Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
248/11.2TYLSB.L1-8
Relator: MARIA ALEXANDRINA BRANQUINHO
Descritores: INSOLVÊNCIA
INCUMPRIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/27/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - O credor ou outro legitimado apenas pode requerer a declaração de insolvência com base na impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas do devedor nos casos previstos no art. 20º nº1 DO CIRE e no caso de manifesta superioridade do passivo sobre o activo no caso de o devedor ser uma pessoa colectiva ou património autónomo nos termos do art. 3º nº2 in fine.
II- O devedor, por sua vez, pode basear a sua oposição ao pedido na inexistência do facto em que se fundamenta o pedido (20º nº1) ou na inexistência da situação de insolvência.
III - Nos casos previstos no art. 20º nº1 do CIRE forma-se, com a prova de factos integradoras de uma ou mais das situações ali previstas, uma presunção de que o devedor se encontra insolvente.
IV - Para caracterizar a insolvência, a impossibilidade de cumprimento não tem de abranger todas as obrigações assumidas pelo insolvente e vencidas, sendo o que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.
(ISM)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: A… e B… vieram recorrer da sentença proferida na acção em que pedem a declaração de insolvência de C…, Lda.
A fundamentarem o que pedem, alegam os requerentes na p.i., que são credores da requerida no montante de € 5 219,99, quantia respeitante a rendas vencidas e não pagas e despesas ocasionadas por estragos causados no locado objecto de contrato de arrendamento celebrado entre as partes.
Os requerentes alegam, ainda, que a requerida «não tem capacidade de gerar lucros para pagar a sua dívida à requerente» e que «não se reconhece à requerida qualquer património imobiliário que esteja livre de ónus, encargos ou hipotecas ou quaisquer contas ou depósitos bancários», pelo que se encontra «impossibilitada de cumprir pontualmente as suas obrigações vencidas».
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A requerida deduziu oposição dizendo não ser devida a totalidade do crédito reclamado e que tem uma boa carteira de clientes, facturação a receber e eventos contratados que lhe permitem satisfazer todos os seus compromissos.
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Concluída a audiência de discussão e julgamento, a 1.ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. C…, Lda., pessoa colectiva nº ..., com sede na Rua …, lote …, freguesia de …, em …, encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de …sob o mesmo número… (alínea A) da matéria de facto assente).
2. Tem por objecto social a consultoria e serviços de marketing, publicidade, relações públicas, design, comunicação e imagem; gestão, organização, promoção e produção de eventos, comércio, importação, exportação e distribuição de brindes publicitários e artigos de relacionamento, ofertas e coleccionáveis, comercialização e produção de têxteis e peças de arte (alínea B) da matéria de facto assente).
3. Tem o capital social de € 5 001,00 (alínea C) da matéria de facto assente).
4. Mostra-se registado como administrador F…. (alínea D) da matéria de facto assente).
5. Os requerentes são proprietários da fracção autónoma designada pela letra …, correspondente ao rés-do-chão do prédio urbano em regime de propriedade horizontal situado na Rua …, nº14, freguesia e concelho de … descrito na Conservatória do Registo Predial de …ob o art. …, e que tem a licença de utilização nº …, emitida em 05/01/06 (alínea E) da matéria de facto assente).
6. Requerentes e requerida acordaram entre si, em 15/01/10, o arrendamento da fracção referida em E), por aqueles a esta, com início em 01/02/10, mediante o pagamento da renda mensal de € 500, pelo prazo de 5 anos, destinado a habitação permanente e exclusiva de J…, funcionário da requerida (alínea F) da matéria de facto assente).
7. Na data da celebração do contrato a requerida procedeu ao pagamento aos requerentes de € 1 000,00, correspondentes a um mês de caução e ao mês de Fevereiro de 2010 (alínea G) da matéria de facto assente).
8. Em 30/04/10 a requerida procedeu ao pagamento aos requerentes de € 1 500,00 correspondentes às rendas dos meses de Março e Abril de 2010, acrescidas de 50% (alínea H) da matéria de facto assente).
9. No dia 13/08/10 a requerida procedeu ao pagamento aos requerentes da quantia de € 500, correspondente à renda do mês de Maio de 2010 (alínea I) da matéria de facto assente).
10. A requerida não procedeu ao pagamento de qualquer outro valor aos requerentes (alínea J) da matéria de facto assente).
