, a rogo de BB, a menor CC foi ao escritório da habitação, com vista a solicitar auxílio telefónico à Polícia. 27. O arguido foi então no encalço da filha CC, sendo que, já no escritório, tirou os cabos telefónicos da fonte de alimentação, assim impedindo que a menor CC, fazendo uso de um dos dois telefones fixos ali instalados, contactasse a Polícia. 28. De seguida, o arguido deitou mão ao outro telefone, e, na presença da menor CC, partiu-o, não ignorando nem pudendo ignorar que tal conduta era idónea e adequada a causar-lhe temor e inquietação. 29. Volvidos alguns instantes, o arguido declarou a BB que nem a conseguia considerar como pessoa, que não conseguia olhar para ela, que tinha nojo da mesma, apelidando-a de “animal”. 30. Decorridos alguns momentos, o arguido entregou a faca na mão de sua filha CC, e declarou-lhe “mata-me”, não ignorando nem pudendo ignorar que tal verbalização, expressa daquela forma séria, era idónea e adequada a causar sofrimento e angústia a CC, fazendo-a recear pela vida do arguido, como sucedeu. 31. Face à recusa da CC em anuir a tal pedido do arguido, este declarou “então se tu não me vais matar, mato-me eu aqui à vossa frente, para vocês ficarem com isto na vossa consciência”, fazendo menção que as três escutassem tais expressões, bem sabendo que as mesmas eram idóneas e adequadas a causar-lhes sofrimento e angústia. 32. Nessa noite, BB, tendo tirado a aliança de casamento do dedo, deixou de partilhar o leito com o arguido, passando a pernoitar na sala, até ... 2023, data em que a mesma, com as filhas comuns, abandonou o domicílio comum, assim cessando a coabitação com o arguido. 33. Em data não apurada, compreendia entre o dia ... 2023, o arguido, aludindo a BB, manuscreveu num caderno as palavras “aquela porca, aquela cabra, até tirou a aliança e não dormiu na cama”. 34. Ao agir da forma descrita, teve o arguido o propósito conseguido e reiterado de humilhar e maltratar BB, inclusive no domicílio comum e na presença das filhas menores comuns CC e DD, apesar de saber que lhe devia particular respeito e consideração, na qualidade de sua mulher e da de mãe de suas filhas. 35. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito logrado e reiterado de dirigir maus-tratos à vítima CC, sua filha menor, com quem coabitava, bem sabendo que, por força da tenra idade da vítima e da desproporção etária entre ambos, a mesma não tinha qualquer capacidade séria de oferecer oposição à actuação do arguido, circunstância de que se prevaleceu para prosseguir a sua ação criminosa. 36. Nesse âmbito, bem sabia o arguido que, ao actuar da forma descrita contra BB, expunha a menor CC a tais condutas, em que atentava contra pessoa a quem a menor tinha profunda vinculação pessoal e afectiva, e que assim causava-lhe sofrimento e angústia, maltratando-a e turbando o processo de desenvolvimento da sua personalidade, e ainda assim não se coibiu de proceder da forma descrita. 37. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito logrado e reiterado de dirigir maus-tratos a DD, sua filha menor, com quem coabitava, bem sabendo que, por força da tenra idade da vítima e da desproporção etária entre ambos, DD não tinha qualquer capacidade séria de oferecer oposição à actuação do arguido, circunstância de que se prevaleceu para prosseguir a sua ação criminosa. 38. Nesse âmbito, bem sabia o arguido que, ao actuar da forma descrita contra BB, expunha a menor DD a tais condutas, em que atentava contra pessoa a quem a menor tinha profunda vinculação pessoal e afectiva, e que assim causava-lhe sofrimento e angústia, maltratando-a e turbando o processo de desenvolvimento da sua personalidade, e ainda assim não se coibiu de proceder da forma descrita. 39. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem todas as suas condutas proibidas e punidas por lei. 40. BB foi juntamente com as filhas, acolhida em casa dos pais. 41. O arguido causou às demandantes angústia e temor. Dos antecedentes criminais do arguido: 42. O arguido não tem antecedentes criminais. Condições Socioeconómicas 43. O arguido é o mais novo de três irmãos. 44. O arguido e a família residiram em ..., entre ... e ..., referindo o arguido a existência de maus-tratos infligidos pelo pai na mãe e em si. 45. O arguido é licenciado em Economia, desde .... 46. Desde ........2024., que o arguido exerce funções correspondentes à categoria de técnico superior, no departamento de Inovação Social da .... 47. Aufere o vencimento mensal de €1.843,83. 48. Paga a título de prestação de crédito à habitação o valor de €467,76. 49. Refere pagar, ainda, €400,00 euros mensais a título de alimentos às filhas, €95,81 de condomínio, €24,00 de água e €50,00 de luz. 50. Refere frequentar consultas de psiquiatria e psicologia e ser acompanhado em neurologia. 51. Actualmente, o arguido dedica-se à organização de corridas de voluntariado. 52. Nos tempos livres, privilegia o tratamento dos animais domésticos. 53. O arguido apenas comunica com a ofendida via mensagem para agilizar assuntos relacionados com a filha mais nova. 54. Na sequência do divórcio do casal, em 24.05.2024, a menores ficaram à guarda da mãe, tendo sido fixado um regime de convívios da menor em sábados quinzenais, pelo período de três horas. 55. O arguido vai buscar e entregar a filha DD a casa da avó materna. 56. O arguido continua a residir na residência que era do casal. (…) Motivação da decisão de facto Em obediência ao disposto no artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, cumpre indicar as provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal e proceder ao seu exame crítico. Valorou-se, desde logo, as declarações prestadas pelo arguido em sede de audiência e julgamento, bem como as declarações que prestou em sede de primeiro interrogatório judicial, as quais foram dadas por reproduzidas em sede de audiência, retirando-se de ambas que o arguido admite alguma da factualidade descrita na acusação. Assim, em sede de audiência de julgamento, o arguido confirmou que chegou a chamar “vaca” e “desumana” a BB, embora em contexto de discussões do casal e em resposta, referindo, a apropósito, que BB também lhe chamava nomes, nomeadamente “monstro”, “besta”, “merdas” e “fraco como homem”. Mais referiu que, com a deterioração do casamento, este tipo de discussões acontecia com frequência e que, mais para o final do casamento, seguramente pelo menos uma vez por mês e à frente das filhas. No tocante à filha CC, referiu que, em face de episódios de mau comportamento na escola e de uma chamada da escola, um dia chegou a casa e a mãe estava a dar palmadas na filha, tendo perguntado à filha CC a sua versão, sendo que, em face da filha lhe mentir, desferiu-lhe palmadas na cara, ficando esta, possivelmente, com marcas na cara mas das palmadas desferidas por ambos os progenitores. Mais referiu que, durante o 2.º ano escolar da filha CC, quando esta tinha 8 anos, em virtude de escola alertar para maus comportamentos da menor, nomeadamente de mostrar o peito a rapazes, chegou a casa e a mãe estava a sacudi-la, enquanto a menor chorava, tendo perguntado à filha à CC a sua versão, sendo que, em face da filha lhe mentir, bateu-lhe com um cinto, mas de um roupão. No tocante à filha DD, admitiu ter-lhe dado uma palmada, por uma vez, por esta mentir, após ter partido algo na sala e ter tentado colocar a culpa na irmã, não sabendo concretizar a idade da filha à data. Relativamente à passagem de ano de ....2022, confirmou que colocou um “drone” à janela para filmar a rua, tendo este caído. Em relação ao dia ...2023, confirmou que, findo o almoço, foi buscar uma faca à cozinha e pousou-a à mesa da refeição, enquanto estavam presentes as filhas e BB. Acrescentou que a faca era para cortar fruta, o que fazia normalmente para todos, embora não tivesse trazido fruta para a mesa, uma vez que as filhas se ausentaram da mesa por terem coisas da escola para fazer. No tocante às características da faca concretizou que era grande, com uma lâmina com cerca de 15/20 cm de comprimento, cabo com cerca de 10 cm de comprimento e lâmina grossa com cerca de 4/5cm de largura, e que a trouxe para cortar fruta uma vez que era a primeira faca da fila e que as restantes facas estavam sujas. No mesmo dia, pela hora do jantar, admitiu que trouxe a mesma faca e pousou-a em cima da mesa e quando ia perguntar às filhas e à mulher se queriam que cortasse fruta, embora não tivesse trazido fruta para a mesa, é interrompido pela mulher que lhe diz para esperar, vai buscar o seu telemóvel e começa a filmá-lo apontando o telemóvel para a sua cara e dizendo-lhe: “diz lá então”. Relata que, nesse momento, magoado e com o objectivo de a fazer parar de filmar, na tentativa de lhe tirar o telemóvel, a mulher, ao fazer o movimento de querer agarrar o telemóvel que estava na sua mão ao mesmo tempo que estava também a segurar a taça de cereais, derramou a referida taça que estava a comer sobre si própria. Acrescentou que nem sequer chegou a pegar no telemóvel, o qual caiu ao chão. Mais disse que as filhas assistiram a esta situação e que ambas as filhas foram para o interior do escritório, apercebendo-se, quando para lá se dirigiu, que a filha CC tinha tirado a faca de cima da mesa e levado para o escritório. No escritório relatou ter referido às filhas: “eu não valho nada, o que é que eu cá estou a fazer”, embora não com intenção de lhes dizer que se matava. Nesse momento a filha CC referiu-lhe saber que o pai não era capaz de ir buscar a faca para fazer mal a elas e à mãe. Acrescentou que, nesse dia, a sua mulher deixou de dormir na cama de casal e passou a dormir na sala, tendo saído de casa com as filhas do casal no dia ...2023. Mais referiu que tinha um diário, onde escreveu “coisas horríveis”, admitindo como possível ter escrito o que se encontra descrito na acusação. No mais, negou os restantes factos constantes da acusação, referindo que a relação com as filhas era boa e positiva, que, neste momento, não tem contacto com BB e tem uma boa relação com a filha DD, mas não tem estado com a filha CC, a qual foi aos dois primeiros encontros consigo e não voltou a aparecer. Por outro lado, em sede de primeiro interrogatório judicial, o arguido admitiu ter chamado “puta” à sua mulher, em contexto de discussões, as quais ocorreram quase desde sempre durante o seu casamento. Mais concretizou que uma dessas discussões foi sobre roupa interior usada por BB, mas que este dizia à mulher para se vestir à vontade, como “uma forma de amor”. A par disso, o Tribunal valorou as declarações para memória futura prestadas por BB, CC e DD, a fls. 199 e 207 e transcritas a fls. 287 a 482, nas quais, de forma espontânea e fluente, as mesmas descrevem os factos dados como provados- descrição que, para além das discrepâncias normais, atenta a distância