Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
733/2007-6
Relator: MARIA MANUELA GOMES
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
APREENSÃO DE VEÍCULO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/01/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I - É na relação pagamento integral do preço da coisa vendida / transferência da sua propriedade que o pactum reservati dominii encontra a sua razão de ser e daí que é perfeitamente admissível a constituição da reserva de propriedade com vista a garantir os direitos de crédito emergentes de um contrato de mútuo cuja finalidade última é a de assegurar o pagamento do preço da coisa ao seu alienante, o que, de resto, sempre acolheria protecção na própria lei, que permite como condicionante à transferência da propriedade, qualquer outro evento futuro que não apenas o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de compra e venda (artº 409º, 1, in fine, do CC).
II - A aceitar-se a formal e redutora interpretação de que só o incumprimento e consequente resolução do contrato de alienação conduz à apreensão e entrega do veículo alienado, a cláusula da reserva de propriedade deixaria de ter qualquer efeito prático, sempre que a aquisição do veículo fosse feita através do financiamento de terceiro - o que é hoje a regra face à evolução verificada nessa forma de aquisição.
(FG)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
Relatório.
1. S, SA, intentou, no dia 31.07.2006, no Tribunal Cível de Lisboa, procedimento cautelar de apreensão de veículo automóvel e dos respectivos documentos, nos termos do disposto no DL nº 54/75, de 12 de Fevereiro, contra E, alegando para tanto, essencialmente, que no exercício da sua actividade celebrou com os RR. um contrato de mútuo, pelo qual emprestou a este a quantia de € 14 377,52, destinada à aquisição, pelo requerido de um veículo automóvel, quantia essa que deveria ser paga em 72 prestações mensais, no valor de € 193,46; como condição da celebração do respectivo contrato e garantia do seu cumprimento, foi constituída e registada reserva de propriedade a favor da requerente sobre o mencionado veículo; o requerido não efectuou o pagamento de parte da 3ª prestação, nem a 4ª à 9ª prestações vencidas entre 23.04.2005 e 23.10.2005, na data dos respectivos vencimentos, nem posteriormente, quando lhe foi concedido um prazo suplementar de 10 dias para regularização, do que deriva que a mora se converteu em incumprimento definitivo.
Terminou pedindo que, como preliminar da respectiva acção principal, ao abrigo do art. 15º do DL 54/75 e sem audição do requerido, fosse ordenada a apreensão e entrega do veículo e dos respectivos documentos ao depositário que indicou.

Por despacho de 5.12.2006, foi liminarmente indeferido o requerimento inicial, com fundamento em que, por força do disposto no art. 409º, nº 1 do C. Civil, só o alienante, e não o financiador, pode reservar para si a propriedade do veículo (fls. 69).