11. A requerida foi judicialmente notificada da resolução do contrato de arrendamento, nos termos do disposto nos arts. 1083º nº3 e 1084º nº1 do Código Civil em 23/12/10 (alínea K) da matéria de facto assente).
12. A requerida abandonou o locado em meados de Janeiro de 2011, deixando entreaberta a porta de acesso ao andar locado (resposta aos nºs 1 e 2 da base instrutória).
13. A fracção locada foi deixada em estado de degradação e falta de higiene (resposta ao nº3 da base instrutória).
14. Os requerentes efectuaram as seguintes obras, entre 15/01/11 e 15/02/11, a fim de repor a habitabilidade: limpeza e recuperação do fogão; limpeza e recuperação da máquina de lavar roupa; pintura completa das paredes; limpeza do pavimento e paredes; envernizado das zonas de madeira; substituição da vedação exterior da varanda; mudança das chaves (resposta ao nº5 da base instrutória).
15. Despendendo no total € 1 219,99 (alínea L) da matéria de facto assente e resposta ao nº 6 da base instrutória).
16. A requerida tem como clientes a R…, a X…, a U…., SA e a M…., SA (resposta ao nº10 da base instrutória).
17. A requerida tem eventos contratados para o Verão de 2011 no valor de € 250 000,00 (resposta ao nº12 da base instrutória).
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A 1.ª instância entendeu «que os requerentes não lograram alegar e provar factos subsumíveis a um dos índices de insolvência previstos no nº1 do art. 20º do CIRE, incumprindo o respectivo ónus probatório» e que, por isso, não havia «que analisar se a requerida logrou ilidir a presunção que se não chegou a formar».
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Os apelantes apresentaram as seguintes conclusões de recurso:
1. Não está neste momento em discussão, nos presentes autos, que os Recorrentes são credores da Recorrida, no montante total de € 4.719,99;
2. A M. Juiz “a quo” decidiu que o valor das rendas em dívida, “descontando o mês de caução pago”, perfaz € 3.500,00, montante das rendas em dívida que foi reconhecido como justificado, a que acresce o valor de € 1.219,99, despendido com a obra de reposição da habitabilidade do andar locado;
3. Como foi reconhecido na douta Sentença recorrida, “a declaração de insolvência pode ser requerida por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito”, conforme dispõe o artigo 20º, n.º 1/ do CIRE, pelo que é manifesta a legitimidade dos Recorrentes para requerer a declaração de insolvência da Recorrida;
4. Na petição inicial, por um lado, alegou-se que o montante relativamente elevado da dívida da Recorrida aos Recorrentes, totalmente vencida e exigível, revelava por si só a impossibilidade de a Recorrida satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, constituindo índice da situação de insolvência da Recorrida (artigo 3º, n.º 1/ e artigo 20º, n.º 1/, alínea b/ do CIRE);
5. Na petição inicial, por outro lado, alegou-se ainda o incumprimento, nos últimos seis meses, de dívidas de rendas de qualquer tipo de locação, como sucede sub judice com o contrato de arrendamento anteriormente identificado, constituindo igualmente índice da situação de insolvência da Recorrida (artigo 20º, nº 1/, alínea g/, iv/ do CIRE);
6. O que entendeu a M. Juiz “a quo”, erradamente segundo os Recorrentes, é que os factos provados e demonstrados nos autos são insuficientes para que se possa formar uma qualquer presunção de que a Recorrida se encontra em situação de insolvência;
7. Não está em causa apenas uma mera falta de pagamento das rendas de um andar tomado de arrendamento;
8. Os Recorrentes foram forçados, face ao não pagamento das rendas devidas, a desencadear o procedimento de resolução – unilateral e litigiosa – do respectivo contrato de arrendamento, por incumprimento contratual da inquilina Recorrida;
9. Tendo a Recorrida, na sequência, “abandonado o locado”, “em estado de degradação e falta de higiene”, “deixando entreaberta a porta de acesso ao andar locado”;
10. Não se tratam de circunstâncias normais e usuais de entrega e restituição do locado ao respectivo senhorio, conforme o determina e obriga a lei geral civil;
11. Manifestamente, estão em causa circunstâncias de incumprimento praticados pela Recorrida que são reveladoras da impossibilidade da devedora poder ou querer satisfazer a generalidade das suas obrigações;
