Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1724/14.0TFLSB.L1-3
Relator: CONCEIÇÃO GOMES
Descritores: EXECUÇÕES POR MULTA
COIMA E CUSTAS
FALTA DE INTERESSE PROCESSUAL OU DE INTERESSE EM AGIR
AS CIRCULARES DA P.G.R. SÃO REGULAMENTOS INTERNOS
NÃO CONSTITUEM FONTE DE DIREITO
O MINISTERIO PUBLICO TEM AUTONOMIA PARA INSTAURAR A EXECUÇÃO
MAS ESTA VINCULADO AO JUIZO PONDERATIVO DO ART. 35º
Nº 4. 2ª. PARTE DO REGULAMENTO DAS CUSTAS PROCESSUAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – As execuções por multa, coima e custas regem-se pelo disposto no Código de Processo Civil e pelo Regulamento das Custas Processuais (art. 510º, do CPP e 89º, do RGCO).
II – O art. 35º, nº4, do Regulamento das Custas Processuais, ao determinar que «O Ministério Público apenas instaura a execução quando sejam conhecidos bens penhoráveis do devedor que se afigurem suficientes face ao valor da execução, abstendo-se de a instaurar quando a dívida seja de montante inferior aos custos da atividade e às despesas prováveis da execução», consagra na 2ª parte do preceito, uma condição de ação executiva, na medida em que estabelece um juízo de ponderação normativo para a instauração da execução, ou seja, o interesse processual, consubstanciado na circunstância do demandante ter razão para solicitar e conseguir a tutela judicial pretendida.

III- A condição de ação prevista no citado normativo (art. 35º, nº4, 2ª parte do RCP), abstendo-se de a instaurar quando a dívida seja de montante inferior aos custos da atividade e às despesas prováveis da execução», mais não significa que o legislador entendeu que se deve fazer um juízo de ponderação, em cada caso concreto, entre as vantagens para o Estado Português em intentar uma execução e os custos financeiros para o Estado, considerando o montante da quantia exequenda, uma vez que estamos no domínio de uma execução instaurada pelo Ministério Público, proveniente de multas, coimas e custas, que revertem a favor do Estado, e não de um particular.

IV- Esse juízo de ponderação normativo consiste em que a execução só deve ser instaurada se o montante da dívida exequenda for superior aos custos da atividade e às despesas prováveis da execução. Caso contrário, se o juízo de ponderação for no sentido de que o montante da dívida exequenda é inferior ao montante dos custos da atividade e às despesas prováveis da execução, não há lugar à instauração da execução.

V- A falta de interesse processual ou de interesse em agir constitui uma exceção dilatória inominada, do conhecimento oficioso, que dá lugar à absolvição da instância (arts. 576º, nº2 e 578º, do NCPC), que constitui causa de indeferimento liminar do requerimento executivo, ao abrigo do disposto no art. 726º, nº 2, al. b), do NCPC.

VI - As circulares são normas jurídicas emanadas pela administração através das quais se define a padronização de condutas e regras, tendo uma função uniformizadora, destinando-se aos interesses de cada setor, ou seja, tratam-se de regulamentos internos.

VI - A Circular da P.G.R. n.º9/2006, datada de 28/12/2006, é um regulamente interno, não constitui fonte de direito, porquanto não consta da identificação taxativa constante do art. 112º, nº1, da CRP, dos atos legislativos, tem por finalidade a interpretação de determinadas normas, ou, mais amplamente a determinação do sentido em que deve ser entendido e aplicado o Direito a certo tipo de casos ou situações, e produz os seus efeitos jurídicos unicamente no interior da esfera jurídica da pessoa coletiva pública de que emana, no caso os Magistrados do Ministério Público.

VII - O Regulamento das Custas Processuais constitui um regulamento complementar, destinado assegurar a execução de uma lei substantiva, na medida em dá execução ao Decreto-Lei que o aprovou, e estatuindo no art 35º, nº4, 2º parte, a condição de instauração da ação executiva.