entre as declarações e os factos e a idade de CC e DD à data dos mesmos, se mostra coerente e credível. De facto, as declarações de BB, CC e DD não se mostraram destituídas nem de lógica, nem de verosimilhança, nem denotaram qualquer contradição insanável que permitisse a conclusão legítima, razoável e objectivável no sentido que os factos não podiam ter sucedido do modo como as mesmas os narraram, na verdade, afiguraram-se os seus relatos naturais, logrando, por isso, convencer o Tribunal. Na verdade, todas elas descrevem, de forma segura, o que presenciaram, descrevendo toda a actuação do arguido. Concretizando, BB descreve as actuações do arguido de a proibir de estar com amigos, ir a jantares da empresa onde trabalhava, vestir saias, implicar com a roupa interior que usava, chamar-lhe “puta”, “burra”, “estúpida”, “não humilde”. A par disso, BB situou no tempo vários episódios, nomeadamente referindo que com o nascimento da filha CC, os ciúmes do marido/arguido se estenderam dos homens para a filha, sendo que, com o nascimento da filha DD, a relação deteriorou-se, e que a partir de 2014, as discussões do casal passaram a ocorrer, muitas vezes, em frente às filhas do casal. Mais se diga que BB descreve várias situações em concreto, como a reacção do arguido quando passavam notícias sobre vítimas mortais de violência doméstica, concretizando aquilo que lhe era dito, a situação passada na passagem do Ano 2022/2023, a situação ocorrida em ....2023, fazendo uma descrição pormenorizada das actuações de todos os presentes, bem como descrevendo as actuações do arguido para com as filhas CC e DD, mais uma vez concretizando os episódios e o respectivo contexto dos acontecimentos. Por outro lado, CC também descreveu o relacionamento entre os pais e entre o pai e a sua pessoa, concretizando que o pai obrigou mãe e filhas a afastarem-se dos avós maternos, que lhe batia, bem como os factos ocorridos na passagem de Ano de 2022 para o ano de 2023, a situação ocorrida em ...2023, incluindo a descrição pormenorizada das actuações de todos os presentes. A par disso, CC situou no tempo vários episódios, nomeadamente que há cerca de quatro anos (tendo em conta a data das declarações para memória futura), o pai obrigou-as a afastarem-se da família paterna e que em ..., obrigou-as a afastarem-se dos avós maternos. Mais situou no tempo algumas das agressões de que foi vítima (quando se encontrava no 2.º ano e no 7.º ano), relatando que o pai lhe batia pelo menos uma vez de três em três semanas derivado a mau comportamento na escola, em relação ao episódio do “drone”, referiu que o mesmo aconteceu no dia seguinte (logo ........2023), cerca das 15 h da tarde (daí a alteração não substancial de factos). De outra banda, DD também descreveu o relacionamento entre os pais, entre o pai e a sua irmã e entre o pai e a mesma, referindo que, embora o pai consigo fosse “menos físico” do que com a irmã CC, também lhe bateu algumas vezes com a mão na cara, bem como os factos ocorridos na passagem de Ano de 2022/2023, e ocorridos em ....2023, com a descrição das actuações de todos os presentes. A par disso, CC situou no tempo que, quando tinha cerca de seis anos de idade e estava na sala da habitação, o pai lhe deu várias estaladas por esta ter partido a tampa de uma caixa. Referiu, ainda, que as discussões entre o pai e a mãe eram quase “semana sim, semana não”, mais concretizando os nomes que ouvia o pai apelidar a mãe (desumilde e desumana). Temos, pois, que as declarações prestadas por BB, CC e DD são escorreitas, coerentes entre si e retiram qualquer credibilidade à versão do arguido, o qual, inclusive, chega a sugerir que BB mente e que na situação ocorrida em ...2023, esta lhe terá dito que já tinha o que precisava para ir à polícia (versão não corroborada por qualquer meio de prova). Note-se que, além de as declarações de todas as assistentes se complementarem, ambas as filhas do casal corroboram a versão da mãe, relatando os episódios, na sua quase totalidade, como foram relatados por BB e com a descrição de detalhes, nomeadamente, as palavras ditas, as circunstâncias onde estavam todos os intervenientes, o que estavam a fazer e a dizer, apresentando um discurso fluído e coerente e que o Tribunal entendeu, da audição atenta que fez das declarações para memória futura, totalmente espontâneo e sem menor aparência de discurso construído e combinado, o que de resto, tendo em conta a idade das menores, os episódios em causa e os detalhes relatados, se mostra muito pouco provável de ser conseguido. Mais se diga que não se tratam de situações estranhas ao arguido, idealizadas apenas pelas assistentes, uma vez que o próprio arguido admite que as situações ocorreram embora com contornos distintos daqueles que vêm narrados na acusação. Assim, no episódio da Passagem de Ano descrito pelas assistentes, o arguido corrobora muitos dos acontecimentos narrados (existência do “drone”, tentativa de o lançar pela janela, queda do mesmo); no episódio de ...2023 descrito pelas assistentes, o arguido, igualmente corrobora muitos dos acontecimentos narrados (o trazer a faca para a mesa, o telemóvel se ter partido, o conteúdo da taça de cereais de BB ter caído sobre a mesma, a CC ter apanhado a faca, as filhas terem ido para o escritório); na situação do bater com o cinto, o arguido admite que bateu na filha (referindo, todavia que era o cinto de um roupão); na situação em que a assistente DD refere que levou bofetadas por ter partido a tampa de uma caixa na sala, o arguido admite que, numa ocasião, lhe deu apenas uma bofetada, em razão de esta ter partido algo na sala e ter tentado colocar as culpas na irmã. Claramente não estamos perante episódios fantasiados e criados pelas assistentes, mas diante de episódios que ocorrerem e cuja versão das assistentes é corroborada pelos relatos de todas que se complementam, em detrimento dos relatos do arguido, que além de contrários aos relatos dos demais membros do agregado familiar, se mostraram destituídos de lógica, de verosimilhança e denotaram contradições, fazendo também claudicar a respectiva versões dos factos. Damos por exemplo as seguintes situações: - na situação em que o arguido admite ter batido com um cinto na sua filha CC, após a mãe estar a abanar a menor, além de a versão da mãe e da menor ser contrária à do arguido, não se vislumbra como bater com um cinto de um roupão se mostra apto, pela sua composição (tecido leve), a castigar a menor. Acresce que o arguido referiu que foi a primeira vez que bateu na menor, quando antes já havia dito que lhe havia batido com palmadas, o que indica que terá sido a primeira vez e única que bateu na menor com um cinto, não se mostrando lógico o seu discurso, pois que se naquela situação lhe bateu com o cinto de um roupão que nem sequer é apto a magoar, não se vislumbra razão para o arguido se recordar de tal momento como a primeira vez que bateu na filha. Já seria plausível se o cinto fosse um cinto normal, de couro ou outro material duro e idóneo a provocar dor e marcas nas pernas e barriga, como relatado pela filha CC. - nas situações de proibição de vestir determinado tipo de roupa, embora o arguido tenha referido que a sua mulher podia vestir o que quisesse, tal, além de desmentido por BB é também desmentido pela filha do casal – CC, a qual que referiu, expressamente, que além do pai não deixar a mãe vestir saias, tops, vestidos, calças justas e cuecas estreitas, também não a deixava (a ela filha) vestir o mesmo tipo de roupa. Para além disso, é o próprio arguido que refere que chegou a discutir com BB por causa da roupa interior desta, o que foge às regras da normalidade de uma relação de casal saudável, afirmando também que deixava BB vestir-se como quisesse como um “acto de amor” – declaração que também se mostra contrária à lógica e à normalidade, denotando a importância que o arguido dava ao vestuário da mulher. - na situação de ....2023, o arguido admite que trouxe uma faca para a mesa mas para cortar fruta, não se mostrando, desde logo, lógico que tenha trazido uma faca para a mesa, por duas ocasiões (almoço e jantar) e, nas duas ocasiões, nunca tenha trazido a fruta que pretendia cortar. Por outro lado, não se mostra curial que tenha trazido para a mesa uma faca para cortar fruta com as dimensões pelo mesmo indicadas: com uma lâmina com cerca de 15/20 cm de comprimento, cabo com cerca de 10 cm de comprimento e lâmina grossa com cerca de 4/5cm, bem como não se mostra plausível, sequer, a justificação dada pelo arguido ou seja que trouxe uma faca apta a cortar carne para cortar fruta porque era a primeira faca da fila e que as restantes facas estavam sujas. Igualmente, admitindo o arguido que a filha CC tirou a faca de cima da mesa e a levou para o escritório, o comportamento da menor denota claramente que a mesma se sentiu receosa que o pai usasse a faca, bem como que esta não entendeu o gesto do pai direcionado para a intenção de apenas cortar fruta – comportamento que, de resto, corrobora a versão da acusação. Diga-se, ainda, que a versão do arguido segundo a qual, no escritório, disse às filhas: “eu não valho nada, o que é que eu cá estou a fazer”, tendo a filha CC respondido saber que o pai não era capaz de ir buscar a faca para fazer mal a elas e à mãe, também não se mostra curial com a versão do arguido de que o gesto de ter ido buscar a faca não foi para intimidar a família, pois se as coisas se tivessem passado como este as relata, não faria qualquer sentido a filha CC ter respondido como respondeu. Por outro lado, não se mostra também lógico que tenha sido BB a derramar sobre si a taça de cereais, pois se estava a filmar o arguido e, claramente, resulta das declarações das assistentes que o fez para se proteger, não é curial que estivesse com a taça dos cereais ao mesmo tempo na mão, sendo a versão do arguido também nesta parte, além de contrariada pela versão das assistentes, muito pouco plausível. A par disso, o discurso de BB, CC e DD mostra-se também emotivo e sofrido, sendo que as menores, inclusive, descrevem a postura que adoptaram para se defender psicologicamente do arguido, referindo CC que, a determinada altura, começou a dizer ao arguido o que este queria ouvir (nomeadamente que o preferia a ele à família materna) para não criar discussões, referindo, por outro lado a menor DD que a mesma tenta esquecer o que se passou e que tinha muito cuidado com o que dizia ao pai, para este não se descontrolar – falando, assim, ambas as filhas das estratégias que criaram para lidar com a personalidade do pai. Por outro lado, BB relata estratégias semelhantes, referindo, por exemplo que deixou de contrariar o arguido para evitar discussões. Assim, o discurso de BB, CC e DD não se limita a ser um discurso de relato de factos coincidentes entre as três, mas também um discurso em que descrevem os seus sentimentos em relação aos factos e à figura do marido/progenitor – comportamentos, ademais, adpotados, normalmente pelas vítimas de violência doméstica, como, de resto é do conhecimento funcional do Tribunal. A par disso, o Tribunal valorou, ainda, o relato de algumas testemunhas que corroboram as declarações prestadas pelas assistentes. - EE, professora de Ciências de CC, na ..., do 7.