12. Está ainda reconhecido pela Recorrida que esta, além dos ora Recorrentes, tem, pelo menos, outros cinco credores, de acordo com a listagem fornecida pela própria Recorrida, solicitada pelos Recorrentes nos termos do disposto no artigo 23º, n.º 3/ e do artigo 30º, n.º 2/ do CIRE;
13. A Recorrida reconheceu e confessou nomeadamente que tem outras dívidas, nomeadamente à Segurança Social, sendo que competia à Recorrida provar, conforme alegara na sua oposição, que a divida à Segurança Social era de “reduzido valor”;
14. É indiscutível que a confissão e o reconhecimento de outras dívidas e das dívidas à Segurança Social por parte da Recorrida tem de se considerar provada;
15. O que não foi considerado e relevado, erradamente, na douta Sentença recorrida;
16. Além disso, a Recorrida não demonstrou ter qualquer tipo de património, em ordem a demonstrar a sua situação de solvência;
17. Não só a própria Recorrida não alegou ser titular de qualquer património imobiliário ou mobiliário, como inclusivamente em relação aos direitos e obrigações contratuais que foram por si invocados para demonstrar a sua actividade comercial, foram dados como não provados;
18. A Recorrida não juntou também aos autos qualquer tipo de documentação extraída da sua contabilidade, nem juntou igualmente o registo e depósito da sua prestação de contas;
19. Os Recorrentes consideram que se formou a presunção de insolvência da Recorrida, que não foi elidida por esta, quer nos termos do disposto no artigo 20º, nº 1/, alínea b/, quer nos termos do disposto no artigo 20º, nº 1/, alínea g/, iv/ do CIRE;
20. Em suma, entendem os Recorrentes que deve concluir-se que a Recorrida se encontra manifestamente em situação de insolvência, pois está impossibilitada de cumprir pontualmente as suas obrigações vencidas ( artigo 3º, n.º 1/ do CIRE );
21. Logo, é manifesta a procedência do pedido formulado nesta acção de insolvência, pelo que com a motivação e os fundamentos expostos, a douta Sentença recorrida violou o artigo 3º, n.º 1/, artigo 20º, nº 1/, alínea b/ e artigo 20º, nº 1/, alínea g/, iv/ do CIRE. Donde, deve ser dado integral provimento ao presente recurso, revogando-se a Decisão proferida em primeira instância, na forma exposta, e substituindo-a por outra Decisão que reconheça e decrete a insolvência da Recorrida, fazendo assim V. Exas. a melhor interpretação da prova produzida e a mais correcta aplicação do Direito. Como é de Justiça.
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A aplicação do direito pressupõe que os factos estejam estabilizados, daí que as questões a decidir tenham que seguir ordem diversa da que foi adoptada nas conclusões.
Com efeito, uma das questões suscitadas diz respeito à decisão proferida sobre a matéria de facto, com os apelantes a sustentarem que, por ter sido confessado pela recorrida, se há-de ter por assente que existem outros credores.
Os apelantes têm razão pois, no seu articulado inicial afirmam que «não conseguem identificar quais são os cinco maiores credores da requerida» e pedem que seja esta a prestar tal informação, o que aconteceu.
Deste modo, aos factos já assentes há que aditar, por ter sido confessado, que: «Os cinco maiores credores da requerida são: B…SA – com sede na … Lisboa; AM… com sede no .; N….; F… Lda. – com sede na Rua …; Segurança Social – com sede no …».
Passando ao direito, importa referir que os apelantes tecem um conjunto de considerações, designadamente, as constantes das conclusões 7, 8, 9 e 10 que, embora extraídas de factos provados, relevam apenas no plano ético, sendo evidente a censurabilidade da actuação da requerida.
Todavia, a improcedência da acção teve como fundamento a conclusão a que chegou a 1.ª instância de que «os requerentes não lograram alegar e provar factos subsumíveis a um dos índices de insolvência previstos no nº1 do art. 20º do CIRE, incumprindo o respectivo ónus probatório» não havendo, por isso, «que analisar se a requerida logrou ilidir a presunção que se não chegou a formar».
Aquela conclusão merece a discordância dos apelantes, daí decorrendo a segunda questão a apreciar e decidir.
