Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
702/14.4T8PDL.L1-8
Relator: CATARINA ARÊLO MANSO
Descritores: COMPETÊNCIA
SECÇÕES DE COMÉRCIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: - Nos termos da al. d) do n.º 1 do art. 117º da LOSJ e do nº2, desse mesmo normativo, nas comarcas onde não existam secções especializadas, pertence às secções cíveis da instância central a competência para as acções nas quais seriam competentes as secções de comércio.

(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO:

I – C... intentou acção em processo comum especial de insolvência de pessoa singular contra E..., alegando que o seu passivo é superior ao activo, não tem bens, tem penhoras fiscais registadas desde 27.2.2012, sobre o imóvel hipotecado com mútuo a favor da requerente, deu à acção o valor de €135.858,19.
A acção entrou na instância central da comarca dos Açores, em 28 de Outubro de 2014, tendo sido indeferida liminarmente, por despacho de 3.11.214, notificado em 4.11.2014.
Em 10 de Novembro a requerente pediu a remessa dos autos à instância competente, para distribuição, fls. 62, invocando razões de economia e celeridade processuais. Tal pretensão foi indeferida a fls. 64 por despacho de 12.11.2014, condenando a parte em custas.

Não se conformando com a decisão interpôs recurso a requerentes nas alegações concluiu:

A – O art.º117º, n.º 1 da LOSJ (Lei da Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), determina que compete à secção cível da instância central:
a) A preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a 50.000,00€; b)…; c)…; d) Exercer as demais competências exercidas por lei;
B – E o n.º 2, do mencionado artigo dispõe que: nas comarcas onde não haja secções de comércio (como é o caso da dos Açores), o disposto no número anterior (ou seja, a competência da sessão cível da instância cível) é extensível às acções que caibam a essas secções (sublinhado nosso);
C - Outra não poderá ser a conclusão de que, foi desiderato do legislador, atenta a interpretação literal que flui da conjugação das duas normas em apreço, atribuir competência às secções cíveis da instância central das acções que caibam às secções de comércio, nas comarcas onde não existam tais secções especializadas.
D - Não se podendo acolher o argumentário, fundamento do despacho recorrido, de que o art. 104º, n.º1, da RLOSJ – tratando-se de mera norma transitória – apenas aplicável aos processos já instaurados à data da sua entrada em vigor – o que não é manifestamente o caso da P.I. da ora recorrente que deu entrada em juízo já após a vacatio legis da nova lei de Organização do Sistema Judiciário – excepciona a transição dos processos pendentes nos actuais tribunais de comarca para as secções de competência especializada das instâncias centrais, os processos pendentes nos juízos de competência específica cível relativos às matérias da competência das secções de comércio, os quais transitam para as correspondentes secções de instância local.
E - Precisamente porque se trata de mera norma transitória e que se refere, tão só aos processos já pendentes à data da entrada em vigor da nova lei.
F - Pretender que o regime de uma norma transitória constitua regime legal geral é, salvo o devido respeito, que é muito, desrespeitar o pensamento legislativo, porquanto transforma o que se pretendeu transitório (e aplicável tão só aos processos já pendentes) em definitivo (e aplicável a todos os processos, independentemente do momento da respectiva interposição).
G - Precisamente por não se ter criado nos Açores tal sessão de competência especializada (nem na Instância Central, nem nas Locais), tal não implica que seja derrogada a norma vertida no n.º2, do art. 117º, da LOSJ: nas comarcas onde não haja secções de comércio, o disposto no número anterior é extensivo às acções que caibam a essas secções, independentemente do valor.(acrescento e sublinhado nosso)
H - Não colhendo, no modesto entendimento da ora recorrente, os argumentos interpretativos expendidos no douto despacho recorrido, porquanto o resultado pela mesma visado não deixa de ser outro que não o seguinte: quando não exista sessão de competência especializada (comercial) na instância central de um Tribunal de Comarca, são da competência da instância local (cível) as acções de insolvência e de revitalização.
I - Ora, não foi esta, manifestamente, a regra que tão preclaramente se pretende extraída da redacção do n.º 2, do art. 117º da LOSJ. Interpretação, de resto, sem o mínimo de apoio verbal e contra a presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
J - Precisamente por não ter criado na Comarca dos Açores nenhuma sessão especializada de comércio, se concebe ter sido entendimento do legislador, impor a análise e julgamento de matérias mais específicas (sendo a especialização uma das vertentes da reforma), a Juízes mais experientes.
K - Apenas quando se olvida que a especialização (a par da proximidade) foi um dos desideratos da alteração legislativa, se pode colher a interpretação que o despacho recorrido fez da norma vertida no n.º2, do art. 117º, da LOSJ, cuja interpretação se julga pois, violada.
L - Veio ainda a ora recorrente a ser condenada nas custas do incidente. Em suma: por não ter acolhido a interpretação que ora flui do douto despacho recorrido, ou se pretender, por não ter sabido interpretar a norma vertida no n.º2, do art. 117º, da LOSJ.
M - O que, em face de lei tão recente, sem que se conheça publicado qualquer Aresto dos nossos tribunais superiores sobre a questão, ou artigo doutrinário quanto à temática (conhecendo-se, de resto, as decisões de incompetência que as secções cíveis da instância local de Ponta Delgada têm suscitado neste particular);
N –É condenação, que ainda que procedendo as razões sustentadas na decisão recorrida, sempre se afiguraria como sanção desproporcionada e como tal injusta.
O - De resto, à ora Recorrente, em bom rigor, lhe seria praticamente indiferente se a causa era julgada perante Instância Local ou Central, podendo até ter-se conformado com a decisão de indeferimento liminar (aceitando, até no limite, a condenação em custas), não fosse ver-lhe ser indeferido o pedido de remessa dos autos ao Tribunal considerado competente no douto despacho recorrido: desta feita, por não se ter observado a interpretação literal pressuposta pela norma ínsita no n.º2, do art. 99º, do C.P.C.;
P – Ora se censura pois, a ora recorrente por não saber interpretar para além da letra da lei – o n.º 2, do art. 117º; ora o mesmo tipo de censura se extrai, quando a recorrente pretende interpretar para além da letra da lei (agora o n.º 2, do art. 99º, do C.P.C.)…
Q - Quando, precisamente por tal motivo, teve a requerente e ora recorrente o cuidado de invocar que a sua pretensão se fundava em razões de economia e celeridade processuais, quais fossem, naturalmente, as que consabidamente decorrem de ter de aguardar o trânsito em julgado do mencionado despacho de indeferimento liminar – o que não sucedeu ainda – como se verifica pela interposição atempada do presente recurso;
S - Para poder gozar da faculdade que a lei lhe confere de, nos dez dias subsequentes, apresentar outra Petição Inicial;
T - O que não a dispensaria de proceder ao pagamento de nova taxa de justiça (para além do já mencionado pagamento em custas processuais).
U - No mais, as razões pelas quais o citado art. 99º, n.º2, do C.P.C. se tem por aplicável aos processos em que os articulados se encontrem já findos, em nada conflituariam, no caso vertente, com a possibilidade da sua aplicação analógica, em nada conflituante com qualquer direito de defesa ou exercício do contraditório, por banda da contraparte, pelo que salvo melhor opinião, é igualmente entendimento da ora recorrente que o douto tribunal a quo efectuou uma errada interpretação de tal norma, ao indeferir a remessa dos autos ao Tribunal julgado competente, com o fim de distribuição.

