Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | FERNANDA ISABEL PEREIRA | ||
| Descritores: | ACÇÃO DE DESPEJO FALTA DE PAGAMENTO DA RENDA ERRO NA FORMA DO PROCESSO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 03/13/2008 | ||
| Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | AGRAVO | ||
| Decisão: | REVOGADA A DECISÃO | ||
| Sumário: | I – A resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de renda pela via extrajudicial apresenta-se como uma faculdade, isto é, como mais um meio colocado à disposição do senhorio para pôr termo ao contrato, numa perspectiva de agilização e celeridade que o legislador quis imprimir à clarificação jurídica de tais situações após decurso de um período de três meses consecutivos de incumprimento. II - A tal entendimento não obsta o estatuído do artigo 14º do NRAU, sendo lícito interpretá-lo que se aplica a todas as acções de despejo qualquer que seja o seu fundamento legal. III - O conceito de acção de despejo tem de interpretar-se em sentido amplo, abrangendo não só a figura da acção de despejo stricto sensu, a instaurar quando a via judicial é o único modo de obter a cessação - por resolução ou denúncia – da situação jurídica do arrendamento, mas também todas as acções declarativas intentadas pelo senhorio para promover a cessação do contrato quando esta não operou ipso iure, como acontece com a caducidade, nem extrajudicialmente. F.G. | ||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA: 1. Relatório: V intentou, em 20 de Março de 2007, no Tribunal da Comarca de Sintra, a presente acção de despejo, com processo sumário, contra R e marido, M, pedindo se decrete a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre autor e ré com fundamento na falta de pagamento de rendas e se condenem os réus a despejar imediatamente o locado e a pagar-lhe a quantia de € 1.660,80, a título de rendas vencidas, acrescida das rendas vincendas e de indemnização. Alegou, para o efeito, que deu de arrendamento à ré, através de contrato de duração limitada, celebrado a 28 de Fevereiro de 2005, a fracção autónoma correspondente ao 8° andar, letra "D", do prédio urbano sito na Tapada das Mercês, Algueirão - Mem Martins, pelo prazo de cinco anos, com início no dia 1 de Março de 2005, mediante a renda mensal de € 400,00, renda que a ré deixou de pagar a partir da vencida a 01.12.2006. Considerando-se regularmente citados, os réus não contestaram no prazo legal. Foi proferido saneador-sentença, que, considerando verificar-se erro na forma do processo, absolveu os réus da instância. Inconformado, agravou o autor, formulando na sua alegação a seguinte síntese conclusiva: 1.ª O recorrente não concorda com interpretação dada pelo Tribunal a quo, ao disposto nos artigos 1083º, n° 3, 1084º n° 1 do C.C. e no artigo 14° n° 1 do NRAU, quando conclui que o novo regime da resolução do contrato por falta de pagamento de rendas, exclui o recurso à via judicial, antes estatui que a resolução do contrato opera obrigatoriamente e apenas por força da comunicação aos arrendatários. 2.ª A alteração no n° 1 do art. 1048° C.C., no sentido de acrescentar mais uma possibilidade de pagamento das rendas, até à oposição na execução sem excluir a possibilidade que já existia de tal pagamento ser efectuado até ao termo do prazo da contestação da acção declarativa, traduz a vontade do legislador de não eliminar, antes pelo contrário, de admitir, a via judicial para fazer operar a resolução do contrato de arrendamento, por falta de pagamento de rendas 3.ª O disposto nos artigos 1083° n° 3, 1084 n° 1 do C.C. e no artigo 14° n° 1 do NRAU, deve ser conjugado com outras disposições legais, designadamente, com os artigos 1048º n° 1 e 1084° n° 3 do C.C. que, prevêem, respectivamente, as duas formas - judicial e extrajudicial - de fazer operar a resolução do contrato por falta e pagamento de rendas, ao estabelecerem prazos e efeitos jurídicos diferentes para cada uma das formas. 4.ª Assim, deste novo regime, se conclui que a resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio, por falta de pagamento de renda não só opera por comunicação à contraparte, como também por recurso à via judicial. 5.ª A presente acção declarativa condenatória com processo comum na forma sumária é um meio idóneo para obter a procedência dos respectivos pedidos, designadamente a resolução do contrato e o despejo do arrendado. 6.ª O impedimento de usar tal meio poderá criar situações de maior morosidade na realização do direito de resolução efectiva do contrato de arrendamento, com base em falta de pagamento de rendas, e até, nalguns casos, impedimento de realização de tal direito, frustrando a "ratio legis" da Lei 06/2006 de 27/02 7.