Pode, desde já, adiantar-se, que os recorrentes trouxeram pouca informação aos autos, presumindo-se que era sua convicção que, desde logo, incumbia à requerida o ónus de provar que não se encontrava em situação de insolvência.
Todavia, como faz notar a sentença recorrida «Quando, como no caso presente, o pedido de declaração de insolvência não é formulado pelo devedor, a legitimidade activa (ad substantium) é condicionada pela verificação de certas situações, elencadas nas alíneas a) a h)
do nº1 do art. 20º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Tal como no domínio da anterior lei, há que considerar, quanto ao ónus da prova, que ao credor requerente da insolvência é quase impossível demonstrar o valor do activo e do passivo da requerida, bem como a carência de meios para satisfação das obrigações vencidas.
Ciente desta dificuldade, a lei basta-se, nos casos de requerimento de declaração por outros legitimados, com a prova de um dos factos enunciados no art. 20º nº1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, que permitem presumir a insolvência do devedor. Ou seja, por um lado os factos que integrem cada uma das previsões do art. 20º nº1 são requisitos de legitimidade para a própria formulação do pedido pelo credor e, por outro, são também condição suficiente da declaração de insolvência – cfr. Lebre de Freitas in Pressupostos Objectivos da Declaração de Insolvência, Themis, Edição Especial, 2005, “Novo Direito da Insolvência”, pgs. 13 e ss.
Tal conclusão retira-se linearmente das disposições contidas no art. 30º nº5 (em caso de confissão dos factos alegados na petição inicial a insolvência é decretada se tais factos preencherem a hipótese de alguma das alíneas do nº1 do art. 20º) e 35º nº4 (em caso de não comparência à audiência de julgamento, do devedor ou de um seu representante, o juiz profere desde logo sentença de declaração de insolvência se os factos alegados na petição inicial forem subsumíveis ao nº1 do art. 20º).
Completando este quadro com as disposições do artigo 30º, nºs 3 e 4 do CIRE, a situação fica assim desenhada: o credor ou outro legitimado apenas pode requerer a declaração de insolvência com base na impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas do devedor nos casos previstos no art. 20º nº1 e no caso de manifesta superioridade do passivo sobre o activo no caso de o devedor ser uma pessoa colectiva ou património autónomo nos termos do art. 3º nº2 in fine. O devedor, por sua vez, pode basear a sua oposição ao pedido na inexistência do facto em que se fundamenta o pedido (20º nº1) ou na
inexistência da situação de insolvência.
(…) Ou seja, e finalizando o tracejado legal – nos casos previstos no art. 20º nº1 do CIRE forma-se, com a prova de factos integradoras de uma ou mais das situações ali previstas, uma presunção de que o devedor se encontra insolvente.
A análise do nosso caso concreto terá que se iniciar, assim, pela análise dos factos provados e sua subsunção ao nº1 do art. 20º - tendo em conta o pedido e causa de pedir formulados nos autos, e só se se chegar a uma conclusão positiva se pode avançar no percurso supra traçado.
O art. 20º nº1 estabelece uma previsão alargada e minuciosa de factos geradores de presunção de insolvência: suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas – al. a); falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações – al. b); fuga do titular da empresa ou dos administradores do devedor, ou abandono do local em que a empresa tem a sede ou exerce a sua principal actividade, relacionados com a falta de solvabilidade do devedor e sem designação de substituto idóneo – al. c); dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens e constituição fictícia de créditos – al. d); insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente em processo executivo movido contra o devedor – al. e); incumprimento de obrigações previstas em plano de insolvência ou em plano de pagamentos (art. 218º nº1, al. a) e nº2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa) – al. f); incumprimento generalizado, nos últimos seis meses de dívidas tributárias, contribuições e quotizações para a segurança social, dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da sua cessação ou violação, rendas de qualquer tipo de locação, prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido por hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência - al.g); sendo o devedor pessoa colectiva ou património autónomo, por cujas dívidas nenhuma pessoa individual responda pessoal e ilimitadamente, manifesta superioridade do passivo sobre o activo segundo o último balanço aprovado, ou atraso superior a nove meses na aprovação e depósito das contas, se a tanto estiver legalmente obrigado – al. h).