º ano ao 9.º ano, a qual relatou que um dia a CC chegou à escola, apresentado uma nódoa negra na parte lateral da cara em toda a sua extensão, a qual não se assemelhava a uma nódoa provocada por uma queda. Mais relatou que a menor lhe confidenciou que o responsável tinha sido o pai e que era uma situação que ocorria de forma frequente, ficando com marcas, embora em locais não visíveis do seu corpo. Mais descreveu a menor como uma “miúda triste” e uma aluna com bom comportamento, quieta, tranquila, meiga e carente. - FF, colega de trabalho da BB há 14 anos, a qual relatou o que esta lhe confidenciava, nomeadamente que o marido não a deixava conviver com colegas ou usar saias e decotes. Mais mencionou que BB começou por frequentar os jantares da empresa, mas deixou de o fazer, relatando à amiga que era para evitar problemas em casa. - GG, mãe de BB, a qual relatou que, durante muito tempo não se apercebeu do que se passava, a não ser por as netas lhe dizerem que o que se passava em casa não podia ser dito fora de casa. Mais relatou que no final do ano de 2022, houve um corte familiar e que a neta DD contou-lhe que o pai teria dito que tinha que escolher entre o pai e os avós. Mais referiu que a DD se mostrava nervosa, tensa, introvertida, infeliz e que a CC andava muito nervosa, triste e não dormia - HH, prima de BB, relatou que, embora não tivesse privado muito com o casal, quando tal ocorreu notava a BB com uma postura triste, de medo, apreensão e nervosismo, relatando, ainda, que a prima olhava para o marido antes de responder. - II, pai de BB, o qual relatou que a filha e as netas lhe disseram que o pai as tinha proibido de contactar com os avós e que a filha veio ter consigo e disse que precisava de ajuda para sair de casa. - JJ, amiga do casal com uma convivência de vinte e um anos, a qual relatou que, em encontros esporádicos e ao longo dos anos, se percebeu que algo estranho se passava, uma vez que a CC olhava com medo para o pai a pedir permissão (ao contrário da sua filha que andava a brincar). - KK, irmã de BB, a qual relatou que a irmã mudou após o nascimento da filha DD, ficando mais calada reservada e passando a usar calças, e roupas escuras e “fechadas”. Ora, estes depoimentos corroboram as declarações prestadas pelas assistentes, designadamente o depoimento da professora da CC que visualizou directamente lesões na menor, o que corrobora de forma muito forte as declarações de CC quando relata as agressões infligidas pelo progenitor. Por outro lado, os relatos das confidências e estado de espírito das assistentes ao longo da vida em comum com o arguido também corroboram a versão das mesmas, afastando, desde logo, a tese defendida pelo arguido de que a situação criada em ....2023, visava a ofendida apresentar queixa contra o arguido, sendo incompreensível também a razão de o fazer, já que resulta, inclusive das declarações do arguido e da assistente que foi este que ficou a viver na casa do casal, tendo a assistente se mudado para casa do pai. Refira-se, ainda, que estas testemunhas são pessoas que tinham contacto com a família, convivendo em determinada parte do casamento do casal com a família constituída. A par da prova já referida, o Tribunal valorou, ainda, os seguintes elementos: - assentos de nascimento de fls. 78, 82, 518-519, para prova dos factos constantes nos pontos 1) e 2); - relatório médico-legal de fls. 246-247, apenas quanto à existência de cicatriz no 1.º dedo da mão de BB com 1 cm de comprimento e compatível com a versão apresentada pela mesma de que se cortou ao tentar desviar a faca que o arguido tinha nas mãos, no ia ....2023. Por outro lado, o depoimento das testemunhas apresentadas pelo arguido demonstrou a virtualidade de abalar a prova que foi feita e acima explicitada. Concretizando. - LL, amigo do arguido, há cerca de 22 anos, o qual descreveu uma relação cordial do arguido para com as filhas e mulher. Mais descreveu o arguido como um homem que saia do trabalho com o foco de estar com a família e que, durante o casamento, nunca lhe relatou problemas entre o casal, reagindo com tristeza ao fim do casamento. Todavia, diga-se que esta testemunha concretizou que apenas esteve duas ou três vezes com o casal e as filhas, uma ocasião em um centro comercial e noutra em uma festa de aniversário de 4/5 anos de DD, onde viu a menor a brincar e a rir-se com o pai. - MM, amiga do arguido e colega de trabalho do mesmo desde ...1...-2013, a qual relatou o arguido como um pai de família, pela forma como falava da mulher e da filha, não o tendo como uma pessoa autoritária. Todavia, diga-se que esta testemunha concretizou que nunca foi a casa do casal, não conhece BB e que tinha conversas com o arguido sobre a vida privada, mas nado íntimo. Mais referiu que não falava com o arguido há cerca de um ano e sentiu-o triste pelo divórcio. - NN, colega de trabalho do arguido, a qual relatou que o arguido não privava muito com os colegas em razão de querer estar sempre em casa e que nunca o ouviu falar mal das filhas e da mulher, relatando-lhe este que se sentia incompreendido. Todavia, diga-se que esta testemunha concretizou que não privou com a esposa e filhas, tendo tido apenas a oportunidade de as conhecer numa altura em que o arguido tentava comunicar e não conseguia e queria que a mensagem chegasse por alguém de fora, tendo acontecido um encontro com a família em ...2.../2023, altura em que marcaram um lanche – versão, todavia, contraditada por BB e DD, referindo esta última, inclusive que, sendo dia do seu aniversário, se negou a ir a tal lanche, o qual não ocorreu. - OO, amigo e colega de trabalho do arguido e que o descreveu como pessoa atenciosa e disponível para a família, pela forma como ele falava ao telefone, de forma doce e delicada. Todavia, diga-se que esta testemunha concretizou que nunca conheceu BB. Relatou, ainda, que o arguido, após o divórcio, mostrava desgosto e tristeza por estar sem a mulher e as filhas e chorava. - PP, ... no local de trabalho do arguido e sua amiga, e que o descreveu como pessoa educada, sensível, não agressivo ou intolerante, e relatou que o arguido levava refeições do refeitório para casa. Mais relatou que, após o divórcio, o arguido chorou e disse-lhe que tinha problemas em casa, com as filhas, sendo que antes de tal, o arguido era alegre e bem-disposto. Todavia, diga-se que esta testemunha concretizou que nunca conheceu BB. Ora, os depoimentos das referidas testemunhas não são de molde a descredibilizar a prova já produzida. Na verdade, estamos perante testemunhas, na sua maioria, colegas de trabalho do arguido e sem convívio com BB e as filhas. Ora, essa falta de convívio não permite assegurar que tais testemunhas tinham conhecimento da dinâmica familiar e que a mesma era diversa daquela que é descrita pelas ofendidas. Aliás, muitas das testemunhas nem sequer conhecem BB e as filhas do casal. De resto, é de notar que, neste tipo de criminalidade, como a dos autos, as declarações das vítimas merecem uma ponderada valorização, uma vez que os maus tratos físicos ou psíquicos infligidos ocorrem normalmente sem testemunhas, acrescendo a tudo isso o generalizado pudor que terceiros têm de se imiscuir na vida privada de um casal. Tal como é referido no Acórdão da Relação de Lisboa de 22/11/2017, Relator Desembargadora Conceição Gomes, “Nos crimes de violência doméstica, muitas vezes, o único elemento de prova existente resume-se às declarações da própria ofendida, e de alguns elementos instrumentais, que conjugados entre si e com as regras da experiência comum, permitem formar a convicção sobre a verdade dos factos para além da dúvida razoável.”. Por sua vez, os factos provados atinentes ao elemento subjectivo resultam desde logo das presunções ligadas ao princípio da normalidade e das regras gerais de experiência. Atento o exposto, ponderando a globalidade da matéria provada nos presentes autos, entendemos que existem factos materiais comuns e objectivos que permitem apreender com relativa clareza que o arguido agiu com o propósito concretizado de humilhar e maltratar BB, inclusive no domicílio comum e na presença das filhas menores comuns CC e DD, apesar de saber que lhe devia particular respeito e consideração, na qualidade de sua mulher e da de mãe de suas filhas, bem como que agiu com o propósito logrado e reiterado de dirigir maus-tratos à vítima CC e DD, suas filhas menores, com quem coabitava, bem sabendo que, por força da tenra idade das vítimas e da desproporção etária entre ambos, as mesmas não tinham qualquer capacidade séria de oferecer oposição à actuação do arguido e, sabendo, também que ao actuar da forma descrita contra BB, expunha as menores CC e DD a tais condutas, em que atentava contra pessoa a quem as menores tinham vinculação pessoal e afectiva, e que assim lhes causava sofrimento e angústia, maltratando-as e turbando o processo de desenvolvimento das suas personalidades, e ainda assim não se coibiu de proceder da forma descrita. Quanto à ausência de antecedentes criminais do arguido decorrem do CRC do mesmo junto aos autos. No tocante às suas condições socioeconómica decorrem do relatório social junto aos autos e declarações do arguido. (…) III -Fundamentação de Direito Enquadramento Jurídico-Penal dos factos Ao arguido é imputada a prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, n.º 1, alíneas a) e c) e n.ºs 2, al. a) e 4 do Código Penal (na pessoa da vítima BB); um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, n.º 1, alíneas d) e e) e n.º 2, al. a) do Código Penal (na pessoa da vítima CC) e um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º, n.º 1, alíneas d) e e) e n.º 2, al. a) do Código Penal (na pessoa da vítima DD). Dispõe o artigo 152°, n.º 1, do Código Penal que: “1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”. Sendo a pena agravada nos termos do n.