Termos em que requer a V. Exas. que o presente recurso seja julgado procedente por provado, e que por conseguinte seja revogado o despacho recorrido, sendo o mesmo substituído por decisão que determine a competência material da secção cível da Instância Central de Ponta Delgada do Tribunal da Comarca dos Açores, para o julgamento do processo de insolvência instaurado pela ora recorrente;
Ou, assim se não entendendo, o que apenas por mera hipótese de raciocínio se concebe, mantendo-se o despacho de indeferimento liminar da petição apresentada pela ora recorrente, que a mesma não seja condenada nas custas do incidente, aplicando-se ainda por analogia o disposto no n.º2, do art. 99º, do C.P.C. que determina a remessa dos autos ao Tribunal eventualmente declarado competente.

Factos:

Remete-se para os factos do relatório com relevância para a decisão.

Não houve contra alegações.

Dispensados os vistos legais, nada obsta ao conhecimento.

II – Apreciando:
Insurge-se a apelante contra a decisão proferida pelo Tribunal da Comarca dos Açores, 1ª Secção Cível da Instância Central de Ponta Delgada, no processo especial de declaração de insolvência de pessoa singular, com valor superior a 50.000,00€, e julgou verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria e, como tal, proferiu despacho de indeferimento liminar da pi, condenando a requerente nas custas.
A decisão impugnada não aceitou a competência em razão da matéria do tribunal central, indeferindo liminarmente a p.i., devia ter remetido os autos para a instância local como lhe foi solicitado pela parte.
A única questão do recurso impõe a determinação da competência material dos Tribunais: ou seja, questão de se determinar se a Instância Central da Comarca dos Açores – Ponta Delgada - possui materialmente competência para  acções especiais de declaração de insolvência. Ou antes, se tal competência pertence às Instâncias Locais Cíveis da Comarca dos Açores – Ponta Delgada – como decidido pelo Tribunal. Os autos deram entrada em 28 de Outubro de 2014.
A Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, que aprovou a Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), posteriormente regulamentada pelo DL nº 49/2014, de 27 de Março. O Tribunal Judicial de Comarca organiza-se em ”Instâncias Centrais”, preferencialmente localizadas nas denominadas “capitais de circunscrições socialmente adquiridas” (cf. Preâmbulo do citado DL nº49/2012) e de “Instâncias Locais”. As Instâncias Centrais integram, em princípio, sete Secções de Competência especializada – Cível, Crime, Instrução Criminal, Família e Menores, Trabalho, Comércio e Execução – e as Instâncias Locais integram Secções de competência genérica – Cível, Criminal e de Pequena Criminalidade – e Secções de proximidade, todas com competências legalmente definidas, conforme artigos 117º e seguintes da LOSJ.
Dispõe o art.117, n.º 1 da LOSJ (LOSJ- Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), que compete à secção cível da instância central: a) A preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a 50.000,00€ ; b)…; c)…;d) Exercer as demais competências exercidas por lei;
E o n.º 2, do mencionado artigo determina que: nas comarcas onde não haja secções de comércio (como é o caso da dos Açores), o disposto no número anterior (ou seja, a competência da secção cível da instância central) é extensível às acções que caibam a essas secções.