Os requerentes alegaram factos conducentes, na sua perspectiva, à verificação da situação prevista nas alíneas b) e g) iv) do nº1 do art. 20º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. No tocante à alínea g) temos o facto de a dívida à requerente corresponder, pelo menos em parte, a rendas de contrato de locação (factos nºs 6 a 12 da matéria de facto provada).
A alínea g) do nº1 do art. 21º corporiza os que, na experiência do tribunal são os grandes grupos de obrigações incumpridas. Atenta a previsão legal, basta a prova de factos que integrem uma destas alíneas. Não há qualquer exigência quanto ao significado do incumprimento das dívidas elencadas relativamente à incapacidade financeira do devedor (cfr. João Labareda e Carvalho Fernandes, loc. cit., I vol., pgs. 137 e 138). Basta que o incumprimento se verifique para que ocorra motivo bastante para a iniciativa dos credores que não têm que se preocupar com a demonstração de penúria do devedor. Nenhuma distinção é feita em função da qualidade ou natureza do devedor nem, dentro dos diversos tipos de dívidas consideradas, em razão do peso que representam no total do passivo. “Fundamental …”, escrevem estes autores, “…é que, em respeito à expressão inicial da alínea, haja o incumprimento generalizado dentro de cada categoria de obrigações, não bastando, por isso, que o devedor deixe de cumprir as inerentes a um contrato, mantendo a satisfação das que resultem de outros.
Aquela eventualidade só será relevante se, no caso apontado, apenas houver um título fonte das obrigações que se consideram, porque então já existe, para os efeitos do artigo anotando, a presunção bastante de incumprimento geral de obrigações de um mesmo tipo – ainda que numa situação destas se intuam mais óbvias as hipóteses de o devedor alegar e provar a inexistência da impossibilidade de cumprimento caracterizadora da insolvência.”
Mais advertem os mesmos Ilustres Anotadores – o incumprimento das obrigações tipificadas na alínea g) só é relevante para fundamentar o requerimento de insolvência quando decorrer pelo período de seis meses anteriores à introdução em juízo.
Quanto ao incumprimento para com a requerente não basta alegar e provar, como sucedeu no caso dos autos o incumprimento em relação a um único contrato de locação. O que objectivamente releva é, obviamente, que seja o único feixe de obrigações vencidas deste tipo. Não podemos, pois, não obstante a não prova da existência de outros contratos de locação (resposta de não provado dada a 13º da base instrutória), ter por apurado que o incumprimento por parte da requerida é generalizado relativamente a este tipo de obrigações. Acresce que como supra se transcreveu, mesmo a ter-se apurado ter este contrato de locação sido celebrado para residência de um funcionário que, naturalmente, poderia exercer as suas funções também no domicílio, tal não transforma o locado no local onde a requerida exerce a sua actividade ou tem a sua sede.
Analisemos então o demais índice invocado pelos requerentes – falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações – al. b).
Temos apurado o incumprimento de obrigações da requerida para com os requerentes relativos a rendas dos meses de Junho de 2010 a Dezembro de 2010 e a igual montante a título de indemnização por atraso na restituição da coisa nos termos do disposto no art. 1045º do Código Civil quanto ao mês de Janeiro de 2011 (mês devido por inteiro dada a data apurada de tomada de posse por parte dos requerentes), à razão de € 500 por mês, o que, descontando o mês de caução pago perfaz € 3 500, a que acrescem € 1 219,00 relativos às despesas efectuadas pelos requerentes para repor as condições de habitabilidade, devidos pela
requerida atento o disposto nos arts. 1038º al. i), 1043º e 1044º do Código Civil.
Ou seja, temos € 4 719,00 devidos pela requerida aos requerentes, cujo incumprimento se estende entre Junho de 2010 e Fevereiro de 2011.
Apurou-se também, e como circunstâncias que rodearam o incumprimento, que os requerentes resolveram o contrato de arrendamento, por falta de pagamento de rendas.
Os dados de que dispomos são claramente insuficientes para que se possa ter por formada a presunção de que a requerida se encontra em situação de insolvência: sabemos que há créditos relativos a um contrato de locação relativos a sete meses imediatamente anteriores à entrada da acção mas nada mais.
A conclusão impõe-se – os requerentes não lograram alegar e provar factos subsumíveis a um dos índices de insolvência previstos no nº1 do art. 20º do CIRE, incumprindo o respectivo ónus probatório.
