Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8588/2006-7
Relator: ANA RESENDE
Descritores: JULGADO DE PAZ
COMPETÊNCIA MATERIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/14/2006
Votação: MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I - Na Lei n.º78/2001, de 13 de Julho, que regula a competência, organização e funcionamento dos julgados de paz e a tramitação dos processos da sua competência, não se faz indicação expressa sobre a exclusividade ou alternatividade da sua competência em relação aos tribunais judiciais.
II - O princípio da atribuição de competência aos tribunais judiciais para julgarem as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro e artigo 66.º do Código de Processo Civil) conjugado com o facto de (a) uma acção intentada em julgado de paz poder vir a prosseguir nos tribunais judiciais, de (b) a instalação dos julgados de paz não se traduzir numa derrogação da competência dos tribunais judiciais e (c) de tais tribunais assumirem carácter experimental, a impor a existência de um conselho de acompanhamento e instalação a funcionar na dependência da Assembleia da República, todos estes aspectos são indicativos da inexistência de um regime de exclusividade.
III- A consideração do elemento histórico releva igualmente pois a lei vigente não acompanhou o respectivo projecto na parte em que expressamente consagrava a competência exclusiva dos julgados de paz.

(SC)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NA 7ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I – Relatório

1. O MINISTÉRIO PÚBLICO veio interpor recurso de agravo do despacho que declarou a incompetência do Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa, em razão da matéria, nos autos movidos pela R.[…] SA contra COMPANHIA DE SEGUROS […]SA.
2. Nas suas alegações, formula as seguintes conclusões:
- Vem o presente recurso interposto da sentença de fls. 68 a 69 dos autos em epígrafe, na qual a Mma. Juiz a quo julgou procedente a excepção dilatória de incompetência absoluta – em razão da matéria, e em consequência declarou o Tribunal de Pequena Instância Cível de Lisboa incompetente em razão da matéria para a resolução do litígio dos autos, absolvendo a R. da instância, por ter considerado que são competentes, materialmente e de forma exclusiva para apreciar e decidir a acção dos autos, os Julgados de Paz;
- A Lei 78/2001, de 13 de Julho, que regula a competência e funcionamento dos julgados de paz e a tramitação dos processos da sua competência, não consagra qualquer norma de competência exclusiva aos julgados de paz, ao contrário dos projectos de lei que foram discutidos nos trabalhos preparatórios.
- A actuação dos julgados de paz está vocacionada para permitir a participação cívica dos interessados e para estimular a justa composição dos litígios por acordo das partes.
- Os julgados de paz apenas podem julgar as acções referidas no art.º 9, da Lei 78/2001, de 13 de Julho, desde que o seu valor não exceda a alçada do tribunal de 1ª instância e no decurso das mesmas não sejam suscitados incidentes, nem requerida a prova pericial.
- Tal regime aliado às demais particularidades dos julgados de paz não autorizam, salvo melhor opinião, concluir com segurança que aqueles são detentores de competência exclusiva para tais acções em face do actual quadro jurídico.
- Os julgados de paz foram criados com carácter experimental e circunscritos apenas a algumas comarcas.
- Com a entrada em vigor da Lei 78/2001, de 13 de Julho não foram adoptadas quaisquer alterações ao Código de Processo Civil e à Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais relativas aos julgados de paz.
- A não consagração na Lei 78/2001 de forma expressa, de competência exclusiva dos julgados de paz, a inércia legislativa, apesar das tomadas de posição do Conselho de Acompanhamento, no sentido de isso ser posto em letra de lei, o carácter experimental dos julgados de paz, a instalação dos mesmos limitada a algumas comarcas e a falta de previsão da representação do Estado, apontam no sentido da competência alternativa.
- Atribuindo-se assim aos julgados de paz uma competência material alternativa, com virtualidades de meio de aliviar a consabida sobrecarga dos tribunais judiciais, onde avultam razões de eficácia do sistema e a atribuição ao demandante da liberdade de escolha entre os dois tribunais.
- O reconhecimento de que dois tribunais (um julgado de paz e um tribunal judicial) têm idêntica competência material não implica qualquer entorse aos princípios gerais, uma vez que pertencem a estruturas jurisdicionais diferentes.
- Pelo exposto e à luz dos argumentos em que nos apoiamos, entendemos que a competência material dos julgados de paz é optativa relativamente aos tribunais judiciais com competência territorial competente, cabendo, assim, ao demandante escolher entre um e outro tribunal.
- Porém, e mesmo que assim se não entendesse sempre seria de ter em conta a alínea a) do art.º 9, da Lei 78/2001, de 13 de Julho, exclui da competência dos julgados de paz as acções destinadas a efectivar o cumprimento de obrigações que tenham por objecto prestação pecuniária e de que sejam credores pessoas colectivas, como se verifica no caso em apreço, pelo que a alínea h) da citada normal legal deverá ser interpretada de forma integrada com aquela, isto é, de forma a harmonizá-la com a consagrada exclusão.
- O Tribunal de pequena instância cível de Lisboa é o competente para apreciar e decidir a acção dos autos.
- No caso em apreço, a A. R.[…] SA, escolheu o Tribunal da Pequena Instância Cível de Lisboa, pelo que acção deverá ser apreciada e decidida neste TPIC, e não nos julgados de paz.
- Assim, violou a douta sentença proferida a fls. 68 e 69 as regras de competência material do tribunal, nomeadamente os artigos 211 da CRP, 66, do CPC e 101 da LOFTJ em conjugação com a Lei 78/2001, de 13 de Julho.
3. Não houve contra-alegações.
4. Foi proferido despacho de sustentação.
5. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