Inconformada, a Requerente agravou desse despacho, tendo, no essencial, formulado as seguintes conclusões:
- O Meritíssimo Juiz a quo julgou providência manifestamente improcedente e nos termos do disposto no artigo 234°, nº 4 alínea b) e 234°-A nº 1 indeferiu liminarmente o Requerimento Inicial, por entender que não se encontravam reunidos os pressupostos para o decretamento da providência, nomeadamente não se verificava um dos pressupostos que é “só o alienante, e não o financiador, pode reservar para si a propriedade do veículo”:
- Ou seja, para o Meritíssimo Juiz a que não basta que se verifique a existência de reserva de propriedade inscrita a favor da Requerente acrescido do incumprimento das obrigações que originaram a mesma, é necessário, também, que a referida reserva de propriedade seja garantia do cumprimento de um contrato de compra e venda resolvido, e não de qualquer outro;
- Ora, salvo o devido respeito, discordamos deste entendimento que, em nossa opinião, não faz a correcta interpretação da Lei;
- A reserva de propriedade, tradicionalmente uma garantia dos contratos de compra e venda, tem vindo, face à evolução verificada nas modalidades de contratação, a ser constituída como garantia dos contratos de mútuo, sobretudo daqueles cuja finalidade e objecto é financiar um determinado bem, ou seja, quando existe uma interdependência entre o contrato de mútuo e o contrato de compra e venda;
- Por isso tem sido defendida uma interpretação actualista do artigo 18° do DL 54/75, no sentido de que a acção de resolução a propor na sequência do procedimento cautelar constante do artigo 15° do mesmo diploma, não seja apenas a do contrato de alienação, mas também do contrato de mútuo quando acessório do contrato de compra e venda, o que é o caso dos presentes autos;
- Nestas situações, tem-se verificado uma sub-rogação do mutuante na posição jurídica do vendedor, isto é, o mutuante ao permitir que o comprador pague o preço ao vendedor, sub-roga-se no risco que este correria caso tivesse celebrado um contrato de compra e venda a prestações, bem como, nas garantias de que este poderia dispor, no caso, a reserva de propriedade;
- Este entendimento encontra pleno acolhimento no artigo 591° do Código Civil, bem como, rio princípio da liberdade contratual estabelecido no artigo 405° do Código Civil, uma vez que, não se vislumbram quaisquer objecções de natureza jurídica, moral ou de ordem pública relativamente ao facto de a reserva de propriedade ser constituída a favor do mutuante e não do vendedor;
- Ora, a própria lei que regula o crédito ao consumo o admite no n.° 3 do seu artigo 6° quando refere que "o contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações deve indicar ainda (….) f) O acordo sobre a reserva de propriedade".
- Entendimento este, que também tem sido sufragado em diversos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa.
- Por outro lado, o direito que a Requerente tem de reaver a viatura não decorre das Cláusulas do contrato de mútuo, mas sim da propriedade que tem sobre ela, condicionada é cedo, mas ao não se verificar a condição que implicaria a transmissão da mesma para o Requerido, então a propriedade permanece na sua esfera jurídica e é com base nesse direito de propriedade que lhe assiste o direito de reaver a viatura ao abrigo do artigo 15° do Decreto-Lei n 54/75
- Posto isto, e encontrando-se inscrita a favor da Recorrente reserva de propriedade sobre a viatura que se requereu a apreensão, bem como, estando indiciariamente provado que o Requerido não cumpriu as obrigações que originaram a constituição da reserva de propriedade, sem prejuízo de se apresentarem outras provas, nomeadamente a prova testemunhal, julgamos que se encontram reunidos os pressupostos para o decretamento da requerida Providência cautelar de apreensão de veículo, nos termos do artigo 15° do Decreto-lei n.° 54/75;
Terminou, pedindo a procedência do recurso e a anulação ou revogação do despacho recorrido.

Não houve contra-alegação e o despacho recorrido foi sustentado.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.

2. Para a apreciação do recurso importa considerar os factos alegados pela requerente e acima referidos, bem como o seguinte:
- Em 8.06.2006, na Conservatória do Registo Comercial, a propriedade do veículo, marca Fiat, estava registada, desde 18.02.2005 a favor do requerido E e sobre o dito veículo encontrava-se registado e em vigor, também desde 18.02.2005, o encargo da “reserva”, a favor da requerente S, SA.