º 2, al. a) do referido preceito, caso o agente pratique o facto na presença de menor, no domicílio comum ou domicílio da vítima. Este tipo legal visa, acima de tudo, proteger a dignidade humana, tutelando, não só, a integridade física da pessoa individual, mas também a integridade psíquica, protegendo a saúde do agente passivo, tomada no seu sentido mais amplo de ambiente propício a um salutar e digno modo de vida. Na génese da incriminação da conduta supra descrita, está, assim, não tanto uma preocupação de preservação da comunidade, familiar ou conjugal, mas sim, e decisivamente, de tutela da pessoa humana na sua irrenunciável dimensão de liberdade e dignidade. Daí que, directamente abrangida pelo âmbito da protecção dispensada se encontre, mais do que a integridade física propriamente dita, a saúde de cada pessoa em si mesma e enquanto tal, abrangendo o bem-estar físico, psíquico e mental do indivíduo, enquanto elemento essencial e indispensável à "mais livre realização possível da personalidade de cada homem na comunidade". A evolução legislativa do tipo legal em apreço revela, antes de mais, que o legislador tomou consciência da necessidade de intervir, eficazmente, em determinadas situações que, frequentemente, ocorrem no seio das relações humanas e sociais mais próximas. Esta mais valia axiológica inerente ao bem jurídico tutelado explica, de resto, que a respectiva relevância penal encontre, desde logo, referência expressa na ordem constitucional dos direitos e deveres fundamentais. Com efeito, nos termos do artigo 26.° da Constituição da República Portuguesa a todos os cidadãos é reconhecido o direito à respectiva integridade pessoal, tanto num plano físico como numa dimensão moral. Trata-se da tutela constitucional de um direito organicamente ligado à defesa da pessoa individualmente considerada, cuja proclamação faz resultar para cada um de nós a legítima expectativa de, ao conformar-se e dispor de si mesmo nas múltiplas formas de interacção social, não vir a ser agredido ou ofendido, no corpo ou no espírito, por meios físicos ou morais (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, anotada, pág. 177). E é a evidência do que ficou dito, por demais sublinhada no contexto das sociedades modernas, que converte em objecto de consensual reprovação quaisquer actos, omissões ou condutas que sirvam para infligir sofrimentos físicos, sexuais ou mentais, directa ou indirectamente, por meio de castigos corporais, privações de liberdade, ofensas sexuais, tendo por objectivo e como efeito intimidar, punir, humilhar ou simplesmente manter a vítima nos papéis estereotipados ligados ao seu sexo, ou recusar-lhe a dignidade humana, a autonomia sexual, a integridade física, mental ou moral ou abalar a sua segurança pessoal, o seu amor-próprio ou a sua personalidade, ou diminuir as suas capacidades físicas ou intelectuais. A conduta do agente manifesta-se no emprego de maus tratos físicos (ofensas corporais simples) ou psíquicos (humilhações, provocações, molestações, etc.). Não obstante a possível existência de uma zona de incidência comum, o crime de violência doméstica distingue-se, com autonomia, dos crimes de ofensas à integridade física, ameaça e de injúria, em qualquer uma das diversas tipificações consagradas na lei penal, pois o crime de violência doméstica é, desde logo, um crime específico, no sentido em que só pode ser levado a cabo por pessoa que se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo. No que toca ao elemento subjectivo do tipo legal de crime, importa salientar que se trata de um delito doloso, uma vez que se exige que o agente tenha actuado com dolo, enquanto elemento subjectivo geral da ilicitude (conhecimento da factualidade típica e da vontade de realização do tipo legal de crime), em qualquer das suas formas (directo, necessário ou eventual), em conformidade com o disposto no art. 14.° do Cód. Penal. Assim, analisado o tipo legal convocado, verifica-se que as condutas do arguido, indubitavelmente, preenchem o seu elemento objectivo, pois que nelas se surpreendem uma série de actuações, ofensivas da integridade psíquica da ofendida BB, mãe das suas filhas, e ofensivas da integridade psíquica e física das ofendidas CC e DD, suas filhas. Senão, vejamos. No tocante à ofendida BB resultou provado que o arguido, enquanto vivia com esta no domicílio comum, levou a cabo as seguintes actuações sobre a mesma: »Em data não apurada, compreendida entre os nascimentos das duas filhas comuns, o arguido, passou a proibir BB de privar com amigos, de comparecer em ocasiões festivas, como jantares, que fossem promovidas pela respetiva entidade patronal, e bem assim de envergar roupas mais reveladoras do respetivo corpo, como saias, exigências que a vítima foi acatando por não querer incorrer na ira do arguido. » Ao longo de todo o período compreendido entre data não apurada, situada em ..., e o término da coabitação, ocorrido em ... de ... de 2023, em múltiplas ocasiões, de número não apurado, com frequência pelo menos mensal, no domicílio comum, por vezes na presença das filhas menores comuns, o arguido dirigiu à vítima BB expressões como “burra, estúpida, puta, cabra, vaca, desumilde, desumana”, declarando-lhe ainda que a mesma tinha amantes, que era uma oferecida, péssima esposa e mulher, que nem a conseguia tratar por pessoa, que a mesma vinha abaixo de pessoa e abaixo de animal. » Ao longo de todo o período compreendido entre data não apurada de ... e o término da coabitação, em várias ocasiões, de número não apurado, no domicílio comum, quando eram ventiladas pelos órgãos de comunicação social notícias conexas com homicídios de mulheres em contexto de violência doméstica, o arguido declarava, aludindo a tais mulheres, “é bem feito, mereceste, de certeza que andavas com homens do ginásio”, fazendo menção de proferir tais expressões na presença de BB. » No dia ... de ... de 2023, findo o almoço, o arguido recolheu da cozinha uma faca com lâmina de dimensões não apuradas, e, na presença da esposa e filhas, depositou-a na mesa da refeição, nada dizendo e pelas, 22horas, voltou a fazê-lo, tendo, ainda agarrado na faca, apontando a respetiva lâmina a BB, declarando-lhe: “então agora vamos conversar”, e tendo esta começado a filmar, o arguido agarrou numa taça de cereais e projetou o respetivo conteúdo contra a cara de BB, assim a encharcando em leite, arrebatou-lhe o telemóvel das mãos, projetando-o ao solo e partindo-o. Volvidos alguns instantes, o arguido desferiu um empurrão em BB, fazendo-a tombar no solo, desta forma causando-lhe dores e, quando BB estava ajoelhada no solo, o arguido ajoelhou-se junto a si, colocando a lâmina da faca contra o seu peito, enquanto dizia a sua mulher “mata-me, espeta-me”, tendo esta tentado afastar a lâmina de tal faca do peito do arguido, agarrando-a, assim ficando com cortes nos seus dedos. Por sua vez, no tocante à filha CC, resultou provado que o arguido: » ao longo de todo o período compreendido entre os sete anos e pelo menos os quinze anos de idade de CC, em múltiplas ocasiões, de número não apurado, com a cadência de pelo menos uma vez a cada três semanas, no domicílio comum, a pretexto de mau comportamento da menor em ambiente escolar, o arguido desferiu pancadas com as mãos abertas na cara e braços da CC, com intensidade bastante para lhe causar dores e marcas visíveis nas zonas atingidas, mormente na cara. » em data não apurada, na época em cursava o sétimo ano de escolaridade, quando CC se encontrava no respectivo quarto, o arguido entrou e desferiu pancadas com a mão aberta na cara da vítima, com intensidade bastante para lhe causar dores e marcas visíveis na zona atingida. » em data não apurada, compreendida em ..., ao final da tarde, no domicílio comum, o arguido, fazendo uso de um cinto, desferiu várias pancadas no corpo de CC, com intensidade bastante para lhe causar dores e marcas visíveis nas zonas atingidas, mormente braços, ventre e pernas. » no dia ...2023, o arguido interpelou suas filhas DD e CC, e declarou-lhes: “olha, eu quero-vos dizer que o meu único desejo para este ano é morrer, e quero que saibam que a culpa é vossa, ou que grande parte da culpa é vossa”. » na situação de ...2023, além de ter praticado os factos na presença das filhas, quando CC foi para o escritório da habitação, com vista a solicitar auxílio telefónico à polícia, o arguido foi no seu encalço e tirou os cabos telefónicos da fonte de alimentação, assim impedindo que CC, fazendo uso de um dos dois telefones fixos ali instalados, contactasse a Polícia e de, seguida, o arguido deitou mão ao outro telefone, e, na presença da menor CC, partiu-o. Decorridos alguns momentos, o arguido entregou a faca na mão de sua filha CC, e declarou-lhe “mata-me” e, face à recusa da CC em anuir a tal pedido do arguido, este declarou “então se tu não me vais matar, mato-me eu aqui à vossa frente, para vocês ficarem com isto na vossa consciência”. Por sua vez, no tocante à filha DD, resultou provado que o arguido: » em data não apurada, quando DD tinha cerca de seis anos, no domicílio comum, o arguido desferiu várias pancadas com a mão aberta na cara da mesma, assim lhe causando dores. » no dia ....2023, o arguido interpelou suas filhas DD e CC, e declarou-lhes: “olha, eu quero-vos dizer que o meu único desejo para este ano é morrer, e quero que saibam que a culpa é vossa, ou que grande parte da culpa é vossa.” » na situação de ...2023, praticou os factos na presença da menor DD. Ora, das actuações supra descritas, resulta inegável que as condutas ao arguido dirigidas a BB configuram verdadeiras agressões verbais e emocionais, capazes de atingir o bem-estar psíquico da mesma. Por sua vez, das actuações supra descritas, resulta inegável que as condutas ao arguido dirigidas às filhas DD e CC configuram verdadeiras agressões emocionais e físicas, capazes de atingir o bem-estar físico e psíquico das mesmas. Na verdade, a actuação do arguido dada como provada em relação às filhas, colocando a culpa da sua vontade de morrer nas filhas ou pedindo que uma delas lhe retirasse a vida com uma faca configuram verdadeiras agressões emocionais, na medida em que o arguido se imiscuía no bem-estar psíquico das filhas, lhes causando sofrimento, como não poderá deixar ser a quaisquer jovens em tal situação. Assim, tendo em conta a matéria factual dada como provada, o Tribunal não tem dúvida que o arguido praticou dois crimes de violência doméstica na pessoa da sua ex-mulher BB e na pessoa das suas filhas CC e DD. Mais se diga que, sendo CC e DD menores à data dos factos e tendo os factos ocorrido no domicílio comum, mostra-se preenchida a circunstância agravante prevista no artigo 152.º, n.º 2, al. a) do Código Penal. Por outro lado, da matéria factual apurada, relativamente a BB, resulta que o arguido praticou os factos na presença das filhas menores e no domicílio comum. Como tal, em relação ao crime perpetrado na ofendida BB, mostra-se, igualmente, preenchida a circunstância agravante prevista no artigo 152.º, n.