VIII - O Ministério Público tem autonomia para instaurar a execução, mas está vinculado ao juízo ponderativo do art. 35º, nº4, 2ª, parte do Regulamento das Custas Processuais «deve abster-se quanto a dívida exequenda seja de montante inferior aos custos e despesas prováveis da execução».

IX - Os recursos visam a revisão da legalidade ou ilegalidade de uma decisão judicial, apenas havendo que conhecer no Tribunal “ad quem” da decisão recorrida e dos vícios de forma ou de fundo, que lhe são imputados, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, sendo que ao recorrente incumbe-lhe invocar os fundamentos das razões jurídicas com que se pretende obter o provimento do recurso (as razões do pedido).

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa

1. RELATÓRIO .

1.1. No âmbito do processo de execução comum por coima e custas nº 1724/14.0TFLSB do 2º Juízo de Pequena Instância Criminal de Lisboa, movida pelo Ministério Público contra A, por despacho de 14JUL14 a Mmª Juíza “a quo” indeferiu o requerimento executivo, porquanto o montante da dívida que é inferior aos custos da atividade e às despesas prováveis da execução, pelo que o Ministério Público deve abster-se de instaurar a execução, nos termos do artigo 35º, nº4, do Regulamento das Custas Processuais aplicável ex vi arts. 89°, nº2 do RGCO e arts. 491° e 510°, ambos do Código de Processo Penal.
            1.2. Inconformado com o despacho dele interpôs recurso o Ministério Público, que motivou, concluindo nos seguintes termos: (transcrição):

3.1. O Ministério Público propôs, ao abrigo do disposto no artigo 89.º, n.º2, do Regime Geral de Contra-Ordenações e Coimas, acção executiva para pagamento de coima e custas aplicadas por decisão administrativa.

3.2. Contudo, o tribunal a quo indeferiu liminarmente tal requerimento executivo, por considerar que o Ministério Público deveria ter-se abstido de o instaurar nos termos do artigo 35.º, n.º4, 2ªparte, do Regulamento das Custas Processuais.

3.3. Por um lado, o disposto no artigo 35.º, n.º4, 2ª parte, do Regulamento das Custas Judiciais, não é, directa ou subsidiariamente, aplicável a coimas e, consequentemente, não é aplicável aos presentes autos.

3.4. Com efeito, conforme se refere na versão actualizada da Circular da P.G.R. n.º9/2006, datada de 28/12/2006, «(…) II. Nos termos das disposições conjugadas dos arts. 89º, nº 2 do Decreto-Lei 433/82, de 27 de Outubro e do art. 491º, nº 2 do Código de Processo Penal, a execução para pagamento coercivo de coima segue os termos da execução por custas, prevista nos arts. 35º e 36º do Regulamento das Custas Judiciais. Aquela remissão legal deve ser entendida no sentido de que à execução por coima se aplica o regime processual das execuções por custas (tal como se aplica, de resto, à execução das multas criminais). Essa aplicação, deve, no entanto, ter sempre presente a diferente natureza das quantias a executar e as finalidades que lhe estão subjacentes. De facto, as coimas e as custas têm natureza diversa, o que determina a necessidade de ser ponderada e considerada essa diferente natureza na aplicação concreta daquele regime. A coima é uma sanção, resultante de uma condenação por contra-ordenação. Corresponde ao sancionamento de uma conduta qualificada pela lei como um facto típico, ilícito e censurável (artigo 1º, do Decreto-Lei 433/82, de 27/10 ). A sua execução coerciva tem como finalidade o cumprimento de uma sanção com carácter punitivo, aplicada no âmbito de um ordenamento jurídico sancionatório. Contrariamente, as custas constituem encargos com a justiça, não têm natureza sancionatória, não se equiparando a sanções penais. Por isso mesmo, o disposto no art. 35º, nº 4, 2ª parte do Regulamento das Custas Judiciais não é aplicável às execuções (a instaurar ou instauradas ) para pagamento coercivo de dívida de coima. (…) IV - Tendo em conta o exposto, (…) ao abrigo do disposto no art. 12º, nº 2, al. b), do Estatuto do Ministério Público, determino que os Senhores Magistrados e Agentes do Ministério Público observem e sustentem o seguinte:  1 - A remessa legal feita pelas disposições conjugadas do art. 89º, nº 2 do Decreto Lei 433/82, de 27 de Outubro e do art. 491º do Código de Processo Penal, para o regime processual da execução por custas, não poderá deixar de salvaguardar a natureza das dívidas a executar e as finalidades da execução. 1.2 - Considerando, pois, a natureza da coima, sanção de carácter punitivo, o disposto no art. 35º, nº 4, 2ª parte, do Regulamento das Custas Judiciais não será aplicável quando esteja em causa a instauração de uma execução para pagamento de dívida de coima, nem no âmbito de execução já instaurada para o mesmo efeito. 1.3 - Recebido um processo de contra-ordenação, remetido por autoridade administrativa para efeitos do disposto no art. 89º do Decreto-Lei n.º433/82, de 27 de Outubro (ou tendo vista de processo de contra-ordenação pendente em Tribunal para os mesmos efeitos ), os senhores Magistrados do Ministério Público, desde que reunidos os demais pressupostos legais, deverão instaurar execução, independentemente do valor da coima a executar. (…)»