ª Sendo a petição inicial o meio idóneo para intentar a acção judicial na conclusão 5.ª, não se verifica qualquer erro na forma de processo, bem como a nulidade daquela e do processado subsequente. 8.ª Deve ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por outra decisão, que julgue válida a petição inicial e o processado subsequente e, em consequência, ordene a prossecução dos autos. 9.ª Caso o Tribunal da Relação julgue existir erro na forma do processo por ser um meio inidóneo para o pedido de resolução do contrato, deverá, em obediência ao princípio da economia processual consagrado no artigo 199° n° 1 do C.P.C., a douta sentença ser revogada parcialmente e reformulada, por forma que julgue válida a petição inicial e o processado subsequente em relação aos pedidos do pagamento das rendas em mora e da indemnização contra os RR, arrendatários. Não houve contra-alegação. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. 2. Fundamentos: 2.1. Balizado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação do agravante, a questão a resolver é a de saber se existe, ou não, erro na forma do processo ou nulidade que conduza à absolvição da instância, relevando para o conhecimento do agravo os seguintes factos: a) por acordo escrito celebrado a 28 de Fevereiro de 2005, o autor deu de arrendamento à ré a fracção autónoma correspondente ao 8° andar, letra "D", do prédio urbano sito na Tapada das Mercês, Algueirão - Mem Martins, pelo período de cinco anos, com início no dia 1 de Março de 2005, mediante a renda mensal de € 400,00; b) Foi acordado que a renda seria paga no escritório do mandatário do autor no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que dissesse respeito; c) a ré deixou de pagar aquela renda a partir da vencida a 01.12.2006. 2.2. Está em causa neste recurso a resolução de um contrato de arrendamento celebrado em 28 de Fevereiro de 2005, relativamente ao qual o incumprimento contratual que lhe serve de fundamento - falta de pagamento de rendas - e a propositura desta acção se situam em 1 de Dezembro de 2006 e 20 de Março de 2007, respectivamente, ou seja, já depois da entrada em vigor do Novo Regime do Arrendamento Urbano aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro, doravante designado por NRAU. À luz do disposto no artigo 59º têm aplicação as normas do NRAU, posto que estas se aplicam às relações contratuais constituídas que subsistam na data da sua entrada em vigor, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias, que, ora, não relevam, bem como todas aquelas que foram por este introduzidas noutros diplomas legais, nomeadamente no Código Civil. Assim, em matéria de resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio com fundamento na falta de pagamento de rendas, estabelece o nº 3 do artigo 1083º do Código Civil que “É inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora superior a três meses no pagamento da renda…”, dispondo no nº 1 do artigo 1084º que “A resolução pelo senhorio quando fundada em causa prevista no nº 3 do artigo anterior bem como a resolução pelo arrendatário operam por comunicação à contraparte, onde fundamentadamente se invoque a obrigação”. E a questão está em saber se só é lícito ao senhorio o recurso à via extrajudicial, mediante comunicação ao arrendatário a efectuar através da forma prevista no artigo 9º do NRAU, para fazer operar a resolução do contrato de arrendamento com base em falta de pagamento de rendas pelo inquilino. Assim o entendeu o despacho recorrido, concluindo que a via judicial - acção de despejo - não constitui o meio próprio para fazer cessar em tal caso o contrato de arrendamento, existindo erro na forma do processo, excepção dilatória de conhecimento oficioso, que implica a nulidade de todo o processo por não ser viável o seu aproveitamento. Não se aceita tal entendimento, adiantando-se, desde já, que a resolução do contrato pela via extrajudicial se apresenta, em tal caso, como uma faculdade, isto é, como mais um meio colocado à disposição do senhorio para pôr termo ao contrato de arrendamento, numa perspectiva de agilização e celeridade que o legislador quis imprimir à clarificação jurídica de tais situações após decurso de um período de três meses consecutivos de incumprimento. Se esse desiderato será conseguido só a prática o demonstrará: E para assim se considerar relevam, como se sublinhou no Acórdão desta Relação proferido em 23 de Outubro de 2007 [1], em particular, quatro ordens de razões para se permitir ao senhorio também o recurso à via judicial para resolver o contrato havendo falta de pagamento da renda pelo locatário, que passam a enunciar-se: - a impossibilidade de