Estatui o art.128, n.º1, que:
al. a) da citada lei, que compete às secções de comércio preparar e julgar os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização.
b) As acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c) As acções relativas ao exercício de direitos sociais;
d) As acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais;
e) As acções de liquidação judicial de sociedades;
f) As acções de dissolução de sociedade anónima europeia;
g) As acções de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h) As acções a que se refere o Código do Registo Comercial;
i) As acções de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.
2 — Compete ainda às secções de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais.
3 — A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respectivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões”.
E o artigo 130º, integrado na secção VII - atinente à Instância Local – enuncia ser da competência das secções de competência genérica daquelas, no que ora interessa, “Preparar e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outra secção da instância central ou tribunal de competência territorial alargada” (nº1, al. a)).
A RLOSJ, introduzida pelo DL 49/2014, de 27 de Março, criou o Tribunal Judicial da Comarca dos Açores (art. 64º), não tendo criado, nenhuma secção de comércio (nem nas Instância Central, nem Local) – vide art. 66º, n.º 1, do citado diploma.
No seu curto prazo de vigência, há decisões com a atribuição de competência às instâncias centrais e locais. Assim, há quem entenda que a competência em razão da matéria se fixa pelo valor mas exige que simultaneamente se reporte a acções declarativas cíveis de processo comum, exigindo que os dois requisitos se cumulem, para se extrair a conclusão de que tais acções são da competência dos tribunais de instância local.
Não oferece dúvidas, que o processo de insolvência é um processo especial. Mas como estatui os art. 546, 548 e 549/1, os processos especiais regem-se pelas regras próprias e pelas disposições gerais e comuns, em tudo o que não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que está estabelecido para processo comum.
O legislador previu para as secções de comércio das instâncias centrais uma vez que a elas cabe, independentemente do valor, conhecer de todos os processos e acções que versem matéria comercial – artº.128º da LOSJ. Se assim é, importa interpretar o que o legislador pretendeu ao fixar a regra que temos no nº.2 do artº.117º da LOSJ.
Como decorre do art.9 do Código Civil: nº.1 -A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada; nº.2 – Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso; nº.3 – Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
No art. 128, ao enumerar os processos e acções que são da competência das sessões de comércio pelo seu objecto, prescindindo da forma de processo, não faz diferenciação das que seguem a forma de processo comum ou especial.
Nos termos da al. d) do n.º 1 do art. 117º da LOSJ e no nº2, desse mesmo normativo, outra não poderá ser a conclusão de que foi intenção do legislador, atenta a interpretação literal da conjugação das duas normas em apreço, atribuir competência às secções cíveis da instância central para as acções que sendo das secções de comércio, nas comarcas onde não existam tais secções especializadas.
Na decisão impugnada colheu também como fundamento para a decisão o disposto no art. 104º, n.º1, da RLOSJ – tratando-se de mera norma transitória – apenas aplicável aos processos já instaurados à data da sua entrada em vigor – o que não é manifestamente o caso da P.I. da ora recorrente que deu entrada em juízo já após a vacatio legis da nova lei de Organização do Sistema Judiciário – excepciona a transição dos processos pendentes nos actuais tribunais de comarca para as secções de competência especializada das instâncias centrais, os processos pendentes nos juízos de competência específica cível relativos às matérias da competência das secções de comércio, os quais transitam para as correspondentes secções de instância local.
Se de norma transitória se tratava, só se dirigia aos processos já pendentes à data da entrada em vigor da nova lei. Assim o regime de uma norma transitória não constitui regime legal definitivo (e aplicável a todos os processos, independentemente do momento da respectiva interposição).
Não ocorre a incompetência em razão da matéria, que determinou a procedência da excepção dilatória da incompetência absoluta da secção cível de instância central do tribunal da comarca dos Açores, revogando-se a decisão impugnada.

III – Decisão: em face do exposto, julga-se procedente o recurso revogando a decisão impugnada, devendo prosseguir os autos.
Sem custas.

Lisboa, 26/03/2015

Maria Catarina Manso
Maria Alexandrina Branquinho
Ana Luísa Geraldes