3.5. Por outro lado, a decisão de o Ministério Público instaurar acção executiva não poderia, salvo melhor opinião, ter sido judicialmente sindicada. Com efeito, trata-se de competência exclusiva do Ministério Público, tendo o tribunal a quo violado a autonomia prevista no artigo 219.º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa, ao declarar que o mesmo deveria ter-se abstido de instaurar execução por coima e custas.

3.6. Acresce que no caso em análise não só inexiste qualquer causa de indeferimento liminar do requerimento executivo prevista no artigo 726.º do Código de Processo Civil, como tal não foi invocado no despacho em crise.

Nestes termos e nos demais de direito aplicável, que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve o presente recurso ser declarado procedente e revogado o despacho em crise, o qual viola o disposto nos artigos supra indicados.
1.3. Nesta Relação o Exmº Procurador Geral Adjunto nada disse, uma vez que o recurso foi interposto e admitido como apelação.
            1.4. Foram colhidos os Vistos legais.
***
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Resultam dos autos as seguintes ocorrrências processuais relevantes para a decisão do presente recurso:

2.1.1. O Ministério Público junto do 2º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa instaurou execução comum por coima e custas, contra A, com base na decisão da Autoridade Nacional da Segurança Rodoviária, datada de 25FEV13, que aplicou ao ora executado a coima no montante de €90 (noventa euros) e €52.50 de custas no âmbito do processo de contraordenação nº 968529011.

2.1.2. Por despacho de 14JUL14 a Mmª Juíza “a quo” indeferiu o requerimento executivo, nos seguintes termos: «Atento o montante da dívida que é inferior aos custos da actividade e às despesas prováveis da execução, o M.P. deve abster-se de instaurar a execução, nos termos do artigo 35º, nº4, do Regulamento das Custas Processuais aplicável ex vi artigos 89°, nº2 do RGCO e 491º e 510°, ambos do Código de Processo Penal.

Pelo exposto, indefiro o requerimento executivo.

Sem custas por legalmente inadmíssiveis.

Proceda-se ao arquivamento dos autos.

Notifique».
***

           

3. O DIREITO

No caso subjudice o recurso é restrito à matéria de direito.
3.1. As questões que emergem no presente recurso, em face das conclusões formuladas pela recorrente, que delimitam o objeto do recurso, são as seguinte:

- se o despacho recorrido violou o disposto no artigo 35º, nº4, 2ª parte, do Regulamento das Custas Processuais, por não ser aplicável aos presentes autos;

- se o despacho recorrido violou o art. 762º do Código de Processo Civil,

- se o tribunal a quo violou a autonomia do Ministério Público prevista no artigo 219º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, ao declarar que o mesmo deveria ter-se abstido de instaurar execução por coima e custas.