instaurar acção executiva para entrega de coisa certa e para pagamento de renda por falta de título executivo no caso de o contrato de arrendamento não ter sido reduzido a escrito, uma vez que, nos termos do disposto no artigo 15º nº 1 al. e) e nº 2 do NRAU, não sendo o locado desocupado, podem servir de base à execução, “em caso de resolução por comunicação, o contrato de arrendamento, acompanhado do comprovativo da comunicação prevista no nº 1 do artigo 1084º do Código Civil”, sendo o contrato de arrendamento “título executivo para a acção de pagamento de renda quando acompanhado do comprovativo da comunicação ao arrendatário do montante em dívida”; - a possibilidade de cumular o pedido de resolução com o de indemnização ou, subsidiariamente, com o de denúncia, quando esta tenha de operar pela via judicial, e de invocar, simultaneamente, vários fundamentos para o pedido de resolução contratual; - a possibilidade de demandar, em simultâneo e num só processo, o arrendatário e o respectivo fiador; - a possibilidade de dedução de pedido reconvencional por parte do arrendatário, evitando-se que tal matéria seja relegada para a oposição à execução. Este sentido interpretativo do quadro normativo em apreço não só encontra o mínimo de correspondência no texto legal, como é o que melhor reconstitui o pensamento legislativo tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias específicas do tempo em que é aplicado, bem como o desejável acerto e adequação das soluções consagradas (artigo 9º do Código Civil). E a tal entendimento não obsta o estatuído do artigo 14º do NRAU. Estabelece este preceito que “a acção de despejo destina-se a fazer cessar a situação jurídica do arrendamento, sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação e segue a forma de processo comum declarativo” (nº 1), estatuindo que “na pendência da acção de despejo, as rendas vencidas devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais” (nº 3) e, se o arrendatário não pagar ou depositar as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período superior a três meses, é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito, incluindo a indemnização devida, (nº 4), podendo o senhorio obter certidão, caso não haja pagamento, que constituirá título executivo para efeitos de despejo do local arrendado (nº 5). Dele não pode extrair-se que o legislador tivesse querido excluir a sua aplicação às acções instauradas judicialmente com a finalidade de obter o despejo do arrendatário no caso de resolução do contrato de arrendamento com fundamento na mora e falta de pagamento de rendas, sendo lícito interpretá-lo que se aplica a todas as acções de despejo qualquer que seja o seu fundamento legal. Como se escreveu no já citado Ac. desta Relação de 23 de Outubro de 2007, o conceito de acção de despejo tem de interpretar-se em sentido amplo, “abrangendo não só a figura da acção de despejo stricto sensu, a instaurar quando a via judicial é o único modo de obter a cessação - por resolução ou denúncia – da situação jurídica do arrendamento, mas também todas as acções declarativas intentadas pelo senhorio para promover a cessação do contrato quando esta não operou ipso iure, como acontece com a caducidade, nem extrajudicialmente (inexistindo título executivo extrajudicial)”. Nesse sentido aponta, aliás, o disposto no artigo 1048º do Código Civil ao estabelecer que “o direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda ou aluguer caduca logo que o locatário, até ao termo do prazo para a contestação da acção declarativa ou para a oposição à execução destinadas a fazer valer esse direito, pague, deposite ou consigne em depósito as somas devidas e a indemnização referida no nº 1 do artigo 1041º” (nº 1), com a particularidade de, na fase judicial, o locatário só por uma vez poder usar da faculdade de purgação da mora com referência a cada contrato (nº 2), ao contrário do que acontece na resolução extrajudicial do contrato de arrendamento. Não pode, por conseguinte, subsistir o despacho recorrido, pelo que cumpre conhecer do mérito da causa em substituição (artigos 784º e 753º nº 1 do Código de Processo Civil). Ora, os factos provados mostram que foi celebrado um contrato de arrendamento entre o autor e a ré no dia 28 de Fevereiro de 2005, contrato que é formal e substancialmente válido (artigos 1º e 7º nº 1 do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo DL nº 321-B/90, de 15 de Outubro e artigo 1022º do Código Civil) e teve início em 1 de Março de 2005. As partes convencionaram que a renda mensal, no valor de € 400,00, seria paga no primeiro dia útil do mês anterior a que dissesse respeito no escritório do mandatário do autor. Não tendo a ré procedido ao pagamento da renda vencida no dia 1 de Fevereiro de 2006, nem das subsequentes e não tendo comprovado o respectivo depósito liberatório, assiste ao autor, senhorio, o direito de resolver o contrato de arrendamento e, bem assim, de exigir o pagamento das rendas vencidas desde 1 de Dezembro de 2006 até ao trânsito em julgado desta decisão. Caso o locado não seja entregue ao autor, tem ainda este direito à peticionada indemnização, prevista no artigo 1045º nº 1 do Código Civil, ou seja, ao pagamento da quantia mensal correspondente ao valor da renda desde o trânsito em julgado desta decisão até à efectiva entrega do locado. 