 *
II –  Enquadramento facto - jurídico

1. da factualidade

Para o conhecimento do presente recurso relevam as seguintes ocorrências processuais:
- A Autora pediu a condenação da Ré a satisfazer-lhe uma indemnização pelos prejuízos sofridos na sequência de um acidente de viação.
- Foi atribuída à acção o valor 746,15€.

2. do direito

Sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formulado, importando em conformidade decidir as questões (1), nas mesmas colocadas, com excepção daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, em causa está saber se a competência dos julgados de paz para julgar os presentes autos deve ser considerada alternativa ou exclusiva.

Neste sentido, isto é, da exclusividade, pronunciou-se a decisão sob recurso, considerando o disposto na alínea h) do art.º 9, da Lei 78/2001, de 13 de Julho, por a acção se destinar a efectivar a responsabilidade civil extracontratual baseada em facto ilícito, sendo o valor atribuído inferior à alçada do Tribunal Judicial de 1ª instância, e apoiando-se em referências jurisprudenciais e doutrinais em tal sentido.

Esse entendimento assenta, sobretudo, na ênfase que deverá ser atribuída à ratio legis que está na base da criação dos julgados de paz, isto é, de servirem a cidadania permitindo a participação dos interessados, estimulando o recurso ao acordo, como a justa composição do litígio, através de procedimentos orientados por princípios de simplicidade e informalidade (2), mas também aliviando a reconhecida sobrecarga dos tribunais judiciais.

Tais fins serão assim atingidos com a efectiva diferenciação, e não concorrência, das áreas de intervenção dos julgados de paz e dos tribunais judiciais, pelo que o art.º 9, da Lei 78/2001, ao delimitar a competência dos julgados de paz em razão da matéria, procedendo à identificação das acções que cumpre a estes apreciar, tem subjacente o princípio que essa competência é dos mesmos exclusiva (3).

Sendo certo que no diploma em causa não é feita a indicação, expressa, se a competência é exclusiva ou alternativa, pese embora a bondade dos argumentos enunciados, divergimos do entendimento apontado, cientes que se trata de questão duvidosa.

Vejamos.