3.1.1. Vejamos, pois, as questões suscitadas pelo recorrente.

Como resulta do despacho sob recurso, a Mmª Juíza “a quo”, indeferiu o requerimento executivo, com os seguintes fundamentos: «Atento o montante da dívida que é inferior aos custos da actividade e às despesas prováveis da execução, o M.P. deve abster-se de instaurar a execução, nos termos do artigo 35º, nº4, do Regulamento das Custas Processuais aplicável ex vi artigos 89°, nº2 do RGCO e 491º e 510°, ambos do Código de Processo Penal».

Consagra o art. 89º, do Regime Geral das Contraordenações, sob a epígrafe “Da Execução”:

1 - O não pagamento em conformidade com o disposto no artigo anterior dará lugar à execução, que será promovida, perante o tribunal competente, segundo o artigo 61.º, (...)

2 - A execução é promovida pelo representante do Ministério Público junto do tribunal competente, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Penal sobre a execução da multa.

3 - Quando a execução tiver por base uma decisão da autoridade administrativa, esta remeterá os autos ao representante do Ministério Público competente para promover a execução

4. (...)

Por seu turno o art. 491º, do Código do Processo Penal, sob a epígrafe Não pagamento da multa”, inserido no Livro X – Das Execuções, Título III Da execução de penas não privativas da liberdade, Capítulo I “Da Execução da Pena de Multa”, do citado diploma legal, dispõe no seu nº1, que: «1- Findo o prazo de pagamento da multa ou de alguma das suas prestações sem que o pagamento esteja efectuado, procede-se à execução patrimonial», dispondo o nº 2, que: «Tendo o condenado bens suficientes e desembaraçados de que o tribunal tenha conhecimento ou que ele indique no prazo de pagamento, o Ministério Público promove logo a execução, que segue os termos da execução por custas».

            O art. 510º, do Código de Processo Penal, sob a epígrafe, “Lei aplicável”, inserido no Tìtulo VI “Da Execução de bens e destino das multas”, do Livro X, do mesmo compêndio normativo, determina que «Em tudo o que não esteja especialmente previsto neste Código, a execução de bens rege-se pelo disposto no Código de Processo Civil e no Regulamento das Custas Processuais.»

O Regulamento do Código das Custas Processuais, na redação dada , pelo Decreto-Lei nº 34/2008 de 26 de fevereiro, e pelo DL n.º 126/2013, de 30 de agosto, determina no seu art. 35º, sob a epígrafe, “Execução”, o seguinte:

«1 - Não tendo sido possível obter-se o pagamento das custas, multas e outras quantias cobradas de acordo com os artigos anteriores, é entregue certidão da liquidação da conta de custas ao Ministério público, para efeitos executivos, quando se conclua pela existência de bens penhoráveis.

2 - A certidão de liquidação, juntamente com a sentença transitada em julgado, constitui título executivo quanto à totalidade das quantias aí discriminadas.

3 - Quando se trate de custas relativas a actos avulsos que não se venham, previsivelmente, a integrar em qualquer processo, é emitida pela secretaria certidão de liquidação autónoma, com força executiva própria, a qual serve de suporte à execução a instaurar pelo Ministério Público.

4 - O Ministério Público apenas instaura a execução quando sejam conhecidos bens penhoráveis do devedor que se afigurem suficientes face ao valor da execução, abstendo-se de a instaurar quando a dívida seja de montante inferior aos custos da actividade e às despesas prováveis da execução. (sublinhado nosso)

5 - A execução instaurada pelo Ministério Público é uma execução especial que se rege pelo disposto no presente artigo e, subsidiariamente, pelas disposições previstas no Código de Processo Civil para a forma sumária do processo comum para pagamento de quantia certa». (acrescentado pelo DL nº 126/2013, de 30 de Agosto).

3.1.2. No caso dos autos, estamos perante uma execução comum por coima e custas que se rege pelo disposto no Código de Processo Civil e pelo Regulamento das Custas Processuais (art. 510º, do CPP e 89º, do RGCO).

