Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2064/2006-7
Relator: PIMENTEL MARCOS
Descritores: INTERDIÇÃO POR ANOMALIA PSÍQUICA
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS DE INSTÂNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: Os tribunais competentes para a preparação e julgamento de uma acção de interdição por anomalia psíquica são (em Lisboa) as varas cíveis e não os juízos cíveis.
Decisão Texto Integral: O Ministério Público propôs acção com processo especial de interdição relativamente a C., ao abrigo do disposto nos artigos 138º, nº 1 e 141º, nº 1 do CC e 944º e seguintes do CPC, a qual foi distribuída à 9ª Vara Cível da comarca de Lisboa.

Nesta foi proferido em 30.11.05. o seguinte despacho.
«Nos termos do disposto no art. 952°, n°2 do Cód. Proc. Civil, quando haja contestação, seguir-se-ão, após a realização de interrogatório e exame à requerida, os termos do processo ordinário.
Assim sendo, muito embora esta acção especial em causa possa vir a ser caso de intervenção do tribunal colectivo, a possibilidade dessa intervenção não este prevista originariamente, só ocorrendo se houver contestação da requerida, se ambas as partes requererem essa intervenção e desde que não tenha havido prévio registo integral da prova ou alguma das partes não requeira a gravação da audiência final art. 646°, n°s 1 e 2 do Cód. Proc. Civil.
Por esse motivo, esta forma de processo especial - especial nasceu e especial permanece, apesar da remissão para o processo ordinário não é subsumível à previsão da al. a) do n° 1 do art. 97° da Lei n° 3/99, de 13/1, mas antes à do n° 4 do mesmo preceito: não se trata de uma acção declarativa cível, de valor superior à alçada do Tribunal da Relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal colectivo, quando da sua interposição, mas antes de um processo em que a lei prevê, em determinada fase da sua tramitação, a intervenção do tribunal colectivo, não sendo originariamente da competência das vara cíveis.
E, verificando-se os demais requisitos de intervenção do tribunal colectivo, então, sim, deverão os autos ser remetidos às varas cíveis, para julgamento c ulterior devolução.
Enquanto e se tal intervenção não ocorrer, a preparação e julgamento do processo competirá aos juízos cíveis - art. 99° da citada Lei n° 3/99.
....
Pelo exposto, declara-se esta 9ª Vara Cível de Lisboa incompetente em razão da forma de processo aplicável, sendo competentes os Juízos Cíveis de Lisboa».
Decidiu-se, pois, neste douto despacho que os tribunais competentes para a preparação e julgamento de uma acção de interdição por anomalia psíquica são (em Lisboa) os juízos cíveis e não as varas cíveis.

Deste despacho agravou o MP, formulando as seguintes conclusões:
1. As Varas Cíveis são Tribunais de competência especifica, competindo-lhes a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do Tribunal da Relação, para as quais a Lei preveja a intervenção do Tribunal Colectivo, conforme o disposto nos art.°s 96º e 97º n° 1 al. A) da LOFTJ.
2. Tal competência fixa-se no momento em que a acção é proposta, nos termos do disposto no art. 2 da LOFTJ.
3. As acções especiais de interdição por anomalia psíquica, como a destes autos, reveste-se de valor superior ao da alçada do Tribunal da Relação — Art°. 312 do C.P.Civil.
4. Os art.°s 952º n° 2 e 646º n° 1 do C.P.Civil prevêem a hipótese de intervenção do Tribunal Colectivo no julgamento, posto que este deverá seguir os termos do processo ordinário.
5. Assim, estão verificados todos os requisitos que atribuem competência material às Varas Cíveis para conhecer das acções especiais de interdição por anomalia psíquica.
6. Não revela, para excepcionar essa competência, o argumento de poder não haver contestação ao pedido (ou de se aceitarem os factos deduzidos na p.i.), pois a Lei não a encara como requisito de competência,
7. bastando-se com a susceptibilidade de intervenção do Tribunal Colectivo.
8. Igualmente em nada releva para a excepção dessa competência, o disposto no art° 97º n° 4 da LOFTJ, pois este destina-se a situações de causa superveniente e, deste modo, em nada afasta a aplicação do n° 1 do dito preceito a todos os casos que se integrem de início na previsão da norma.
9. A douta decisão agravada ao declarar a incompetência material da 2a secção da 9a Vara Cível de Lisboa, para conhecer desta acção especial de interdição por anomalia psíquica, remetendo-a aos Juízos Cíveis de Lisboa, fez incorrecta interpretação dos art.°s 22, 96, 97 n° 1 al. a) e 99 da LOFTJ e 952 n° 2 e 646 n° 1 do C.P.Civil, normas que assim foram violadas.