º 2, al. a) do Código Penal. Mais preencheu o arguido o elemento subjectivo do crime em análise, uma vez que se provou que este: » ao agir da forma descrita, teve o propósito de humilhar e maltratar BB, inclusive no domicílio comum e na presença das filhas menores comuns CC e DD, apesar de saber que lhe devia particular respeito e consideração, na qualidade de sua mulher e da de mãe de suas filhas. » agiu com o propósito logrado e reiterado de dirigir maus-tratos à vítima CC e DD, suas filhas menores, com quem coabitava, bem sabendo que, por força da tenra idade das vítimas e da desproporção etária entre ambos, as mesmas não tinham qualquer capacidade séria de oferecer oposição à actuação do arguido, circunstância de que se prevaleceu para prosseguir a sua ação criminosa, sabendo, também que ao actuar da forma descrita contra BB, expunha as menores CC e DD a tais condutas, em que atentava contra pessoa a quem as menores tinham profunda vinculação pessoal e afectiva, e que assim lhes causava sofrimento e angústia, maltratando-as e turbando o processo de desenvolvimento das suas personalidades, e ainda assim não se coibiu de proceder da forma descrita. Por outro lado, a eventual motivação de correcção educacional do progenitor, atenta a factualidade apurada, não exclui a ilicitude ou a culpa da conduta. A este propósito, cita-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.10.20162, onde se pode ler que: “Perante esta factualidade provada a questão que se coloca, neste momento, é a de saber se o poder de correcção dos pais e educadores pode abranger a aplicação de castigos corporais. A resposta a esta questão tem sido objecto de diversas posições na doutrina e a jurisprudência dos nossos tribunais e mesmo ao nível da psicologia comportamental. Como se salienta in "Comentário Conimbricense ao Código Penal - parte Especial", tomo I, pág. 214 e segs., assume-se como discutível a natureza do direito ao castigo dos pais e educadores quando se traduza, em concreto, em lesões da integridade física do educando. Tratando-se de direito de correcção, assumem-se como controvertidos não só a sua admissibilidade como os seus limites. Tem-se entendido que a ofensa da integridade física será justificada quando se mostre adequada a atingir um determinado fim educativo e seja aplicada pelo encarregado de educação com essa intenção. Colocam-se a este nível dúvidas sobre a proporcionalidade pedagógica dos castigos físicos e da sua compatibilidade com a dignidade humana do ser humano em desenvolvimento. Ao nível da psicologia comportamental tem-se verificado uma tendência generalizada no sentido de defender que a palmada não funciona como método educativo e, que, pelo contrário, causa ressentimento, dor, ou seja, causa um efeito contrário à educação.(…) Sem prejuízo do exposto, é indiscutível que, mesmo para as teses que admitem o uso de “palmada” como incluído no poder-dever de educação, só justificam esse uso de “a mão aberta” quando se tratar de um acto complementar à educação por palavras, não permitindo, em nenhum caso, o uso de instrumentos como o cinto, o chicote, o pau que extrapolam o sentido de correcção educativa.” Como tal e com base no acima exposto, deverá o arguido ser condenado pela prática dos crimes de que vinha acusado. (…). Da compensação às vítimas: Estão em causa prejuízos não patrimoniais, que – reportando-se a valores de ordem espiritual, ideal ou moral, não se repercutem no património do lesado e portanto não são susceptíveis de avaliação pecuniária, embora sejam compensáveis – correspondem àquilo que na linguagem jurídica se costuma designar por pretium doloris ou ressarcimento tendencial de angústia, da dor física, da doença, ou do abalo psíquicoemocional. Apenas são atendíveis os prejuízos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (conforme o artigo 496º do Código Civil) e o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo Tribunal, tendo em atenção a situação económica do agente e do lesado e demais circunstâncias do caso concreto (conforme o artigo 494º ex vi artigo 496º, nº 3, ambos do Código Civil). No presente caso releva o período de tempo em que a conduta do arguido foi mantida sobre as vítimas; o grau de ilicitude das condutas, as consequências das condutas do arguido; as condições económicas do arguido e das vítimas. A fixação da indemnização neste caso foge aos parâmetros normais, uma vez que nos encontrámos perante uma reiteração de eventos danosos, enquanto na generalidade dos casos temos um evento danoso, ainda que com consequências que se prolongam no tempo. Perante estes elementos, num juízo equitativo, o Tribunal julga ajustado fixar as os seguintes montantes pecuniários a título de indemnização às vítimas: BB - €5.000,00, uma vez que a actuação do arguido sobre esta vítima perdurou por mais no tempo; CC - €3.000,00, atenta a idade da vítima e as actuações do arguido dadas como provadas. DD - €1.000,00, tendo em conta que esta menor foi alvo de menos actuações que a sua irmã CC”. B)-Fundamentação: Impõe-se desde logo determinar quais são as questões a decidir em sede de recurso. “É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões(…)”], sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95- O objeto do recurso está limitado às conclusões apresentadas pelo recorrente -cfr. Ac. do STJ, de 15/04/2010). Assim, o conhecimento do recurso está limitado às suas conclusões, sem prejuízo das questões/vícios de conhecimento oficioso. * Na situação concreta cumpre apreciar as seguintes questões: - Nulidade por falta de fundamentação; - Do erro notório na apreciação da prova; - Violação do princípio da presunção de inocência; - Violação do princípio in dubio pro reo; - Violação do princípio ne bis in idem; - Do tipo legal de violência doméstica; - Do pedido de indemnização civil. * Da nulidade do acórdão por falta de fundamentação: Dispõe o artigo 379º do CPP que: “1-É nula a sentença: “a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F; b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º; c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”. Mencionando o artigo 374, nº2 do CPP que: “2 - Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. 3 - A sentença termina pelo dispositivo que contém: a) As disposições legais aplicáveis; b) A decisão condenatória ou absolutória”. O nº1 do citado artigo enumera os casos da nulidade da sentença. As nulidades da sentença mais não são do que vícios intrínsecos na construção da mesma. A fundamentação da sentença encontra-se consagrada na CRP, no seu artigo 205º, nº1. Na lei ordinária o dever de fundamentação encontra-se consagrado no art. 97º, nº 5, do C. Processo Penal, estipulando que “os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”. O dever de fundamentação é, ainda, mais exigente quando estamos perante uma sentença. De facto, o dever de fundamentação “relativamente à sentença penal concretiza-se, porém, mediante uma fundamentação reforçada, que visa, por um lado, a total transparência da decisão, para que os seus destinatários (…) possam apreender e compreender claramente os juízos de valoração e da apreciação da prova” (Oliveira Mendes, in CPP comentado, pág. 1168). Para que a fundamentação possa ser considerada suficiente, necessário se torna que da mesma constem não só os motivos de facto, mas também os de direito que justificam o sentido da decisão, para que o seu destinatário a possa compreender e sindicar a sua legalidade. A fundamentação da sentença deve ser suficiente, precisa e razoável. Assim, no que tange à fundamentação de direito deve o Juiz esclarecer quais os fundamentos jurídicos que levaram a determinada solução concreta. É através da fundamentação, de facto e de direito, da sentença que é viabilizado o controlo da atividade decisória pelo tribunal de recurso. O objetivo dessa fundamentação é, no dizer de Germano Marques da Silva (In “Curso de Processo Penal”, 2ª ed., 2000, vol. III. pág. 294), o de permitir "a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando, por isso como meio de autodisciplina". Assim, a fundamentação da sentença penal é composta por duas vertentes que consistem: - Na enumeração dos factos provados e não provados; - Na exposição, ainda que concisa, mas completa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal. “ I - A fundamentação da sentença penal compreende dois grandes sectores: - A enumeração dos factos provados e não provados; e, - A exposição, concisa, mas completa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, que inclui a indicação e o exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal. II - A enumeração dos factos consiste na narração metódica dos factos que resultaram provados e dos factos que não resultaram provados, tendo por base os que constavam da acusação ou da pronúncia, da contestação, e do pedido de indemnização, e ainda os que, com relevo para a decisão, resultaram da discussão da causa. III - A exposição dos motivos de facto que fundamentam a decisão deve conter, de modo completo e conciso, a enunciação das provas que serviram para fundar a convicção do tribunal, e a análise crítica de tais provas, entendendo-se por esta, a explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizada na indicação dos motivos e critérios lógicos e racionais que conduziram à credibilização de certos meios de prova e à desconsideração de outros. IV - A exposição dos motivos de direito traduz-se na determinação do direito aplicável aos factos e sua aplicação ao caso concreto” (ac. da RC de 12.11.2014, in jurisprudência.pt, processo 1574/08.3PEAVR.C1). E, tal como se escreve no ac. do STJ de 16.3.2005 “ a fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual) a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos para reapreciar uma decisão” (in base de dados do igfej, processo 05P662). Ora, manifestamente, o acórdão encontra-se devidamente fundamentado, nomeadamente a motivação da matéria de facto. Tal fundamentação não se limita a afirmações genéricas, mas a várias páginas que permitem concluir pela factualidade dada como assente. O mesmo sucede com a fundamentação de direito. O Tribunal recorrido de forma exaustiva fundamentou a decisão. Assim, deve o recurso improceder, também, nesta parte. * Dos vícios do artigo 410º do CPP: Alega o recorrente o erro notório na apreciação da prova. O erro notório na apreciação da prova constitui um vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP. Tal vício é de conhecimento oficioso. No que respeita ao erro notório, como se extrai da letra da lei, o mesmo tem de ser notório. Contudo “basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha de ser devidamente escrutinada-ainda que para além das perceções do homem comum- e sopesado à luz das regras da experiência. Ponto é que, no final, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique deviamente demonstrada pelo Tribunal ad quem” (Código Processo Penal anotado, Pereira Madeira, pág. 1359). “I -As anomalias, os vícios da decisão elencados no n.° 2 do art. 410.