Assim sendo, não há sequer que analisar se a requerida logrou ilidir a presunção que se não chegou a formar».
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Exceptuando a afirmação de que «Tal como no domínio da anterior lei, há que considerar, quanto ao ónus da prova, que ao credor requerente da insolvência é quase impossível demonstrar o valor do activo e do passivo da requerida, bem como a carência de meios para satisfação das obrigações vencidas», pouco se nos oferece acrescentar à doutrina seguida na 1.ª instância.
No que se refere àquela afirmação, há algum fatalismo que é necessário contrariar pois, aderir a ele, seria considerar que, para defesa dos seus direitos, o legislador concebera e colocara nas mãos dos credores um instrumento ineficaz.
Os credores que desencadeiam o processo de insolvência têm um ónus, é certo. Mas têm, igualmente, a expectativa de que seja accionado o princípio do inquisitório porque o CIRE o adoptou. E, se tal expectativa for gorada, devem reagir contra ela pela via do recurso.
Todavia, aquele princípio não tem a elasticidade de suprir uma ineficaz estratégia do credor.
No caso em análise, sabendo-se que à recorrida pouco mais seria imposto do que vir aos autos indicar os cinco maiores credores, era expectável uma actuação diligente dos apelantes em ordem a alegarem e provarem que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento perante aqueles credores, se revelava uma impossibilidade de satisfação pontual da generalidade das obrigações por parte da devedora.
Deste modo, ainda que assista razão aos apelantes em ver aditado o facto confessado de que existem, pelo menos, mais cinco credores, não se conhecendo os montantes e as circunstâncias do incumprimento, aquele aditamento não interfere com o desfecho da acção.
Faz-se, todavia, notar que, uma vez que a requerida afirmou e provou nos autos que «tem como clientes a R…, a X…, a U…, SA e a M…, SA (resposta ao nº10 da base instrutória)» e «que tem eventos contratados para o Verão de 2011 no valor de € 250 000,00», os recorrentes já dispõem de informação para diligenciar pela cobrança do seu crédito.
A tese seguida na sentença recorrida que subscrevemos corresponde, no essencial, ao que também foi entendido no Acórdão desta Relação de 05.05.2011 (www.dgsi.pt) que deu conta de que «Vem sendo entendido (…) que para caracterizar a insolvência, a impossibilidade de cumprimento não tem de abranger todas as obrigações assumidas pelo insolvente e vencidas, sendo o que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos».
E, debruçando-se sobre o n.º 1 do art.º 20.º do CIRE, o mesmo Acórdão relembra que segundo Catarina Serra «os factos enunciados na norma do nº 1 do art. 20º são indícios ou sintomas da situação de insolvência (factos-indíce). É através deles que, normalmente, a situação de insolvência se manifesta ou se exterioriza. Por isso, a verificação de qualquer um deles permite presumir a situação de insolvência do devedor e é condição necessária para a iniciativa processual de certos sujeitos, nomeadamente dos responsáveis legais pelas dívidas do devedor, dos credores e do Ministério Público».
Citando a obra de Carvalho Fernandes e João Labareda, o Acórdão em análise relembra: «uma vez que o incumprimento de só alguma ou algumas obrigações apenas constitui facto-índice quando, pelas suas circunstâncias, evidencia a impossibilidade de pagar, o requerente deve então, juntamente com a alegação de incumprimento, trazer ao processo essas circunstâncias das quais, uma vez demonstradas, é razoável deduzir a penúria generalizada». E, citando Menezes Leitão, faz notar que «a insolvência não necessita de uma cessação generalizada de pagamentos podendo resultar apenas de algumas faltas de pagamento ou mesmo de uma só, desde que feitas em circunstâncias ou acompanhadas de actos de onde se possa inferir a impossibilidade de o devedor satisfazer a generalidade dos seus compromissos».
Ora, não é, seguramente, o estado em que foi deixado o locado, o indício de que a requerida está em situação de penúria. Ilustrará, isso sim, uma forma de estar merecedora de censura social.

Deste modo, acordam os Juízes da Secção Cível em negar provimento à apelação e, consequentemente, em confirmar a sentença recorrida.
Custas a cargo dos apelantes.

Lisboa, 27 de Outubro de 2011

Maria Alexandrina Branquinho
António Valente
Ilídio Sacarrão Martins