O M.º juiz sustentou tabelarmente o despacho recorrido.

Foram dispensados os vistos.

Perante os factos referidos cumpre apreciar e decidir.

A única questão que se coloca consiste em saber se para a preparação e julgamento de uma acção especial de interdição por anomalia psíquica são competentes (na comarca de Lisboa) os juízos cíveis ou as varas cíveis.
Vejamos (1).
I
Nos termos do artigo 17º da LOFTJ (da qual serão todos os que forem citados sem indicação doutra origem), na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, a hierarquia, o valor e o território.
“A lei de processo determina o tribunal em que a acção deve ser instaurada em face do valor da causa” (artº 20º).
No entanto, estabelece o nº 1 do artigo 62º do CPC que a competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização e pelas disposições deste código.
Remete-se, assim, para as leis da organização judiciária como fonte reguladora da competência dos tribunais judiciais, a par do CPC.
Todavia, o seu nº 2 determina que na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, a hierarquia judiciária, o valor da causa, a forma de processo aplicável e o território.
Assim, há que concluir que, no âmbito da actual lei orgânica, a competência em função da forma de processo não é um critério determinativo da competência jurisdicional.
Por outro lado, estabelece o artigo 68º do CPC que as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, pelo valor ou pela forma de processo aplicável, se inserem na competência dos tribunais singulares e dos tribunais colectivos, estabelecendo este código os casos em que às partes é lícito prescindir da intervenção do colectivo.
«Dado que, nos termos do artigo 68º do CPC, a lei processual não define, em função do valor da causa, qualquer tribunal onde ela deva ser instaurada, há que concluir que a remissão realizada pelo artigo 20º da LOFTJ para aquela lei não tem sentido. Há que efectuar, por isso, uma interpretação ab-rogatória do artigo 20º da LOFTJ e concluir que o critério do valor da causa não se destina a aferir a competência jurisdicional» (2).
Ora, como determina o nº 1 artigo 64º, pode haver tribunais de 1ª instância de competência especializada e de competência específica.
“Os tribunais de competência específica conhecem de matérias determinadas em função da forma de processo aplicável...”(64º, nº 2).
Os tribunais de 1ª instância funcionam, consoante os casos, para julgamento da matéria de facto, como tribunal singular, como tribunal colectivo ou como tribunal de júri.
Aos juízos de competência especializada cível compete a preparação e o julgamento dos processos de natureza cível não atribuídos a outros tribunais.
E como determina o artigo 99º compete aos juízos cíveis preparar e julgar os processos de natureza cível que não seja de competência das varas e dos juízos de pequena instância cível.
Trata-se, portanto, de competência específica residual.