° do CPP têm de emergir, resultar do próprio texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão, como peça autónoma; esses vícios têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos estranhos à peça decisória, que lhe sejam externos, constando do processo em outros locais, como documentos juntos ou depoimentos colhidos ao longo do processo. II - Trata-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei -vícios da decisão, não do julgamento. III - Os vícios previstos no artigo 410.°, n.° 2, do CPP, nomeadamente, o erro notório na apreciação da prova, não podem ser confundidos com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova, princípio inscrito no art. 127.° do CPP. IV - Não podendo, neste tipo de análise, prevalecer-se de prova documentada nem se encontrando perante prova legal ou tarifada, não pode o tribunal superior sindicar a boa ou má valoração daquela, e querer discutir, nessas condições, a valoração da prova produzida; é, afinal, querer impugnar a convicção do tribunal, olvidando a citada regra. V - Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do art. 410.°, n.° 2, do CPP, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos. VI - O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo susceptível de apreciação. VII - No caso de impugnação da matéria de facto nos termos dos n.°s 3 e 4 do art. 412.° do CPP a apreciação pelo tribunal superior já não se restringe ao texto da decisão, mas abrange a análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.°s 3 e 4 do art. 412.° do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431.°, al. b), do CPP” ( sumário do ac. do STJ de 15-07-2009 proc. n.º 103/09 -3.ª Secção, relator o Sr. Conselheiro Fernando Fróis). Como referido há erro notório na apreciação da prova quando da sentença ou do acórdão constam como provados factos que nunca se poderiam ter verificado ou que são contraditados por documento autênticos, o que terá de resultar da leitura do texto da decisão. Ora, procedendo a uma leitura cuidada do acórdão conclui-se inexistir no mesmo qualquer facto provado que em face da experiência comum, não pudesse ter acontecido. Do texto da decisão recorrida, em conjugação com as regras da experiência comum, não resulta qualquer erro de onde se possa concluir que os factos foram erradamente dados como provados pelo Tribunal. Muito pelo contrário, a matéria de facto dada como provada encontra-se de acordo com as regras da experiência e fundamentada pelo Tribunal recorrido de modo, que lendo a fundamentação, não se extrai qualquer erro. Igualmente não é a mesma contraditada por qualquer documento autêntico. Nesta conformidade, e sem necessidade de grandes considerações concluímos inexistir qualquer vício de erro notório da apreciação da prova, a que alude o art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP. Aliás, lida a motivação de recurso facilmente se conclui que, o que parece pretender o recorrente é impugnar a matéria de facto, nos termos do artigo 412 do CPP, apesar de não o referir. Acontece que, como se extrai do artigo 412, nº3 do CPP, quando o recurso tem por objeto a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, deve especificar, sob pena de rejeição: a) Indicação individualizada dos pontos de facto constantes da decisão recorrida que considera incorretamente julgados; b) Indicação das provas que impõem decisão diversa, identificando o meio de prova ou o meio de obtenção de prova que imponham decisão diversa, com menção concreta, quanto à prova gravada, do início e termo da gravação, e a citação do ponto concreto da gravação, que fundamente a impugnação (neste sentido Pereira Madeira em anotação ao CPP, pág. 1391; e c) A indicação das provas que pretende que sejam renovadas. Acrescentando o nº 4 que : “- Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”. Tais exigências facilmente se compreendem se tivermos em conta que o julgamento da matéria de facto em primeira instância é realizado segundo o princípio da imediação. Tal princípio pressupõe um contacto direto e pessoal entre o Julgador e as pessoas que perante o mesmo prestam depoimento ou declarações, permitindo uma maior perceção sobre o facto objeto de julgamento. Assim, é compreensível que em sede de recurso se exija ao recorrente que cumpra as formalidades elencadas no citado artigo. É o mínimo que se exige a quem, por via do recurso e da impugnação da matéria de facto, pretende ver alterada a factualidade dada por assente pelo Tribunal de julgamento. Não se trata de um segundo julgamento por parte do Tribunal de recurso, mas de reapreciação de prova indicada que implica no caso de depoimentos de testemunhas a audição das provas indicadas. “O recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância (Germano Marques da Silva, in Forum Justitiae, Maio/1999)”. Acresce que a decisão do Tribunal há de ser sempre uma “convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” (Prof. Figueiredo Dias, «Direito Processual Penal, Vol. I, 1974, pág. 204). Concluir-se por erro de julgamento implica que o Tribunal apreciou erradamente a prova, sem atentar à prova produzida, violando as regras da experiência. No caso em análise o recorrente não cumpriu este ónus limitando-se a impugnar a convicção do Tribunal e a circunstância do mesmo de ter valorado as declarações da assistente e das menores, concluindo pelo erro notório na apreciação da prova. O recorrente limita-se a questionar a convicção do Tribunal, sem concretizar que factos que pretende ver como não provados, inclusive se a sua totalidade, ou parcialmente. O recorrente não individualiza os pontos de facto constantes da decisão recorrida que considera incorretamente julgados, questionando apenas a convicção do Tribunal concluindo que em face de tal se impunha decisão distinta. Também o recurso é completamente omisso no que tange ao ónus da al.b), do nº3 do artigo 412º do CPP. Pelo que, nesta parte, terá o recurso de improceder. * Violação do princípio da presunção da inocência e do in dubio pro reo. Alega o recorrente a violação dos mencionados princípios. O princípio da presunção da inocência encontra-se consagrado no artigo 32, nº2 da CRP que estipula: “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”. Tal princípio encontra-se igualmente consagrado na CEDH, mais concretamente no seu artigo 6, nº2 que preceitua: “2. Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada”. Também a Carta dos Direitos Fundamentais para a UE alude, no seu artigo 48, nº2, a este principio em termo idênticos: “ `2. Qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada”. Assim, toda a pessoa beneficia da presunção de inocência até transito em julgado da decisão condenatória, princípio este mais abrangente que o princípio in dubio pro reo. Estamos perante uma garantia processual, pretendendo-se um processo equitativo que coloque ao dispor de qualquer cidadão um conjunto de direitos que permitam a sua defesa, perante o poder punitivo e a autoridade do Estado. Contudo, tal, não obsta, obviamente à condenação do agente, desde que ilidida a presunção. Neste seguimento o “in dubio pro reo” é um princípio geral do direito penal e decorre da presunção da inocência assentando na dignidade humana. O princípio “in dubio pro reo”, é meramente probatório, devendo ser aplicado pelo Tribunal sempre que o mesmo tem uma dúvida razoável sobre a ocorrência de um facto, enquanto que o princípio da presunção de inocência está relacionado com o tratamento processual do arguido. Assim, o princípio “in dubio pro reo” só tem aplicação depois de produzida a prova e da respetiva valoração. Tal princípio embora não consagrado diretamente no nosso CPP extrai-se de vários artigos, nomeadamente dos artigos 125º, 127º e 340º. Tem sido entendimento maioritário que tal princípio só vale para a matéria de facto (entre outros MARIA JOÃO ANTUNES, in Direito Processual Penal, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 181: “O princípio vale para toda a matéria de facto, quer para a relativa ao crime quer para a atinente à sanção que lhe corresponde (...) mas já não para a matéria de direito”. Já para o Professor Figueiredo Dias: “o princípio aplica-se não só aos elementos fundamentais e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude e todas as circunstâncias atenuantes e quando subsistir a dúvida acerca da concorrência de um facto impeditivo ou extintivo da responsabilidade do arguido, o juiz deve proferir decisão absolutória” (cfr. Direito Processual Penal (1ª edição de 1974), Coimbra). “IV-O princípio do “in dubio pro reo” é exclusivamente probatório e aplica-se quando o tribunal tem dúvidas razoáveis sobre a verdade de determinados factos, ao passo que o princípio da presunção de inocência se impõe aos juízes ao longo de todo o processo e diz respeito ao próprio tratamento processual do arguido. V- O princípio in dubio pro reo estabelece que na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, ou seja, o julgador deve valorar sempre em favor do arguido um non liquet.VI -A violação do princípio in dubio pro reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados” (sumário do ac. da RC de 12.9.2018, relator Orlando Gonçalves, in base de dados do igjef). Assim, deve aplicar-se tal princípio se produzida a prova subsiste no espírito do julgador, uma dúvida razoável sobre a mesma, a qual se impõe que seja decidida a favor do arguido. Analisando o acórdão recorrido e a sua fundamentação resulta que o Tribunal a quo não exprimiu qualquer dúvida insanável. Muito pelo contrário, o Tribunal demonstrou, em face do acervo probatório, não ter dúvidas sobre os factos, sendo inequívoco no que tange à factualidade dada como assente. Lendo a fundamentação do acórdão sobre a matéria de facto, não se vislumbra que o Tribunal recorrido tenha chegado a qualquer estado de dúvida sobre a prática dos factos por parte do recorrente. Antes pelo contrário, não lhe suscitaram quaisquer dúvidas. Também a este Tribunal não se suscitam quaisquer dúvidas sobre a factualidade dada como assente. Logo inexiste qualquer violação dos mencionados princípios. Assim, também nesta parte terá o recurso de improceder. * Do tipo legal do crime de violência doméstica: Alega o recorrente que relativamente às menores CC e DD, os episódios dados como provados não configuram o padrão de maus-tratos sistemáticos exigido pelo tipo legal e que as condutas apuradas enquadram-se no exercício normal do poder paternal disciplinar e na dinâmica natural de uma família em processo de rutura, não atingindo o limiar de relevância penal que justificaria a intervenção do direito criminal. De acordo com o artigo 152º do CP: “1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite; e) A menor que seja seu descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite; é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente: a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento; é punido com pena de prisão de dois a cinco anos. 3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar: a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos; b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos. 4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica. 5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. 