Conforme diz Manuel de Andrade, [1] o interesse processual «consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial. É o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo intermédio: de um estado de coisas reputado de bastante grave para o demandante, por isso tornando-se legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o que a ordem jurídica lhe reconhece. Também pode falar-se de interesse processual pela parte do demandado. (...)». Sobre a necessidade deste requisito, escreve este autor, in ob. ci., pág, 82, que «a nossa lei não põe explicitamente este requisito. (...) Resta saber, por último, se não pode e deve incluir-se na legitimidade das partes, tal como entendeu a nossa lei (art. 26º)», [a que corresponde atualmente art. 30º, do NCPC]. Quanto à qualificação do interesse processual, escreve o citado autor, « Também aqui a lei continua a não ser explícita. Em bom rigor parece tratar-se não dum simples pressuposto processual, mas de uma condição da acção, pois a falta de interesse processual significa não ter o demandante razão para solicitar e conseguir a tutela judicial pretendida. Resta, todavia a eventual possibilidade de este requisito ser incluído no art. 26º». (sublinhado nosso)

            O conceito de condições da ação, tal como diz Manuel de Andrade, in ob. cit. pág. 74, «Usa dar-se este nome aos requisitos indispensáveis para ser julgada procedente a acção; para ser concedida, portanto, a providência judiciária solicitada pelo demandante (condenação, execução, simples apreciação, etc.).

A primeira de todas estas condições é que o demandante tenha razão segundo o direito material. Para tanto deve a situação de facto por ele deduzida em juízo (espécie ou factualidade real) ter certa relação com a hipótese de uma norma desse direito (espécie legal). Tal relação, geralmente deve ser de coincidência; mas por vezes (acção de simples apreciação negativa) é de não coincidência. Esta principal condição é de natureza substancial. A doutrina tradicional costuma por como condições de acção outros dois requisitos, estes já, em parte, de natureza processual: o interesse processual e a legitimação». (sublinhado nosso)

O art. 26º, nº2, do Código do Processo Civil, a que corresponde atualmente o art. 30º, nº2, do Novo Código do Processo Civil, refere-se ao interesse processual, definindo-o nos seguintes termos: «O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.»

Analisando o comando normativo constante do art. 35º, nº4, do Regulamento das Custas Processuais, ao determinar que «O Ministério Público apenas instaura a execução quando sejam conhecidos bens penhoráveis do devedor que se afigurem suficientes face ao valor da execução, abstendo-se de a instaurar quando a dívida seja de montante inferior aos custos da actividade e às despesas prováveis da execução», consagra, na 2ª parte do preceito, uma condição de ação executiva, na medida em que estabelece um juízo de ponderação normativo para a instauração da execução, ou seja, o interesse processual consubstanciado na circunstância do demandante ter razão para solicitar e conseguir a tutela judicial pretendida.

A condição de ação prevista no citado normativo (art. 35º, nº4, 2ª parte do RCP), ao consagrar que: «abstendo-se de a instaurar quando a dívida seja de montante inferior aos custos da atividade e às despesas prováveis da execução», mais não significa que o legislador entendeu que se deve fazer um juízo de ponderação, em cada caso concreto, entre as vantagens para o Estado Português em intentar uma execução e os custos financeiros para o Estado, considerando o montante da quantia exequenda, uma vez que estamos no domínio de uma execução instaurada pelo Ministério Público, proveniente de multas, coimas e custas, que revertem a favor do Estado, e não de um particular.

Esse juízo de ponderação normativo, consiste em que a execução só deve ser instaurada se o montante da dívida exequenda for superior aos custos das atividade e às despesas prováveis da execução. Caso contrário, se o juízo de ponderação, for no sentido de que o montante da dívida exequenda é inferior ao montante dos custos da atividade e às despesas prováveis da execução, não há lugar à instauração da execução.

No caso dos autos, efetuado o juízo de ponderação entre a quantia exequenda - € 145 – e o montante dos custos da atividade e as despesas prováveis da execução, impõe-se concluir que não se verifica a supra referida condição da ação executiva, o que revela a falta de interesse processual por parte do exequente, ou seja, o Estado Português, representado pelo Ministério Público.