3. Decisão: Termos em que se acorda em conceder provimento ao agravo e revogar o despacho recorrido, e, consequentemente, decide-se: a) declarar resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre o autor e a ré R, condenando-se os réus a entregarem-lhe imediatamente o locado, -8° andar, letra "D", do prédio urbano sito na Tapada das Mercês, Algueirão - Mem Martins; b) condenar os réus a pagarem ao autor as rendas vencidas desde 1 de Dezembro de 2006 até ao trânsito desta decisão; c) condenar os réus a pagarem ao autor, a título de indemnização, a quantia mensal correspondente ao valor da renda - € 400,00 - desde aquela data até à entrega do locado. Custas nas duas instâncias pelos réus. Lisboa, 13 de Março de 2008 (Fernanda Isabel Pereira (Maria Manuela Gomes) (Fernando Pereira Rodrigues) (vencido nos termos do voto anexo) __________________________________________ Declaração de voto Confirmaria a decisão recorrida pelos seguintes fundamentos: Decorre à evidência dos art.s 1083º/3 e 1084º/1 do CC – normas inseridas no âmbito da cessação do arrendamento urbano - que a resolução do contrato pelo senhorio quando fundada em caso de mora superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas, opera por comunicação à contraparte, onde fundamentadamente se invoque a obrigação incumprida. Quer dizer: o legislador do NRAU veio estabelecer quanto ao modo da resolução do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento da renda o processo que a lei faculta em termos gerais para a resolução do contrato, pois que assim diz o art. 436º/1 do CC: “a resolução do contrato pode fazer-se mediante declaração à outra parte”. Mas veio estipular este modo de cessação do contrato de arrendamento de forma imperativa, como o expressa o artigo 1080.º, não deixando ao senhorio qualquer opção alternativa nesta matéria, designadamente o recurso à acção judicial. O que nem deve impressionar, pois que o que é normal, comum e pragmático é que a resolução dos contratos se concretize por mera declaração à parte contrária. E esta tomada de posição do legislador não deixa margem para que o senhorio possa instaurar acção de despejo contra o inquilino, quando ocorra uma situação justificativa de resolução do contrato por falta de pagamento da renda. A imperatividade do regime estabelecido obsta a que o meio instituído possa ter como opção alternativa a acção de despejo, pois que, de contrário, sempre o senhorio poderia afastar aquele comando legislativo, quiçá com diminuição de direitos ou faculdades que ao inquilino assistem quanto ao fazer cessar da mora no pagamento. E saliente-se que uma vez feita a comunicação por parte do senhorio nos termos do preceito citado (art. 1084º/1), já não pode aquele instaurar acção de despejo, de que porventura desejasse lançar mão para uma mais célere entrega do prédio, uma vez que, com a resolução do contrato operada com aquela comunicação, resultou cessada a relação jurídica do arrendamento, não podendo depois haver espaço para a acção de despejo destinada a obter esse mesmo efeito. Note-se que a finalidade da acção de despejo plasmada no art. 14º/1 do NRAU), é conclusiva e elucidativa, quanto ao âmbito da sua aplicação: "a acção de despejo destina-se a fazer cessar a situação jurídica do arrendamento, sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação...". Sucede que a lei estabelece o recurso à via judicial tão só nas situações do art. 1083º/2 CC, nos casos de incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio: a) a violação reiterada e grave de regras de higiene, de sossego, de boa vizinhança ou de normas constantes do regulamento do condomínio; b) a utilização do prédio contrária à lei, aos bons costumes ou à ordem pública; c) o uso do prédio para fim diverso daquele a que se destina; d) o não uso do locado por mais de um ano, salvo nos casos previstos no n.º 2 do artigo 1072.