6 - Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos”. São elementos do tipo (na parte que aqui releva): -A inflição de maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge ou a menor que seja seu descendente (elemento objetivos); - O dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade (elemento subjetivo). Assim, o tipo em causa, mais concretamente o seu elemento objetivo “inclui as condutas de violência física, psicológica, verbal e sexual que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal” (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica, Lisboa, 2008, pág. 405, anotação 4). O mesmo autor, na mesma obra escreve ainda : “Os ‘maus tratos físicos’ correspondem ao crime de ofensa à integridade física simples e os ‘maus tratos psíquicos’ aos crimes de ameaça simples ou agravada, coacção simples, difamação e injúrias, simples ou qualificadas”. Além disso, este tipo, o que era duvidoso em redações anteriores, existindo posições opostas, quer na doutrina, quer na jurisprudência, não exige uma conduta reiterada. Contudo, quando um ato integra simultaneamente o tipo do artigo 152º (violência doméstica) e o tipo ou tipos dos artigos 143º (ofensa à integridade física) e 153º (ameaça), o agente não é punido pelos vários crimes, existindo entre estes crimes uma relação de concurso aparente. Como salienta o Prof. Pinto de Albuquerque, “O crime de violência doméstica encontra-se numa relação de especialidade com os crimes de ofensas corporais simples ou qualificadas, os crimes de ameaças simples ou agravadas, o crime de coacção simples, entre outros, em que a punição do crime de violência doméstica afasta a destes crimes. Tratando-se de crimes puníveis com pena mais grave do que a prisão até 5 anos, a violência doméstica encontra-se numa relação de subsidariedade expressa (“se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”) ( in, Comentário do Código Penal, págs. 406-407, anotações 19 e 20). Pode acontecer que os factos integrem os crimes de ofensa à integridade física e de injúria e, não obstante, não satisfaçam o tipo da violência doméstica, por não revelarem o “especial desvalor da acção” ou a “particular danosidade social do facto” (Maria Manuela Valadão e Silveira, “Sobre o Crime de Maus Tratos Conjugais”, in Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, Do Crime de Maus Tratos, Lisboa, 2001, pág.21) que fundamentam a especificidade deste crime. Como se refere no ac. da RC de 22.9.2021: I – O crime de violência doméstica é uma forma especial de crime de maus-tratos e que se encontra também numa relação de especialidade com os crimes de ofensa à integridade física, de ameaça, de coacção, de sequestro, de importunação sexual, de coacção sexual, de abuso sexual de menores dependentes e ainda com os crimes contra a honra. II - A estrutura típica do crime p. e p. no artigo 152.º do CP não exige a verificação de qualquer relação de dependência ou de domínio exercida pelo autor desse ilícito sobre a vítima. III – A opção pelo tipo do artigo 152.º, em detrimento da opção por um dos crimes que tutelam singularmente bens jurídicos por aquele atingidos, impõe a ocorrência de um aliud, que consiste precisamente na circunstância de a prática do crime de violência doméstica ser indissociável da relação presente ou passada prevista no normativo indicado. Se é possível estabelecer o nexo entre os maus tratos e a relação presente ou pretérita, ocorre violência doméstica; se, pelo contrário, esse nexo não pode ser estabelecido, a imputação deverá fazer-se pelo tipo de crime que a factualidade objectivamente representa”. Não há dúvidas que no crime de violência doméstica a ação típica tanto pode consistir em maus tratos físicos, como sejam as ofensas corporais, como em maus tratos psíquicos, nomeadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou outros maus tratos, com sejam as ofensas sexuais e as privações da liberdade. Ora, relativamente às menores resultaram provados os seguintes factos: “- O arguido e BB são progenitores comuns de CC e DD, nascidas respectivamente em ... 2005 e ... 2011; - Ao longo de todo o período compreendido entre os sete anos e pelo menos os quinze anos de idade de CC, em múltiplas ocasiões, de número não apurado, com a cadência de pelo menos uma vez a cada três semanas, no domicílio comum, a pretexto de mau comportamento da menor em ambiente escolar, o arguido desferiu pancadas com as mãos abertas na cara e braços da CC, com intensidade bastante para lhe causar dores e marcas visíveis nas zonas atingidas, mormente na cara. - Nesse contexto, em data não apurada, época em cursava o sétimo ano de escolaridade, quando CC se encontrava no respectivo quarto, o arguido entrou e desferiu pancadas com a mão aberta na cara da vítima, com intensidade bastante para lhe causar dores e marcas visíveis na zona atingida. - Em data não apurada, compreendida em Abril de 2013, ao final da tarde, no domicílio comum, o arguido, fazendo uso de um cinto, desferiu várias pancadas no corpo de CC, com intensidade bastante para lhe causar dores e marcas visíveis nas zonas atingidas, mormente braços, ventre e pernas. - Em data não apurada, quando DD tinha cerca de seis anos, no domicílio comum, o arguido desferiu várias pancadas com a mão aberta na cara da mesma, assim lhe causando dores. - No dia ...2023, pelas 15h, o arguido interpelou suas filhas DD e CC, e declarou-lhes: “olha, eu quero-vos dizer que o meu único desejo para este ano é morrer, e quero que saibam que a culpa é vossa, ou que grande parte da culpa é vossa”, não ignorando nem podendo ignorar que tais expressões, verbalizadas daquela forma séria, eram idóneas e adequadas a causar sofrimento e angústia a DD e CC, fazendo-as recear pela vida do arguido, como sucedeu. - No dia ... 2023, o arguido, BB e as filhas comuns CC e DD encontravam-se a almoçar, no domicílio comum, sito na .... - Findo o almoço, o arguido recolheu da cozinha uma faca com o comprimento de lâmina de cerca de 15/20 cm, comprimento de cabo de cerca de 10cm, largura de lâmina de cerca de 4/5cm, na presença da esposa e filhas, depositou-a na mesa da refeição, nada dizendo. - Nesse mesmo dia, pelas 22 horas, o arguido, BB e as filhas comuns CC e DD encontravam-se no domicílio comum já referido. - Nessas circunstâncias, o arguido comia cereais com leite e, volvidos alguns instantes, foi à cozinha, daí trazendo a mesma faca referida em 15), pousando-a na mesa. - Decorridos alguns instantes, na presença das filhas comuns CC e DD, o arguido agarrou em tal faca, apontando a respetiva lâmina a BB, declarando-lhe: “então agora vamos conversar”, assim lhe pretendo significar que estava na disposição de a vulnerar com tal faca, do que a mesma ficou bem ciente, bem sabendo. -Receosa do que o arguido lhe pudesse fazer, BB recolheu o respetivo telemóvel e, com recurso à respetiva câmara, começou a filmar a actuação do arguido, com vista a demovê-lo de adotar acção mais grave. - O arguido tentou então arrebatar o telemóvel das mãos de BB, o que esta não permitiu. - Acto contínuo, o arguido agarrou numa taça de cereais e projetou o respetivo conteúdo contra a cara de BB, assim a encharcando em leite. - O arguido logrou então arrebatar o telemóvel das mãos de BB, projetando-o ao solo, assim o partindo. - Volvidos alguns instantes, o arguido desferiu um empurrão em BB, fazendo-a tombar no solo, desta forma causando-lhe dores. - Então, quando BB estava ajoelhada no solo, o arguido ajoelhou-se junto a si, colocando a lâmina da faca contra o seu peito, enquanto dizia a sua mulher “mata-me, espeta-me”. - Tomada de pânico, BB tentou afastar a lâmina de tal faca do peito do arguido, agarrando-a, assim causando cortes nos seus dedos. - Então, a rogo de BB, a menor CC foi ao escritório da habitação, com vista a solicitar auxílio telefónico à Polícia. - O arguido foi então no encalço da filha CC, sendo que, já no escritório, tirou os cabos telefónicos da fonte de alimentação, assim impedindo que a menor CC, fazendo uso de um dos dois telefones fixos ali instalados, contactasse a Polícia. -De seguida, o arguido deitou mão ao outro telefone, e, na presença da menor CC, partiu-o, não ignorando nem pudendo ignorar que tal conduta era idónea e adequada a causar-lhe temor e inquietação. - Decorridos alguns momentos, o arguido entregou a faca na mão de sua filha CC, e declarou-lhe “mata-me”, não ignorando nem pudendo ignorar que tal verbalização, expressa daquela forma séria, era idónea e adequada a causar sofrimento e angústia a CC, fazendo-a recear pela vida do arguido, como sucedeu. - Face à recusa da CC em anuir a tal pedido do arguido, este declarou “então se tu não me vais matar, mato-me eu aqui à vossa frente, para vocês ficarem com isto na vossa consciência”, fazendo menção que as três escutassem tais expressões, bem sabendo que as mesmas eram idóneas e adequadas a causar-lhes sofrimento e angústia. -Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito logrado e reiterado de dirigir maus-tratos à vítima CC, sua filha menor, com quem coabitava, bem sabendo que, por força da tenra idade da vítima e da desproporção etária entre ambos, a mesma não tinha qualquer capacidade séria de oferecer oposição à actuação do arguido, circunstância de que se prevaleceu para prosseguir a sua ação criminosa. - O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito logrado e reiterado de dirigir maus-tratos a DD, sua filha menor, com quem coabitava, bem sabendo que, por força da tenra idade da vítima e da desproporção etária entre ambos, DD não tinha qualquer capacidade séria de oferecer oposição à actuação do arguido, circunstância de que se prevaleceu para prosseguir a sua ação criminosa. - Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo serem todas as suas condutas proibidas e punidas por lei”. Cumpre referir que tais condutas visaram diretamente as menores. Tal como referido no crime de violência doméstica, tutela-se a dignidade humana da vítima, sendo que no âmbito do seu normativo, tanto cabem atos ou condutas repetidas como uma única, desde que a mesma ofenda a dignidade da vítima. Esta é a situação dos autos, mesmo em relação à menor DD, sendo a conduta do arguido violadora da dignidade das filhas, não só quando lhes bate, mas quando lhes diz que se vai matar por culpa delas, ou lhes exibe uma faca. Tais condutas