Efetuado um juízo de prognose póstuma sempre o custo da ação executiva por parte do Estado é superior ao proveito que se pretende alcançar com a cobrança da quantia exequenda. Daí que não tenha o Estado interesse agir.

A falta deste interesse processual ou de interesse em agir constitui uma exceção dilatória inominada, do conhecimento oficioso, que dá lugar à absolvição da instância (arts. 576º, nº2 e 578º, do NCPC), motivo pelo qual sempre a Mmª Juíza “a quo” pode indeferir o requerimento executivo, ao abrigo do disposto no art. 726º, nº 2, al. b), do NCPC.

3.1.3. Como é sabido, os recursos visam a revisão da legalidade ou ilegalidade de uma decisão judicial, apenas havendo que conhecer no Tribunal “ad quem” da decisão recorrida e dos vícios de forma ou de fundo, que lhe são imputados, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso.

De harmonia com o disposto no art. 412º, nº1, do CPP «A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido».
Como decorre do mencionado art. 412º, nº 1, do CPP, as conclusões da motivação de recurso constituem uma súmula, lógica e sintética, dos fundamentos das razões jurídicas com que se pretende obter o provimento do recurso (as razões do pedido).
É pacífico que o objeto e o âmbito dos recursos são fixados pelas conclusões formuladas na respetiva alegação, sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso.[2]

3.1.4. Revertendo ao subjudice, em função do direito adjetivo acima referido o recorrente tinha que atacar o despacho no domínio do erro de julgamento na apreciação das circunstâncias de facto e sua subsunção, indevida, na condição de acção plasmada na 2ª parte do art. 35º, nº4, do Regulamento das Custas Processuais, em ordem a concluir que o juízo de ponderação normativo, derivado do montante da dívida exequenda não é inferior ao montante dos custos da atividade e às despesas prováveis da execução, demonstrando que seu entender essa dívida exequenda, ao contrário da previsão legal que sustenta a abstenção de instaurar a execução, é superior aos custos que a norma refere.

No recurso interposto nada disto se verifica, o que significa que o recurso interposto não ataca o despacho limitando-se a invocar uma Circular da Procuradoria Geral da República.

Com efeito, invoca o recorrente a Circular da P.G.R. n.º9/2006, datada de 28/12/2006, segundo a qual «Considerando, pois, a natureza da coima, sanção de carácter punitivo, o disposto no art. 35º, nº 4, 2ª parte, do Regulamento das Custas Judiciais não será aplicável quando esteja em causa a instauração de uma execução para pagamento de dívida de coima, nem no âmbito de execução já instaurada para o mesmo efeito».

3.2. Vejamos qual a natureza jurídica da Circular.

As circulares são normas jurídicas emanadas pela administração através das quais se define a padronização de condutas e regras, tendo uma função uniformizadora, destinando-se aos interesses de cada setor, ou seja, trata-se de um regulamento interno.

Como nos diz a doutrina especializada «Na ordem jurídica portuguesa, o art. 112º, nº1, da CRP, identifica taxativamente as formas de lei, das quais não consta o regulamento, e exclui a admissibilidade de um conceito de lei exclusivamente assente na generalidade e na abstração. Para mais, o que caracteriza a lei de um ponto de vista material não são os aspetos meramente tendenciais da generalidade e da abstração, mas sim o seu caráter político; a distinção substancial entre lei e regulamento, é, portanto, decorrente da distinção entre função legislativa e função administrativa: a lei partilha do caráter primário da função legislativa, enquanto o regulamento partilha do caráter secundário da função administrativa, estando por isso subordinado ao princípio da legalidade».[3]

As circulares têm orientações, recomendações e princípios norteadores, podem produzir efeitos jurídicos externos sobre os particulares de forma indireta através dos seus destinatários que estão hierárquicamente vinculados a aplicá-las.

As circulares podem - e é essa a hipótese mais frequente e, por assim dizer, típica - ter por finalidade a interpretação de determinadas normas, ou, mais amplamente (englobando nesses moldes também a integração de eventuais lacunas), a determinação do sentido em que deve ser entendido e aplicado o Direito a certo tipo de casos ou situações[4].