Daí que seja necessário averiguar se a competência em causa cabe às varas. Se assim não for, a competência será dos juízos.
II
Dispõe o artigo 97º da LOTJ que compete às Varas Cíveis:
1.
a) a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do tribunal da Relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal colectivo;
b) .....
c) ....
d) Exercer as demais competências conferidas por lei.
2. ..
3. São remetidos às varas cíveis os processos pendentes nos juízos cíveis em que se verifique alteração do valor susceptível de determinar a sua competência.
4. São ainda remetidos às varas cíveis, para julgamento e ulterior devolução, os processos que não sejam originariamente da sua competência, ou certidão das necessárias peças processuais, nos casos em que a lei preveja, em determinada fase da sua tramitação, a intervenção do tribunal colectivo.
5....
Compete, pois, às varas cíveis, nomeadamente, a preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do Tribunal da Relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal colectivo. É, pois, necessária a verificação cumulativa destes dois requisitos: a acção declarativa ter valor superior à alçada da relação e a lei prever a possibilidade de intervenção do tribunal colectivo.
E são remetidos às varas cíveis os processos pendentes nos juízos cíveis em que se verifique alteração do valor susceptível de determinar a sua competência. Portanto, se num processo da competência dos juízos em razão do valor este for alterado para a competência da varas, para aí será remetido o processo.
E são ainda remetidos às varas cíveis, para julgamento e ulterior devolução, os processos que não sejam originariamente da sua competência, ou certidão das necessárias peças processuais, nos casos em que a lei preveja, em determinada fase da sua tramitação, a intervenção do tribunal colectivo.
Como é sabido, o julgamento das acções em processo ordinário com a intervenção do colectivo tem sofrido várias alterações (artº 646º do CPC): desde uma fase em que a regra era a intervenção do colectivo ate ao sistema actual em que este apenas intervém quando for requerido pelas partes (DL nº 182/00, de 10.08).
Estabelece agora o nº 1 do artigo 646º que a discussão e julgamento da causa são feitos com intervenção do tribunal colectivo, se ambas as partes assim o tiverem requerido.
In casu trata-se de uma acção que segue a forma de processo especial (artigos 944 a 958º do CPC).
Nos termos do artigo 463º do CPC “o processo sumário e os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerias e comuns; em tudo quanto não estiver prevenido numas e noutras, observar-se-á o que se acha estabelecido para o processo ordinário”.
Em relação ao processo ordinário verificam-se algumas alterações significativas nas acções de interdição.
Todavia, na parte que agora interessa, estabelece o artigo 952º:
1. Se o interrogatório e o exame do requerido fornecerem elementos suficientes e a acção não tiver sido contestada, pode o juiz decretar imediatamente a interdição ou inabilitação.
2. Nos restantes casos, seguir-se-ão os termos do processo ordinário, posteriores aos articulados...

Portanto, findos os articulados e o exame, se a acção tiver sido contestada, ou o processo não oferecer elementos suficientes, a acção prosseguirá segundo as regras do processo ordinário.
Como é obvio, até esta fase não intervém o tribunal colectivo. Mas o mesmo sucede nas acções ordinárias até à fase de julgamento. E nestas poderá nem haver intervenção do colectivo. Só haverá se ambas as partes o requererem. E há mesmo casos em que não é admissível a intervenção do colectivo (artº 646º, nº 2). E nem por isso se põe em causa a competência da varas para a sua preparação e julgamento
E tendo em consideração que se trata de uma acção declarativa cível de valor superior à alçada do tribunal da Relação e em que se prevê a intervenção do colectivo, os tribunais competentes para a preparação e julgamento são as varas cíveis, ainda que, por virtude de o réu não oferecer a sua defesa, não haja efectivamente lugar à intervenção daquele tribunal.
É que não nos parece estarmos perante um caso em que seja aplicável o nº 4 do artigo 97º, ou seja: são remetidos às varas cíveis, para julgamento e ulterior devolução, os processos que não sejam originariamente da sua competência.
A competência originária é das varas e não dos juízos. Com efeito, salvo melhor opinião (tratando-se, como se trata, de uma acção cível de valor superior à alçada do tribunal da relação) não se exige a efectiva intervenção do tribunal colectivo, sendo suficiente a mera previsibilidade, possibilidade ou probabilidade desse tribunal ser chamado a intervir. E não nos parece que se justifique que a acção seja proposta nos juízos cíveis, sendo depois remetida para as varas nos casos em que houver lugar a julgamento, quando é certo que, em teoria, este sempre poderá ter lugar. Para tanto basta que a acção seja contestada ou o interrogatório e o exame não forneçam os elementos necessários para que a interdição ou a inabilitação sejam desde logo decretadas.
Concluímos, assim, no sentido de que os tribunais competentes para conhecer dos processos especiais de interdição são, em Lisboa, as varas cíveis.
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Por todo o exposto acorda-se em conceder provimento ao agravo, revogando-se o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro, que considere competentes as Varas Cíveis para conhecer da presente acção especial de interdição, in casu, a 9ª Vara Cível à qual foi distribuída.

Sem custas.

Lisboa, 21.03.2006.

Pimentel Marcos
Abrantes Geraldes
Maria do Rosário



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(1).-O ora relator foi também relator no recurso nº 9933/03 em que a questão era a mesma, pelo que aqui se vai reproduzir no essencial.

(2).-Miguel Teixeira de Sousa, in “A Nova Competência dos Tribunais Civis”, pags. 29 e 30.