são desproporcionais, inaceitáveis e violadoras da dignidade das menores. Acresce ainda que atenta a idade das menores, as mesmo apercebiam-se e assistiam ao comportamentos do pai para com mãe. Tal é uma forma de maus tratos psicológicos que conjugados com os demais factos supra mencionados integram o crime o tipo legal de violência doméstica. Na verdade, muitas são as condutas que cabem no tipo em causa, com gravidades distintas, o que é doseado em sede de medida da pena, integrando os factos em causa, também o crime de violência doméstica em relação à menores, encontrando-se verificados os seus elementos objetivos e subjetivos. Como refere o acórdão recorrido “resulta inegável que as condutas ao arguido dirigidas às filhas DD e CC configuram verdadeiras agressões emocionais e físicas, capazes de atingir o bem-estar físico e psíquico das mesmas. Na verdade, a actuação do arguido dada como provada em relação às filhas, colocando a culpa da sua vontade de morrer nas filhas ou pedindo que uma delas lhe retirasse a vida com uma faca configuram verdadeiras agressões emocionais, na medida em que o arguido se imiscuía no bem-estar psíquico das filhas, lhes causando sofrimento, como não poderá deixar ser a quaisquer jovens em tal situação”. E não se argumente, como consta do recurso, que o recorrente atuou no âmbito de um poder paternal disciplinar. A este respeito cumpre referir que “a necessidade de garantir uma proteção especial à criança foi enunciada pela Declaração de Genebra de 1924 sobre os Direitos da Criança e pela Declaração dos Direitos da Criança adoptada pelas Nações Unidas em 1959, e foi reconhecida pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (nomeadamente nos artigos 23.º e 24.º), pelo Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (nomeadamente o artigo 10.º) e pelos estatutos e instrumentos pertinentes das agências especializadas e organizações internacionais que se dedicam ao bem-estar da criança” (preâmbulo da Resol. da AR n.º 20/90, de 12 de setembro”. Assim, a Convenção sobre os Direitos da Criança foi assinada em Nova Iorque a 26 de janeiro de 1990 (elaborada a 20 de Novembro de 1989) e aprovada pela Assembleia da República Portuguesa em 8 de Junho de 1990. Dispõe o seu artigo 29 que : “ 1 - Os Estados Partes acordam em que a educação da criança deve destinar-se a: a) Promover o desenvolvimento da personalidade da criança, dos seus dons e aptidões mentais e físicos na medida das suas potencialidades; b) Inculcar na criança o respeito pelos direitos do homem e liberdades fundamentais e pelos princípios consagrados na Carta das Nações Unidas; c) Inculcar na criança o respeito pelos pais, pela sua identidade cultural, língua e valores, pelos valores nacionais do país em que vive, do país de origem e pelas civilizações diferentes da sua; d) Preparar a criança para assumir as responsabilidades da vida numa sociedade livre, num espírito de compreensão, paz, tolerância, igualdade entre os sexos e de amizade entre todos os povos, grupos étnicos, nacionais e religiosos e com pessoas de origem indígena; e) Promover o respeito da criança pelo meio ambiente”. O poder dever de correção estava previsto no Cód. Civil de 1966, no seu art.º 1884.º, tendo sido eliminado com a revisão operada pelo DL n.º 496/77, de 25 de novembro, A respeito do dever de correção dos pais refere Leandra Correia (In “Direito de Correção dos Pais ou Poder-Dever de Educação - Corrigir Como Educar e não Como Punir”, Universidade de Coimbra, 01/2017, págs. 39/40.), no sentido de que “... a aplicação de CF pelos progenitores deve considerar-se justificada, contudo a exclusão da ilicitude só ocorrerá quando verificados um conjunto de pressupostos que só num juízo casuístico, perante uma situação concreta, poderão ser aferidos”. Não olvidamos, nem questionamos, que qualquer progenitor tem não só o direito, como o dever, de impor regras aos seus filhos, no âmbito do poder de educação, absolutamente necessárias na formação das suas personalidades. Contudo, tal não significa a adoção de comportamentos agressivos e violentos, nem justifica a adoção de castigos corporais, ou violência psicológica, que, em nada, contribuem para um desenvolvimento saudável da personalidade de qualquer criança. Ora, na situação concreta não vislumbramos de que forma o comportamento do recorrente contribuiu ou visou a educação das menores, nomeadamente quando lhes diz que se vai matar por culpa dela, ou quando lhes exibi uma faca. Também não vislumbramos de que forma o agredir com um cinto, relativamente à menor CC, é adequado a educar. Qualquer ato de violência é inaceitável e injustificável, ainda mais quando é exercido sobre uma criança, em violação dos seus direitos e em prejuízo do seu normal desenvolvimento. A conduta do arguido, e que consta do acervo dos factos provados, integra os elementos dos tipos legais pelos quais foi condenado, não se encontrando abrangida por qualquer causa de justificação. Assim, também nesta parte terá o recurso de improceder. * Da violação do princípio non bis in idem e dupla punição pelo mesmo facto: Alega o recorrente que o Tribunal utilizou os mesmos factos para: a) Fundamentar a forma agravada do crime contra BB (artigo 152.º, n.º 2, alínea a) do CP) - por ocorrerem "na presença de menores" b) Autonomizar crimes independentes contra as próprias menores CC e DD - pelos mesmos episódios de tensão familiar O princípio do ne bis in idem radica na figura do caso julgado e proíbe a instauração de um segundo procedimento ao mesmo sujeito pelo mesmo objecto e com o mesmo fundamento. Este princípio está consagrado no nº 5 do art. 29º da Constituição, que estabelece que «ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime». Portanto, por efeitos do caso julgado a primeira decisão torna impossível nova pronúncia sobre a mesma questão. O caso julgado pressupõe a identidade do objeto do processo, tendo por referência os poderes de cognição do tribunal e os factos que constituem “o mesmo crime”, na aceção jurídico-penal. Acresce que o mencionado princípio proíbe não só o duplo julgamento de uma infração penal como proíbe a dupla punição. Ora, esta não é, seguramente, a situação dos autos. Desde logo, o arguido só foi sujeito a um julgamento pelos factos em causa nos autos. Depois, da leitura atenta do acórdão resulta que os factos são agravados, em relação às menores, por serem menores e, em relação à vítima BB por terem ocorrido no domicilio comum. São circunstâncias e factos distintos que levaram a distintas agravações. Mas sempre se acrescenta que a circunstância de serem cometidos contra as menores, também não afastava a agravação a que alude a al.a) do nº2 do artigo 152º do CP, na medida em que uma coisa é os factos serem cometidos contra menores e outra é serem cometidos na presença de menores. São distintos os factos que levaram à condenação do recorrente pelos três crimes, como distintos são os factos que levam às respetivas agravações. Assim, também, nesta parte deve o recurso improceder. * Do montante atribuído a titulo de indemnização civil: Finalmente insurge-se o recorrente com o montante atribuído a título de indemnização civil alegando que foi violado o artigo 483 do CC. A este respeito consta do acórdão recorrido que: “Da compensação às vítimas: Estão em causa prejuízos não patrimoniais, que – reportando-se a valores de ordem espiritual, ideal ou moral, não se repercutem no património do lesado e portanto não são susceptíveis de avaliação pecuniária, embora sejam compensáveis – correspondem àquilo que na linguagem jurídica se costuma designar por pretium doloris ou ressarcimento tendencial de angústia, da dor física, da doença, ou do abalo psíquicoemocional. Apenas são atendíveis os prejuízos que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (conforme o artigo 496º do Código Civil) e o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo Tribunal, tendo em atenção a situação económica do agente e do lesado e demais circunstâncias do caso concreto (conforme o artigo 494º ex vi artigo 496º, nº 3, ambos do Código Civil). No presente caso releva o período de tempo em que a conduta do arguido foi mantida sobre as vítimas; o grau de ilicitude das condutas, as consequências das condutas do arguido; as condições económicas do arguido e das vítimas. A fixação da indemnização neste caso foge aos parâmetros normais, uma vez que nos encontrámos perante uma reiteração de eventos danosos, enquanto na generalidade dos casos temos um evento danoso, ainda que com consequências que se prolongam no tempo. Perante estes elementos, num juízo equitativo, o Tribunal julga ajustado fixar as os seguintes montantes pecuniários a título de indemnização às vítimas: BB - €5.000,00, uma vez que a actuação do arguido sobre esta vítima perdurou por mais no tempo; CC - €3.000,00, atenta a idade da vítima e as actuações do arguido dadas como provadas. DD - €1.000,00, tendo em conta que esta menor foi alvo de menos actuações que a sua irmã CC”. Na situação concreta pelas demandantes só foram peticionados danos não patrimoniais. Segundo o artº. 483º são pressupostos da responsabilidade civil extracontratual: a) A violação de um direito; b) A ilicitude; c) Imputação do facto ao agente, d) Dano; e) Nexo de causalidade entre o facto e o dano. O artigo 563º do CC consagra a teoria da causalidade adequada. Ora, na situação concreta verificam-se todos estes pressupostos nomeadamente o nexo de causalidade e o dano, resultando provado que a conduta do arguido causou às demandantes angústia e temor. Tais danos não patrimoniais são indemnizáveis e tiveram origem na conduta do arguido. Tem sido entendimento dominante que, no que respeita ao pedido de indemnização cível, fixada a indemnização com base na equidade o Tribunal de recurso só deve intervir se os montantes atribuídos se mostrarem desadequados com os critérios jurisprudenciais que vêm a ser adotados. Na situação concreta, os montante atribuídos a título de indemnização civil pelo Tribunal recorrido mostram-se adequados tendo em conta os critérios do artigo 496º do CC. Assim, e sem necessidade de outras considerações por desnecessárias, também nesta parte deve o recurso improceder, encontrando-se o acórdão devidamente fundamentado. C)- Dispositivo: Termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que compõem a 9º secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em: - Negar total provimento ao recurso interposto, confirmando-se na integra o acórdão recorrido. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a quatro unidades de conta (arts. 513º, nº1 do C.P.P. e 8º, nº9, do Regulamento das custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma). Lisboa, 25 de setembro, de 2025 Ana Paula Guedes Eduardo de Sousa Paiva Maria de Fátima R. Marques Bessa |