As circulares não são atos administrativos diretamente impugnáveis, não sendo atos administrativos strico sensu, só sendo impugnáveis diretamentos os atos administrativos que, num caso concreto as apliquem.

            Uma circular ou um regulamento interno, não constitui fonte de direito, porquanto não constam da identificação taxativa constante do art. 112º, nº1, da CRP, dos atos legislativos «São atos legislativos as leis, os decretos-leis e os decretos legislativos regionais», dos quais não constam o regulamento ou circulares.

            O art. 112º, nº2, da CRP consagra que: «Nenhuma lei pode criar outras categorias de atos legislativos ou conferir a atos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos».

Como refere o Prof. Freitas do Amaral, [5]«os regulamentos dividem-se, quanto à projeção da sua eficácia, em regulamentos internos e externos. (sublinhado nosso)

São regulamentos internos os que produzem os seus efeitos jurídicos unicamente no interior da esfera jurídica da pessoa colectiva pública de que emanam. (sublinhado nosso)

São regulamentos externos aqueles que produzem efeitos jurídicos em relação a outros sujeitos de direito diferentes, isto é, em relação a outras pessoas colectivas públicas ou em relação a particulares».

Quanto à distinção entre regulamento e lei, e como se distinguem entre si a lei e o regulamento administrativo, considera o Prof. Freitas do Amaral, à luz dos dados do nosso direito positivo, que o critério correto é «que a distinção entre ambos só pode ser feita no plano formal e orgânico. Ou seja, tanto a lei como «o regulamento são materialmenté normas jurídicas; a diferença vem da diferente posição hierárquica dos órgãos, de onde emanam e, consequentemente "ao diferente valor formal de uma e de outro (a lei pode revogar o regulamento; o regulamento não pode revogar a lei e, se a contrariar, é ilegal). (...)

Apenas por aspectos orgânicos e formais é, pois, possível estabelecer a destrinça entre lei e regulamento. Portanto, à luz do direito positivo vigente, é lei todo o acto que provenha de um órgão com competência legislativa e que assuma a forma de lei, ainda que o seu alcance seja estritamente individual e concreto; é regulamento todo o acto dimanado de um órgão com competência regulamentar e que revista a forma de regulamento, ainda que seja independente ou autónomo e, por conseguinte, inovador».

Também o Prof. Sérvulo Correia,[6] dá a definição de regulamento que «pode entender-se a norma jurídica de carácter geral e execução permanente, de grau hierarquicamente inferior ao dos actos legislativos, dimanada de uma autoridade administrativa sobre matéria própria da sua competência.

Quanto à sua dependência relativamente a certa lei, os regulamentos podem ser independentes ou autonomos e complementares.

Os regulamentos complementares são elaborados e publicados em seguimento a uma lei e para assegurar a respectiva execução pelo desenvolvimento dos seus preceitos basilares.

Os regulamentos independentes ou autónomos são elaborados e publicados no exercício da competência própria do órgão de uma pessoa colectiva pública para o desempenho das atribuições normais dessa pessoa. Não se propõem pois assegurar a execução de uma certa lei anterior. Como escreve o Prof Marcello Caetano, tais regulamentos subordinam-se à letra e ao espírito geral das leis existentes, «mas o seu objectivo é o de facilitar a acção administrativa em si memo considerada, e a lei que directamente executam é a que, sobre matéria nela contida, atribui competência à autoridade que a elabora. São estes regulamentos que verdadeiramente assentam no Poder administrativo».

Em suma, os regulamentos podem reger relações de direito privado entre particulares, mas quando se tratar de regulamentos complementares, isto é, que assegurem a execução de uma lei substantiva, poderá a Administração ,estabelecer normas que extingam ou restrinjem direitos dos particulares de conteúdo patrimonial».[7](sublinhado nosso)

Aplicando a doutrina citada ao caso em apreciação, podemos concluir que, a Circular da P.G.R. n.º9/2006, datada de 28/12/2006, invocada pela recorrente, é um regulamente interno, não constitui fonte de direito, porquanto não consta da identificação taxativa constante do art. 112º, nº1, da CRP, dos atos legislativos, tem por finalidade a interpretação de determinadas normas, ou, mais amplamente a determinação do sentido em que deve ser entendido e aplicado o Direito a certo tipo de casos ou situações, e produz os seus efeitos jurídicos unicamente no interior da esfera jurídica da pessoa coletiva pública de que emana, no caso os Magistrados do Ministério Público.