3. Neste recurso está em causa saber se pode ser decretada a apreensão do veículo em causa, requerida pelo titular da reserva de propriedade, nos termos do DL nº 54/75, face ao incumprimento do contrato de mútuo, cujo produto serviu para o financiamento da aquisição do mesmo veículo.
A resposta, adianta-se já, é afirmativa.
Como bem se refere no acórdão deste Tribunal de 20.10.2005, publicado em www.dgsi.pt, invocado nas alegações da recorrente, bem como em todos os acórdão referenciados no mesmo, e com cuja doutrina se concorda inteiramente e se segue de perto, dispõe o art. 15º, nº 1, do Decreto-lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro, que, “vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e dos seus documentos”.
Por sua vez, prescreve o art. 16°, nº1 que “provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordenará a imediata apreensão do veículo”.
Conforme resulta do disposto nos arts. 5°, 15° e 16° do Dec.-Lei nº 54/75, no caso de incumprimento pelo requerido das obrigações que originaram a reserva de propriedade, as condições de exercício do presente procedimento cautelar são:
a) que a reserva de propriedade se encontre registada, a favor do requerente, na Conservatória do Registo de Automóveis, em obediência à alínea b) do art. 5°/1 do Dec.-Lei nº54/75, de 12/02;
b) que o requerido não tenha cumprido as obrigações que originaram a reserva de propriedade.
Por seu lado, o art. 409º do CC, constituindo uma excepção à regra prevista no art. 408º do mesmo diploma, tem como efeito suspender a transmissão do bem. O alienante reserva para si a propriedade da coisa até ao cumprimento das obrigações assumidas pelo comprador. Assim, o bem só se transmite quando o comprador tiver cumprido as suas obrigações contratuais.
Ora, face a estes preceitos, tem sustentado parte da jurisprudência que o quadro jurídico-processual em que se integra a figura da apreensão cautelar de veículos é restrito, independentemente do regime de direito substantivo a que obedece a compra e venda com reserva de propriedade, associada ou não a contratos de financiamento bancário ou parabancário (v., entre outros, ac.R.L de 16.12.2003, (A. Abrantes Geraldes) in www.dgsi.pt).
De acordo com esta posição, a providência cautelar em causa só é susceptível de tutelar a existência de um direito de crédito vencido de natureza pecuniária garantido por hipoteca, e a falta de cumprimento da obrigação de prestação correspondente, ou de um contrato de compra e venda de veículo automóvel com convenção de reserva de propriedade e incumprimento das obrigações assumidas pelo comprador.
Porém, uma outra corrente jurisprudencial vem entendendo que é admissível a constituição da reserva de propriedade com vista a garantir um direito de crédito de terceiro, abrangendo a referência, no art. 18º, nº 1 do DL 54/75, ao “contrato de alienação” também o contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e que esteve na origem da reserva de propriedade (v., por todos e para além do acórdão citado em primeiro lugar, acórdãos desta Relação (e secção) de 13.02.2003 (Olindo Geraldes), CJ, tomo I, pág. 103; de 13.03.03, (Pereira Rodrigues) CJ, tomo II, pág. 74, de 27.06.2002 (Salvador da Costa) e de 05.05.2005 (Carlos Valverde) in www.dgsi.pt).
De facto, importa ter presente a evolução social no que concerne às novas modalidades de contratação, susceptíveis, pela sua peculiar estrutura, de alargar os tradicionais modelos processuais, em termos de englobarem as novas realidades contratuais, sobretudo quando se trata, como ocorre no presente caso, de contratos intensamente conexionados, fazendo apelo à interpretação actualista do citado nº 1 do artº 18º do DL nº 54/75.
A verdade é que, assiste-se nos últimos anos, a um enorme crescimento do crédito ao consumo, “…sendo hoje a regra para a aquisição de quaisquer bens com algum valor significativo - com especial relevo para os veículos automóveis - o recurso ao financiamento pelas instituições vocacionadas para o efeito, sobrando, por isso, não tanto a eventualidade do incumprimento pelo consumidor das obrigações emergentes do contrato de alienação, mas mais das do contrato de mútuo que aquele permite, podendo, em boa verdade, dizer-se que o pagamento do preço do bem alienado se confunde com o cumprimento integral das obrigações do contrato que tem como objecto o financiamento da sua aquisição” (cfr. mencionado acórdão de 05.05.2005)
Do disposto no art. 9º, nº 1 do C.C. resulta que à actividade interpretativa não basta o elemento literal das normas, devendo ainda atender-se à vontade do legislador, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as condições históricas da sua formulação e, numa perspectiva actualista, “as condições específicas do tempo em que é aplicada”.
No plano dos resultados da interpretação, mostra-se necessário, ainda confrontar o texto da lei com o seu espírito: havendo coincidência, estar-se-á perante a chamada interpretação declarativa; não a havendo, ocorre a chamada interpretação extensiva ou restritiva.
