Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
937/2006-1
Relator: MARIA JOSÉ SIMÕES
Descritores: MÚTUO
VENDA COM RESERVA DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/27/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Sumário: O titular da reserva de propriedade tem direito a ver reconhecida a sua propriedade sobre um veículo e de o retomar, no caso de incumprimento de um contrato de mútuo a prestações em que o mutuante não é o reservatário e cujo respectivo produto serviu para o financiamento da aquisição do mesmo veículo.
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO

FB… e F..., intentaram a presente acção seguindo a forma de processo ordinário, contra R…, Lda., pedindo que se declare a resolução do contrato de financiamento, para aquisição a crédito do veículo …, que a Ré seja condenada a reconhecer que o veículo pertence à 2ª A. e a restituir-lhe o mesmo.
Para tanto, invocaram, fundamentalmente e em síntese, o seguinte:
A 2ª A. vendeu à Ré o veículo marca Peugeot, modelo Peugeot 205, com a matrícula …, a 1ª A. financiou a Ré para aquisição do veículo, financiamento a ser pago em 36 prestações mensais e sucessivas, no valor de 31 531$00 cada, com vencimento entre 25/11/2000 e 25/10/2003, para garantia do valor financiado foi constituída reserva de propriedade a favor da 2ª A., o Réu não procedeu ao pagamento das prestações a partir de 25/11/02, a 1ª A. interpelou, sem sucesso, a Ré para por termo à mora, pelo que, por carta de 01/05/03 notificou a R. da rescisão do contrato de financiamento.
Citada a Ré não contestou pelo que foram declarados confessados os factos articulados pelas AA.
Foi proferida sentença, na qual se julgou parcialmente procedente a acção, declarando-se válida a resolução do contrato de financiamento e se absolveu a ré do restante peticionado.
Inconformadas com esta decisão, na parte da sentença que absolveu a Ré do pedido de condenação no reconhecimento de que o veículo pertence à A. F…, bem como do pedido de condenação da ré na entrega definitiva do referido veículo a esta, vieram as AA. interpor recurso, tendo apresentado as seguintes conclusões:
A) Ao invés do que foi decidido pelo Tribunal a quo, a rescisão do contrato de compra e venda de veículo por parte do vendedor registado, titular da reserva de propriedade que incide sobre o mesmo, não constitui, necessariamente, pressuposto de actuação da referida reserva e dos consequentes pedidos de reconhecimento de propriedade e de restituição do veículo.
B) O incumprimento, seguido de resolução, do próprio contrato de financiamento para aquisição a crédito do veículo, associado a tal contrato de alienação, pode constituir fundamento para esse efeito.
C) E, no caso dos autos, é precisamente essa a situação que se verifica.
D) A aceitar-se o entendimento adoptado pelo Tribunal de 1ª instância, nunca poderia a apelante F... fazer valer a sua reserva de propriedade, uma vez que, sendo a aquisição da viatura por parte da apelada, financiada pela apelante FB…, o cumprimento do contrato de compra e venda estaria sempre garantido, uma vez que esta entrega de imediato o montante do preço do veículo à apelante F….
E) A referência ao “contrato de alienação” que consta do artº 18º nº 1 do D.L. nº 54/75 de 12 de Dezembro, tem de ser objecto de uma interpretação actualista, concatenada com o disposto no artº 409º nº 1 do CC, devendo entender-se que o contrato ali em causa é aquele cujo regular cumprimento das obrigações se encontra garantido pela reserva de propriedade, in casu, o contrato de financiamento.
F) Deste modo, a referência ao artº 18º nº 1 do DL nº 54/75, ao «contrato de alienação» pode ser entendida como referindo-se também ao contrato de mútuo conexo com o da compra e venda e que esteve na origem da reserva de propriedade.
G) O Tribunal a quo interpretou incorrectamente a cláusula A das condições gerais do contrato de financiamento para aquisição a crédito (e, bem assim, da clausula 11 das condições particulares), que prevê a constituição de uma reserva de propriedade sobre o veículo em causa nos presentes autos a favor da apelante F…, bem como a norma que consta do artº 409º do CC que regula este instituto.
H) A cláusula de reserva de propriedade não constitui uma garantia da apelante F…, como entendeu o Tribunal a quo.
I) A cláusula de reserva de propriedade visa, antes, garantir que o comprador, ora apelada, cumpre, na íntegra, o contrato de financiamento para aquisição a crédito, celebrado com a apelante FB…, liquidando todas as prestações convencionadas, sob pena de ver o veículo retornar à esfera jurídica da apelante F...
J) Este objectivo é legalmente admissível, atento o disposto na parte final do artº 409º nº 1 do CC, que não foi tomado em consideração pelo Tribunal a quo.
K) Da parte final daquele dispositivo legal resulta que o alienante, in casu, a apelante F... pode reservar para si a propriedade do veículo até à verificação de outro evento que não o pagamento, total ou parcial, do preço da coisa vendida.
L) No caso sub judice, o evento correspondia ao pagamento por parte da apelada à apelante FB… da totalidade das prestações convencionadas no contrato de financiamento.
M) Resultou provada a existência de uma reserva de propriedade sobre o veículo objecto dos presentes autos a favor da apelante F….
N) Apurou-se ainda que a apelada não pagou na totalidade as prestações convencionadas no contrato de financiamento.
O) Pelo que não se verificou o evento do qual dependia a transferência da propriedade do veículo em questão para a esfera jurídica da apelada.
P) Por outro lado, o não pagamento das prestações acordadas, confere à apelante F..., na qualidade de titular da reserva de propriedade, o direito de ver reconhecida a sua propriedade sobre o veículo e de o retomar.
Q) Pelo que forçoso se torna concluir que se impunha ao Tribunal a quo julgar procedentes os pedidos de condenação da apelada no reconhecimento de que o veículo pertence à apelante F... e na entrega do mesmo a esta.
R) Ao absolver a apelada de tais pedidos, o Tribunal a quo violou, entre outras disposições legais, o artº 409º do CC.