Do art.º 209, da CRP, constam as categorias de tribunais, referenciando-se, entre outros, os tribunais judiciais de primeira e segunda instância, n.º 1, a) podendo também existir tribunais marítimos, arbitrais e julgados de paz, n.º2, enquanto que no art.º 211, igualmente da CRP, explicita-se que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal, e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais, estabelecendo-se, deste modo, a sua competência em termos residuais, e como tal extensível a qualquer causa cujo conhecimento não tenha sido concedido a outra categoria de tribunais.

O mesmo princípio surge consignado no art.º 66, do CPC, dizendo-se que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, sendo também reafirmado no art.º18, n.º1, da Lei 3/99, de 13.01 (4).
 
Por sua vez a já mencionada Lei 78/2001, de 13.07, regula a competência, organização e funcionamento dos julgados de paz, bem como a tramitação dos processos que aí corram termos.

Assim, restringida a competência ao conhecimento de acções declarativas, art.º 6, e para questões cujo valor não exceda a alçada do tribunal da 1ª instância, art.º8, delimita-se no art.º 9, em razão da matéria, as acções que os julgados de paz são competentes, nomeadamente, e para o caso que agora nos interessa, acções destinadas a efectivar o cumprimento de obrigações, com excepção das que tenham por objecto prestação pecuniária e de que seja ou tenha sido credor originário uma pessoa colectiva (5), n.º1, a), bem como as acções que respeitem à responsabilidade civil contratual e extracontratual, n.º1, h).

Prevê-se, contudo, expressamente, que por ter sido suscitado um incidente, ou por ter sido requerida a realização de prova pericial, artigos 41 e 59, a acção por razões processuais prossiga os seus termos nos tribunais judiciais.

Por outro lado, no art.º 64 é atribuído carácter experimental aos julgados de paz, passando pela existência de um conselho de acompanhamento e instalação a funcionar na dependência da Assembleia da República, art.º 65, sendo instalados apenas em alguns municípios.

Saliente-se ainda, que nem a criação e instalação dos julgados de paz operadas por força da Lei 78/2001, nem as posteriormente ordenadas (6), se traduziram numa derrogação da competência dos tribunais judiciais, nas comarcas territorialmente abrangidas.

Tais aspectos surgem-nos assim como indicativos da inexistência de um regime de exclusividade que, como vimos, não resulte do elemento literal, a atender no esforço interpretativo a realizar, sendo que na consideração do elemento histórico, é sem dúvida relevante, o facto de a lei vigente não ter acompanhado o respectivo projecto na parte em que expressamente se consagrava a competência exclusiva dos julgados de paz.

Diga-se por último, e no concerne ao elemento teológico, na vertente acima apontada, que a preponderância que lhe é atribuída para justificar a exclusividade (7), não se configura como a solidez necessária à desconsideração dos aspectos salientados, no sentido perfilhado (8), de os julgados de paz não deterem a competência exclusiva nas matérias indicadas no art.º 9, assistindo às partes a possibilidade de optarem pelos tribunais judiciais com competência territorial concorrente.

Desta forma, e reportando-nos aos autos, configurados como uma acção destinada a efectivar responsabilidade civil extracontratual baseada em facto ilícito, sempre poderia a Autora recorrer ao Tribunal de Pequena Instância Civil de Lisboa para o respectivo conhecimento, sendo este o Tribunal onde os autos deverão prosseguir, por ser o competente para o efeito.

Consequentemente, face ao entendimento seguido, fica prejudicado o conhecimento da exclusão da competência dos julgados de paz para a presente acção, ao abrigo do n.º1, a) do art.º 9, da Lei 78/2001.

*
III – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao agravo, e assim revogar a decisão recorrida, julgando competente, em razão da matéria, o tribunal recorrido para apreciar a presente acção.
Sem custas.
*

Lisboa, 14 de Novembro de 2006

Ana Resende
Dina Monteiro
Luís Espírito Santo (com declaração de voto de  vencido que se segue)



Agravo 8588 – Voto de vencido.