Alguns autores até admitem dever operar a interpretação correctiva se o seu resultado se configurar contrário a interesses preponderantes da ordem jurídica, em termos tais que, se o legislador tivesse considerado a situação, não a teria consagrado.
Ora, o citado art. 18º insere-se no âmbito das normas reguladoras da acção especial cautelar de apreensão de veículos automóveis, motivada pela ideia da sua deterioração no tempo necessário para a conclusão da acção declarativa de que é instrumental.
Por seu lado, a venda com reserva de propriedade (art. 409º do CC) é uma alienação sob condição suspensiva, em que se suspende o efeito translativo, produzindo-se imediatamente os demais. A transferência da propriedade fica dependente de evento futuro, que, em regra, será o cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte e daí que a hipótese mais frequente seja a da venda a prestações com espera de preço, em que se clausula, para maior segurança do vendedor, que a coisa vendida continuará a pertencer-lhe até o preço estar integralmente pago.
Parece, pois, perfeitamente admissível a constituição da reserva de propriedade com vista a garantir os direitos de crédito emergentes de um contrato de mútuo cuja finalidade última é a de assegurar o pagamento do preço da coisa ao seu alienante, o que, de resto, sempre acolheria protecção na própria lei, que permite como condicionante à transferência da propriedade, qualquer outro evento futuro que não apenas o cumprimento das obrigações decorrentes do contrato de compra e venda, como decorre da parte final do art. 409º, 1, do C. C.
Assim, o art. 409º, nº 1, do CC abrange, na sua letra e espírito, a hipótese de conexão entre o contrato de mútuo a prestações e o contrato de compra e venda do veículo automóvel por virtude de o objecto mediato do primeiro constituir o elemento preço do segundo, situação que se configura como se o pagamento do preço relativo ao contrato de compra e venda do veículo automóvel fosse fraccionado no tempo.
Ademais, a lei permite que se o devedor cumprir com dinheiro ou outra coisa fungível emprestado por terceiro pode sub-rogá-lo nos direitos do credor. Esta situação de sub-rogação não carece do consentimento do credor e depende de declaração expressa, no documento do empréstimo, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor (art. 591º do Código Civil).
Assim sendo, o disposto no artº 18º, nº 1 do DL nº 54/75, é de entender como extensiva ao contrato de mútuo conexo com o de compra e venda e cujo cumprimento esteve na origem da reserva de propriedade, a referência ao "contrato de alienação".
Como se salienta no mencionado acórdão de 5.05.2005 “a interpretação jurídica das normas não deve restringir-se a um conceptualismo formalista, despido das consequências práticas que dele possam provir”. E a ponderação das consequências “constitui ainda um momento da argumentação jurídica, pelo menos para todos quantos entendem - e são hoje muitos - que a inferência jurídica não pode ficar alheia aos efeitos práticos da solução inferida”
A formal e redutora interpretação de que só o incumprimento e consequente resolução do contrato de alienação conduz à apreensão e entrega do veículo alienado, tornaria inútil e sem efeito prático a cláusula da reserva de propriedade, sempre que a aquisição do veículo fosse feita através do financiamento de terceiro, o que constitui hoje a regra, face à evolução verificada nessa forma de aquisição.
O vendedor, recebendo do financiador o montante integral do preço do veículo, o que, na maioria dos casos, corresponde ao cumprimento integral do contrato de alienação pelo comprador, fica, em bom rigor, impedido de resolver esse contrato, porque integralmente cumprido e, logo, de fazer reverter a seu favor a cláusula de reserva de propriedade, até porque, verdadeiramente, esta foi estabelecida para garantir o cumprimento do contrato de financiamento.
Como refere o acórdão a que vimos fazendo referência “… incumprido este sem que o financiador, ainda que conjuntamente com o vendedor titular da reserva, pudesse accionar tal clausulado, invocando a resolução do único contrato que, em última análise, não foi cumprido - o contrato de mútuo -, chegaríamos à tão iníqua quanto absurda situação de o mutuário/comprador relapso não poder ser desapossado do veículo de que não é proprietário, exactamente porque a transferência da propriedade ficou salvaguardada pela cláusula da reserva de propriedade, esvaziando-se por completo a finalidade e utilidade desta”.
Em tais circunstâncias juridico-factuais e preenchido o requisito do registo da reserva de propriedade em favor do mutuante, como sucede no caso dos autos, não é de indeferir liminarmente a providência cautelar de apreensão de veículo automóvel pelo mesmo instaurada com o fundamento invocado.

4. Termos em que se acorda em conceder provimento ao agravo e revogar o despacho recorrido, devendo o procedimento seguir os seus ulteriores termos processuais, salvo se razão diversa da invocada obstar a tal.
Sem custas.

Lisboa, 1 de Fevereiro de 2007.
(Maria Manuela B. Santos G. Gomes)
(Olindo Geraldes)
(Ana Luísa Passos G.)