Não foram produzidas contra-alegações pela apelada.

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Foram colhidos os vistos legais.

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II – QUESTÕES A RESOLVER

Como se sabe, o âmbito objectivo do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (artºs 684º nº 3 e 690º nº 1 do CPC), importando, assim, decidir as questões nelas colocadas – e, bem assim, as que forem de conhecimento oficioso –, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – artº 660º nº 2 também do CPC.
Assim, em face das conclusões apresentadas, é a seguinte a questão a resolver por este Tribunal:
- Se a apelante titular da reserva de propriedade tem direito a ver reconhecida a sua propriedade sobre o veículo e de o retomar, no caso de incumprimento de um contrato de mútuo em que o mutuante não é o reservatário e cujo respectivo produto serviu para o financiamento da aquisição do mesmo veículo.


III – FUNDAMENTOS DE FACTO

Os factos a ter em consideração são os seguintes:

1 - A FB… dedica-se ao financiamento para aquisição a crédito de veículos automóveis;
2 - A F…, dedica-se à venda de automóveis da marca Ford;
3 - A F…, vendeu à Ré, o veículo automóvel marca Peugeot, modelo Peugeot 205, com a matrícula …;
4 - A FB… financiou a aquisição do referido veículo, nos termos do contrato de financiamento para aquisição a crédito, junto a fls. 5 e que se dá por reproduzido ;
5 - Para garantia do reembolso do valor financiado, foi constituída reserva de propriedade a favor da F…;
6 - A reserva de propriedade encontra-se registada na Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa;
7 - O preço do veículo a contado era de 950.000$00, tendo Ré efectuado um desembolso inicial de Esc.100.000$00;
8 - A Ré, não podendo ou não querendo desembolsar a totalidade do valor da aquisição, recorreu ao financiamento para aquisição a crédito o que a FB… se dispôs a fazer-lhe, tendo-lhe financiado a quantia de € 4.239,78;
9 - O contrato de financiamento para aquisição a crédito celebrado entre FB... e a Ré, nos termos do Decreto-Lei 359/91 de 21 Setembro, estipulou na cláusula 8ª das suas Condições Particulares que o valor total a reembolsar ao financiamento era de € 5.661,93;
10 - Na cláusula 9ª das condições particulares do mencionado contrato, o prazo do reembolso foi fixado pelas partes em 36 meses, mediante 36 prestações, no valor de € 157,28, cada;
11 - O contrato em questão foi assinado em 23/10/00 e entrou em vigor nesse mesmo dia;
12 - A Ré deixou de proceder ao pagamento das prestações contratualmente estabelecidas a partir de 25/11/00;
13 - Por ser assim, a FB… endereçou à Ré, com data de 06/03/00, através da qual lhe dirigiu uma interpelação para pôr termo à mora no prazo de oito dias;
14 - Uma vez que, apesar das interpelações da Autora FB..., a Ré não pôs termo à mora, aquela, por carta datada de 01/05/03 notificou a Ré da rescisão do contrato de financiamento, conforme documento junto a folha 10;
15 - O veículo objecto dos presentes autos foi apreendido na providência cautelar apensa a este processo;


IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO


Importa agora apreciar a questão submetida à apreciação deste Tribunal.
Entendeu o Tribunal a quo que a resolução do contrato de compra e venda constitui um pressuposto indispensável para que seja possível fazer actuar a reserva de propriedade e, consequentemente, obter-se a restituição do veículo.
Vejamos se assim é.
Atendendo à matéria de facto provada, verifica-se que entre a A. FB… e a Ré R..., foi realizado um contrato de crédito, sob a forma de mútuo oneroso, sendo o capital mutuado destinado ao pagamento imediato do preço estabelecido no contrato conexo de compra e venda realizado entre a A. F... e aquela Ré.
Resulta de forma inequívoca que a única razão de ser para justificar a celebração do contrato de crédito entre a FB… e a Ré foi sem sombra de dúvida o financiamento do pagamento do preço do veículo automóvel relativamente ao qual a F... e a Ré pretendiam celebrar um contrato de compra e venda, sendo certo que este contrato consubstanciava uma compra e venda financiada por um terceiro.
Ora, do contrato de financiamento e de acordo com a cláusula A das Condições Gerais do mesmo, consta: “Nos termos do artº 409º do CC, a propriedade do veículo é reservada para o vendedor registado até à data em que as prestações referidas no nº 9 das condições particulares hajam sido pagas pelo comprador a Ford Credit e o comprador obriga-se a respeitar qualquer actuação do vendedor registado, ainda que no interesse de Ford Credit, no exercício dos direitos que para aquele derivem da qualidade de titular de reserva de propriedade. (…)”.
De realçar aqui que, de acordo com o que consta do contrato de financiamento, FB… usa a designação de Ford Credit.
Assim, a cláusula de reserva de propriedade, admissível nos termos do artº 409º do CC, tem como efeito suspender a transmissão da coisa decorrente do respectivo contrato, num desvio à regra contida no artº 408º do CC, que prevê o efeito imediato da transmissão da coisa, outorgado o respectivo contrato.
Deste modo, o alienante reserva para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações assumidas pelo comprador ou até à verificação de qualquer outro evento.
Esse outro evento de que depende a transferência da propriedade será, em regra, o cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte e naturalmente a satisfação do direito de crédito do vendedor, titular do direito de reserva de propriedade.
Só que, no caso concreto, a A. FB… disponibilizou, de imediato, a totalidade do preço do veículo automóvel que a F... recebeu.
No entanto, nada proíbe que “esse outro evento” a que se refere o já mencionado artº 409º do CC, esteja relacionado com a satisfação de crédito de terceiro, que não o reservatário, ao invés do que entendeu o Tribunal a quo.
Na verdade, com tal inserção parece-nos que o legislador quis não só salvaguardar o pagamento das prestações pecuniárias decorrentes do preço da aquisição do veículo automóvel como também outras obrigações, designadamente as decorrentes de um contrato de crédito ao consumo, sob a forma de mútuo, para a aquisição daquele, em que o próprio vendedor interveio.
Como tal, poderá a vendedora F… fazer accionar a reserva de propriedade e consequentemente obter a restituição do veículo?