º; e) a cessão, total ou parcial, temporária ou permanente e onerosa ou gratuita, quando ilícita, inválida ou ineficaz perante o senhorio. De resto, perante a legislação em vigor, não se descortina qualquer vantagem ou conveniência em instaurar acção de despejo por falta de pagamento de rendas, já que com a revogação do RAU, aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15/10, deixou de existir a faculdade de o senhorio requerer mandado para a execução do despejo, conforme se verificava na vigência daquele regime. Isto porque mesmo quando a lei exige como modo de resolução do contrato o recurso à acção de despejo, nas situações descritas no art. 1083º/2 do CC, bem assim na hipótese contemplada no art. 21º/2 do NRAU (impugnação do depósito da renda), o senhorio, obtendo decisão favorável do tribunal na acção, fica munido apenas de um título executivo, carecendo de instaurar a respectiva execução nos termos da lei do processo, para a hipótese de o inquilino não cumprir com a condenação. E o procedimento a percorrer será idêntico no caso da comunicação resolutiva ao abrigo do art. 1084º/1 do CC, pois que igualmente o senhorio por meio daquela se mune de título executivo, conforme o prevê o art. 15º/1/e) do NRAU, tendo de recorrer à execução para alcançar o desiderato da entrega do imóvel. Se assim é, não parece defensável que o senhorio possa usar a acção de despejo quando a lei, através da comunicação resolutiva ao inquilino, lhe faculta título com idêntica força executiva à que lhe permitiria a acção de despejo. Em todo o caso a solução contrária à que se defende sempre se confronta com a imperatividade imposta pelo art. 1080º. Não se perdendo de vista a argumentação bem gizada pelo agravante na sua douta alegação, reconhece-se que o art. 1048º/1 do Código Civil ao referir que "o direito à resolução do contrato por falta de pagamento da renda ou aluguer caduca logo que o locatário, até ao termo do prazo para a contestação da acção declarativa ou para a oposição à execução, destinadas a fazer valer esse direito, pague, deposite ou consigne em depósito as somas devidas e a indemnização referida no n.º 1 do art. 1041º ", parece sugerir que o senhorio também pode, em qualquer circunstância, usar acção declarativa para resolução do contrato por falta de pagamento de rendas. O normativo em apreço pode impressionar à primeira vista mas não é decisivo e incontornável no sentido que parece apontar. Com efeito, a disposição legal em apreço é uma norma de previsão mais lata para o regime da locação em geral e não uma norma específica para a cessação do arrendamento urbano, sendo que este contém as suas próprias regras que, como se viu, quanto à resolução com fundamento na falta do pagamento de rendas são diferentes. Acresce que já se apontou uma situação em que a lei permite ao senhorio instaurar acção de despejo tendo como causa de pedir a falta de pagamento de renda, que é aquela a que alude o art. 21º/1 e 2 do NRAU, que estabelece: “1 - A impugnação do depósito deve ocorrer no prazo de 20 dias contados da comunicação, seguindo-se, depois, o disposto na lei de processo sobre a impugnação da consignação em depósito. 2 - Quando o senhorio pretenda resolver judicialmente o contrato por não pagamento de renda, a impugnação deve ser efectuada em acção de despejo a intentar no prazo de 20 dias contados da comunicação do depósito ou, estando a acção já pendente, na resposta à contestação ou em articulado específico, apresentado no prazo de 10 dias contados da comunicação em causa, sempre que esta ocorra depois da contestação”. Em face do estipulado, o senhorio ou resolve impugnar o depósito no prazo de 20 dias contados da notificação, seguindo-se, após, o disposto na lei do processo sobre a impugnação da consignação em depósito; ou, para além de impugnar, decide resolver o contrato por falta de pagamento de renda. Neste último caso, em que se gerou um litígio em razão do diverso entendimento sobre as somas depositadas, em vez de à impugnação suceder a tramitação processual relativa à consignação em depósito, deverá seguir-se imediatamente a respectiva acção de despejo, instaurada no mesmo prazo de 20 dias, na qual se deduzindo a impugnação. Além disso pode verificar-se que exista já acção de despejo instaurada por qualquer uma das causas referidas no art. 1083º/2 do CC, acima assinaladas, situação em que o inquilino deverá dar cumprimento ao art. 14º/3 do NRAU, que refere que "na pendência da acção de despejo, as rendas vencidas devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais". Se assim acontecer e se for caso disso, terá o senhorio, ao abrigo do art. 21º/2, de impugnar o depósito no âmbito da acção, seguindo-se os demais procedimentos na norma preconizados. Serve o que acaba de se referir para se demonstrar que não se pode tirar argumento do