O Regulamento das Custas Processuais constitui um regulamento complementar destinado assegurar a execução de uma lei substantiva, na medida em dá execução ao Decreto-Lei que o aprovou, e estatuindo no art 35º, nº4, 2º parte, a condição de intauração da ação executiva, nos termos acima expostos.

3.3. Alega ainda o recorrente que o despacho recorrido violou autonomia do Ministério Público prevista no artigo 219º, nº2, da Constituição da República Portuguesa, ao declarar que o mesmo deveria ter-se abstido de instaurar execução por coima e custas, pelo que, a decisão de o Ministério Público instaurar ação executiva não poderia ter sido judicialmente sindicada, por se tratar de competência exclusiva do Ministério Público.

Sobre este ponto diremos que:

O Ministério Público tem autonomia para instaurar a execução, mas está vinculado ao juízo ponderativo do art. 35º, nº4, 2ª, parte do Regulamento das Custas Processuais «deve abster-se quanto a dívida exequenda seja de montante inferior aos custos e despesas prováveis da execução».

E é este raciocínio constante do despacho judicial recorrido, que o recorrente não ataca no seu recurso, limitando-se a invocar uma circular interna, totalmente irrelevante para o efeito, na medida em que pelas razões de direito já expostas supra, uma circular interna não tem força jurídica para contrariar uma disposição legal, no sentido de que o Ministério Publico não tem que se abster, mas tem sempre que instaurar a execução ainda que a dívida exequenda seja inferior em montante dos custos e das despesas prováveis da execução, desprezando assim, o regime normativo do art. 35º, nº4, 2ª parte do RCJ.

Ora, é evidente que, conforme supra referimos, as circulares, que são regulamentos internos, no domínio da hierarquia das fontes de direito, são atividade secundária não revogando a lei.

Do exposto resulta que o recurso está manifestamente votado ao insucesso, sendo os seus fundamentos inatendíveis, não tendo sido violados quaisquer dos preceitos invocados.

            Assim sendo, in casu, o recurso terá que ser rejeitado, por manifesta improcedência , nos termos do art. 420º, nº 1, al. a) do CPP.

                                                           ***
4. DECISÃO.

Termos em que acordam os Juizes que compõem a 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em rejeitar o recurso por manifesta improcedência.

Sem tributação.

Processado em computador e revisto pela relatora (art. 94º, nº 2, do CPP).

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Lisboa, 28 de janeiro de 2015

Maria da Conceição Simão Gomes (relatora)

Moraes Rocha


[1] In “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1976, pág. 79.
[2] Vide Ac. do STA-Pleno, de 08FEV95, in ADSTA, 403º-834, e no mesmo sentido, entre muitos outros os Acs. do STJ de 13MAR91, in Proc. nº 41 694/3ª, de 04MAR99, in CJ, Acs. do STJ, 1999, Tomo I, pág. 239.
[3] Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos, in Direito Administrativo Geral, Tomo III, 2ª ed. D. Quixote, pág. 249.
[4] Catelani, "Le circolari della pubblica amministrazione", Milão, 1984, pág. 21, citado no Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Deral da Républica de 28MAI98, publicado no DR nº 246, de 24OUT98.
[5] In “Curso de Direito Administrativo”, Vol 2, 2011, 2ª Ed Almedina, Págs. 189, 192 a 196, e 202 e 203.

[6] Sérvulo Correia, “Noções de Direito Administrativo”, Ed Danúbio, Lda, pág. 95, 105 e 106, 111 e 112.

[7] Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, Ed Danúbio, Lda, pág. 95, 105 e 106, 111 e 112.