A resposta não pode deixar de ser positiva, pois consta da cláusula de reserva de propriedade inserta do contrato de financiamento que a mesma (reserva de propriedade) é feita com vista a garantir um direito de crédito de terceiro, crédito esse que emerge de um contrato de mútuo a prestações cujo respectivo produto se destinou ao pagamento do preço do contrato de compra e venda.
É na verdade o que consta da cláusula A das condições gerais do contrato de financiamento, bem como da cláusula 11 das suas condições particulares.
Neste contexto, não é essencial que haja coincidência entre a titularidade do direito à resolução e a titularidade do registo da reserva de propriedade. Determinante é que, verificados os demais requisitos, haja incumprimento das obrigações que justificaram a reserva de propriedade. (1)
É, pois, verdade, o que afirmam as apelantes, quanto à reserva de propriedade, pois esta visa garantir que o comprador cumpra, na íntegra, o contrato de financiamento para aquisição a crédito celebrado com a apelante FB…, liquidando todas as prestações convencionadas com esta, sob pena de ver o veículo retornar à esfera jurídica da apelante F...
É aliás, o que consta da cláusula F) das condições gerais do contrato de financiamento que refere o seguinte: “Após a comunicação da rescisão deste contrato ao comprador, este entregará de imediato, e independentemente de interpelação, o veículo a Ford Credit (FB…), fazendo entrega do mesmo e de toda a respectiva documentação, no concessionário Ford mais próximo”.
“A circunstância de a cláusula de reserva de propriedade exercer uma função preponderante de garantia do crédito da entidade financiadora, não implica que se considere que a aludida cláusula não tem qualquer eficácia por não se destinar a garantir o pagamento do preço do bem vendido pelo vendedor titular da reserva.
No caso de crédito ao consumo a interdependência entre os contratos de financiamento e de compra e venda é de tal ordem que não se pode deixar de reconhecer que o vendedor tem todo o interesse em que, até ao pagamento do financiamento à entidade que lhe está associada, esteja eficazmente constituída a seu favor reserva de propriedade.
Este entendimento não colide com o disposto no artº 409º do CC e está abrangido na letra e no espírito do preceito” (2)
Nestes termos, provado que se encontra a não verificação do evento que justificou a reserva, ou seja, o não pagamento por parte da Ré de algumas prestações contratualmente estabelecidas, a rescisão do contrato de financiamento por parte da Autora FB…, notificada à Ré por carta e demonstrado o registo de reserva de propriedade a favor da requerente vendedora do veículo automóvel, assiste a esta o direito de ver reconhecida a sua propriedade sobre o veículo e de o retomar.
Procedem, assim, as conclusões apresentadas pelas recorrentes/apelantes, tendo o Tribunal a quo, violado o disposto no artº 409º do CC., impondo-se, por isso, a revogação da sentença.


V – DECISÃO


Face ao exposto, acordam em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida e, em consequência, julgam procedentes os pedidos de condenação da apelada/ré no reconhecimento de que o veículo marca Peugeot. Modelo 205, matrícula …, pertence à apelante F... e na entrega definitiva deste às AA.

Custas pela apelada.

Lisboa, 27/06/2006
(Maria José Simões)
(Azadinho Loureiro)
(Ferreira Pascoal)



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1.-Cfr. Ac. TRL de 13/02/2003 in CJ, Ano XXVII, tomo I, pag. 103

2.-Cfr. Ac. TRL de 29/04/2004 consultável em www.dgsi.pt