estabelecido nos artigos 21º/1 e 2 do NRAU e 1048º/1 do Código Civil para se concluir, como faz a agravante, que a resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio, por falta de pagamento de renda tanto pode operar por comunicação à contraparte como por recurso à via judicial através da acção de despejo. Há, de facto, possibilidade de recurso à acção de despejo nas situações particulares acima descritas ligadas com o não pagamento da renda e quiçá em outras onde se justifique tal recurso por ser patente um litígio que não se circunscreva à mera falta do pagamento da renda, mas, por regra, tal possibilidade está arredada. É verdade que, como salienta a agravante, o impedimento de usar da acção de despejo por falta de pagamento da renda devida poderá criar situações de maior morosidade na realização do direito de resolução efectiva do contrato de arrendamento, com base em falta de pagamento de rendas, na medida em que, em fase judicial, o locatário só por uma única vez, com referência a cada contrato, pode fazer uso da faculdade de depositar ou consignar em depósito as somas devidas enquanto que em comunicação resolutiva em fase extra-judicial o inquilino poderá sempre pôr fim à mora, fazendo caducar a resolução do contrato, através do depósito da renda em atraso, desde que observado o condicionalismo previsto na lei (art. 1048º/2 e 1084º/3 do CC). Sucede é que tendo o legislador tomado a opção legislativa reflectida nos normativos citados, certamente com apoio em razões justificativas, nada pode o intérprete fazer que contraria o desiderato do legislador, antes devendo limitar-se a acatá-lo. Deste modo, o recurso à acção de despejo não era no caso em apreciação o meio idóneo para se operar a resolução do contrato com fundamento na falta de pagamento da renda, antes tal meio estava vedado ao agravante por disposição de carácter imperativo. Mas será que, como se entendeu no despacho recorrido, a situação configura um caso de erro na forma de processo, com a consequência da nulidade da petição e do processado subsequente? Ora, não parece que se trate de erro na forma do processo, porque este sempre pressupõe como legítimo o recurso à acção, apenas fazendo remeter para um processado diferente do escolhido pela parte. O erro na forma do processo nunca conduz à anulação de todo o processado, havendo pelo menos uma peça que sempre se salva que é a petição inicial, que jamais é anulada sob pena de o processo não se poder convolar para forma prevista na lei. É o que decorre do art. 199º do CPC. Entender-se que existe erro na forma do processo para, em consequência disso, anular-se a petição inicial e o processado subsequente, não parece técnica jurídica que a lei do processo consinta. O que se verifica, em nosso entender, na situação em apreço nos autos – o direito à resolução do contrato de arrendamento urbano pelo senhorio com fundamento na falta de pagamento da renda - é a existência de um direito desprovido de acção, por força de uma disposição de natureza imperativa que a afasta, à qual acima se fez referência. O art. 2º/2 do CPC prevê que a todo o direito corresponde acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como a acautelar o seu efeito útil, mas previne que a lei pode determinar o contrário. Quando assim acontece estamos em face de um direito desprovido de acção. Por regra, não existe direito de acção para, na relação contratual, uma das partes poder resolver o contrato, na medida em que a resolução opera por simples declaração à parte contrária. Porém, no âmbito da lei do arrendamento urbano anterior ao NRAU, o senhorio que pretendesse resolver o contrato com fundamento, entre outros, no não pagamento da renda, teria de socorrer-se para o efeito da via judicial, através da competente acção de despejo. Era um regime excepcional. Agora o regime é diferente, digamos que é o regime/regra e não o regime/excepção. Não prevendo a lei, nem o facultando pela sua imperatividade, o recurso à acção no caso dos autos, integra tal recurso a prática de um acto jurídico ilícito, por contrário à lei, com a consequência da sua nulidade insanável, como decorre do art. 280º/1 do CC. E esta nulidade do exercício de acção, que afecta de nulidade de todo o processo, incluindo a petição inicial, constitui uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso e conducente à anulação de todo o processado, incluindo a mesma petição, e à absolvição da instância dos réus (art.s 493º/2, 494º/b) e 495º do CPC). Pelos fundamentos descritos confirmaria o despacho recorrido, ainda que por fundamentação não inteiramente coincidente. ____________________________________ [1] In www.dgsi.pt/trl, Processo: 6397/2007-7. |