Discordo da posição que fez vencimento pela seguinte ordem de razões :

1º - A questão em causa é efectivamente duvidosa uma vez que o legislador não clarificou, em termos expressos - como devia –, a natureza e âmbito de competência dos Julgados de Paz.
Porém,

2º - Concluir-se, sem recurso a outros elementos interpretativos, que nem a criação e instalação dos julgados de paz operadas por força da Lei 78/2001, nem as posteriormente ordenadas, se traduziram numa derrogação da competência dos tribunais judiciais, nas comarcas territorialmente abrangidas, equivale, salvo o devido respeito, a dar por demonstrado o que  se discute - e que teria, por isso mesmo, que ser demonstrado.

3º - No sentido da competência exclusiva dos Julgados de Paz concorre a redacção dos artsº 9º, 41º, 59º e 67º, da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, que inculca precisamente a ideia de que tais acções terão que ser obrigatoriamente intentadas nos Julgados de Paz e não nos Tribunais de Pequena Instância Cível.

Ao invés,

4º - O carácter alternativo dos Julgados de Paz relativamente aos Tribunais de Pequena Instância Cível, pela sua natureza excepcional, teria que resultar expressamente da Lei, uma vez que esta não prevê, via de regra, a liberdade de opção do interessado relativamente à instância judicial competente para conhecer do pleito introduzido em juízo.

Por outro lado,

5º - O sistema jurídico vigente prevê a manutenção das acções pendentes - à data da criação e instalação dos julgados de paz - nos tribunais onde foram propostas ( artº 67º ), o que significa que, a partir daí, cada uma segue para a instância competente, sem que exista entre elas qualquer tipo de concorrência ou possibilidade de opção por rumo processual diverso.

Com efeito,

6º - O carácter obrigatório e a exclusividade de competência acabam por conferir aos Julgados de Paz o desígnio de aliviar o sistema judicial da sobrecarga de causas com expressão económica pouca significativa, onde a complexidade factual e técnica é relativamente reduzida, e que reclamam soluções rápidas, simplificadas, menos dispendiosas, com imediação e economia de meios processuais, num clima de persuasiva e organizada busca de consensos.

Pelo que se conclui que  

7º - Não se encontrando a competência dos Tribunais de Pequena Instância Cível definida em função da matéria específica sobre que versam as acções a que corresponde a forma de processo sumaríssimo, há que considerar a competência especial dos Julgados de Paz como delimitadora da medida de jurisdição daqueles tribunais.



_______________________________
1.-O Tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos ou fundamentos que a parte possa indicar para fazer valer o seu ponto de vista, sendo que, quanto ao enquadramento legal, não está sujeito às razões jurídicas pela mesma invocadas, pois o julgador é livre na interpretação e aplicação do direito, art.º 664, do CPC.

2.-Art.º 2, n.º1 e 2, da Lei 78/2001, de 13 de Julho.

3.-Crf. Acórdãos da Relação do Porto, de 16.2.2006 e 27.6.2006, ambos in www.dgsi.pt, Cardona Ferreira, Julgados de Paz, Organização, Competência e Funcionamento, pag. 29, João Miguel Galhardo Coelho, Julgados de Paz e Mediação de Conflitos, pag. 27.

4.-Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais vigente.

5.-Consigna-se no art.º 37, que nos processos instaurados nos julgados de paz podem ser partes pessoas singulares, com capacidade judiciária, ou colectivas, sem prejuízo do disposto na a) do n.º1, do art.º 9.

6.-Cfr. DL 329/2001, de 20 de Dezembro, DL 140/2003, de 2 de Julho e DL 9/2004, de 9 de Janeiro.

7.-Sempre será possível ao poder legislativo clarificar as finalidades de política legislativa que pretendia prosseguir, e que consequentemente, por inequívocas serão consideradas na aplicação normativa.

8.-Cfr. Acórdãos da RL 12.6.2006 e 14.9.2006, in www.dgsi.pt.